Por dentro do Pró-Vida

(publicado em Marie Claire nº 68, novembro de 1996)

Poucas vezes o segredo funcionou tão bem como a alma de um negócio. O Pró-Vida cerca sua atuação de mistério. Apresenta-se como uma escola filosófica de desenvolvimento mental, mas não divulga métodos e conteúdo dos cursos. Quem quiser saber mais deve literalmente pagar para ver. Ou melhor, ingressar no quadro de alunos. É o que constato no primeiro telefonema, após receber de Marie Claire a missão de desvendar os bastidores desse enigmático grupo. Quando começo a frequentar o curso Básico, descubro que não se trata apenas de uma escola filosófica às voltas com as velhas interrogações do espírito humano – quem somos, por que vivemos, para onde iremos. Em muitos pontos, as aulas se assemelham aos cultos da Igreja Universal do Reino de Deus e afins. De maneira mais sutil, o Pró-Vida também envolve, incute idéias, desperta culpas, cobra dízimos. Não falta nem mesmo a revelação da existência de um paraíso na Terra.

Alguma vez na vida você ouviu falar que “um mundo melhor” existe aqui e agora? Para desfrutá-lo, basta entrar para o Pró-Vida e conviver com os “irmãos” do grupo. E não são poucos os que fazem essa opção. Chegam a abandonar outras atividades para marcar presença constante nos cursos, prestar trabalho voluntário e integrar definitivamente o rebanho de eleitos. A comparação é quase inevitável: o Pró-Vida atua como uma versão mais elaborada da igreja do bispo Edir Macedo. Dirige-se à classe média alta e, portanto, utiliza meios mais complexos de persuasão. O discurso dos monitores é articulado. No lugar de trechos bíblicos, supostas referências científicas. De Einstein a Freud e Jung, proliferam citações que procuram emprestar credibilidade aos ensinamentos.

Antes de descobrir esses e outros detalhes, tive de passar por uma entrevista para ser aceita no seleto rebanho. Durante a conversa não revelei, claro, minhas intenções jornalísticas. Criei uma pequena mentira. Disse ser uma publicitária em busca de sucesso profissional. Admito que estava um pouco amedrontada. Se soubessem ler pensamentos, como de fato sugerem, descobririam a farsa. Mas a história convenceu e fui aprovada com a garantia de que, ao final do curso, teria mudanças radicais na minha vida. Que tipo de mudanças? “Você verá os resultados”, desconversou uma educada monitora na faixa dos 50 anos.

A manutenção do suspense tem finalidade. O Pró-Vida funciona como um grupo “iniciático”, segundo a classificação do antropólogo José Guilherme Magnani, professor da Universidade de São Paulo. “É a mesma estrutura de sociedades como a maçonaria e a rosa-cruz”, ele compara. “Nessas organizações, há sempre um segredo mantido pela lealdade dos adeptos. É preciso passar por etapas para ter acesso a certas dimensões do grupo”. Quer dizer, para conhecer o referido “segredo”, é necessário prosseguir na iniciação – o que no Pró-Vida significa pagar mais e mais cursos. Como a meta é conquistar adeptos selecionados, de preferência os financeiramente saudáveis, a propaganda é dirigida. O Pró-Vida mantém uma página na Internet e promove divulgação boca-a-boca – alunos de cursos avançados levam parentes, amigos e conhecidos. Outra ferramenta publicitária é um adesivo para ser colado no vidro do carro. O anúncio traz uma frase que confirma o teor enigmático utilizado pelo grupo: “Se você já estiver preparado, uma força maior o levará ao Pró-Vida”. Quem ler – e não conseguir segurar a curiosidade – irá telefonar.

Logo no primeiro dia, percebo que o marketing do mistério funciona. Cerca de 60 pessoas desembolsaram R$ 350,00 para “aprender a utilizar melhor o cérebro”. A procura é tamanha que a organização promove de dois a quatro cursos iguais a este por mês – não só em São Paulo, mas também em várias cidades do país e em Buenos Aires, na Argentina. Faço uma conta rápida, considerando a presença mínima de 50 alunos em cada um deles, e constato que o Pró-Vida deve faturar pelo menos de R$ 35 mil a R$ 70 mil reais por mês só com essa fonte. E os cursos não são a única forma de ganhar dinheiro. O clube de Campo, situado em Araiçoiaba da Serra, no interior de São Paulo, é outro negócio bastante rentável.

É PROIBIDO ANOTAR

Uma nova sede do Pró-Vida em São Paulo está funcionando desde agosto. Erguido nas imediações da Marginal Pinheiros, o prédio ostenta uma vistosa pirâmide em sua fachada e abriga os cursos ministrados na capital paulista. Substituiu outras duas sedes, situadas nos bairros de Moema e Vila Olímpia. Fiz o Básico na casa da Alameda dos Nhambiquaras, em Moema, pouco tempo antes da inauguração do prédio da Marginal. No primeiro dia, uma segunda-feira, chego 30 minutos antes do horário estipulado. A aula estava marcada para começas às 20h30. Procuro um lugar vago entre as cadeiras enfileiradas, que acomodam homens e mulheres com idades e profissões variadas. Há médicos, engenheiros, professores, estudantes, publicitários, empresários, donas de casa. E também crianças e adolescentes (maiores de 9 anos podem frequentar o curso).

Enquanto espero, converso com uma colega. Ela namora um “avançado” do Pró-Vida e está lá por insistência dele. Tem 24 anos e é muito falante. A aula começa com atraso – o que se repete todos os dias. A monitora fala longamente sobre as agruras do mundo moderno, as guerras, as doenças, as drogas. Fico olhando os rostos atentos e percebo que três alunos avançados estão sentados em posição estratégica para assistir a platéia. Sinto-me vigiada. Tento decifrar o que estariam observando. Nessa primeira aula, a monitora garante que aquela semana mudará a nossa vida e promete algo do tipo: satisfação garantida ou seu dinheiro de volta”.

Durante a minha maratona de “desenvolvimento mental”, ouvi ensinamentos sobre o funcionamento do cérebro, sono, poderes das pirâmides, energia, aura e fenômenos de levitação e materialização. Participei de sessões de relaxamento e pratiquei exercícios comandados pela monitora. Mas, nesses tempos de farta literatura esotérica, cursos de auto-ajuda aos borbotões e familiaridade com anjos, achei que nada poderia ser visto como novidade.

O entusiasmo dos meus colegas, no entanto, confirmou não ser essa a opinião da maioria. Boa parte parecia estarrecida. Mas será o conteúdo que conquista os alunos ou a forma como ele é transmitido? Para se ter uma idéia, somos instruídos a “sentir” o que está sendo falado. Não temos autorização de fazer qualquer anotação. O professor do Departamento de Psicologia Social da Universidade de São Paulo, Esdras Guerreiro Vasconcellos, explica por que esse detalhe é tão importante, “O ensinamento da primeira noite é internalizado no nível da consciência, mas uma parte se perde. Na noite seguinte, outra leva de conhecimentos é internalizada da mesma forma e só uma parte fica – e assim sucessivamente”, afirma. Como nossa memória possui capacidade limitada, segundo o professor, a internalização torna-se um processo inconsciente. Com um agravante: o curso compacto não oferece tempo para elaborar o aprendizado. Conclusão: “A pessoa guarda essencialmente aquilo que tem valor emocional”. Em conversas durante os intervalos, percebo que muitos chegam ao Pró-Vida em busca do genérico “algo mais”. Ou estão embalados por crises conjugais, dificuldades profissionais, estresse acumulado.

A aula de terça-feira trata do sono e sonhos. Freud e Jung, os mais badalados estudiosos do tema, não são esquecidos. O bê-a-bá das teorias de ambos faz parte do menu de ensinamentos do dia. Depois, aprendemos a programar nosso cérebro para acordar no horário desejado, lembrar dos sonhos ou ter um sono revitalizante. Basta, antes de adormecer, em estado de relaxamento, emitir uma ordem objetiva para ele. Assim, se eu ordenar que “quero acordar às 7 horas”, despertarei. Se só possuo quatro horas disponíveis para dormir, devo apenas dizer com firmeza a meu cérebro que acordarei disposta e descansada. E ponto final.

CONTRABANDO DE EISNTEIN

A aula de quarta-feira é anunciada como especial e ansiosamente aguardada por todos. No encerramento da noite anterior, somos avisados de que teremos um grande dia. Receberemos um ensinamento, cunhado de “chave de prata”, que nos ajudará a abrir portas da felicidade. Durante a explicação, descobrimos que a “chave” em questão leva o nome pomposo de “Verdade Suprema e Absoluta ao nível da Consciência Humana”. Mas rapidamente verifico que o resumo da ópera é menos sofisticado e equivale à difundida idéia de que a energia do pensamento tem poderosa força. Todos são instruiídos a fazer “tela mental” para o que quiserem. Em outras palavras, quem almeja um carro novo precisa, em primeiro lugar, determinar marca, cor e detalhes. Depois, imaginar-se desfrutando da supermáquina, no velho estilo Lair Ribeiro. Se conseguir “eliminar conflitos” – do tipo “será que mereço?”-, vai obter o que pretende. Para convencer sobre a veracidade dessa sabedoria, a aula inclui exemplos de pessoas que alcançaram o desejado. Até mesmo a equação de Einstein – E=mc2 – entra na dança, numa tentativa de provar que a energia do pensamento é capaz de materializar desejos.

Naquele momento, suspeito que a teoria de Einstein foi retirada de seu contexto. O professor do Instituto de Física da USP Luiz Carlos de Menezes confirma minhas suspeitas. “É uma interpretação rastaqüera da ciência”, critica o físico. Ele explica que é possível transformar matéria em energia e vice-versa, desde que sejam observadas “determinadas leis de conservação”. E conclui: “Não desprezo outras formas de conhecimento que não sejam a dos cientistas. Mas tenho grande desconfiança desse contrabando de conceitos Você pode usar a fórmula de Einstein até para vender pasta de dentes”.

A noite da grande apoteose é marcada para sexta-feira. Teremos demonstrações de cura. Alunos avançados promovem uma sessão rápida de imposição de mãos. No melhor estilo Doril, a dor de cabeça de um colega simplesmente sumiu. Outro garante que se livrou do incômodo no estômago e uma terceira sente a inflamação na garganta aliviada. Lembro novamente dos cultos da Universal com suas curas, mas o pior ainda está por vir. Chegou a hora e a vez de despertar culpas e induzir todos a fazerem uma auto-avaliação. “Classifique-se”, ordena a monitora. Ela sugere que cada um faça uma auto-avaliação do seu estágio de evolução. A “evolução” pregada pelo Pró-Vida, a grosso modo, significa migrar do reino “mineral”, formado pelas pessoas menos evoluídas, passar pelo intermediário mundo “vegetal” e atingir o grupo dos “animais superiores”. Esses últimos, segundo eles, são aqueles que praticam “a ajuda verdadeira” e tratam os outros como “irmãos”.

Os últimos momentos da aula reservam mais surpresas. Faremos um exercício para sentir a chamada “harmonia universal”. Estamos relaxados quando a monitora começa a ler um texto escrito pelo fundador do Pró-Vida, o médico Celso Charuri. O texto descreve o ser evoluído como aquele que “conhece-se a si mesmo, tal qual é, e conhece a Deus”. Enquanto isso, uma fita mal gravada, com chiados de fundo, embala a catarse com a versão instrumental do tema da Disneylândia – “Para ser feliz é preciso ver / Este céu azul na imensidão… / Há um mundo bem melhor” etc. Muitos não seguram as lágrimas.

O sábado promove mais catarse. A monitora nos conduz a um castelo imaginário, onde encontraremos o chamado “guardião”ou o “eu maior”. Cada um pode enxergar a imagem que bem quiser. Durante o “encontro”, alguns choram e posso ouvir os soluços. No final, todos os alunos contam o que viram. O campeão absoluto das citações é Jesus Cristo. houve até quem mantivesse contatos imediatos com “um monge”, “um oriental” ou “um hindu”. Da minha parte, confesso que não vi nada.

Na manhã de domingo, estou esgotada. Na reta final da maratona, somos orientados a praticar tudo o que aprendemos nas aulas. Fazemos exercícios “parapsicológicos”em duplas. Imaginem, por exemplo, que meu companheiro fará minha mão levitar. Depois, eu repetirei a dose com a mão dele. Na hora, abro discretamente um dos olhos para conferir se meu colega já eliminou a força gravitacional. Vejo que sim e vou suspendendo vagarosamente minha mão para que ele se sinta feliz e satisfeito.

O destaque da manhã é a sessão de clarividência. Funciona mais ou menos assim: uma das partes da dupla entra em alfa (pratica o relaxamento) e a outra cochicha o nome de alguém de seu rol de amigos, acompanhado de idade e endereço. Quem ouviu não conhece a pessoa, mas deve visitá-la mentalmente e descrevê-la – e, quem sabe, falar algo sobre sua personalidade. Torci para que, pelo menos isso, desse certo. Tive uma clarividência? Claro que não. Quase todos, entretanto, garantem que obtiveram êxito. E quem errou a descrição contou com o apoio do companheiro e da monitora para arriscar uma adaptação convincente do que “viu”. Exemplo: se a “clarividente” enxergou uma morena, e ela é loira, chutavam: mas será que ela não pintou o cabelo? Pior: mas será que não pensa em mudar a cor? E assim por diante. Cada um relata sua história, os outros batem palmas e dão nota dez.

Um mês mais tarde, tenho a oportunidade de repetir o Básico. Os interessados em prosseguir na “iniciação” necessitam cumprir esse procedimento. Precisam assistir de novo às sete aulas e registrar oficialmente a presença. Desta vez, contabilizo mais de cem novatos, além de cerca de 200 “repetentes”. Desde o primeiro momento, percebo que o discurso é igualzinho. Mudou o monitor, mas as aulas continuam as mesmas. Como no primeiro Básico, muitas perguntas ficam sem resposta porque são assunto de cursos mais avançados. Um colega pergunta por que a pirâmide azul é mais indicada para auxiliar curas. A resposta: “Isso você vai saber no Avançado 1”. Nem todos, porém, chegarão lá. no terceiro dia de repetição, constato a desistência da jovem publicitária, que foi minha colega na primeira vez e era uma das mais entusiasmadas. Ao mesmo tempo, outro colega, um empresário de 33 anos, confidencia que não tem certeza se prosseguirá. Passou a fase da empolgação. Um dia, até brincou comigo que estava se sentindo “na igreja do Edir Macedo”.

DÍZIMOS PARA TREINAR O CÉREBRO

Aqueles que resistem à provoção de assistir a todas as aulas novamente – e permanecem entusiasmados – estão fisgados e prontos para se matricular no Avançado 1. E, aí, o céu pode não ser o limite. “Desde o Básico, o aluno vai sendo envolvido aula após aula. Colocam em sua cabeça que harmonia e amigos só se encontram ali. Você acaba se convencendo de que é mais do que os outros”, explica a ex-integrante Elza Aparecida de Castro. Conforme informações de ex-adeptos do grupo, depois do Avançado 1, vem o curso Introdução. Ambos custam igualmente R$ 350 e são seguidos dos Avançados 2 ao 7. Para ser promovido, é preciso passar por uma espécie de comissão julgadora, que escolhe os “eleitos”. Por isso, muitos adeptos permanecem anos no mesmo curso e não são autorizados a seguir adiante. Os que atingem os três últimos níveis são identificados por um crachá com o símbolo ” 4/ ” , que significa “avançados quatro e meio”. Do seleto grupo fazem parte basicamente diretores, conselheiros e monitores.

A exemplo de diversas seitas evangélicas, o Pró-Vida também recolhe dízimo. Não existe uma pressão escancarada para doar dinheiro como nos cultos da Igreja Universal, onde pastores aos berros lembram aos fiéis que “Deus quer dar, mas o demônio segura a carteira”. O convencimento é sutil. Quem colocar os pés na escola será contemplado por uma frase de pretenso efeito sugestivo: “O privilégio de ser nas mãos de quem dá”. Essa mensagem, assinada pela Central Geral do Dízimo e seguida pelo número de uma conta bancária está estampada nos crachás recebidos pelos alunos, nas paredes e até na página da Internet. O lucro, em última análise, é o sabor predominante nesse caldeirão que mistura psicanálise com neurolingüística, princípios de física com jargões de auto-ajuda, retórica evangélica com estrutura de maçonaria, parapsicologia com ficção científica.

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/por-dentro-do-pr%C3%B3-vida

CSICOP e o sTARBABY

A astrologia sempre incomodou. Desde a sua pré-adolescência no mundo helenista até os dias de hoje, nunca foi unanimidade. Defendida por uns, atacada por outros, atrai polêmicas, discussões acaloradas e a indignação irada de quem não se conforma com tão longeva existência. A muitos causa espanto estar viva e atuante no mundo racionalista e materialista de nossos dias. Presume-se que ela seja incompatível com a razão e com o mundo material, como se, por essência, pertencesse à esfera do irracional e místico. As investidas que vem sofrendo são duras, e como não atingem o objetivo pretendido, que é riscá-la de uma vez por todas da vida cultural do Ocidente, às vezes a dureza dá lugar àquele tipo de astúcia cultivada por pessoas para quem a ética é apenas um estorvo.

Alguns indivíduos do meio acadêmico não suportam a idéia de que uma boa parte da humanidade seja religiosa e se deixe orientar pela crença numa realidade espiritual ou sobrenatural. Para eles essa atitude é irracional, e mais do que isso, perigosa. Com o objetivo de proteger bilhões de pessoas desse mal que é a religião e seus correlatos: doutrinas místicas, ocultismo, esoterismo, e no meio de tudo isso também a parapsicologia e a astrologia, tomam para si a missão de empreender uma verdadeira cruzada contra a fé ingênua e supersticiosa desses “pobres ignorantes”. Alegam os esclarecidos senhores – a grande maioria é do sexo masculino – que a ciência é o único árbitro da verdade.

E de todas essas “superstições”, parece que a mais temível e danosa à razão humana é a astrologia. Tanto é assim que, na década de 70, um sujeito de nome Paul Kurtz, editor do periódico The Humanist, publicou na edição de setembro/outubro de 1975 o manifesto “Objeções à Astrologia”, com a assinatura de 186 cientistas, alguns dos quais eminentes. Ah, sim, antes que me esqueça, Kurtz era um professor de filosofia. Alguns viam talento naquilo que ele escrevia, outros chegaram a compará-lo, como filósofo, a Shirley MacLaine. Mas ninguém duvida de sua enorme aptidão para marketing e negócios. Provavelmente começou na carreira errada, mas depois corrigiu.

Nessa época, porém, tanto a revista quanto o editor não tinham qualquer expressão, mas Kurtz enviou o tal manifesto para quase todos os jornais dos Estados Unidos e do Canadá. Saiu até no New York Times, especialmente por causa dos nomes de alguns cientistas famosos que assinaram o Objeções. Foi esperto, o filósofo. Assim começou a atrair a atenção da mídia e no ano seguinte, 1976, nascia a criatura: The Committee for the Scientific Investigation of Claims of the Paranormal (Comitê para a Investigação Científica de Alegações de Paranormalidade), mais conhecido por CSICOP. O nome parece dizer tudo sobre seus objetivos. Mas apenas parece. Antes de explicarmos por que o CSICOP está longe de ser o que o nome sugere, ou melhor, afirma, é fácil demonstrar que a chave do seu significado está no acrônimo.

O nome do Comitê é construído de tal modo a formar, no acrônimo, a palavra cop, que em inglês significa tira, policial, como em Robocop, o tira robô. Aqui trata-se de os tiras, os autointitulados “policiais” da ciência. Aqueles que, imbuídos de “autoridade”, cuidam da vigilância, para que ninguém possa agir contra alguma lei, que no caso é a vontade autoritária desses indivíduos. Eles determinam o que é verdadeiro e o que não é, e a sociedade, claro, deve obedecer. É verdade que alguns de seus membros originais, como o sociólogo Marcello Truzzi, que depois deixou o Comitê, pretendiam promover o debate e a pesquisa em torno do tema, mas outros, como Kurtz, Martin Gardner e James Randi queriam mesmo era uma presença agressiva nos meios de comunicação e o desmascaramento de “impostores”. Não desejavam o debate, pois já tinham uma posição pré-estabelecida, fanática e inarredável.

As idéias de seus membros apareciam na publicação oficial do comitê, o Skeptical Inquirer, que sistematicamente apresentava os fenômenos paranormais e a astrologia como perigosos para a ciência e para a sociedade. Freqüentemente recorria-se à ridicularização e à ofensa grosseira a pessoas envolvidas nesses temas, e quase sempre só um dos lados tinha voz, aquele que interessava aos propósitos do CSICOP. O tom e o estilo da revista eram totalmente estranhos à postura científica que tanto defendia.

O Desafio

Houve, porém, uma única vez em que o CSICOP de fato se dispôs a realizar um experimento científico, e como não poderia deixar de ser, em tom de desafio. E o desafiado, ninguém menos que o nosso já conhecido Michel Gauquelin e seu polêmico Efeito Marte, de que já tratamos no artigo A Pesquisa de Michel Gauquelin (1928-1991). Só para recordar, Gauquelin dividiu a esfera celeste em 12 setores e descobriu, entre outras coisas, que 22% dos indivíduos de uma amostra de 2088 atletas europeus campeões nasciam quando Marte ocupava os setores 1 e 4. A probabilidade esperada seria de 17%, o que, dado o tamanho da amostra, é uma diferença bastante significativa em termos estatísticos. A chance do resultado ser obra do acaso é de um para alguns milhões.

A acirrada polêmica em torno desses resultados num determinado momento envolvia, de um lado, o casal Gauquelin e de outro, Paul Kurtz, George Abell, astrônomo, e Marvin Zelen, bioestatístico, todos do CSICOP. No calor da batalha, em meio a críticas e refutações, Zelen, que não confiava na amostra de Gauquelin, teve a infeliz idéia de fazer um teste definitivo: verificar, num novo grupo de controle, se a distribuição de Marte para a população média seria realmente de 17% naqueles dois setores. Caso se aproximasse de 22%, o valor encontrado por Gauquelin, estaria invalidado o Efeito Marte. Segundo Zelen, “Agora temos um método objetivo para corroborar ou refutar…”

Ótimo. Então o caso estaria resolvido com um experimento relativamente simples. Zelen era estatístico e muito provavelmente sabia o que estava propondo. Um dos membros do Conselho, entretanto, mostrou-se bastante preocupado.

Era Dennis Rawling, astrônomo, que mais tarde escreveria o acachapante artigo sTARBABY para a revista Fate, denunciando a farsa em que se transformara todo esse caso envolvendo o Efeito Marte. Rawling não concordava com os argumentos que estavam sendo apresentados, já detectara alguns erros e previa problemas, pois tudo indicava que pelo menos os cálculos de Gauquelin eram corretos. Embora também um cético, ele não via como provar o contrário. Sendo assim, por que arriscar a reputação do CSICOP?

Quase um ano depois, de acordo com o relato de Rawling, Abell ainda não havia reproduzido e verificado os cálculos originais de Gauquelin. A tarefa lhe parecia intrincada. Referindo-se à dificuldade do colega, Rawling escreveu: “Sua análise…baseava-se num almanaque fornecido pelo Observatório Naval dos Estados Unidos, que apresentava uma listagem das longitudes celestes de Marte num intervalo fixo. Em vez de usar a trigonometria esférica para converter as posições de Marte em coordenadas equatoriais (conforme exigia o experimento de Gauquelin), Abell persistia com as coordenadas eclípticas do programa do ONEU”.

Nessa altura, também Marcello Truzzi, então editor da Skeptical Inquirer, começava a discordar de artigos que insistiam em explicações demográficas para o Efeito Marte. Gauquelin já desmontara todos esses argumentos. Mas o trio Kurtz, Abell e Zelen não desistia. Rawlins até já redigira explicações matemáticas demonstrando os erros dos colegas céticos.

Como são espertinhos!

O experimento, portanto, basicamente resumia-se em formar um novo grupo de controle, reunindo pessoas comuns nascidas na mesma época e na mesma região dos atletas campeões. Primeiramente, Zelen queria utilizar apenas 100 ou 200 casos da amostra original de campeões, a partir dos quais seria localizado o grupo de controle. Mas essa subamostra era pequena demais para detectar o efeito em causa. É claro que Gauquelin não aceitou, apresentando evidências matemáticas da incorreção estatística que resultaria desse procedimento.

Por uma questão de viabilidade prática, acordou-se que um subgrupo de 303 campeões seria suficiente. Essa amostra acabou gerando 16.756 não-atletas como grupo de controle. Zelen procedeu a um rigoroso exame dos dados e encontrou os seguintes valores: 16,4% para o grupo de controle e 21,8% para os 303 atletas campeões, conforme indicava a previsão de Gauquelin. Assunto encerrado? De jeito nenhum.

Num artigo publicado pelo Zetetic Scholar de dezembro de 1982, Richard Kammann, professor de psicologia da Universidade de Otago, Nova Zelândia, dizia o seguinte: “Não há dúvida quanto à inquestionável vitória dos Gauquelin em relação ao efeito Marte – entre 16.756 pessoas comuns, Marte esteve nos setores 1 e 4 em 16,4% de seus nascimentos, conforme o esperado, enquanto para 2.088 esportistas campeões europeus Marte ocupou esses setores em 21,6 % dos nascimentos, uma diferença totalmente fora da esfera do mero acaso.

O que fez então o trio de “céticos”? Ora, a única coisa que estava ao seu alcance depois dessa fragorosa derrota: recorreu à astúcia capciosa. Dividiram a amostra de 303 campeões, que já era uma subamostra, em cinco subgrupos, segundo a região específica de origem e as fontes dos dados. Dessa maneira, apenas um subgrupo obteve resultado estatisticamente significativo, o restante não atingiu o mínimo. Reduzindo drasticamente o tamanho da amostra, o efeito Marte, obviamente, desaparecia. O próprio Michel Gauquelin, seis meses antes, já demonstrara que isso eliminaria o efeito planetário.

Os céticos se fizeram de desentendidos e passaram a apontar as “disparidades” e “anomalias” do experimento. Não satisfeitos com os malabarismos que fizeram, removeram os campeões do sexo feminino de uma das sub-subamostras e as mulheres do grupo de controle, tornando ainda menos significativo o resultado. O procedimento em si era uma verdadeira aberração estatística, uma ofensa à ciência! De nada valeram as advertências de Rawlins, ele mesmo um especialista em movimento planetário, e de Elizabeth Scott, professora de estatística da Universidade da Califórnia, em Berkeley, preocupados com as conseqüências para a reputação do CSICOP.

sTARBABY

O principal relato sobre os bastidores dessas peripécias e seus desdobramentos foi apresentado por Dennis Rawlings num artigo que escreveu para a edição de outubro de 1981 da revista Fate, uma publicação especializada em paranormalidade, new age e temas do gênero. O texto é um ataque feroz, um verdadeiro tomahawk dirigido aos antigos colegas de CSICOP, denunciando a prática de alguns desses senhores, especialmente o grande líder, Paul Kurtz, no tratamento da questão que envolve o incômodo Efeito Marte. Rawlings então já havia sido defenestrado do CSICOP e estava tremendamente irritado com a situação. Não deixou por menos. Entregou o ouro bem no campo do inimigo.

É interessante esclarecer o significado do título dado ao artigo original: sTARBABY. Rawlins faz aqui um divertido jogo de palavras em inglês. No sentido mais aparente, starbaby significaria algo como “filho das estrelas” ou o “bebê das estrelas”. Mas, no título, a palavra começa grafada com um “s” minúsculo e com as letras seguintes todas em maiúsculo, enfatizando uma segunda palavra: TARBABY. Ora, tarbaby é o nome do boneco de piche (tar é alcatrão, piche) de uma história infantil de J.C. Harris. O personagem principal, Brer Rabbit, cada vez que golpeava o boneco, ficava ainda mais grudado e preso ao piche, uma substância altamente viscosa e pegajosa. É a própria situação dos Três Patetas do CSICOP: quanto mais procuravam destruir a teoria de Gauquelin, mais se enredavam nos próprios erros e trapalhadas, sem poder livrar-se daquele terrível visgo estelar.

Tudo ficaria ainda pior depois que Kurtz, Zellen e Abell, embaralhados com a amostra européia, resolveram realizar um teste independente com esportistas campeões nascidos nos Estados Unidos. Trombetearam a nova aventura “científica” na edição de novembro/dezembro de The Humanist. Acertaram os detalhes com Gauquelin (cuja infinita paciência parecia inabalável) num encontro realizado em julho de 1977. Os céticos sabiam o que teriam de fazer e como conduzir o experimento segundo parâmetros aceitos por ambos os lados.

Os dados para o novo teste norte-americano seriam coletados pelo próprio CSICOP. Mas insatisfeito com Abell, que demorava em agir, Kurtz pede ajuda a Rawlins e diz a ele que dessa vez queria dar uma olhada nos resultados antecipadamente, para ver o que iria acontecer. Kurtz enviava os dados e Rawlins calculava as posições de Marte. Após o cálculo de 120 nomes de atletas, os setores 1 e 4 acumulavam 22% da amostra. Novamente aquele número maldito. Kurtz liga para Rawlins para saber do andamento dos dados e ouve a má notícia. É Rawlins quem nos conta:

Ele soltou um gemido. Enfatizei que o tamanho da amostra era muito pequeno para que o resultado fosse estatisticamente significativo. Ele não se consolou com essa observação. Perguntei se ele tinha certeza de que se tratava de uma amostra correta. Ele disse que sim, então lhe assegurei que a contagem reverteria a uns 17% à medida que a amostra aumentasse…a não ser que as alegações astrológicas fossem verdadeiras, o que eu certamente não acreditava. No entanto, ele continuou falando com a voz atormentada, como alguém perturbado por um demônio que não queria ir embora.

No dia 8 de junho de 1978, Rawlins concluía seu trabalho e enviava um relatório para Kurtz com os resultados de 325 atletas. Pouco depois, Kurtz ligava para dizer: “Opa, acidentalmente esquecemos de muitos nomes… eles serão enviados imediatamente para os cartórios de registros dos estados e receberemos as datas de nascimento ainda neste verão.” No final do verão chegaram mais 82 nomes, totalizando 407. Com esses últimos dados, o resultado final não foi de 22% nem 17%, mas, curiosamente, de 13,5% para os setores críticos 1 e 4, portanto derrubando o Efeito Marte. O próprio Abell achou que os cálculos deviam estar errados ou que a amostra tinha sido adulterada. Rawlins respondeu: “A amostra veio de Kurtz.”

Não podemos esquecer que Rawlins estava também interessado num resultado negativo para Gauquelin e a astrologia. Apesar de sua revolta contra as manipulações de seus colegas, no artigo sTARBABY ele não questiona abertamente a subamostra final de 82 nomes, que acaba produzindo um Efeito Marte negativo, pois bem abaixo do esperado 17% e muito aquém dos 22% que até então vinham ocorrendo. Mas também não a endossa com entusiasmo. Fica nas entrelinhas um silêncio.

Os acréscimos foram feitos sem o conhecimento de Gauquelin, que obviamente suspeitou de uma fraude. Mas Kurtz ignorou as queixas do estatístico francês. É compreensível. Como explicar que os 120 primeiros nomes confirmam o resultado pró-Gauquelin, de 22%, Kurtz fica furioso, e depois disso há uma misteriosa queda para 13,5%? Resultado, aliás, altamente improvável, mas no sentido oposto. Na verdade, Kurtz não cumprira os principais critérios combinados com Gauquelin: o grau de excelência dos atletas e a inclusão, na amostra, somente de indivíduos nascidos mediante parto natural.

Obsessão e condenação a priori

O cientificismo fundamentalista do CSICOP, somado à incompetência e falta de ética de alguns de seus membros, principalmente seu fundador e presidente, já condenara a astrologia antes mesmo de qualquer experimento. Para eles, somente a ciência pode arbitrar sobre o que é ou não é verdadeiro, uma presunção no mínimo pueril. A ciência moderna, em nome da qual falam esses senhores, nem sequer se apresenta, na figura de seus representantes mais esclarecidos, como um discurso sobre a verdade, e sim como uma tentativa de modelização da realidade. Por certo, a mais eficaz até hoje realizada, mas sempre incompleta, sempre aberta a questionamentos e revisões.

Irônico que Paul Kurtz tenha escrito um livro com o título Fruto Proibido: A Ética do Humanismo e que tenha sido presidente de uma tal União Internacional Humanista e Ética. O fundador do CSICOP despreza qualquer ética, joga pesado e age segundo uma obsessão perturbadora. Não obstante, é hábil em aliciar algumas figuras importantes da ciência, que fora de suas especializações apenas engordam o argumento falacioso da autoridade, prestando um desserviço à razão. Kurtz parece não se deter diante de nada para atingir seus objetivos, é extremamente autoritário e não admite que a mídia apresente matérias relativas à paranormalidade, medicina alternativa e saberes alternativos de um modo geral, de uma forma que ele considere favorável a essas práticas.

Em 1997 o Conselho para a Integridade da Mídia, órgão do CSICOP que tem por objetivo impedir que assuntos como OVNIs, astrologia, parapsicologia, esoterismo, etc. sejam apresentados de um modo tal que desagrade à ideologia cientifascista do sr. Paul Kurtz e colegas, anunciava uma campanha para a criação de um Fundo de Ações da Mídia (Media Stock Fund). Traduzindo, queriam dinheiro dos associados para comprar ações de empresas como CBS, NBC, Fox, ABC, AOL/Time Warner e outras, pretendendo assim obter poder como acionista para influenciar no conteúdo da programação. Veja só até que ponto chega a obsessão de pessoas que dispõem de muito tempo ocioso e que rejeitam a democracia e a livre expressão do pensamento. Como sua história demonstra, Kurtz não deseja um debate objetivo e equilibrado sobre esses temas. Simplesmente quer bani-los da mídia ou ridicularizá-los.

É claro que defendemos uma postura crítica diante das alegações das chamadas ciências alternativas ou paralelas, astrologia inclusive, e de qualquer ciência enfim. É preciso apenas deixar bem claro o que é atividade científica, racional, e o que é crença mística ou religiosa, e que esta última tem todo o direito de se manifestar e organizar seu discurso sobre a realidade.

Texto do colega Mauro silva que, como eu, é um dos poucos que defende o estudo sério da Astrologia como ciência, através do método científico e estudos estatísticos.

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Bibliografia

• HANSEN, George P. CSICOP and the Skepitcs: An Overview. The Journal of the American Society for Psychical Research, 86, janeiro 1992.

• KAMMANN, Richard. The True Disbelievers: Mars Efffect Drives Skeptics to Irrationality. Zetetic Scholar, 10, dezembro 1982, pp. 50-65. (Disponível em http://www.psicounsel.com/starbaby.html

• RAWLINS, Dennis. sTARBABY. Fate, outubro 1981, pp 67-98. (Disponível em http://www.discord.org/~lippard/kammann.html

• WEST, John Anthony. Em Defesa da Astrologia. São Paulo: Siciliano, 1992.

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/csicop-e-o-starbaby