Religiões dogmáticas e Moral

Texto de Desidério Murcho

A ideia de que a religião deve estar firmemente separada da ciência levou algum tempo a afirmar-se; mas é hoje um lugar-comum — infelizmente só depois de muitos cientistas terem sido silenciados ou até assassinados pela Igreja. A ideia de que a religião deve estar firmemente separada do Estado é ainda uma luta que países mais atrasados, como Portugal, têm de travar. Mas há uma outra separação que urge aprofundar e defender: a separação entre a religião e a moral.

A ideia errada de que a moral ou a ética tem qualquer coisa a ver com a religião dogmática está patente no modo como se enfrenta no nosso país as questões éticas, como o aborto ou a eutanásia. Quando se pensa em discutir estas questões pensa-se em convidar padres ou pessoas profundamente ligadas à religião para exporem as suas ideias. Mas isto é tão absurdo como convidar um padre ou uma pessoa ligada à religião quando se discute a origem do universo.

Do mesmo modo que o pensamento religioso confundiu e impediu o desenvolvimento da ciência, também o desenvolvimento do pensamento moral e ético fica castrado e confuso quando a religião se intromete. A confusão começa logo nisto: um católico, ou um muçulmano, defendem um código moral específico, mas não são de modo algum especialistas em ética, nem têm nada a dizer às pessoas que não professam a sua religião. Por que razão hei-de ouvir as opiniões de um padre sobre a eutanásia ou o aborto se ele baseia a sua posição na ideia de que a vida foi dada por Deus? E por que razão há-de o padre pensar que os seus argumentos religiosos contra o aborto ou contra a eutanásia têm um carácter universal? Mas se não têm um carácter universal, o padre não deve fazer mais do que explicar aos seus fiéis as razões pelas quais eles, e só eles, não devem praticar o aborto nem a eutanásia; mas aqueles que não são seus fiéis nada têm a aprender com os seus ensinamentos.

A ética secular, a ética filosófica, é uma ética para todas as pessoas e não apenas para as que professam determinadas crenças. Claro que as pessoas que professam essas crenças, religiosas ou para-religiosas, merecem todo o nosso respeito. Mas também as pessoas que não professam essas crenças merecem o nosso respeito. E legislar como se todas as pessoas fossem crentes é uma injustiça. É por esta razão que, se os únicos argumentos que os padres têm contra o aborto e a eutanásia é o facto de estas práticas violarem a ideia de que a vida é sagrada, tanto uma prática como outra devem ser permitidas, pois muitas pessoas não acreditam, pura e simplesmente, na existência do sagrado, tal como não acreditam na água benta. Num país com uma legislação permissiva relativamente ao aborto ou à eutanásia, as pessoas com crenças religiosas que não queiram praticar abortos nem eutanásia, têm toda a liberdade de o não fazer. Tal como as mulheres cristãs têm toda a liberdade de não tomar a pílula; mas proibir a pílula a toda a gente só porque os padres acham que a pílula viola um qualquer código moral cristão seria injusto.

A religião é um obstáculo ao desenvolvimento de um pensamento ético livre. A religião desnorteia o pensamento ético normal das pessoas, tal como desnorteia o pensamento científico normal das pessoas. Qualquer pessoa razoável diria, perante as provas de Galileu: a Terra move-se. Mas as pessoas de formação religiosa disseram o contrário. Qualquer pessoa razoável percebe que a eutanásia é um direito humano inalienável, ou que o direito à escolha da sexualidade é também inalienável. Mas as pessoas de formação religiosa, não.

Nas pessoas de formação religosa verifica-se a síndrome da proibição: o ponto de partida do pensamento moral religioso é a proibição, mesmo que do inócuo, como o facto de uma pessoa ter relações sexuais com pessoas do seu sexo. Esta atitude confunde o verdadeiro pensamento moral, tornando-o uma caricatura. Pelo contrário, o verdadeiro pensamento moral procura o bem comum e não a defesa de dogmas religiosos que só são aceitáveis para os respectivos fiéis.

#ICAR

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Festival de Wesak – Lua Cheia de Touro

O festival de Wesak – Também conhecido como o Festival da Iluminação é o Festival de Buda, o intermediário entre o Centro Espiritual mais elevado, Shambala, e a hierarquia. Buda personifica a expressão da Sabedoria de Deus, da Luz, é Indicador do Propósito Divino. É o grande Festival do Oriente e um dos mais importantes festivais da Lua Cheia. Este Festival ocorre quando o Sol está no signo de Touro. Wesak é uma festa da libertação do despertar e da transfiguração, a jornada de volta ao lar. Promove uma ponte entre a humanidade e espiritualidade, e o equilíbrio entre o Eu Inferior e Superior.

A Lua na Astrologia significa o inconsciente, o porão, como também, nossa ligação com o passado e emoções, quer sejam boas ou ruins. É através do signo lunar que descobrimos como reagimos frente às circunstâncias da vida, emocionalmente. Quando o grande luminar, o Sol, ilumina plenamente a Lua, é um indicativo de um alinhamento livre entre nosso Planeta – o Sol – e o “Centro Solar” a fonte de energia de toda nossa terra, e neste momento podemos iluminar as sombras.

Nesta fase de Plenilúnio podemos fazer uma aproximação mais definida com Deus e o Amor, Poder e Sabedoria, centralizados em nosso coração, representados pela chama trina que fica em evidência quando meditamos. É positivo que em toda Lua Cheia, pudéssemos nos alinhar com as forças cósmicas superiores através de nossos Mestres e anjos, como também da hierarquia da grande Fraternidade Branca, a fim de entrarmos em contato com a essência deste evento mensal.

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O Ovo

O escritor norte-americano Andy Weir escreveu um pequeno conto em 2009. É uma história que é ao mesmo tempo bonita e assustadora. Vou deixar você desbrava-la.

Você estava a caminho de casa quando você morreu.
Um acidente de carro. Nada particularmente marcante, mas mortal, no entanto. Você deixou uma mulher e dois filhos. Foi uma morte indolor. Socorristas tentaram o impossível para lhe salvar, mas sem sucesso. Seu corpo estava tão machucado que é melhor desse jeito, acredite em mim…
E lá, você me conheceu.
“Então… o que houve?” você perguntou. “Onde estou?”
“Você está morto,” eu disse, no mesmo tom que banalidades são ditas. Sem querer enrolar.
Havia… um caminhão? Uma derrapagem…”
“Sim,” eu disse.
“Eu… estou morto?”
“Sim. Mas não se preocupe. Todo mundo morre,” eu disse.
Você olhou ao seu redor. Nada. Uma expansão de nada. Somente você e eu. “Que lugar é este?” Você perguntou. “É o paraíso?”
“Mais ou menos.” eu disse.
“Você é Deus?” você perguntou.
“Sim,” eu respondi. “Eu sou Deus.”
“Meus filhos… minha esposa,” você disse.
“Sim, e?”
“Eles ficarão bem?”
“É isso que eu gosto de ver,” eu disse. “Você acabou de morrer, e sua primeira preocupação é a sua família. Isso é bom, eu gosto.”
Você me observou com fascinação. Em seus olhos, eu não parecia com Deus. Só algum homem. Ou alguma mulher. Um exemplo de autoridade, talvez, mais do tipo professor do que o todo-poderoso.
“Não se preocupe,” eu disse. “Eles vão superar. Seus filhos irão se lembrar de você como uma pessoa perfeita de todos os ângulos. Eles não tiveram tempo de desenvolver desprezo por você. Sua esposa irá chorar, tenha certeza, mas bem lá no fundo ela estará secretamente aliviada. Para ser honesto, seu casamento estava afundando. Se te ajuda, ela se sentirá muito culpada pelo sentimento de alivio.”
“Oh,” você disse. “E agora? Eu irei para o paraíso, ou para o inferno, ou o quê?”
“Nenhuma das opções,” eu disse. “Você irá reencarnar.”
“Ah,” você disse. “Então os Hindus estavam certos!”
“Todas as religiões estão certas, cada uma de sua forma,” eu disse. “Venha, vamos lá.”
Você me seguiu enquanto caminhávamos pelo vazio. “Onde estamos indo?”
“Nenhum lugar em particular,” eu disse. “É bom caminhar enquanto conversamos.”
“Então, qual é o objetivo, de repente?” você perguntou. “Quando eu renascer, eu serei como um quadro em branco, certo?” Um bebê. E, portanto, todas as minhas experiências, e tudo o que eu já tenha feito nesta vida não contarão mais.”
“Nem tanto!” eu disse. “Você tem em você todo o conhecimento, todas as experiências das suas vidas passadas. Você não se lembra agora, isso é tudo.”
Eu parei de caminhar e lhe peguei pelos os ombros. “Sua alma é grandiosa, mais bonita, mais gigante que qualquer coisa que você pode imaginar. Um espírito humano não pode jamais conter mais do que uma pequena parte do que você é. É como colocar seu dedo em um copo d’água para ver se está quente ou frio. Você coloca somente uma pequena parte de você lá, e quando você a tira, você remove todas as experiências que ela teve.”
“Você tem estado em uma forma humana pelos últimos 48 anos, então você ainda não se expandiu, para sentir o resto da sua imensa consciência. Se ficássemos aqui tempo suficiente, você começaria a lembrar de tudo. Mas não há porque fazer isso entre vidas.”
“Quantas vezes eu reencarnei, então?”
“Oh, muitas. Toneladas e toneladas. E em várias diferentes vidas. ” eu disse. “Desta vez, você será uma pequena garotinha camponesa na China de 540 a.C”
“Espera, o quê?” você gaguejou. “Você está me enviando de volta ao passado?”
“Bem, sim, tecnicamente, eu acho. Tempo, como você conhece, somente existe no seu universo. As coisas são diferentes de onde eu venho.”
“De onde você é?” você perguntou.
“Oh, claro,” eu expliquei “Eu venho de algum lugar”. Algum outro lugar. E lá há outros como eu. “Eu sei que você gostaria de saber como é lá, mas honestamente, você não entenderia.”
“Oh,” você disse, um pouco desapontado. “Mas espera. Se eu reencarnei em outros tempos, eu fui capaz de interagir comigo mesmo algumas vezes.”
“Claro. Acontece o tempo todo. E em cada vida sua, você só foi capaz de reconhecer aquela existência, você nem percebeu isso acontecendo.”
“Então, qual o sentido disso?”
“Sério?” eu perguntei. “Sério? você quer que eu te explique o significado da vida?” Não é um pouco clichê?”
“Ok, mas foi uma pergunta razoável,” você insistiu.
Eu olhei em seus olhos. “O significado da vida, a razão pela a qual eu criei este universo todo, é para você crescer.”
“Você quer dizer a humanidade? Você quer que a humanidade cresça?”
“Não, somente você. Eu criei esse universo somente para você. A cada vida você cresce, você se torna mais rígido e seu intelecto amadurece, se amplia.”
“Somente eu? Mas então, e todos os outros?”
“Não há mais ninguém,” eu disse. “Neste universo, só há eu e você.”
Você olha para mim. “Mas e todas as outras pessoas na terra…”
“Tudo faz parte de você. Diferentes incarnações de você.”
“Espera… eu sou todo mundo!?”
“Ah, aqui está você, começando a compreender,” eu disse, pontuando minha sentença com um tapinha de parabenização nas suas costas.
“Eu sou toda a existência humana que já existiu?”
“Ou que irá existir, sim.”
“Eu sou Abraham Lincoln?”
“E você é John Wilkes Booth também,” eu acrescentei.
“Eu sou Hitler?” você disse, consternado.
“E você é os milhões que ele matou.”
“Eu sou Jesus?”
“E você é aqueles que o seguiu.”
Você continuou e silêncio.
“Sempre que você leva alguém como uma vítima,” eu disse, “é você quem está sendo levado como uma vítima. Todo ato de generosidade que você fez, você fez. Todo momento feliz ou triste que um ser humano experimentou foi, ou será, experimentado por você.”
Você continuou pensativo por um longo tempo.
“Por quê?” você disse. Para que tudo isso?”
“Porque um dia, você se tornará como eu. Porque é isso o que você é. Você é um de mim, meu filho.”
Wow,” você disse incrédulo. “Você quer dizer que eu sou um deus?”
“Não. Ainda não. Você é um feto. Você está em crescimento. Uma vez que você tenha vivido todos os tempos, você terá crescido o suficiente para nascer.”
“Então todo o universo,” você disse, “é somente…”
“Um ovo.” eu respondi. “Venha, agora é hora de você seguir em frente para a sua próxima vida.”
Eu eu te encaminhei.

#Reencarnação

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Simbolismo e a Liberdade Religiosa

Por Hamal

Os ensinamentos da Ordem DeMolay e da Maçonaria são transmitidos através de símbolos. Mas sabemos realmente a importância dessa afirmação?

Muitos dizem que os ensinamentos são transmitidos em forma de símbolos para se velarem ao entendimento profano. Essa afirmação é verdadeira, mas quem é profano? Aquele não iniciado nas Ordens ou aquele iniciado que não pratica o conhecimento que lhe é transmitido?

O símbolo esconde seu segredo somente aqueles que não procuram conhece-lo, sendo iniciado ou não. O símbolo é como uma pedra bruta que oculta seu formato a quem não sabe manusear as ferramentas. Basta estudar e trabalhar sobre um símbolo que ele se revela trazendo algo de oculto consigo.

É fundamental esclarecer a importância do simbolismo e da liberdade religiosa antes de analisarmos o que se encontra além das aparências simbólicas, pois necessitamos retirar o empecilho dogmático e tabus existentes em torno desses símbolos.

O SÍMBOLO

Nós usamos diversas maneiras para nos comunicar e expressar, seja a palavra falada, escrita ou em imagens. Isso é o que chamamos de sinais, cujo entendimento vêm através do aprendizado consciente e ali permanece, sem nenhum reflexo inconsciente.

Já o símbolo é diferente, é a ponte entre a consciência e o inconsciente, aquilo que vai além do seu significado aparente. Quando nos propomos a conhecer o domínio dos símbolos entramos em um mundo além da lógica e razão, pois adentramos no lado escuro da mente. Dessa maneira, é a conexão entre o visível e o invisível, são pelos símbolos que acessamos a egrégora e as energias do ritual.

O homem não inventa símbolos, assim como não inventa as Leis Físicas, ele apenas observa a vida e o universo ao seu redor e identifica os símbolos correspondentes a cada acontecimento ou fato existente.

Por exemplo, a vida e a morte são um fato do Universo e não só dos homens. De estrelas que explodem, à natureza que morre no inverno e os homens que vão ao Oriente Eterno. A morte é um destino certo a tudo que existe, e pode ser representado simbolicamente por uma caveira. Mas tudo está em evolução e crescimento, e da morte (que não significa “fim”) também surge a vida. Novas estrelas surgem do pó das antigas, novas folhas e frutos nascem na natureza e uma nova geração surge entre os homens. É o ciclo da vida e da morte que todos teremos que passar.

O ciclo da vida e da morte nos ensinam que nessa vida nada é eterno, tudo um dia acabará. Faz parte da evolução e do nosso crescimento. Como a serpente que solta a pele antiga para poder crescer, deixando o antigo para trás e renascendo como um novo ser. A serpente que morde o próprio rabo é o ouroboros dos alquimistas, e representa esse eterno ciclo do universo da morte e ressurreição.

Esses símbolos representam a evolução, a morte do profano e o renascimento de um ser espiritual. O objetivo das iniciações.

É a observação do universo que fornece ao homem os símbolos, portanto o esoterismo reconhece o mesmo princípio nos símbolos utilizados por culturas e religiões diferentes. A Lua do Brasão da Ordem DeMolay é a mesma Lua na cabeça de Shiva, como também é a da deusa Ísis. A jornada, provas e fases da Iniciação Maçônica e DeMolay representam as mesmas provas que os mitos relatam daqueles que se tornam um “herói”, como as provas enfrentadas por Jesus, Buda ou Krishna. Mesma jornada que representa o andar do Sol no Céu e a vida de um homem, do nascer ao ocaso.

Percebam a importância do Princípio da Correspondência no simbolismo vista no texto Esoterismo na Ordem DeMolay e o exemplo dos símbolos da Maçonaria no Esoterismo na Maçonaria.

LIBERDADE RELIGIOSA

O hermetismo reforça a ideia de liberdade religiosa e de pensamento, pois tudo que provêm da obra de Deus é sagrado e existe um símbolo que pode revelar segredos transcendentes a nós. Não devemos desprezar nenhum conhecimento.

Dessa maneira o DeMolay e o Maçom devem aprender a enxergar além do senso comum, além do dogma e do separacionismo religioso. Reconhecendo que os símbolos religiosos são sagrados, é nosso dever respeitá-los assim como respeitar a decisão do outro em ser seguir ou não um dogma ou religião.

A respeito da Liberdade Religiosa e Maçonaria podemos ler na Constituição de Anderson, escrita em 1723, o seguinte trecho:

“Da mesma maneira que, nos tempos passados, os maçons eram obrigados, em cada país, a professar a religião de sua pátria ou nação, qualquer que ela fosse, nos tempos atuais nos pareceu mais adequado não obrigar além dessa religião na qual todos os homens estão de acordo, deixando cada um livre para ter sua opinião própria.

(…)

De onde segue que a Maçonaria é o Centro de União e o meio de suscitar a verdadeira amizade entre as pessoas. Sem ela, permaneceriam em um perpétuo distanciamento“.

E sobre esse assunto na Ordem DeMolay vemos em sua Cerimonia Branca:

“Nós abrimos a Bíblia Sagrada, fonte de nossa fé em dias eternos, sobre o Altar, como símbolo da liberdade religiosa, que é direito de primogenitura de todos os povos. Sobre este Altar, não está o emblema de qualquer credo, ou o depósito de qualquer sistema de teologia, mas sim a palavra do único e verdadeiro Deus, cuja paternidade universal nos ensina a lição inevitável da fraternidade de todos os seus filhos. Sem a oportunidade de venerar a um Deus de acordo com as instituições de nossa própria consciência, nossa liberdade seria sem sentido, portanto, com fundamento, colocamos a Bíblia Sagrada sobre nosso Altar.”

Chega a um ponto em nossos estudos que se formos presos por dogmas religiosos estaremos muito limitados e não progrediremos no esoterismo. Isso será muito importante, pois aqui não vamos poupar interpretações simbólicas.

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/simbolismo-e-a-liberdade-religiosa

Método Científico, Idealismo e Materialismo

Vivemos numa época em que vigora o paradigma materialista. Atualmente a ciência possui status e credibilidade semelhante ao que possuía a Igreja na Idade Média. A visão materialista em si não é incorreta ou negativa. É apenas mais um modelo dentre tantos outros, que não possui nada de especial, fora o fato de estar em voga nos dias de hoje. Nós somos um produto do tempo em que vivemos. O fato de grande parte das pessoas da atualidade acreditarem que a matéria é tudo que existe, ou que todos os fenômenos, incluindo os mentais, podem ser explicados em termos fisiológicos (a mente como subproduto do cérebro) não é acidental.

Enxergar o mundo a partir de uma perspectiva materialista é uma prática antiga, observada em diferentes sociedades. Na Índia, essa escola de pensamento se chamava Charvaka e coexistiu com o bramanismo e o budismo. Não foi tão popular por lá. Na Grécia Antiga, pensadores como Leucipo e Demócrito defendiam ideias materialistas, como a teoria atômica. Claramente, o idealismo de Platão e o neoplatonismo de Aristóteles (como estudante da Academia Platônica, alguns estudiosos já veem traços de neoplatonismo no Estagirita) fizeram muito mais sucesso.

Pode-se dizer que o idealismo foi a doutrina mais aceita no mundo ocidental ao longo da Idade Média, propagada pela Igreja Católica (evidentemente, os católicos não chamam a si mesmos de “idealistas”), se considerarmos que o Mundo das Ideias de Platão foi uma forma de idealismo. Ironicamente, as ideias de Descartes deram brecha tanto para que o idealismo florescesse em novas formas, cores e sabores quanto para que o materialismo renascesse das cinzas com força total, para exaltar a noção de progresso do Iluminismo. O dualismo cartesiano separou mente e matéria. O ato de pensar passou a ser condição de existência (racionalismo) e o corpo passou a ser visto como uma máquina.

Tanto o materialismo quanto o idealismo são formas de monismo: ou seja, a ideia de que todas as coisas derivam de uma única substância. No materialismo, a mente é tida como derivada do corpo físico, enquanto no idealismo é o oposto: o psicológico é o fator primordial (ou a razão, mais especificamente) e dele deriva a nossa realidade. Há também o monismo neutro, que não dividiria o ser em corpo e mente, mas em elementos neutros que não se encaixariam em nenhuma das duas categorias, posição defendida por Hume e Spinoza.

No momento em que é estabelecido um dualismo, é natural do ser humano desejar criar uma hierarquia entre seus elementos, estabelecendo um reino monista que reinaria soberano: a mente é superior ao corpo (idealismo)? Ou o corpo é superior à mente (materialismo)? No período em que vivemos quem está vencendo essa guerra ideológica é o materialismo. Por isso, é natural que os defensores de ideias idealistas se manifestem para mostrar um novo modo de encarar a realidade, que no fundo seria o resgate de ideias que já estiveram em voga no passado.

É normal que os ocultistas contemporâneos se deparem com esse dilema: eles foram educados numa época que defende que o materialismo é a verdade: ou seja, que só existe matéria, não existem coisas como espírito, alma, Deus ou vida após a morte. Ao estudarem grimórios antigos, eles se deparam com conceitos que foram formulados dentro do paradigma no qual viviam seus autores, como é o caso do modelo idealista.

O resultado é que o magista iniciante pode ficar confuso e não saber como trabalhar com aquele sistema de magia. No pior dos casos, o magista pode considerar o grimório como apenas uma superstição boba e julgar seu autor como um charlatão por enganar as pessoas com esse tipo de “bobagem” ou simplesmente considerá-lo pouco instruído por acreditar “nessas coisas”.

Porém, em geral quem se interessa por ocultismo vai pelo menos experimentar um feitiço ou ritual “para ver se dá certo mesmo” antes de concluir que “realmente, era tudo uma grande invencionice, pois magia não existe”. O problema é que o magista contemporâneo, que se encontra no paradigma materialista, irá testar uma magia de um grimório medieval, que foi escrito no paradigma idealista. Resultado? Ele vai duvidar. Vai pensar coisas como: “É claro que não vai aparecer um demônio aqui, pois seres espirituais não existem, só a matéria é real. Acho que Descartes estava drogado quando falou sobre os gênios malignos. É claro que tudo isso é só uma metáfora. Ou é tudo psicológico! Já chega, vou largar essa espada e ir jogar videogame, pois os demônios do meu jogo são mais reais do que esses demônios imaginários… será que existem diferentes níveis de realidade? Deixa pra lá”.

E já que mencionamos Descartes, podemos também observar que além de toda a respeitável bagunça epistemológica que ele gerou, ainda sobrou um tempo para que ele fosse um dos fundadores do método científico. Já podemos até imaginar que tipo de metodologia foi criada em meio a todos esses dualismos, gênios malignos e especialmente da visão do corpo como mera máquina orgânica. Felizmente, Francis Bacon socorreu o bom Descartes dando uns toques de empirismo ao seu racionalismo.

O embate de racionalismo versus empirismo é antigo; é fundamentalmente o mesmo que se encontra no idealismo versus materialismo; Platão versus Aristóteles; Descartes versus Bacon. E por aí vai. Em suma, podemos explicar isso parcialmente pelo fato de Platão ter se baseado na geometria e Aristóteles na biologia, de modo que um se fundamentou mais na razão e outro mais na experiência como critério de verificação da verdade.

Bacon chama de “ídolos” os erros que se pode cometer ao longo do processo de pesquisa científica. Os ídolos da tribo são as limitações dos sentidos físicos e do intelecto. Os ídolos da caverna envolvem o aspecto subjetivo da pesquisa, em função de características individuais do estudioso. Os ídolos do foro seriam as falhas proveniente do uso da linguagem e comunicação. Os ídolos do teatro seriam teorias fruto de mera especulação, que não buscam um resultado experimental para se apoiar. Interessante que esse quarto ídolo se fundamenta no primeiro: a limitação da razão humana para bolar teorias que correspondam à verdade. No entanto, já que nossos sentidos físicos também são ídolos da tribo, por que colocar mais peso no empirismo do que no racionalismo?

Nesse ponto surge a questão do realismo científico versus experimentalismo. Enquanto o primeiro defende que a ciência descreve a realidade tal como ela é, no experimentalismo é dito que a ciência apresenta apenas modelos e não a realidade em si. Afinal, como diria Kant, a coisa em si seria incognoscível.

E já que falamos de Kant, iremos usar o exemplo de seu sistema epistemológico para demonstrar no que consistiria de fato o idealismo. Existem diferentes tipos de idealismo e Kant inaugurou um bem divertido chamado “idealismo transcendental”. Transcendente é o “sublime”; seria aquilo que é domínio da razão, conhecimentos a priori (que vem antes da experiência), para se opor a imanente, que é aquilo que é inerente ao sujeito, do domínio material ou da experiência.

Para Kant, existiam dois mundos (mais dualismo, hã?): o mundo numênico, que é o mundo real das “coisas em si” (basicamente o Mundo das Ideias de Platão) e o mundo fenomênico, que seria a realidade tal qual ela nos aparece (o mundo das cavernas de Platão). Os sentidos físicos não seriam capazes de captar o mundo real. O mais próximo que se poderia chegar disso seria através dos conhecimentos a priori: a razão pura. O racionalismo!

Interpretemos da seguinte forma: a “coisa em si” (a verdade por trás das aparências) de um indivíduo seria sua alma. E será que Deus seria a Grande Coisa Em Si? Bem, para entender o Deus kantiano devemos espiar o sistema ético que ele apoiou sobre sua metafísica.

Digamos que o materialismo encontra um pouco de base na doutrina ética utilitarista de John Stuart Mill: a ação deve conduzir ao máximo bem-estar para o número máximo de pessoas. Ou seja, o foco do materialismo é a felicidade e o bem-estar do indivíduo (e da sociedade); o conforto da mente e do corpo. É nesse paradigma ético que vivemos, que também se fundamentou em parte no materialismo histórico de Marx e Engels, para contrapor o idealismo absoluto de Hegel.

Contudo, o paradigma da felicidade como busca máxima não é o único que existe. A ontologia idealista de Kant aponta uma direção diferente. Para ele, a busca máxima é o cumprimento do dever e isso estaria acima da felicidade. E para explicar isso ele formulou o imperativo categórico: “age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através de tua vontade, uma lei universal”. Ou seja, para saber se uma ação é boa ou ruim, deve-se aplicar ao universal: se todos mentissem, seria bom ou ruim para a sociedade? Ruim, então mentir não é ético e não devemos mentir em nenhuma circunstância. Esse é o raciocínio.

Caso uma pessoa mentisse em dada ocasião tendo em vista uma felicidade temporária para si ou para outra pessoa, estaria colocando a felicidade acima do dever e isso vai contra a ética kantiana. Isso significa que para o idealismo transcendental importa mais a razão pura por trás do processo do que a razão prática que a ação irá gerar. A filosofia de Kant pode ser resumida numa frase de um imperador romano citada por ele em seu livro: “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”:

“Que a justiça seja feita, ainda que o mundo pereça”

Em muitas religiões existe diferença entre “ajudar o próximo” e “louvar a Deus”, sendo que em muitas delas a fé em Deus seria superior a ajudar diretamente uma pessoa. Como se traduz isso em termos kantianos? Servir a Deus seria o cumprimento do dever, do imperativo categórico, dos mandamentos.

No livro “Crítica da Razão Pura” Kant diz:

“Por mais longe que a razão prática tenha o direito de nos conduzir, não consideraremos nossas ações obrigatórias por serem mandamentos de Deus, mas as consideraremos mandamentos de Deus porque temos para com elas uma obrigação interna”

Isso tornaria a existência de Deus necessária ao sistema moral e não somente contingente (acidental). Na obra “Crítica da Razão Prática” temos esse outro trecho interessante:

“Se indagarmos pelo fim último de Deus na criação do mundo, não se deve responder que seja esse fim a felicidade dos seres racionais neste mundo, mas o sumo bem que acrescenta àquele desejo dos seres racionais ainda uma condição, a saber, a de ser digno da felicidade, isto é, a moralidade de todos esses seres racionais, que contém a única medida segundo a qual eles podem aspirar à participação da felicidade por mão de um sábio autor do mundo.”

Pode-se dizer que através dessa explicação Kant daria uma resposta à velha pergunta: “Se Deus tudo sabe, tem todo o poder e é completamente bom, por que existe mal no mundo e por que ele permite esse mal?” A resposta kantiana seria porque como Deus tudo sabe a respeito do que seja o melhor, ele coloca o imperativo categórico (cumprimento do dever moral universal) acima da felicidade humana, que seria apenas uma felicidade relativa, enquanto o agir em conformidade com a razão pura prática e moral seria o fim último da existência.

Outro tipo de idealismo curioso (o meu favorito) é o idealismo imaterialista, de Berkeley, que defende que os seres e as coisas só existem quando são percebidas (ser é ser percebido). Isso significa que não há essência nas coisas ou “coisa em si”. As coisas só não desapareceriam instantaneamente quando não as olhamos porque Deus estaria sempre observando tudo.

Evidentemente, o método científico que usamos hoje (que consiste em modificações de pensadores posteriores nas ideias de Descartes e Bacon) é baseado no materialismo. Isso não significa que ele está errado; e nem que está certo. Um método não pode ser construído fora de um paradigma e, uma vez no interior de um, ele terá que lidar com as limitações inerentes de tal paradigma.

Aqui vão algumas citações sobre ciência, extraídas do livro “Filosofia da Ciência” de Rubem Alves (curioso que o autor foi um dos fundadores da Teologia da Libertação, que seria uma interpretação do cristianismo sob uma perspectiva mais utilitarista e materialista, por assim dizer):

“O místico crê num Deus desconhecido. O pensador e o cientista creem numa ordem desconhecida. É difícil dizer qual deles sobrepuja o outro em sua devoção não racional”

L.L. Whyte

“Não será verdade que cada ciência, no fim, se reduz a um tipo de mitologia?”

De uma carta de Freud a Einstein, 1932

“Contra o positivismo, que para perante os fenômenos e diz: ‘Há apenas fatos’, eu digo: ‘Ao contrário, fatos é o que não há; há apenas interpretações”

Nietzsche

“Não existe coisa alguma mais danosa ao avanço da ciência que a ilusão de que ela marcha para frente pelo acréscimo de fatos novos”

Rubem Alves

Sobre essa última colocação, poderíamos até dizer: não é verdade que os planetas giram em torno do Sol. O sistema heliocêntrico não está “mais correto” do que o geocêntrico, como se a ciência progredisse cada vez mais derrubando as ideias anteriores. São somente dois paradigmas diferentes que têm objetivos práticos. No futuro, se for criado um novo modelo que tenha resultados práticos melhores, o sistema heliocêntrico poderia vir a ser eliminado, hipoteticamente falando. Isso não significa que se descobriu alguma verdade nova, mas que a teoria simplesmente adequou-se para se encaixar a determinado pragmatismo.

E agora fiquemos com alguns trechos inspiradores do livro “A Lógica da Pesquisa Científica” de Karl Popper:

“Teorias são redes para capturar aquilo que chamamos de mundo”

“Instrumentalismo, que foi representado em Viena por Mach, Wittgenstein e Schlick é a visão de que uma teoria não é nada mais que uma ferramenta ou um instrumento para predição”

Na Magia do Caos se costuma dizer: “A crença é uma ferramenta”. Afinal, a metodologia do caoísmo tem inspiração no método científico.

Vamos a mais trechos da mesma obra:

“A ciência não é um sistema de certezas, ou afirmações bem estabelecidas; nem é um sistema que constantemente avança para um estado de finalidade. Nossa ciência não é conhecimento (episteme): ela nunca pode clamar ter atingido a verdade, e nem mesmo um substituto para isso, como probabilidade”.

“Como e por que nós aceitamos uma teoria em detrimento de outras? A preferência certamente não é devido a uma justificação experimental das afirmações que compõem a teoria; não é devido a uma redução lógica da teoria à experiência. Nós escolhemos a teoria que melhor se mantenha em competição com outras teorias; aquela que, por seleção natural, se mostra a mais adaptada a sobreviver. […] De um ponto de vista lógico, testar uma teoria depende de afirmações básicas cuja aceitação ou rejeição, por sua vez, depende das nossas decisões. Então são decisões que definem o destino de teorias. […] A escolha [de uma teoria] é em parte determinada por considerações de utilidade”.

O método científico é uma poderosa ferramenta; uma ferramenta viva, em constante transformação. Não estou dizendo todas essas coisas para que não se acredite nele e sim para que tenhamos consciência de suas limitações e tomemos o devido cuidado para não confundir um modelo com a verdade.

Sobre idealismo, materialismo, dualismo, monismo, etc, nenhum é melhor que outro, por natureza. Novamente, são apenas modelos. Um pode ser mais útil que outro para objetivos diferentes. É importante que todos eles coexistam e sejam debatidos, pois muitas vezes quando cristalizamos um pensamento por muito tempo (ou seja, trabalhamos dentro de somente um modelo) corremos o risco de considerá-lo a verdade e passar a julgar como errado o paradigma do outro.

Alguns defendem que para definir se uma posição é certa ou errada devemos baseá-la na ética. Contudo, devemos lembrar que até a construção do que seja ética e moral muda de tempos em tempos e a definição de moralidade é estabelecida no interior de um modelo ontológico, como foi demonstrado no caso da ética kantiana.

Uma das maiores vantagens da Magia do Caos é ter a mobilidade de poder trabalhar sob diferentes paradigmas e adquirir a habilidade de saltar de um para outro. Mais do que uma brincadeira, isso abre a mente. Você tem toda a liberdade de trabalhar usando somente um modelo e poderá ter muito sucesso seguindo esse método.

Contudo, os caoístas apreciam novas experiências e emoções em lugares inusitados de todos os mundos possíveis. E o mais divertido de tudo: após estudar e experimentar diferentes modelos, você poderá criar os seus, seja usando um caminho epistemológico semelhante ao método científico, seja baseado no idealismo, no materialismo ou em qualquer outra coisa que você optar por criar.

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/m%C3%A9todo-cient%C3%ADfico-idealismo-e-materialismo

04/10 – Dia de São Francisco de Assis

São Francisco nasceu em 1182 em Assis, Itália. Filho de um comerciante rico, ele teve tempo e dinheiro para gastar com leituras e hospedar banquetes para os jovem nobres, que o proclamaram “O Rei de Banquetes”. Jovem e bonito, ansiou por uma vida de aventuras como cavaleiro. Assim, aos 20 anos entrou na guerra entre Assis e Perugia. Ao partir, jurou voltar consagrado cavaleiro. Foi ferido e feito prisioneiro. Passou um ano em um calabouço, onde contraiu malária. Resgatado por seu pai, voltou a Assis mais reflexivo. Ainda assim, o desejo de lutar pela “justiça” através das armas não o abandonou. Quando soube das vitórias militares do Conde Walter de Brienne voltou a querer ser um cavaleiro. A caminho de juntar-se a Brienne, Francisco parou em Spoleto e ouviu as notícias da morte de seu futuro ex-líder. Tomado pela depressão, sua malária retornou.

Uma noite, uma voz misteriosa perguntou a ele: “Quem você pensa que pode melhor recompensar você, o Mestre ou o empregado?” Francisco Respondeu, “O Mestre.” A voz continuou, “Então por que você deixa o Mestre pelo empregado?” Francisco percebeu que o empregado era o Conde Walter. Ele deixou Spoleto seguro de que Deus havia falado com ele. Durante os próximos dois anos Francisco sentiu uma força interna que o estava preparando para uma mudança. A visão de leprosos causava uma convulsão na alma sensível de Francisco. Um dia, enquanto montava seu cavalo, ele encontrou um leproso. Seu primeiro impulso era o de lançar uma moeda e esporear seu cavalo pra sair dali o mais rápido possível. Ao invés disso, Francisco desmontou, abraçou e beijou o leproso, dando-lhe uma bolsa de moedas. Muito depois, em seu leito morte, ele recordou o encontro como o momento de coroamento de sua conversão: “O que antes parecia amargo pra mim se converteu em doçura de alma e corpo”.

Passou a evitar a vida de banquetes e esportes ao lado de suas companhias habituais, que, em tom de brincadeira, perguntavam se ele estava pensando em casar. Ele respondeu “sim, com a mais formosa dama que vocês já viram”. Mais tarde saberíamos que ele se referia à Madonna Povertà – a Senhora Pobreza – como costumava dizer. Ele passou muito tempo em locais solitários, pedindo a Deus por Iluminação.

Após uma peregrinação à Roma, onde clamava pelos pobres nas portas das Igrejas, São Francisco volta a Assis e ora ante a imagem do Cristo Crucificado nas ruínas da Igreja de São Damião. No que pareceu-lhe ouvir claramente: “Francisco, Francisco, vai e repara minha casa, que, como podes ver, está em ruínas” Pensando tratar-se do velho templo onde se achava, agiu de pronto, vendendo o cavalo e os tecidos de seu pai, que tinha em mãos. Seu pai, indignado com o novo gênero de vida adotado por Francisco, após ameaças e castigos, queixou-se ao bispo Dom Guido III e, diante dele, pediu a Francisco que lhe devolvesse o dinheiro gasto. A resposta foi uma renúncia total à vultosa herança: tirou, ali mesmo na Igreja, as próprias vestes, e exclamou: “… doravante não direi mais pai Bernardone, mas Pai nosso que estás no céu…”

Ele se tornou um mendigo, e com o dinheiro dos viajantes ajudou a reconstruir mais três pequenas igrejas abandonadas: a de São Pedro, a de Porziuncola e a de Santa Maria dos Anjos, sua preferida (e lugar onde morreu).

Por essa época ouve um sermão que mudou sua vida. Era sobre Mateus 10:9, no qual Cristo fala aos seus seguidores que eles deveriam ir adiante e proclamar que o Reino de Céu estava neles, que não deveriam levar nenhum dinheiro com eles, nem mesmo uma bengala ou sapatos para a estrada. Assim, Francisco foi inspirado por esse sermão a se dedicar completamente a uma vida de pobreza. Suas humildes túnicas amarradas por um simples cordão levam até hoje três nós, são seus votos de: Pobreza, Obediência e Castidade. Começa a atrair outras pessoas com seus sermões, e em 1209 já são 11 companheiros de jornada. Frascisco recusa o título de padre, e a comunidade se dá o nome de Fratres minores (irmãos menores, em Latim). Eles vivem uma vida simples e alegre perto de Assis, sempre com muitas canções, embora fossem bastante sérios em suas pregações. Viviam em cabanas de taipa; suas igrejas eram modestas e pequenas; dormiam no chão. Não tinham cadeiras ou mesas, e possuíam poucos livros.

AS ORDENS

Em 1209 Francisco foi com seus 11 novos irmãos à Roma, buscar a permissão do Papa Inocêncio III para fundar uma ordem religiosa. O biógrafo Frei Boa Ventura conta que o Papa não quis aprovar logo a regra de vida proposta por Francisco, porque parecia estranha e por demais penosa às forças humanas no parecer de alguns cardeais. Mas o cardeal João de São Paulo, bispo de Sabina, intercedeu e disse a Francisco: “Meu filho, faze uma oração fervorosa a Cristo para que por teu intermédio nos mostre a sua vontade. Assim que a tivermos conhecido com maior clareza, poderemos aceder com mais segurança aos teus pedidos”.

Francisco o fez, e com suas humildes súplicas obteve do Senhor que lhe revelasse o que deveria falar ao Pontífice e que este sentisse em seu íntimo os efeitos da inspiração divina. Contou então ao Pontífice a parábola de um rei muito rico que, feliz, desposara uma bela senhora pobre e dela tivera vários filhos com a mesma fisionomia do rei, pai deles, e que por isso forem educados em seu palácio. E acrescentou: “Não há nada a temer que morram de fome os filhos e herdeiros do Rei dos céus, os quais, nascidos por virtude do Espírito Santo, à imagem de Cristo Rei, de uma mãe pobre, serão gerados pelo espírito da pobreza numa religião sumamente pobre. Pois se o Rei dos céus promete a seus seguidores a posse de um reino eterno, quanto mais seguros podemos estar de que lhes dará também todas aquelas coisas que comumente não nega nem aos bons nem aos maus!” O Papa ficou maravilhado e já não duvidava de que Cristo havia falado pela boca daquele homem. Especialmente porque tivera, pouco tempo antes, um sonho onde a basílica do Latrão estava prestes a ruir e um homem pobre, pequeno e de aspecto desprezível, a segurava nos ombros para não cair. Ainda assim, o Papa aprova as regras só verbalmente (um ano depois a aprovaria no papel). Surge assim a Fraternidade dos Irmãos Menores, a Primeira Ordem.

No Domingo de Ramos de 1212, uma nobre senhora, chamada Clara de Favarone (hoje conhecida por Santa Clara ou Clara de Assis), foi procurar Francisco para abraçar a vida de pobreza. Alguns dias depois, Inês, sua irmã, segue-lhe o caminho. Surge a Fraternidade das Pobres Damas, a Segunda Ordem. Aqueles que eram casados ou tinham suas ocupações no mundo e não podiam ser frades ou irmãs religiosas, mas queriam seguir os ideais de Francisco, não ficaram na mão: por volta de 1220, Francisco deu início à Ordem Terceira Secular para homens e mulheres, casados ou não, que continuavam em suas atividades na sociedade, vivendo o Evangelho.

NO ORIENTE

A parábola que Francisco contou ao Papa para convencê-lo a reconhecer a Ordem guarda uma fantástica semelhança com a história do Islã, pois Abraão (o patriarca do judaísmo) tinha duas esposas: Sarah e Hagar. Sarah deu a luz a Isaac, e Hagar a Ismael (futuro patriarca do povo árabe, não apenas dos islâmicos). Sarah, enciumada, pediu o banimento de Hagar e seu filho, e Abraão a mandou da Palestina para o deserto Árabe, crendo que Deus cuidaria deles. Quando acabaram as provisões (água especialmente), Hagar correu enlouquecida pelo deserto, até que Deus milagrosamente fez um poço (o Zam-Zam, que existe até hoje) e com ele se sustentaram. Uma cidade (Meca) se desenvolveu neste local, e hoje ela é O local sagrado para todo o povo árabe. A semelhança aqui é que os sufis podem ser considerados, por isso, os filhos pobres de Abraão.

A atmosfera e organização da Ordem franciscana é mais parecida com os Dervixes (Ordem sufi) que qualquer outra coisa. Além dos contos sobre Francisco serem muito parecidos com os dos professores sufis, todos os tipos de pontos coincidem. Como os sufis, os franciscanos não se preocupam com sua salvação pessoal (considerado uma vaidade). Francisco iniciava suas pregações com a frase “Que a paz de Deus esteja com você”, que ele disse ter recebido de Deus, mas que era (obviamente) uma saudação árabe. Até a roupa, com seu capote coberto e mangas largas, é a mesma dos dervixes de Marrocos e da Espanha, por onde Francisco se aventurou em 1212, plena época das cruzadas, dedicando-se a tentar converter os Sarracenos pela não-violência. O próprio nome da Ordem, “Fraternidade dos Irmãos Menores”, pressupõe haver os Irmãos maiores, e os únicos com esse nome na época eram os “Grandes Irmãos”, uma Ordem sufi fundada por Najmuddin Kubra, “o Grande”. As conexões impressionam. Uma das maiores características deste grande sufi era sua misteriosa influência sobre os animais; Desenhos o mostram cercado de pássaros; Ele amansou um cachorro feroz apenas olhando para ele (exatamente como Francisco fez com um lobo). Todas essas histórias eram conhecidas no ocidente 60 anos antes de Fracisco nascer.

Por tudo isso, não é de se espantar que, em Damietta, no Egito, de alguma forma Francisco e seus companheiros tenham conseguido cruzar a linha de batalha onde os Cruzados lutavam com os Árabes e se encontrar pessoalmente com o sultão Malik el-Kamil. E ser bem recebido. Diz-se que Francisco desafiou os líderes religiosos muçulmanos a um teste de fé através do fogo, mas eles recusaram. Então Francisco propôs entrar no fogo primeiro e, se ele saísse de lá incólume, o sultão teria que reconhecer o Cristo como o verdadeiro Deus. O sultão não aceitou, mas ficou tão impressionado com a fé deste homem que permitiu aos franciscanos acesso livre aos locais sagrados para os cristãos, como a sagrada sepultura. Deu um salvo-conduto para que eles pudessem trafegar e até mesmo PREGAR em terras árabes, e ainda pediu para que ele o visitasse novamente.

Entretanto, Francisco de Assis não teve sucesso convertendo o sultão, e as últimas palavras de Malik para Francisco foram: “Reze para que Deus me revele qual Lei e fé é a mais agradável para Ele”. Francisco recusou todos os ricos presentes oferecidos pelo sultão e voltou aos exércitos cristãos. No entanto, essa viagem parece ter causado uma transformação (conversão) maior em Francisco de Assis do que no sultão, como se ele tivesse encontrado no Oriente (e no sufismo) suas raízes. Tanto é que, ao retornar aos Cruzados, tentou dissuadi-los de atacar os Sarracenos. Ele gastou alguns meses peregrinando na Terra santa, até que ele foi chamado urgentemente por notícias de mudanças que tinham acontecido na Ordem que ele tinha fundado.

DE VOLTA PRA CASA

A Ordem Franciscana tinha crescido com o passar dos anos. Em 1219 houve uma grande expansão para a Alemanha, Hungria, Espanha, Marrocos e França. Durante sua ausência, vigários modificam algumas regras da Ordem e no mesmo ano Francisco se demite da direção da mesma. Com o crescimento – quase 5.000 frades em 1221 – uma nova regra foi escrita por São Francisco em 29 de novembro de 1223 que foi aprovada pelo Papa Honório. É a que vigora até hoje.

Por volta de 1220 Francisco celebra o Natal na cidade de Greccio (perto de Assis) com uma novidade: O presépio. Ele usou animais de verdade para recriar a cena do nascimento de Jesus, de forma que as pessoas podiam experimentar sua fé fazendo uso dos sentidos, especialmente a visão.

A Ordem tinha passado para as mãos de Pietro Cattini. Entretanto, um ano depois o irmão Cattini morreu e foi enterrado em Porziuncola. Quando numerosos milagres foram atribuídos ao falecido, várias pessoas começaram a peregrinar para Porziuncola, perturbando o dia-a-dia dos frades franciscanos. Francisco, então, rezou a Pietro, pedindo que ele parasse com os milagres, obedecendo em morte do mesmo jeito que ele obedecia em vida. Os milagres então cessaram.

COM OS ANIMAIS

A proximidade de Francisco com a natureza sempre foi a faceta mais conhecida deste santo. Seu amor universalista abrangia toda a Criação, e simbolizava pra muitos um retorno a um estado de inocência, como Adão e Eva no Jardim do Éden. Entretanto, esta não foi uma característica apenas de Francisco, havendo casos semelhantes de santos ingleses e irlandeses. Muitas histórias com animais cercam a vida de Francisco de Assis. Elas estão contadas no Fioretti (pequenas flores, em italiano), uma coleção póstuma de contos populares sobre este santo. Certa vez ele viajava com seus irmãos e eis que viram ao lado da estrada árvores lotadas de passarinhos. Francisco disse a seus companheiros: “aguarde por mim enquanto eu vou pregar aos meus irmãos pássaros”. Os pássaros o cercaram, atraídos por sua voz, e nenhum deles voou. Francisco falou a eles:

“Meus irmãos pássaros, vocês devem muito a Deus, por isso devem sempre e em todo lugar dar seu louvor a Ele; porque Ele lhe deu liberdade para voar pelo céu e Ele o vestiu. Vocês nem semeiam nem colhem, e Deus os alimenta e lhes dá rios e fontes para sua sede, montanhas e vales para abrigo e árvores altas para seus ninhos. E embora vocês nem saibam como tecer, Deus os veste e a suas crianças, pois o Criador os ama grandemente e o abençoa abundantemente. Então, semprem busquem louvar a Deus.”

Outra lenda do Fioretti nos fala que na cidade de Gubbio, onde Francisco viveu durante algum tempo, havia um lobo “terrível e feroz, que devorava homens e animais”. Francisco teve compaixão pela população local e foi para as colinas achar o lobo. Logo, o medo do animal fez todos os seus companheiros fugirem, mas Francisco continuou e, quando achou o lobo, fez o sinal da cruz e ordenou ao animal para vir até ele e não ferir ninguém. Milagrosamente, o lobo fechou suas mandíbulas e se colocou aos pés de Francisco. “Irmão lobo, você prejudica a muitos nestas paragens e faz um grande mal” disse Francisco. “Todas estas pessoas o acusam e o amaldiçoam. Mas, irmão lobo, eu gostaria de fazer a paz entre você e essas pessoas”. Então Francisco conduziu o lobo para a cidade e, cercado pelos cidadãos assustados, fez um pacto entre eles e o lobo. Porque o lobo tinha “feito o mal pela fome”, a obrigação da população era alimentar o lobo regularmente e, em retorno, o lobo já não os atacaria ou aos rebanhos deles. Desta maneira Gubbio ficou livre da ameaça do predador.

Também se conta que, quando Francisco agradeceu ao seu burrinho por tê-lo carregado e ajudado durante a vida, o burrinho chorou.

ÚLTIMOS ANOS

Enquanto rezava no Monte La Verna, em 1224, durante um jejum na quaresma, Francisco teve a visão de um Seraph, um anjo de seis asas numa cruz. Este anjo deu a ele um “presente”: as cinco chagas de Cristo (relativas às marcas feitas pelos pregos na cruz). Foi o primeiro caso de stigmata (estigma) registrado na história. Entretanto, Francisco manteve segredo e o caso só ficou conhecido dos próprios franciscanos dois anos depois, após sua morte, quando uma testemunha resolveu contar.

Logo após receber as chagas, Francisco ficou muito doente, e no ano seguinte ficou cego. Sofreu muito com as formas primitivas de cirurgias e tratamentos medievais, mas foi por esta época que ele escreveu seus mais belos textos – sendo considerado por muitos o primeiro poeta italiano – deixando registrado seu amor universal em lindos versos (assim como os sufis o fazem), como o O cântico do Sol (também conhecido como “Cântico das criaturas”), escrito em companhia de sua alma gêmea, Clara, em São Damião, por volta de 1224/1225, quando já sofria muitas dores e estava quase cego. A estrofe que fala da paz foi acrescentada um mês depois, a fim de reconciliar o bispo e o prefeito de Assis, que estavam em discórdia. Francisco defendia que o povo devia poder rezar a Deus em sua própria língua, por isso ele escreveu sempre no dialeto da Umbria, ao invés de Latim.

Agradeço a Sergio Scabia pela oportunidade de ler o Cântico numa tradução quase literal, sem o floreio encontrado nas versões em português:

O Cântico do Sol

Altíssimo, todo-poderoso bom Senhor

Seus são os louros, a gloria, a honra e todas as bênçãos

Somente a Ti são reservadas

e homem algum é digno de te mencionar

Louvado seja, meu Senhor, com todas suas criaturas

principalmente com o senhor irmão sol,

que é dia e ilumina por isso.

E ele é belo irradiando imenso esplendor;

de ti, traz o significado.

Louvado seja, meu Senhor, pelas irmãs lua e estrelas,

que no céu criaste claras, preciosas e belas

Louvado seja, meu Senhor, pelo irmão vento

e pelo ar e as nuvens e o céu azul e para qualquer tempo,

pelos quais às tuas criaturas fornece alimento.

Louvado seja, meu Senhor, pela irmã água,

a qual é muito útil e humilde e preciosa e pura.

Louvado seja, meu Senhor, pelo irmão fogo,

pelo qual iluminas as noites,

e ele é belo, brincalhão, robusto e forte.

Louvado seja, meu Senhor, pela irmã nossa mãe terra,

que nos sustenta e governa,

e produz diversos frutos, com flores coloridas e grama.

Louvado seja, meu Senhor, por aqueles que perdoam pelo seu amor,

e suportam infinitas tribulações.

Abençoados os que as suportarão em paz,

que por ti, Altíssimo, serão coroados.

Louvado seja, meu Senhor, pela irmã morte corporal,

à qual nenhum homem vivo pode escapar

Ai dos que morrerão em pecado mortal;

abençoados aqueles que se encontrarão nas tuas santíssimas vontades,

que a segunda morte não lhes fará mal

Louvem e abençoem o meu Senhor,

e agradeçam e sirvam-no com grande humildade

Uma oração que sempre me impressionou pela beleza e singeleza foi a Oração da Paz, atribuída a São Francisco de Assis e comumente denominada de “Oração de São Francisco”. Na verdade trata-se de uma oração anônima, escrita em 1912, tendo aparecido inicialmente num boletim paroquial na Normandia (França), e em menos de dois anos foi impressa em Roma numa folha onde, no verso, estava impresso uma figura de São Francisco; por isto e pelo fato de que o texto reflete muito bem o franciscanismo, esta oração começou a ser divulgada como se fosse de autoria do santo.

Senhor,

Fazei de mim um instrumento de vossa paz!

Onde houver ódio, que eu leve o amor,

Onde houver ofensa, que eu leve o perdão.

Onde houver discórdia, que eu leve a união.

Onde houver dúvida, que eu leve a fé.

Onde houver erro, que eu leve a verdade.

Onde houver desespero, que eu leve a esperança.

Onde houver tristeza, que eu leve a alegria.

Onde houver trevas, que eu leve a luz!

Ó Mestre,

fazei que eu procure mais.

Consolar, que ser consolado.

Compreender, que ser compreendido.

Amar, que ser amado.

Pois é dando, que se recebe.

Perdoando, que se é perdoado e

é morrendo, que se vive para a vida eterna!

Francisco morreu ouvindo o Evangelho de João, onde se narra a Páscoa do Senhor. Isso foi em 03 de outubro de 1226, num sábado, aos 45 anos. Foi sepultado no dia seguinte, na Igreja de São Jorge, na cidade de Assis. Em 1230 seus ossos foram levados para a nova Basílica construída para ele, a Basílica de São Francisco, hoje aos cuidados dos Frades Menores Conventuais.

São Francisco de Assis foi canonizado em 1228 por Gregório IX e seu dia é comemorado em 04 de outubro.

Na tradição teosófica, Francisco de Assis é o Mestre Kuthumi, da Grande Fraternidade Branca, e na linha espírita, é a reencarnação de João Evangelista (enquanto Clara fora Joana de Cusa).

#Religião

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/04-10-dia-de-s%C3%A3o-francisco-de-assis

A Montanha de Ouro e o Quadrado Redondo

Alexius Meinong chocou o mundo no início do século XX afirmando alegremente a existência de objetos não existentes: em sua ontologia, coisas como montanhas de ouro, quadrados redondos e unicórnios são tidas como reais. Segundo Meinong, já que é possível falar a respeito de objetos não existentes, eles devem possuir alguma forma de existência, mesmo que seja em algum outro mundo possível. O repositório de tais objetos inusitados é comumente chamado de “selva de Meinong”.

A teoria do realismo modal de David Lewis ajuda a dar sustento a essa tão simpática ontologia. Lewis traduz a sentença: “unicórnios poderiam existir” por “existem unicórnios em outro mundo possível”. Como eu costumo dizer, Leibniz pode ter se equivocado ao afirmar que nós vivemos no melhor dos mundos possíveis, já que aparentemente não habitamos o mundo dos unicórnios.

Em seu livro “On the Plurality of Worlds” o autor defende a existência de seres como dragões e burros falantes. Trata-se de uma leitura bastante edificante, na qual o autor nos lembra que há mundos possíveis nos quais nós somos ovos cozidos. Infelizmente, o autor aponta a dificuldade ou impossibilidade de haver contato entre esses mundos e nos lembra que há um preço a pagar para entrar nesse paraíso filosófico.

Em suas palavras:

“Algumas de nossas opiniões são mais firmes e menos negociáveis do que outras. E algumas são mais ingênuas e menos teoréticas do que outras. E parece haver uma tendência para as mais teoréticas serem mais negociáveis”

O quadrado redondo é particularmente problemático, pois aparentemente trata-se de uma contradição lógica. A teoria de objetos de Meinong gerou debates no campo da filosofia da linguagem, mas o quadrado redondo parece violar a lei da contradição (a segunda das três leis clássicas do pensamento), a qual nos diz que afirmações contraditórias não podem ser ambas verdadeiras, no mesmo sentido e ao mesmo tempo. Mas é claro que uma definição como essa dá espaço para muitos malabarismos epistemológicos.

Há muitos outros sistemas de lógica em uso hoje em dia além da lógica clássica aristotélica, especialmente para complementá-la. A lógica modal, conforme foi previamente referida, acrescenta o princípio da possibilidade. Eu sou um ser humano nesse mundo possível, mas eu poderia ter sido um ovo cozido. E Lewis defende que, de fato, existe um mundo em que eu sou um ovo cozido e isso não contradiz o fato de eu ter forma humana nesse mundo.

Uma possível solução para o problema dos objetos não existentes é a “estratégia da cópula dual”. Na cópula do quadrado redondo é dito que o quadrado redondo possui a propriedade de ser redondo, a propriedade de ser quadrado, todas as propriedades sugeridas por essas duas e nenhuma outra. Ele não clama a propriedade de existência física, mas apenas de existência. Eu não posso ter ao mesmo tempo uma maçã que é uma banana, ou duas maçãs que são quatro maçãs, mas eu posso construir um sistema axiomático em que dado número tenha a propriedade de ser 2 e também de ser 4 (se certas condições forem estabelecidas) se isso for interessante e divertido. Para mais detalhes a respeito dos jogos axiomáticos, leia o post “Mudança de Paradigmas na Ciência“.

É claro que se eu mudo as regras do jogo atual, isso resultará num jogo diferente. Por isso David Lewis nos alerta que, embora possamos negociar especialmente a parte teórica, há um preço a pagar. Você quer tanto assim um quadrado redondo? O que está disposto a sacrificar por ele? Até mesmo axiomas clássicos da matemática? Só porque os teoremas da incompletude de Gödel estabelecem limitações a variados sistemas axiomáticos, você acha que pode criar triângulos retangulares apenas para jogá-los numa selva bastante exótica e encontrar dificuldades sérias para visitá-los?

Talvez você queira me dizer: “Eu prefiro uma montanha de ouro do que um quadrado redondo!” mas eu garanto que incontáveis filósofos sacrificariam essa tentação para em vez disso conquistar o lendário quadrado redondo (cuja existência é bem mais difícil de provar!), que, assim como a quadratura do círculo, tem atormentado mentes desde a Antiguidade. Segundo Emanuel Swedenborg, a quadratura do círculo, por exigir um número infinito de etapas, só poderia ser feita por Deus, que é infinito.

E já que falamos de Deus, o termo “quadrado redondo” já foi bastante usado exatamente para referir-se a algo que Deus não pode fazer. Tomás de Aquino diz que até mesmo um Deus onipotente não pode realizar atos logicamente impossíveis, como criar um triângulo quadrado ou uma pedra que nem mesmo Deus pode erguer (paradoxo da força irresistível). Contudo, devemos lembrar que a filosofia escolástica, e particularmente São Tomás, se basearam fortemente na lógica aristotélica.

Através da lógica modal podemos simplesmente colocar o quadrado redondo na selva de Meinong ou num dos mundos possíveis de Lewis. Alguns ainda se aborrecem com essa solução, já que não acreditam em mundos como esses, uma vez que nunca houve nenhum relato de alguém que tenha pisado nesses lugares e retornado são a nosso mundo. Também nunca ouvimos relatos de alguém que tenha visitado o mundo das ideias de Platão, com seus círculos perfeitos e entidades numéricas, mas as pessoas usam os números mesmo assim porque, independente de existirem ou não, eles são práticos.

Quem sabe, se alguém encontrar uma utilidade para o quadrado redondo, ele seja promovido ao respeitável reino dos objetos existentes. Uma solução elegante seria utilizar o quadrado redondo para resolver o problema da quadratura do círculo e matar dois coelhos com uma só cajadada. Possivelmente isso exigiria um ato de magia negra tão grandioso do qual somente demônios poderiam se ocupar.

Existem incontáveis teorias ontológicas bizarras (e perdidamente adoráveis!) pairando por aí. Uma das minhas favoritas é a de Berkeley, apresentada em “Três Diálogos entre Hylas e Philonous”. Berkeley defende que o mundo material não existe. Segundo ele, acreditar que a matéria possui existência absoluta é uma visão mais cética do que acreditar que a matéria depende da mente, pois dar uma existência absoluta à matéria seria considerá-la eterna e segundo Berkeley é eterno somente Deus e as almas. Os objetos só não desaparecem instantaneamente quando paramos de olhá-los porque Deus está sempre olhando para tudo.

Por que teorias que defendem a existência de objetos inexistentes e questionam a existência dos objetos existentes são tão importantes? Por uma simples razão fundamental: devido à crença atual quase irrestrita no materialismo.

Na época em que vivemos é comum acreditarmos que o mundo material é real e não questionamos isso. Não nos perguntamos seriamente se isso é realmente verdade. Simultaneamente a essa crença está a descrença em realidades espirituais como Deus e espíritos. Normalmente, partimos do pressuposto de que o transcendente não existe e de que a mente é uma mera extensão do cérebro.

Ao longo da nossa história, o materialismo foi bastante raro. Houve os charvakas na Índia, que perderam a continuidade de sua tradição por volta do século XII. Houve também tradições chinesas, mas no que diz respeito à filosofia ocidental, além de alguns pré-socráticos só se ouviu falar disso novamente de forma consistente por volta do século XVIII.

Ainda assim, muita gente toma como óbvio que o materialismo é evidente. E muitos que afirmam não crer no materialismo, agem como se ele fosse a verdade.

Muitas pessoas religiosas ao nosso redor, ou que simpatizam com religiões como cristianismo, budismo, hinduísmo ou qualquer outra, embora aceitem os princípios de sua religião, não compreendem de verdade no que isso implica. Ou aceitam esses princípios apenas superficialmente, sem se preocupar em aplicá-los na vida diária.

Os budistas afirmam que esse mundo é uma ilusão. Então por que tantos budistas se comportam como se não fosse, se apegando a tantas coisas? Os cristãos acreditam que existe Deus e vida após a morte, então por que ficam sempre tão ansiosos com as coisas desse mundo, com medo de adoecer e com medo de ficar sem dinheiro? A crença em Deus deveria bastar para se ficar em paz. Por que é tão difícil encarnar esses ensinamentos?

Eu acredito que a razão principal disso é que o materialismo está tão impregnado em nossa mente, a ponto de atingir os ossos, que não nos permite viver de outra maneira. Creio que o estudo aprofundado de metafísica é um bom começo para passarmos a exorcizar o materialismo de nossas mentes, tendo em vista encará-lo como apenas uma possibilidade dentre um universo de outras teorias.

Infelizmente, muitos daqueles que acreditam em Deus e alma geralmente encaram isso de forma subjetiva. Veem Deus como apenas algo dentro deles e não fora. Acham que céu e inferno são metáforas. É verdade que para religiões como budismo e hinduísmo é preciso quebrar a nossa noção de identidade (destruindo a separação entre aquilo que há dentro de mim e fora de mim), mas religiões como as abraâmicas exigem a crença nessa separação objetiva. Posteriormente devemos nos esvaziar de nós mesmos pela humildade para que reste apenas a presença de Deus em nós, mas antes disso é preciso respeitar a metafísica da religião, para que tal etapa seja possível.

Para que o budista possa avançar em sua espiritualidade, ele deve acreditar que a existência do mundo constitui apenas agregados mentais. Ele não deve apenas aceitar isso superficialmente. Deve acreditar com todas as suas forças. As experiências meditativas irão dar-lhe uma noção mais forte dessa realidade, mas em todo o tempo em que não estiver meditando o budista deverá estudar sua religião seriamente para se munir de argumentos lógicos fortes que provem que é racionalmente aceitável que as coisas materiais não tenham uma “coisa em si”, tal como defendido por Berkeley.

O judeu, cristão ou muçulmano deverá crer profundamente, “de todo seu coração, de toda sua alma, de todas as suas forças e de todo seu entendimento” (como diz Lucas) que Deus existe como realidade objetiva e transcendente fora da mente, e não somente como alma dentro de nós. Deus também deve ser entendido como estando dentro de nós, mas essa é sua parte imanente. A religião só faz sentido quando se crê na realidade espiritual (nem material e nem conceitual) de Deus.

Isso tudo também tem relação com o velho problema dos universais, que remonta a Platão, e tem como possíveis soluções posições como realismo, idealismo e nominalismo. A posição de muitas religiões sobre realidades espirituais é o realismo: a “ideia Deus” como realidade no mundo das ideias platônico, ou mundo espiritual, que contraria a visão de Deus como ideia na mente (idealismo) ou nome, mera definição (nominalismo). Por isso, querer usar a definição de “quadrado redondo” para promovê-lo ao mundo dos objetos existentes é um salto ousado, mas possível.

Tentar entender uma religião não materialista adotando um paradigma materialista só poderá resultar em fracasso. Será como tentar beber uma sopa com um garfo. Por mais que você se esforce, enquanto não estiver determinado a realmente abandonar as suas crenças as quais sempre foi tão apegado, não obterá um real progresso. E começará a chamar essas religiões de supersticiosas e ilógicas, incapaz de identificar as próprias superstições dentro de você.

A maior parte das religiões ou sistemas de crenças espirituais não têm o objetivo de dizer que o mundo material é sujo e cruel. No cristianismo é dito que o nosso mundo é bom, Deus o criou e viu que era bom. Nós podemos ter prazeres nesse mundo, mas o prazer não é tudo que existe e tampouco é o objetivo da vida. Há outro mundo além desse e ele não existe apenas dentro de sua mente. Você possui uma alma imortal, que não deve ser entendida de forma metafórica. Já o budismo diz que a vida é sofrimento, mas também diz que o nascimento humano é o ideal para alcançar o objetivo da vida (a Iluminação) já que nós não sentimos tantas dores como os demônios e nem tanta paz como os anjos, podemos nos focar no nirvana.

No momento em que você opta por certo sistema de crença, não deve tentar interpretá-lo como um curioso desapaixonado. Deve ser como um antropólogo, que tentará pensar como eles, viver como eles, comer como eles. E não praticá-lo pela metade, doando apenas uma parte de você. A entrega mental deve ser total.

É claro, você não tem tempo para isso, precisa estudar, trabalhar e ter lazeres, mas você pode fazer tudo isso e ainda realizar a entrega mental, que exige sacrificar apenas uma coisa muito preciosa para nós: o orgulho de pensar que já sabemos o que é o mundo.

Os magistas do caos geralmente conseguem se adaptar a um grande número de sistemas de crença, porque embora não interpretem literalmente o “Nada é verdadeiro, tudo é permitido”, eles investigam seriamente suas possibilidades. Eles sabem que o materialismo não é o único paradigma existente e nem o melhor. Sabem que até mesmo a lógica e a matemática estão sujeitas a falhas e nossos sentidos físicos podem nos enganar. Como nos lembra a Teoria do Caos, uma montanha não é um cone perfeito. Não existem círculos perfeitos na natureza. Tomar a matemática como “verdade” e o mundo material como “real” sem maiores investigações, não é muito diferente de uma crença cega.

Em que mundo você prefere viver? Um mundo de unicórnios, montanhas de ouro e quadrados redondos? Ou um mundo de prazer material que termina com a morte? Para a pergunta “Céu é escapismo?” responde C.S. Lewis: “Quem fala mais contra ‘escapismo’? Carcereiros”. Enquanto uma pessoa tenta escapar para o céu, a outra tenta escapar com os prazeres dos sentidos. Mas enquanto tentarmos meramente escapar de alguma coisa, nós estaremos nos aprisionando ainda mais.

No momento em que nos propusermos a uma busca honesta pela verdade, aliando razão, emoção, experiências dos sentidos e uma mente aberta, não haverá o que temer: nem burros falantes e nem ovos cozidos. É claro que pode ser assustador desafiar nossas concepções de mundo. David Lewis não disse que o processo seria de graça. Pode ser bastante doloroso agora, mas lá no horizonte há uma montanha de ouro. E, se você tiver sorte, unicórnios.

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/a-montanha-de-ouro-e-o-quadrado-redondo

A jornada espiritual não é confortável

No período em que vivemos nós temos a ideia de que o objetivo da vida é obter o máximo de prazer e de conforto. E nós refletimos esses desejos também quando buscamos uma religião ou práticas espirituais.

Vivemos numa época individualista, materialista e utilitarista. O individualismo se manifesta quando buscamos uma religião cuja meta seja satisfazer apenas a nós mesmos, como indivíduos separados de todo o resto. Perdemos a noção de que fazemos parte de um todo e nossa busca não é mais tentar reconectar-se com as outras pessoas, com o divino ou com a natureza. Nós apenas identificamos que “eu” estou com um problema e “eu” preciso arrumar um jeito de resolver isso. Como se minha perda de conexão com Deus, com o mundo ao meu redor e com as outras pessoas não tivesse nenhuma relação com isso.

Quando percebemos que a realidade é muito maior do que a nossa pequena existência, a morte já não parece assim tão assustadora. Não parece tão terrível o pensamento de desaparecer, porque o mundo não gira ao meu redor. Se eu morrer, não estarei sozinho, porque muitos seres já morreram antes e muitos seres ficarão. Eles, de certa forma, são uma extensão de mim mesmo, porque eu não sou totalmente separado de todo o resto como acho que sou.

O materialismo se manifesta quando buscamos somente gratificação material numa prática espiritual. Atualmente é comum achar que somente a realidade que eu experimento com meus cinco sentidos tem existência, e que a mente é somente uma projeção do cérebro, como se fôssemos máquinas. Então, se tudo que existe é meu corpo físico e minhas emoções, a religião se torna apenas um veículo para aumentar o êxtase que sinto com meu corpo físico (prazer dos sentidos) e com minha mente (prazer emocional).

Com isso, a meta da jornada espiritual do materialista acaba se reduzindo a busca de prazeres. Você vai à igreja para sentir uma sensação de paz mental ou realiza uma meditação para sentir aquele êxtase obtido com os estados alterados de consciência. Se a religião servisse só para isso não seria muito diferente de usar drogas.

Por fim, o utilitarismo se manifesta quando optamos por realizar certa prática espiritual apenas na medida em que ela me é útil. “Para que serve isso?” você se pergunta. E somente passa a realizar as práticas que são convenientes para você. A espiritualidade já não é boa por si mesma, ela precisa “servir” para alguma coisa e esse objetivo precisa ser necessariamente material ou emocional, para satisfazer a máquina que é o ser humano.

Muita gente diz que o objetivo de ter uma religião é alcançar coisas como paz mental, alegria, ter disciplina ou simplesmente sentir-se bem. Mas se fosse assim, ela poderia ser substituída por qualquer outra coisa, como uma visita ao psicólogo, uma agenda, um sorvete ou sair com os amigos.

É verdade que você pode obter essas coisas ao longo de sua jornada espiritual, mas sugiro que as pense mais como subprodutos de sua prática e não como a meta em si. O foco principal de uma religião é o espírito, o transcendente.

Mas o que isso quer dizer? No mundo em que vivemos já não há espaço para o espírito, porque ele parece meio antiquado e não parece ter uma utilidade imediata como um lápis ou uma panela. Então, que tal deixá-lo de lado? Que tal reduzir a nossa vida somente ao essencial e abandonar tudo o que é supérfluo para a obtenção dos meus prazeres?

Muitos de nós sentem uma sensação de tédio ou vazio. Nossa vida está aparentemente completa. Nós estudamos, ou trabalhamos, temos amigos, pequenos lazeres. Mas a vida é apenas isso? Parece que falta alguma coisa. Parece que, em algum momento da sua vida, você deixou para trás algo absolutamente importante, ou nunca foi atrás disso de fato.

As religiões lidam com a porção espiritual de nossa existência. Não é algo que possa ser substituído por filosofia, que se ocupa da razão, ou por psicologia, que se ocupa da mente e emoções. No máximo, essas e outras áreas podem complementar as religiões, mas nunca substituí-las.

No budismo não se fala tanto em Deus ou em alma, mas a iluminação é tida como um “apagar”. Precisamos nos desapegar da nossa noção de “identidade” e nos desapegar de nossos desejos incessantes por prazeres do corpo e da mente. Algumas pessoas que praticam meditação o fazem porque buscam os prazeres que ela proporciona, mas a meta é deixar de lado até esse tipo de prazer. O budismo não existe para obter “paz mental” ou “conforto”. O primeiro passo é obter desenvolvimento moral (produzir bom karma e deixar de produzir mau karma). O passo seguinte é deixar de lado até o bom karma (não se identificar mais com as ações do corpo e da mente).

Mas isso é doloroso. Quando abandonamos até mesmo os prazeres obtidos na meditação, ficamos sem nada. E esse é exatamente o momento de travarmos nossa guerra contra Mara, que procura nos tentar novamente com as ilusões do mundo.

Jornadas similares são trilhadas em outras religiões. No cristianismo, muita gente passa a frequentar a igreja porque quer se sentir bem. No momento da missa, sentem um grande êxtase e passam a realizar práticas como orações porque gostam da sensação de conforto e segurança.

Ou seja, encaram a religião como se tivesse uma utilidade e essa utilidade fosse somente material: sinto boas sensações no corpo inteiro quando me ajoelho, e também sinto paz e felicidade. Sendo assim, a prática não é espiritual, mas uma busca de um êxtase dos sentidos, como relata São João da Cruz, que pode ser substituída por um banho de espuma ou uma massagem.

Acaba-se por acreditar em Deus porque se busca a salvação individual. Eis o individualismo: quero crer em Deus para salvar a mim mesmo e não porque busco reconectar-me com o divino para descobrir que meu pequeno eu não está sozinho no universo. E eu não devo buscar isso porque a solidão que sinto é insuportável, mas porque tenho uma busca pela verdade.

Claro que não é errado começar buscando uma religião tendo desejos como esses. No entanto, com o tempo, é desejável ocorrer algum amadurecimento espiritual para notarmos as coisas que realmente importam em nossa jornada.

Hoje em dia, as meditações budistas realizadas nos templos viraram sinônimo de um momento confortável de relaxamento para aliviar o estresse e a ansiedade. Da mesma forma, frequenta-se uma igreja não para adorar a Deus porque essa adoração é excelente, mas para que o padre me diga palavras de conforto e eu me sinta bem. Essa mudança de paradigma ficou muito clara com as mudanças ocorridas após o Concílio Vaticano II na década de 60. Antes nas missas o padre ficava de costas e a meta central não era deixar os frequentadores da missa satisfeitos, mas honrar a Deus e não resolver meus problemas psicológicos. Agora, o padre se volta para a frente, como se a utilidade da missa fosse mostrar que nós somos os protagonistas e não Deus.

O cristianismo de hoje é praticado de uma forma que C.S. Lewis chama de “cristianismo água com açúcar”: muitos acreditam em Deus, mas não no diabo. Mal se fala no diabo hoje em dia. As pessoas preferem o Deus mais reconfortante do Novo Testamento e criticam o Deus do Velho Testamento, porque não se sentem confortáveis com seus discursos e ações.

Com isso, estamos usando a religião para atender as nossas necessidades individuais: vou escolher somente os dogmas que me parecem bonitos, especialmente os mais confortáveis e fáceis, que confirmem minhas visões de mundo.

Então a religião não passa mais a ter um estudo e prática dedicado para que se tente compreender os dogmas mais difíceis. É muito mais fácil criticar as religiões e dizer que elas são antiquadas, preconceituosas e erradas do que admitir que talvez nós possamos estar errados.

Recentemente terminei de ler um livro sobre anjos do grande teólogo Peter Kreeft. E uma das perguntas contidas no livro reflete exatamente o mal de nosso tempo:

“De acordo com a angeologia, anjos supostamente formam uma hierarquia. Por quê? Isso não é apenas uma projeção das políticas monárquicas medievais?”

Kreeft inicia sua resposta com os seguintes dizeres:

“A noção alternativa de que anjos são iguais poderia também muito bem ser uma projeção das nossas políticas igualitárias modernas”

O que isso significa? Que preferimos achar que os pensamentos medievais são atrasados ou incorretos do que admitir que talvez nós estejamos cometendo o erro de interpretar uma religião antiga com os preconceitos existentes na nossa própria época.

Hoje o cristão não deseja entender o que é Deus. Deseja inventar em sua cabeça o Deus que é conveniente para ele.

Kreeft observa no mesmo livro que Rabbi Abraham Hescel objetou seriamente a noção de um Deus reconfortante. Hescel disse:

“Deus não é um tio. Deus não é bonzinho. Deus é um terremoto”

O termo “temor a Deus” é muito mal compreendido hoje e geralmente interpretado como respeito. Porém, a interpretação ideal do termo “awe” seria: “um sentimento de respeito reverente, misturado com medo ou espanto”.

Quando meditamos, nós sentimos medo. Até mesmo medo da morte. Quando nos entregamos a práticas místicas do cristianismo, também sentimos medo diante de Deus. E esse medo é essencial para a jornada, que São João da Cruz chama de “a noite escura da alma”.

É claro que queremos uma meditação confortável. É evidente que preferimos um Deus e um anjo que somente massageiam nosso ser. Mas não é assim que iremos avançar na jornada.

Para avançar, precisamos dos obstáculos e desafios. É necessário o mal, o diabo, a dor, o sofrimento. É preciso cair. É imprescindível sentir temor a Deus ou verdadeiro temor diante dos estados alterados de consciência, pois somente assim gera-se a concentração de acesso para ir adiante nos jhanas.

Tire os demônios do cristianismo, tire as práticas ascéticas e desconfortáveis das religiões indianas e você matará essas religiões.

Tente assistir a um filme em que todos os personagens são felizes e em que não há situações difíceis. Experimente jogar um jogo muito fácil e logo enjoará. Tente viver uma religião cor-de-rosa, na qual existem apenas inocentes querubins (e não anjos magníficos e assustadores, que também podem cair como nós) e meditações com chás e bolos. Talvez essa religião te satisfaça por um tempo. Você apenas cortou os galhos da árvore e não atingiu suas raízes. Siga uma religião que apenas te deixe confortável na maior parte do tempo, e, no momento que chegar a dor e a morte não terá maturidade para lidar com elas.

A jornada espiritual não é confortável. Mas ela também não é terrível. Na Idade Média se falava em excesso sobre o demônio, o que também pode ser um exagero. Mas atualmente não se fala nem em Deuses e nem em demônios, mas apenas no ser humano, como se não houvesse o espírito e o transcendente, e a religião fosse meramente uma metáfora para desenvolver a moralidade.

O primeiro passo para equilibrarmos nossa busca espiritual é ler seriamente e praticar seriamente. Não ler e praticar apenas o que nos agrada, mas ousar dar um passo adiante para sair da zona de conforto e aceitar que não sabemos de tudo. Ainda há muito a aprender.

E uma mensagem para os praticantes da Magia do Caos: investigue, experimente, ouse. Além de pragmática e divertida, a sua prática poderá se tornar repleta de espíritos, Deuses e desafios. Afinal, caoísmo não é fazer qualquer coisa, mas montar um laboratório de experimentos e permitir-se o aprendizado tanto da matéria quanto do espírito em sua jornada.

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/a-jornada-espiritual-n%C3%A3o-%C3%A9-confort%C3%A1vel

O Bem e o Mal

Geralmente, glorifica-se e valoriza-se pessoas que são “boazinhas”, enquanto as pessoas que são “ruins” ou, em outras palavras, rebeldes, desordeiras, agitadas, são denegridas, segregadas ou isoladas do restante da sociedade.

Acho muito importante a ação dessas pessoas ditas “ruins”.

Muitas vezes ouve-se dizer que, se Deus existisse, não deixaria o Mal existir.

Acontece que Deus é, em última instância, Tudo. Se Ele(a) é Tudo, então, é ao mesmo tempo o Bem e o Mal.

Parece bastante estranho esse conceito porque não estamos acostumados a ver essa Entidade, se é que podemos chamá-la assim, como sendo ambivalente, ou bipolar. Parece presunção afirmar algo sobre Sua Natureza, mas podemos chegar a certas premissas, como já foi explicado no Hermetismo – Ele(a) é o Todo.

O Bem é muito conhecido pelas suas propriedades Criadoras e Mantenedoras/Amparadoras. Tudo aquilo que Cria, que Une, que provê, que dá suporte, que Gera, é visto com bons olhos, sendo geralmente classificado como “do Bem”.

O Mal é associado a tudo aquilo ligado à destruição, à doença, à tristeza, à pobreza, à miséria, aos vícios, à morte. Ou seja, seria o exato oposto daquilo que é representado pelo Bem.

Creio que a maioria já ouviu falar da célebre frase, “A Luz não existiria se não houvesse a Escuridão”, e vice-versa. É um conceito bastante útil para o que estou tentando expor aqui.

O “Bem” e o “Mal”, do modo como estão sendo apresentados aqui são, por si próprios, forças divinas. Eles atuam igualmente, em todos os níveis e em todas as esferas, como agentes balanceadores e indicadores. Se só houvesse Criação, tudo estaria em excesso, desde os Reinos mais básicos até os mais complexos. Minerais, Vegetais, Animais. Montanhas imensas, rios e mares dominando e invadindo tudo. Sistemas Solares repletos de planetas chocando-se uns nos outros. Sóis e mais sóis, gerando energia demasiada, grandes tempestades cósmicas e SuperNovas ocorrendo a cada segundo. Em todos os níveis, uma superpopulação. Tudo acabaria soterrado, aglomerado, “entulhado”, por assim dizer, se não houvesse a ação controladora da Destruição.

A Destruição e a morte nada mais são do que formas de reciclagem. Como no texto anterior dos Ciclos Naturais, em que comentei sobre o símbolo cíclico do Ouroboros (a serpente devorando a própria cauda) a construção e a destruição são o início e o fim de um Ciclo de Existência de qualquer coisa. Quando algo é construído, utiliza-se diversas matérias-primas, organizando-a e dando forma à ela, e aglomerando cada vez mais diversificadas matérias-primas à obra. Quando a obra é completada, ela é destinada para a finalidade pela qual ela foi construída. Quando terminada sua missão, seu objetivo mais natural e proveitoso é de se reciclar, ou seja, de morrer, de ser destruído em seus componentes básicos iniciais, para que o Escultor possa Esculpir uma Nova Obra, que será utilizada para uma Nova Finalidade, que só Ele(a) sabe.

Há muitas outras bipolaridades que representam essas forças, como a saúde e a doença, a felicidade e a tristeza, a riqueza e a pobreza, entre muitas outras. Muitos sábios já disseram que o mundo em que vivemos é bipolar em sua essência, ou seja, está em todas as coisas, mas que ambos os lados dessas “moedas” existem por razões fundamentais. Tomemos a saúde e a doença, por exemplo. Como poderíamos saber se certos costumes contribuem para a manutenção da vida se não houvesse a balança da saúde/doença? Balanças são usadas para medir. Nem sempre é bom permanecer somente em um lado da balança, pois a tendência é esquecer da sua contraparte, ou de seu oposto. É sábio experimentar e verificar os resultados de nossas ações ao longo do tempo, para adquirirmos sabedoria dos fatos da vida. Ficar em um oásis de paz, felicidade e saúde o tempo todo não nos trará lições, nem nos motivará para conhecermos o que há além das dualidades e dos arquétipos.

Portanto, que conselhos poderiamos extrair de tudo isso? Arrisque-se. Tente. Faça. Vá. E tome nota de tudo o que sente, imagina, raciocina, intui e percebe com seus sentidos. Experimente tudo o que quiser. Traga Vida à própria Vida. Faça aquilo que você acha que não pode fazer. Dessa forma, você brilhará e saberá no seu íntimo o que é a vida, pois isso é algo que ninguém pode te dizer, é algo que tem de ser descoberto por si próprio. Moralidade é importante no que tange a vida em sociedade. Mas na vida individual, a liberdade, a coragem e a ação são os regentes para a verdadeira realização. Carpe Diem!

#Deus

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A Crença do Espiritualista

Através de diálogos pela internet uma vez fiquei sabendo de uma história, conforme contada por um amigo cético. Ele dizia que um amigo a quem admirava a inteligência sofreu um acidente de carro e ficou alguns dias desacordado. Ao recobrar a consciência, consta que ele perguntou “se ainda estava vivo, ou se já estava do outro lado”. Seu amigo era espírita e acreditava em vida após a morte (na realidade, em vida após a vida), e ele se perguntou: “mas como uma pessoa tão inteligente pode crer numa coisa dessas?” – Esta é uma excelente pergunta…

Muitos céticos e aqueles classificados como “eruditos ou intelectuais” parecem não conseguir resolver tal enigma. É que eles esbarram em duas interpretações algo preconceituosas: a primeira é a de que a fé não pode ser racional, e a segunda é a de que a grande maioria dos espiritualistas e religiosos é alienada da realidade. Este artigo tentará abrir os olhos dessas pessoas, para que possam analisar aos espiritualistas pelo que eles realmente são: pessoas como qualquer outra, mas que consideram a possibilidade da existência do espírito.

Fé e Razão
A etimologia da palavra “fé” nos traz duas origens não necessariamente complementares. A primeira deriva do grego pistia e quer dizer “acreditar”. Este é o significado mais usual, entretanto ainda incompleto, pois não basta crer, é necessário também compreender a razão pela qual se crê. Esta é a chamada fé raciocinada. Antes de ser uma contradição, como podem pensar alguns, o uso da razão solidifica a fé, pois ao analisarmos o objeto de nossa fé, compreendo-o e aceitando-o, estamos criando alicerces que tornarão nossa fé inquebrantável, fortalecendo-nos frente aos desafios mais árduos. Por outro lado, a fé sem a razão é frágil, está sujeita a ser desfeita e pode, frente ao menor abalo, desmoronar. Ou ainda pior, esta fé irracional pode nos conduzir ao fanatismo, a negação de tudo que seja contra o nosso ponto de vista. Por não ser oposta a razão, a pistia é por si mesma não dogmática e, portanto, perfeitamente compatível com o ceticismo.

Mas temos uma outra origem da palavra “fé”, derivada do latim fides, que também possui o sentido de acreditar, mas agrega a este o conceito de fidelidade, ou seja, é necessário que sejamos fieis ao objeto de nossa fé. Falando em fé religiosa, estamos falando em Deus, portanto é preciso que sejamos fieis a Deus e isto só é possível seguindo os seus preceitos: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao nosso próximo como a nós mesmos”.

No entanto, é preciso tomar muito cuidado na definição deste Deus, pois muitas vezes as pessoas de fé seguem o deus definido pelo discurso eclesiástico, quando o caminho da espiritualidade nos leva a busca de nossa própria definição de Deus. E isso nos leva ao contraponto do segundo tipo de interpretação preconceituosa…

O Deus de cada um
Cada doutrina religiosa traz sua própria concepção de Deus, e na maioria das vezes elas são conflitantes. Isto, por si só (e não sem razão), já soa absurdo para aqueles que cultivam um pensamento mais cético e racional. Não é a toa que muitos acabam taxando a maioria dos teístas de alienados: se não chegam a um acordo sequer sobre a natureza de Deus, como podem querer ditar regras de conduta a serem seguidas?

Essa pergunta é pertinente porque toca no cerne da religiosidade. O verdadeiro religioso não é aquele que se inscreveu em uma comunidade dos escolhidos de Deus (a origem de “igreja”, do grego ekklesia), mas aquele que pratica uma comunhão com Deus ou com o Cosmos, um caminho de retorno a compreensão de sua própria origem (do latim re-ligare, origem de “religião”). Desnecessário seria dizer que são definições bastante distintas, e que embora todo seguidor de igrejas possa ser religioso, nem todo religioso é seguidor de igrejas. Mas, ainda mais profundo do que isso: a todo verdadeiro espiritualista parece mesmo óbvio que a forma de comunhão com Deus (ou o Cosmos) é própria de cada um, pessoal e intransferível. Não serão livros nem padres nem gurus espirituais quem poderão lhe ensinar – todos esses ajudam, mas cada um aprende por si próprio, e na prática.

Uma comparação pertinente pode ser feita entre aprender espiritualidade e aprender a nadar: de nada adianta ler extensos manuais sobre natação, ou infindáveis palestras de grandes nadadores – você só irá se tornar um grande nadador se tomar coragem de mergulhar e enfrentar as ondas por si próprio.

O verdadeiro espiritualista não é, portanto, um alienado da realidade. Ele apenas mergulhou na própria consciência, enquanto outros (não sem razão) preferiram abster-se da aventura.

Navegar é preciso
Para o espiritualista em constante estudo e deslumbramento perante o infinito do Cosmos, a razão e a fé andam lado a lado com a moral e o amor, e ele encontra na religião, assim como na filosofia e na ciência, preciosos instrumentos para sua longa caminhada…

Nada pode ter contra o cético. Se este ainda não acredita, é por dois motivos: ou porque ainda não passou pela mesma experiência religiosa – e, portanto, subjetiva – que o espiritualista; ou porque simplesmente o espírito realmente não existe, e todas as questões espirituais se resumem a questões psicológicas, a serem analisadas conforme o avanço da ciência. Em ambos os casos, não há razão para nenhuma inimizade entre o espiritualista e aquele que não crê.

Na verdade, se alguém tem o dever moral de evitar brigas e permanecer em postura apaziguadora e amorosa, este é o espiritualista – que bem ou mal, assumiu a responsabilidade de assim o ser, um ente amoroso e equilibrado. Os outros não têm responsabilidade alguma, tampouco Deus algum para lhes inspirar temor, e não há nenhum problema nisso.

Pois que se o caminho espiritual foi trilhado apenas por medo de punições divinas, por barganhas ridículas em troca de um céu para poucos, então ele já se iniciou na direção errada. Que aquele que ainda não compreendeu que todos os seres do infinito são filhos da mesma substância, e que entrarão todos no céu de mãos dadas, é porque ainda está no início da trilha.

Então, perdoai-vos, pois eles não sabem o que fazem. E perdoai-nos, pois nós também não. Mas dos confins do Cosmos uma ponta da longa teia é puxada, e todos somos impelidos em sua direção… quer compreendamos, quer não.

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Crédito da foto: 21guilherme

O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph). Também faz parte do Projeto Mayhem.

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#Espiritualidade #Deus #Ceticismo #Religiões #Preconceito

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