Cria em mim, ó Deus, um coração puro – Parte 2 de 2

Esperamos que durante esta pausa de dois meses todos tenham aproveitado para ler as demais colunas deste portal, apanhar um ou mais livros que estavam aguardando na fila de leitura ou simplesmente caminhar por aí e conhecer novas pessoas e novos eventos. Todos os homens devem morrer, mas antes, deve-se viver.

Em novembro do ano passado, apresentamos a primeira parte deste artigo sobre a Sexta Virtude, a Pureza, tão importante para os jovens em formação. Depois de um certo ponto, é muito complicado retificar e limpar aquilo que foi poluído por anos e, infelizmente, como não se deve colocar vinho novo em odres velhos, com o risco de perder tanto o vinho quanto os odres, a atitude pura já não pode mais se manifestar em quem não só vive neste mundo, mas tornou-se parte dele.

Foi com propósito que o autor da nossa ritualística, o Dad Frank Marshall, jamais escreveu um guia oficial explicando todas as palavras dos nossos trabalhos – desta forma, cada DeMolay poderia refletir e discutir com seus Irmãos, aplicando aquelas lições em sua vida diária e conhecendo-as pela prática reiterada nas Reuniões e fora delas.

Seria, de qualquer forma, completamente irreal um “manual de como ser um DeMolay”. A sociedade muda com o passar das décadas e cada país e estado é completamente diverso do próprio vizinho. Se um DeMolay conhecer de verdade seu juramento e suas Virtudes através do Ritual, deverá ser capaz de agir como se espera dele.

Isto não quer dizer que os DeMolays não devam escrever materiais sobre os ensinamentos da Ordem. Apenas que não devem colocar suas ideias como absolutas e incontestáveis. Este, contudo, é o assunto de um artigo posterior, sendo mencionado para que todos compreendam que definir a “atitude pura” que todo Iniciado deve ter não pode ser feito em dois ou três parágrafos, mas que as diretrizes gerais podem ser lançadas.

Ser puro, então, é agir livre de malícia e de segundas e terceiras intenções. Como explicitado na primeira parte, pureza é diferente de ingenuidade e de inocência. É uma atitude consciente, uma escolha resoluta de ser verdadeiro nas palavras, nos gestos e nos pensamentos.

Com o estímulo contínuo à busca do poder e do prazer, é difícil encontrar candidatos à Iniciação que já não se vejam lutando justamente para se manter no caminho desse ideal. Esmagado entre o clamor hipócrita pela “moral da família e dos bons costumes” e o incentivo ao orgulho de ser dissoluto, o jovem deve tomar cuidado para não justificar seus desvios com argumentos falaciosos.

É esta Virtude, aliás, que deve nortear os relacionamentos dos DeMolays. Com sua família, deve ser um bom filho, vendo em seus pais e irmãos zeladores e companheiros de jornada. Com seus amigos, deve forjar laços de intimidade reforçados não por hábitos em comum ou frequência nas mesmas mesas de bar, mas por pensamentos e desejos igualmente bem direcionados. Por fim, o amor nunca se desenvolverá sobre solo traiçoeiro e fantasioso – aliás, quem não for puro com aquele que ama jamais descobrirá que o amor evolui e se transforma continuamente.

Uma última observação é que a Pureza, por si só, não é atributo unicamente do justo. Todas as ações sob seu prisma são genuínas, mas como muito bem ensinado pelo Príncipe Vegeta, um coração pode ser puro de maldade.

O Rei Davi, ao cantar seus Salmos pelos ares, suplicou muitas coisas a YHWH. Ele pediu justiça e consolo, amor e confiança, fidelidade e realização. Rogou também por um coração puro e o espírito de firmeza para mantê-lo no Salmo L.

Este Salmo que corresponde à quarta-feira, o dia de Mercúrio, no Enchiridion do Papa Leão III, é chamado de “Prece de um Coração Contrito”. Nele, Davi diz que não pode se apresentar diante de Deus como um homem sem faltas e sem iniquidade. Mais importante do que isso, ele reconhece que toda vez que pecou ou fez algo ruim, foi contra Deus que agiu. Mais tarde, essas palavras serão ecoadas por Jesus: “cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizestes”.

A Pureza, portanto, se relaciona à Reverência pelas Coisas Sagradas, a Segunda Virtude, muito diretamente, embora esta ligação não seja óbvia. Ao ser maldoso ou cruel com qualquer outra pessoa, mesmo em pensamento, a falta é cometida contra a fagulha divina presente em todos os seres.

O Rei Davi ainda lembra que a Deus não interessa sacrifícios rituais – palavras da boca pra fora, ofertas de dinheiro por obrigação ou com intenções ocultas, fazer o que deve ser feito com a mente e o coração em outro lugar. O verdadeiro sacrifício é o coração contrito, a percepção do erro e o desejo de fazer melhor com o auxílio divino.

Para manter essa decisão, é necessário o espírito de firmeza. Apenas chegar no final do dia e pedir desculpas por todos os erros e acreditar que magicamente amanhã você será melhor é tolice. Ao fim dos trabalhos, ao revisar suas ações, você deve identificar claramente onde errou e se resolver a não falhar novamente naquilo.

Por conta desses atributos a forma como o DeMolay se porta durante as reuniões do Capítulo é tão importante. Como se fosse um microcosmo, cada palavra dita ali se verá refletida no macrocosmo do dia-a-dia… mas este também é assunto de uma próxima coluna.

Hugo Lima é Sênior DeMolay do Capítulo Imperial de Petrópolis, nº 470.

Virtude Cardeal é uma coluna com o propósito de desenvolver a reflexão sobre características fundamentais de todo DeMolay, bem como apresentar a Ordem aos olhos dos forasteiros.

#Demolay #VirtudeCardeal

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/cria-em-mim-%C3%B3-deus-um-cora%C3%A7%C3%A3o-puro-parte-2-de-2

‘Os Jogos da Vida

Eric Berne

Jogos da Vida é o livro best seller do psiquiatra Eric Berne. Aqui ele apresenta de maneira bem didática os princípios e aplicações práticas da Análise Transacional, uma teoria psico-analitica e um método terapêutico que ele ajudou a desenvolver durante sua carreira. Trata-se de um guia universal para interpretar as interações sociais.

Ele descreve os três papéis ou estados do ego conhecidos como o Pai, o Adulto e a Criança e postula que muitos dos comportamentos disfuncionais que podem ser entendidos pela confusão entre estes três papéis em uma série de jogos mentais desonestos que costumamos jogar.

O livro trás um verdadeiro catálogo destes jogos da vida. É uma coleção de transações pelas quais as pessoas interagem que devido sua descrição e suas consequências muitas vezes são prejudiciais às partes envolvidas. O livro usa uma série de casos ilustrativos e frases com as quais se pode facilmente identificar quando um jogo em particular está sendo jogado e qual a melhor forma de solucionar a situação.

Por exemplo, no jogo intitulado “Agora eu te peguei filho da mãe.” alguém descobre que outra pessoa cometeu um pequeno erro. Em vez de resolver o problema o indivíduo então usa esse erro para alimentar uma série de animosidades. Todos nós em algum momento da vida vamos jogar estes jogos. Este livro pode ser um poderoso mapa para nos tornarmos conscientes deles de maneira a poder substituí-los por relações humanas menos prejudiciais, mais verdadeiras e sadias

A fome por transações

Crianças privadas por tempo prolongado do contato físico de suas mães ou equivalentes tendem a enfraquecer. Elas podem até mesmo morrer em consequência desse isolamento. Um fenômeno correlato é observado em adultos submetidos a privação sensorial em que ficam sem nenhum contato com outros seres humanos ou estímulos externos. Tal provação pode dar origem a psicoses passageiras semelhante a encontrada em indivíduos condenados a prisão em solitária. Além disso a privação emocional e sensorial pode produzir modificações degenerativas nas células nervosas que podem comprometer de maneira relativa ou definitiva todo o sistema nervoso.

Essa dependência do contato humano começa durante a gestação e se prolonga o resto da vida. Após um período de intensa intimidade com a mãe inicia-se a luta constante para conseguir esse sentimento de volta. A maioria das pessoas aprende a se satisfazer com formas de contato físico mais sutis e mesmo simbólicas. Até um simples aceno de reconhecimento pode servir a este propósito.  Mas por toda vida a fome por estímulos de relacionamento se mantém comparada a nossa fome por comida. Não é a toa que termos como desnutrição, saciedade, apetite, gourmet, jejum, entre outros são facilmente usados tanto no campo na nutrição como na psicologia. De forma semelhante, relacionamentos doentios são para o ser humano melhor do que a total ausência de relacionamentos. Preferimos o sofrimento ao não-reconhecimento, da mesma maneira que preferimos uma comida ruim a morrer de fome. Neste livro chamamos de transação a unidade básica de interação social que alimenta os relacionamentos humanos.

A Estruturação do Tempo

 

O objetivo de todo membro de um conjunto social é conseguir satisfazer-se tanto quanto possível de suas transações com os demais. Quanto mais sociável ele for, maior o número de transações que poderá obter. Por essa razão, as transações geralmente ocorrem em séries planejadas e não por mero acaso. Os seres humanos estruturam o tempo disponível no dia para saciar sua fome por transações assim como faz com os demais imperativos biológicos.

 

Existem basicamente quatro formas de se organizar o tempo em busca de transações: o trabalho, os rituais, os passatempos e os jogos. O trabalho é o método mais comum, mais conveniente. Uma tarefa útil, emprego ou projeto precisam de uma longa série de transações para serem realizadas e possuem naturalmente um reconhecimento final a ser obtido.

Os rituais por sua vez são os roteiros sociais que seguimos para adquirir transações previamente aceitas pela sociedade. Esportes, cultos religiosos e cerimônias como casamentos e aniversários podem ser rituais, mas o ritual mais conhecido são as boas maneiras. As boas maneiras variam de sociedade para sociedade mas em todas elas apresentam roteiros adequados e conhecidos por todos para cumprimentar, comer, ir ao banheiro, namorar, chorar  ou conduzir uma conversação. Alguém espirra, outra pessoa diz “Saúde” e ambas saem um pouco mais satisfeitas.

Já os passatempos são transações simples e complementares montadas em torno do objetivo básico em comum aos participantes. Passatempos são usados tipicamente em festas e reuniões sociais. Uma mesma festa pode haver um grupo se divertindo com “Fofocas” outro com “Educação dos Filhos” enquanto outro se entretém com Automóveis ou Receitas. O início e o fim dos passatempos são geralmente marcados por algum tipo de ritual.

Os Jogos

 

Apesar da importância do trabalho, dos rituais e dos passatempos, a maior parte da atividade social consiste em uma quarta categoria que chamaremos de jogos. Um jogo é um  pobre substituto para a verdadeira intimidade e se compõe de uma série de transações encadeadas e enfadonhas que se desenrolam com uma motivação oculta. A natureza desonesta dos jogos e seu desfecho previsível e geralmente dramático são o que os diferenciam dos passatempos.

Vale dizer que os jogos que formam a maior parte da vida social em todo o mundo são jogos inconscientes e os jogadores geralmente não percebem totalmente o que estão fazendo. Como veremos a própria percepção lúcida de seus mecanismos faz parte do processo para se vencer e abandonar estes jogos.

Uma boa forma de entender isso são os jogos de galanteio. Um amante diz para o outro: “Vamos na minha casa ouvir música” e a outra responde “Claro, desde criança que eu gosto de música.”. No nível social essa é uma conversa sobre música, no nível psicológico uma conversa sobre sexo. Outro exemplo fácil de entender é o do bullying, onde o perseguidor é na verdade uma pessoa carente em busca de aprovação. Existem várias outras possíveis abordagens e motivações ocultas para os jogos psicológicos. Para entendê-los melhor teremos que entender um pouco sobre os estados do ego.

Os Estados do Ego

Na Análise Transacional entendemos que a mente se manifesta por meio dos três estados de Ego correspondentes, que são eles o Pai, o Adulto e a Criança. Uma mudança de estado se reflete em mudanças na postura,pontos de vista, vocabulário e outros aspectos do comportamento.

O estado de ego Criança surge durante a primeira infância e perdura por toda vida como resíduos arcaicos. Quando a pessoa está neste modo suas reações e objetivos são os mesmos que teria se ainda fosse criança.

O estado de ego Pai é formada a partir da influência de pais e outras figuras de autoridade e é o reservatório de normas e valores, de conceitos e modelos de conduta, surge no indivíduo por volta dos 3 anos de idade. Neste modo a pessoa tem as mesmas reações, posturas, gestos e sentimentos da imagem que fez de seus pais.

O estado de ego Adulto é a parte da personalidade que são autonomamente dirigidos para uma avaliação objetiva da realidade. É a parte racional do ser humano, que pensa de forma independente desprovidos de preconceitos e influências sentimentais.

Estes são fenômenos normais e todo mundo carrega uma criança, um pai e um adulto dentro de si. Na Criança reside a intuição, a criatividade, o impulso espontâneo e o prazer. O Adulto é necessário para a sobrevivência. Atravessar a rua, por exemplo, exige uma série complexa de análises. O Pai por sua vez torna muitas das reações automáticas e isso poupa muito do tempo e energia do Adulto que pode se dedicar a situações não previsíveis.

É apenas quando um destes modos perturba o equilíbrio saudável do conjunto que uma reorganização da personalidade é necessária. Por exemplo, um chefe que porta com sua equipe como um pai controlador irá geralmente engendrar comportamentos infantis em sua equipe com birra e crises de ciúmes. Estas confusões acontecem em uma série de jogos psicológicos que veremos a seguir. Os verdadeiros vencedores destes jogos são as pessoas que conseguem reassumir seu papel de Adulto.

Estágios do Jogo

Uma característica essencial dos jogos é que eles seguem rumo a um desfecho, em geral prejudicial a um parcela ou todos os envolvidos.  Um jogo no primeiro estágio é aquele que é socialmente aceitável no círculo do jogador, podem causar algum embaraço mas nenhum dano sério.Os jogos de segundo estágio são aqueles que ainda não chegam a causar danos irremediáveis ou permanentes mas machucam emocionalmente e os jogadores já o preferem ocultá-los. Por fim no terceiro estágio estão os jogos que chegam ao seu caráter  definitivo e termina numa sala de operações, num tribunal ou no necrotério.

No primeiro estágio estão muitos jogos que não são prejudiciais. O trabalho voluntário, as boas ações e os cortejos podem todos ter razões ocultas muitas egoístas, mas não necessariamente efeitos danosos aos seus jogadores. Neste livro daremos ênfase aos jogos que tendem ao estágio dois e três.

A seguir veremos os principais jogos detalhados no livro:

O Alcoólatra

Tese: “Tenho me comportado mal: veja se pode fazer algo a respeito.”

Papéis: Alcoólatra, Perseguidor, Otário, Salvador, Conexão

Este é um jogo que pode envolver muitas pessoas. Essencialmente a pessoa se comporta mal para se tornar alvo de censura, preocupação ou generosidade. Como Criança espera que alguém tome a posição de Pai. Pode ser como Perseguidor que condena e pune, como Salvador, que suplica para que se comporte ou como Otário que se deixa agredir e o protege das consequências.

O jogo não é jogado apenas por viciados em álcool, jogo ou brigas de rua podem seguir o mesmo padrão. Mesmo crianças, em especial filhas de alcoólatras se entregam a este jogo sem beber comportando-se mal para conseguir a atenção que desejam.

Antítese: ser franco e tomar uma posição contratual Adulta se recusando a interpretar qualquer papel. Deve-se combinar que a pessoa também seja capaz de tolerar a abstinência tanto de beber como de jogar. Se não se mostrar capaz é melhor ser mandada a um Salvador profissional como os Alcoólicos Anônimos.

Agora eu te peguei seu filho de mãe.

Tese: Agora eu te peguei, seu filho da mãe.

Papéis: Vítima, Agressor

Este jogo envolve alguém dando a si mesmo a posição de Pai na tentativa de despertar a Criança ou um pai antagonista em outra pessoa. Ele pode ser visto nas mesas de poker. Um jogador recebe uma mão imbatível e em vez de se interessar na partida se interessa em ter algum outro jogador a sua mercê. Um marido pode usar uma conversa que lhe despertou ciúmes para repreender sua mulher a fim de libertar uma raiva  antiga, com sua mãe teria feito em uma situação análoga. Outro exemplo é um encanador que apresenta uma nota de pagamento levemente superior a combinada e em vez de negociar uma solução de modo digno e encontrar uma maneira adequada ambos aproveitam para criticar a qualidade do trabalho e mesmo o estilo de vida e caráter da cada um.

Antítese: A solução desse jogo é o comportamento correto.  Deve ser explicitado um contrato detalhado na primeira oportunidade e as regras devem ser estritamente seguidas.

Veja só o que você me fez fazer

Tese: Foi você que me colocou nessa situação. Eu não tenho culpa.

Papéis: Inocente, Culpado.

O objetivo deste jogo é a justificação do jogador como uma criança que se revolta contra os pais em vez de assumir responsabilidades. Na sua forma clássica é um jogo conjugal que em termos sexuais pode ser relacionada a reações como quando a ejaculação é prematura ou existe ansiedade de castração. Contudo também é jogado por pais e filhos  e no ambiente de trabalho

Antítese: Deixar o jogador em paz, sozinho se for um caso isolado ou delegar a ele todas as decisões caso tente fazer do jogo um modo de vida. Em alguns casos graves pode ser necessário buscar os benefícios da psicoterapia.

Mulher Fria

Tese: “Eu tentarei se você não deixar.”

Papéis: Esposa Decorosa, Marido sem consideração.

O marido procura a esposa e é repelido. Depois de várias tentativas ela diz que não é amada e todos os homens são animais que só querem sexo. O marido desiste por um tempo e tenta de novo com o mesmo resultado até que finalmente acaba por desistir. A mulher percebendo se faz provocante colocando uma camisola transparente por exemplo, ou se beber pode buscar flertar com outros homens. O marido reage e tenta de novo e é novamente repelido. O padrão escala e se repete até resultar na briga do casal. O ponto a ser ressaltado é que o marido também receia a intimidade e escolheu exatamente como companheira alguém que minimiza o perigo. Ambos reproduzem o padrão Criança-Pai/Mãe da sua primeira infância.

Antítese: Este é um jogo perigoso. Se um dos dois arranjar um amante o outro ganhará munição para jogar o “Agora eu te peguei seu filho da mãe.”. Os jogadores devem buscar psicoterapia individual ou , ainda melhor, um grupo de tratamento para casais.

Tribunal

Tese: Você precisa dizer que eu estou com a razão.

Papéis: Acusador, Acusado, Juiz

Este jogo pode se desenrolar em família, grupos de terapia, consultórios e mesmo em programas de televisão. Neste jogo duas Crianças procuram a intervenção de um Pai que seja o juiz e que diga que um dos dois tem razão.

Antítese: Recusar-se a assumir o papel de juiz e expor a verdade da situação apresentada.

Veja como eu me Esforcei

Tese: “Vejam só quanto me esforcei.”

Papéis: Obstinado, Perseguidor, Autoridade

Este outro jogo conjugal pede também três jogadores que em seu modo clássico são o marido, a esposa e o terapeuta. O marido quer se separar mas declara enfaticamente o contrário. A esposa  é sincera em seu desejo de conservar o casamento.  Ele vai contrariado ao consultório mas com o passar do tempo exibe ressentimento crescente contra o terapeuta. Seu comportamento piora até que ele se recusa a continuar. A esposa é levada a considerar a possibilidade da separação e o marido não precisa mais se sentir culpado pois foi ela que tomou a iniciativa e ele inclusive demonstrou boa fé indo ao terapeuta.  Este jogo é também observado em crianças que ao realizar uma de suas obrigações ou deveres e não os faz alegando desconhecimento ou os faz tão mal que necessita ser chamada atenção. Quando isso acontece se sente livre da culpa de não fazer o combinado.

Antítese: O marido deve ser mandado para casa com a explicação de que está menos preparado para a terapia, que continua com a esposa. Ele ainda poderá conseguir o divórcio mas às custas de abandonar o jogo. No caso dos pais devem mostrar a criança que seu esquema foi descoberto e não pode mais ser usado.

Desastrado

Tese: “Você tem que desculpar coisas que parecem acidentais”

Papéis: Agressor, Vítima

Um convidado em uma festa derruba coquetel no vestido da anfitriã que sente raiva mas se controla. O convidado pede desculpas e a anfitriã ou resmunga ou deixa claro seu perdão. O problema é que neste jogo o jogador continua quebrando as coisas e a anfitriã continua perdoando. O objetivo do jogo não é destruir mas obter o perdão ou a raiva da pessoa e transições entre o desastrado que se coloca como uma Criança e um Pai que tem que lidar com ela.

Antítese: No caso de repetição incômoda do jogo a solução é não oferecer a absolvição pedida, mas tornar o jogo as claras com algo do tipo “Você pode derrubar os copos e molhar o tapete, mas, por favor, não fique pedindo desculpas.”

Só estou querendo ajudar

Tese: “Ninguém faz o que eu digo.”

Papéis: Pessoa que ajuda, Pessoa que é ajudada.

Este jogo pode ser jogado em qualquer situação profissional. O jogador dá um conselho vago ou difícil de ser executado a alguém que mais tarde retorna dizendo que não obteve o efeito desejado. O jogador tenta de novo e o ciclo se repete. Se o outro jogador for hostil pode tentar jogar um “Olha o que você me fez fazer” e é nesse ponto que o profissional assume que a pessoa não seguiu suas exatas instruções e perplexo com a ingratidão explode em “Eu só estava tentando ajudar”. Note que para o jogo ocorrer a pessoa que ajuda precisa ter certeza que seu auxílio não será aceito ou que levem muito tempo para fazê-lo. Isso porque o jogador se frustraria com resultados rápidos e prefere saborear  aos poucos a vitória psicológica de ser a pessoa que ajuda. A pessoa se coloca como um Pai que precisa ser sempre consultado mas nunca é escutado.

Antítese: A pessoa que realmente quer ajudar em vez de desconfiar e se revoltar que seus conselhos não sao seguidos procura saber o que realmente está acontecendo em vez de escolher a saída fácil e a dependência infrutífera.

Sim, mas..

Tese: Veja se consegue achar uma solução em que eu não consiga descobrir um defeito.

Papéis: Pessoa com problema, Conselheiros

Este jogo pode ser jogado por várias pessoas ao mesmo tempo e consiste em um jogador que apresenta um problema para então encontrar um defeito em cada solução apresentada. Existe ganho em cada resposta mas seu objetivo é o silêncio que tem lugar quando todos se cansam de quebrar a cabeça tentando imaginar soluções. Este silêncio significa que o jogador ganhou demonstrando que todos são incompetentes. Às vezes o silêncio é disfarçado por uma mudança de assunto. É como uma criança que se recusa a aceitar as instruções do Pai para que ele continue lhe dando orientações e atenção.

Antítese: Este jogo é o exato oposto do “Só estou querendo ajudar”, sua antítese é assim se recusar a fazer o papel de conselheiro. Contudo em situações sociais  se o jogo é amistoso e inofensivo não há razão para não participar.

Bandido e Mocinho

Tese: “Pegue-me se for capaz!”

Papéis: Bandido e Mocinho.

Existem dois tipos de criminosos: os que visam o lucro e os que querem viver este jogo. Muitos criminosos são indivíduos que odeiam a polícia a tal ponto de obter tanta ou maior satisfação superando sua inteligência e esforços quanto o que obtêm materialmente com seus crimes. Curiosamente este é um jogo que as crianças aprendem bem cedo a jogar. O brincadeira de “Esconde-Esconde” oferece as mesmas transações da emoção de ser achado. Se são encontradas muito facilmente não há a mesma satisfação.

Antítese: A antítese deste jogo cabe mais aos criminologistas que aos psicólogos. Infelizmente este aspecto é raramente levado em conta na pesquisa criminal. Nos casos puramente sociais a recusa, a procura ou caçada pode mostrar que você não está disposta a entrar neste jogo.

Além dos Jogos

Existem vários jogos além dos que foram mencionados aqui. Para muitas pessoas a vida não passa de um processo de encher o tempo disponível com jogos destinados a saciar essa necessidade por transições. Entretanto para algumas pessoas afortunadas existe algo além: a Consciência, a Espontaneidade e a Intimidade.

Consciência significa viver a vida no aqui e agora e não em qualquer outra parte no passado ou no futuro. Uma pessoa consciente consegue ouvir o canto dos pássaros ou um bulé de café  de sua própria maneira e não do modo como foi obrigado.

Espontaneidade significa liberdade de escolher e de exprimir sentimentos existentes na coleção que cada indivíduo tem, seja ela do Pai, do Adulto ou da Criança. Significa portanto estar liberto da compulsão de ter apenas os sentimentos que aprendeu a ter.

Intimidade, por fim, é mais gratificante do que todos os jogos. É a sinceridade e liberação da Criança perceptiva e incorrupta em toda sua ingenuidade vivendo no aqui e agora.

Estes podem parecer objetivos perigosos para os despreparados, mas não são inatingíveis. É uma meta para os que acreditam que mesmo que não existe esperança para a raça humana, ela existe para os indivíduos que a compõem.

Conclusões

  • Uma transação é a unidade básica de interação social. Sem elas o ser humano pode-se  degenerar física e psicologicamente. Desta forma temos todos uma fome natural pelos relacionamentos sociais.
  • A mente se manifesta em três estados do ego: a criança, o pai e o adulto.
  • Um jogo é uma tentativa de estabelecer uma série de transações desonestas onde aparentemente um adulto fala, mas onde a motivação oculta alimenta os estados de criança e pai dos jogadores.
  • Jogos são um conjunto de transações desonestas que as pessoas usam para estimular outras pessoas a se relacionarem.
  • A única forma de vencer estes jogos é recusar os papéis que são impostos e  reassumir o ego Adulto com uma visão clara e objetiva da situação para restabelecer um relacionamento honesto e sadio.
  • Jogos são pobres substitutos para a intimidade. Por mais difícil que pareça é possível construir relacionamentos livres do vício de jogar com a vida.

[…] Postagem original feita no https://mortesubita.net/psico/os-jogos-da-vida-games-people-play/ […]

Postagem original feita no https://mortesubita.net/psico/os-jogos-da-vida-games-people-play/

A Espiritualidade Queer na China

 

INTRODUÇÃO À ESPIRITUALIDADE QUEER NO LESTE ASIÁTICO:

Como todas as partes do corpo, da mente e do espírito anseiam pela integração do yin e yang, a relação sexual angélica é conduzida pelo espírito e não pelos órgãos sexuais.

O Huahujing, versículo 69.

O Leste Asiático Queer é uma mudança de paradigma em relação a muitas das regiões exploradas até agora. Para os ocidentais, a comunidade LGBT+ é frequentemente mantida sob controle por meio do conceito de culpa. Uma pessoa queer deve se sentir culpada por sua orientação sexual e identidade porque os atos queer são pessoalmente imorais.

Os orientais queer, no entanto, são mantidos sob controle principalmente por vergonha. Enquanto a culpa é um sentimento privado e autonegativo sobre ações pessoais que você fez, a vergonha está mais focada em se sentir mal por causa de como os outros percebem você e suas ações pessoais. No Oriente, uma pessoa não se sente necessariamente culpada por ser LGBT+ porque as ações queer são moralmente erradas, mas sim, elas se sentem envergonhadas porque a natureza queer é socialmente inaceitável. Assim, ser um membro queer de uma família do Leste Asiático é muitas vezes visto como “ruim” porque traz vergonha para a família e, consequentemente, para aqueles que fazem negócios ou têm associações com a família. Portanto, há muita pressão extrafamiliar e externa sobre as pessoas LGBT+ para suprimir sua natureza queer. Mas, como estamos prestes a ver, nem todas as partes do leste da Ásia sempre se sentiram assim.

A ESPIRITUALIDADE QUEER NO TAOÍSMO:

A China é uma das poucas nações do mundo cujas antigas religiões ancestrais ainda são praticadas pela maioria de seus cidadãos modernos. Oficialmente, a República Popular da China é ateísta devido à preferência nietzschiana da ciência e da razão do comunismo sobre as superstições percebidas da religião que têm sido usadas há séculos pela burguesia para manter as classes trabalhadoras subservientes. Mas isso ainda não impede as pessoas comuns da prática religiosa. Para os chineses, predominam três escolas filosóficas de pensamento: o Taoísmo, o Confucionismo e o Budismo Mahayana. Na maioria das vezes, todos eles são misturados para formar uma fé híbrida amalgamada, mas passaremos por cada um individualmente para destacar suas implicações queer, começando com o que se acredita ser o mais antigo: o Taoísmo.

O Taoísmo é frequentemente considerado mais uma filosofia do que uma religião. Seu fundador é Lao Tzu, que, cansado do mundo e cansado de uma vida inteira assistindo a humanidade lutar entre si durante o século VI a.C., foi obrigado a escrever sua sabedoria antes de deixar a China devastada pela guerra para partes desconhecidas. Seus escritos são conhecidos como o Tao Te Ching, um pequeno manual que explica a maneira natural das coisas e como navegar na corrente da vida em vez de remar inutilmente contra ela e tornar a vida difícil para si mesmo. Este modo natural de coisas é conhecido como o Tao; assim, seguir o Tao é essencialmente seguir o caminho natural do universo em geral. 160

Não há divindades, nenhuma discussão sobre o que acontece após a morte, apenas um foco no aqui e agora, e como seguir o exemplo da natureza é a chave para uma vida tranquila. Por causa disso, não há menção à natureza queer ou mesmo à sexualidade. Não há mesmo nenhum ditado para o que é e o que não é moral, mas sim um aviso de que desviar-se do fluxo natural do universo resultará em tempos ruins. E é aí que as coisas ficam complicadas para o taoísta LGBT+: a interpretação do que constitui ser “natural”. A natureza queer pode ser testemunhada na natureza, mas a incapacidade de procriar parece ir contra a forma como a vida se sustenta naturalmente. Como não há mandatos divinos, a resposta à “naturalidade” da comunidade LGBT+ depende muito da perspectiva.

Até mesmo o símbolo taoísta yin-yang (chamado de taijitu) foi interpretado como a favor e contra a “naturalidade” queer. Todos conhecemos o símbolo; é o círculo dividido em duas metades curvas iguais, uma preta (yin) e outra branca/vermelha (yang), e dentro de cada metade há um círculo menor da cor oposta. Juntos, os dois lados representam a dicotomia do universo natural e o fato de que dentro de cada lado existe um pouco do outro. Yin é o lado feminino, passivo, emocional, frio e criativo da natureza, e yang é o lado masculino, ativo, lógico, quente e destrutivo da natureza. Juntos, eles trazem equilíbrio ao mundo, e cada um não pode existir sem o outro.

Para alguns praticantes, o yin-yang prova que ser queer não é natural, pois há uma divisão clara de apenas dois gêneros, e sua união cria a perfeição harmoniosa da vida. Yang não se mistura com yang e yin não se mistura com yin; cada um precisa de seu oposto para ser completo. Para outros praticantes, no entanto, o yin-yang é a prova de que ser queer é bastante natural em dois níveis separados.

No primeiro nível, mais superficial, um casal do mesmo sexo é uma conclusão de yin e yang, pois há um parceiro passivo “receptivo” e um parceiro ativo “dominador” ao fazer amor. Mesmo que ambos sejam versáteis, os dois se revezam sendo o yin passivo e o yang ativo ou estão simultaneamente recebendo e dando e, portanto, cada um sendo o yin e o yang ao mesmo tempo.

No nível mais espiritual, yin e yang não são tão representativos de feminino e masculino, mas da feminilidade e masculinidade do espírito. Os pequenos círculos dentro de cada metade do yin-yang são os principais pontos de referência para este lado do argumento. Individualmente, um homem gay e uma mulher transgênero pré-operatória podem ser vistos como um corpo yang com um yin interno, e uma lésbica e um homem transgênero pré-operatório seriam vistos como um corpo yin com um yang interno. Uma pessoa intersexo seria uma autocompletude do yin-yang expresso em si mesmo, e um bissexual seria uma autocompletude do yin-yang expresso em relação aos outros.

Para dar um passo adiante, argumenta-se que o yin-yang é um símbolo proponente de ser fluido de gênero, uma vez que é representativo da natureza sempre fluida e não estática de todas as coisas. E, em certo sentido, afirma sutilmente que todo mundo é um pouco bissexual, já que tanto o yin quanto o yang não são preto puro nem branco/vermelho puro. Cada lado tem um pouco do outro dentro de seu centro.

Além da simbologia do yin-yang, a filosofia do Taoísmo admite que a verdadeira natureza do Tao espiritual é incognoscível. A lógica é que se os humanos pudessem entender completamente a complexidade espiritual total do Tao, então não seria o Tao. Como a mente humana é limitada e o Tao é ilimitado, é impossível colocar quaisquer limites ou rótulos sobre o que o Tao é ou não. A sexualidade e a identidade humana são semelhantes ao Tao nesse sentido. Há um amplo e ilimitado espectro de possibilidades, mas não importa como nos definamos ou nos identifiquemos ou aos outros, nunca poderá representar toda a amplitude de possibilidades que é a sexualidade e a identidade humana. Além disso, nossos gostos podem mudar, então qualquer resposta que dermos agora nunca será permanente para sempre.

Ainda assim, a filosofia do Taoísmo eventualmente o levou a se tornar uma prática mágica semelhante à alquimia hermética no Ocidente. O ramo mais místico do Taoísmo muitas vezes se concentrava na vida eterna; para isso, a homossexualidade masculina era vista como uma espécie de remédio, ajudando a garantir a imortalidade (a sexualidade das mulheres era vista como sem importância ao longo da história chinesa até o estabelecimento de um governo comunista por Mao Zedong). Em suma, o sêmen de um homem era visto como sua essência de vida, e se ele ejaculasse, ele estava essencialmente disparando parte de seu elixir mágico, sustentador da vida, como “evidenciado” pelo quão cansado um homem ficaria depois de esfregar um (isto é, depois de se masturbar e ejacular). Mas, claro, aquele elixir branco cremoso parecia ser produzido apenas durante a excitação sexual. Portanto, produzir mais elixir da vida através da estimulação sexual sem perder nada através da ejaculação era visto como um método lógico para prolongar a vida. Isso era especialmente importante se a excitação fosse entre dois homens. A energia yang produzida por um amante masculino aumentava a potência yang do elixir da própria vida – desde que ninguém ejaculasse, é claro. 161

A CONTRIBUIÇÃO TAOÍSTA:

Seguindo o Fluxo da Vida:

Facilmente, a lição mais imediata do Taoísmo é seguir o fluxo natural da vida. Ironicamente, embora isso seja literalmente a coisa mais natural do mundo, nós humanos gostamos de complicar as coisas porque não podemos acreditar que as coisas são tão simples ou que nossos problemas não são tão únicos ou tão complexos quanto gostaríamos. pensam que são.

A natureza queer também é uma coisa natural. Muitos de nós desperdiçamos tempo e energia preciosos se preocupando com “Por que sou assim?” ou “Como posso suprimir minhas tendências queer naturais para me encaixar?” Somos como somos por uma razão.

Confie que você é queer por uma razão. A vida sabe o que está fazendo, e se você parar de suprimir suas tendências naturais, você pode descobrir que a vida é mais fácil quando você segue o fluxo natural do universo.

E pense na arte do feitiço, o ato de manipular as forças naturais do mundo para produzir um resultado específico. Muitas vezes não confiamos que a natureza sabe o que está fazendo ou não sentimos que está trabalhando a nosso favor, então temos que interferir e mudar as coisas para nosso benefício pessoal. Mas vou te contar um segredo: a vida está sempre funcionando para um bem maior. Quanto mais você estuda magia e ciências naturais, mais você percebe que a vida tem uma maneira de se desenvolver em seu próprio tempo e de acordo com sua própria vontade. O problema é que queremos as coisas como queremos quando as queremos, e às vezes nossos desejos pessoais são incompatíveis com o bem maior. Mas quanto mais poderosos e sábios nos tornamos em nossa magia, percebemos que a vida tem tudo sob controle e não precisamos microgerenciar tudo com magia o tempo todo. A magia pode ser útil, mas nunca é necessária para uma vida saudável e feliz.

Portanto, para esta atividade mágica, tente evitar a magia na próxima vez que sentir que é necessário recorrer a um problema específico. Sim, a magia é uma ajuda poderosa, mas se formos imediatamente a ela para resolver todos os nossos problemas o tempo todo, perderemos contato com o fluxo natural do universo tentando microgerenciar tudo. E às vezes coagir uma vitória pessoal resulta na perda do bem maior de maneiras que não podemos ver.

A vida envolve dor. Se você nunca luta, experimenta perda pessoal ou sente dor, então você não está realmente experimentando a vida, está apenas vivendo em uma bolha separada do mundo. Então, da próxima vez que você sentir a necessidade instintiva de fazer mágica, espere um segundo, pare e veja não apenas o que a existência do problema está tentando lhe ensinar, mas também como o fluxo natural da vida pode resolvê-lo para um bem maior, sem manipulação mágica.

A ESPIRITUALIDADE QUEER NO CONFUCIONISMO:

O Confucionismo nasceu, como o Taoísmo, de tempos difíceis. Confúcio, seu fundador homônimo, foi profundamente e pessoalmente afetado pelas intermináveis guerras civis que assolam a China. No entanto, ao contrário de Lao Tzu, que deixou a sociedade e usou a natureza como modelo de vida harmoniosa, Confúcio permaneceu no meio das coisas e acreditava que uma hierarquia social rígida que ditava as interações humanas era a chave para a estabilidade harmoniosa. Assim, como uma panaceia para os acontecimentos durante sua vida (551-479 a.C.), Confúcio estabeleceu um código ético e moral que acabaria com o caos e traria a paz de volta à terra se todos o seguissem. Sua falta de divindades, espiritualidade, discussão sobre a vida após a morte e o Divino fazem com que tecnicamente não seja uma religião, ainda menos que o Taoísmo.

A propagação do Confucionismo demorou um pouco para ganhar força e contrastava fortemente com o Taoísmo. O Taoísmo tinha uma atitude mais mística, laissez-faire, interpretativa e moralmente ambígua em relação ao mundo, concentrando-se na natureza. O Confucionismo, como alternativa, deu às pessoas um conjunto direto e direto de regras sociais conservadoras a seguir e a promessa de retornar aos bons velhos tempos. Como os tempos recentes nos mostraram, esse tipo de mensagem em tempos incertos provou ser muito popular.

Deve-se dizer, porém, que Confúcio nunca viveu para ver a popularidade de seus ensinamentos. Ele morreu acreditando ser um fracasso anônimo, e seus ensinamentos nunca foram totalmente compilados até séculos após sua morte. Coincidentemente, nos séculos imediatos após a morte de Confúcio, as guerras internas da China só se intensificaram. Uma vez que a Dinastia Han chegou oficialmente ao poder em 206 a.C., porém, eles prontamente propagaram o pensamento confucionista para ajudar a normalizar a paz e a ordem de volta à sociedade. O conservadorismo social do Confucionismo também teve o benefício de estabelecer um sistema de pseudo castas em que todos sabiam seu lugar; em tal sociedade, a aristocracia han poderia consolidar seu lugar no topo. 162

Então, qual foi a palavra de Confúcio sobre os indivíduos LGBT+? Nada. Mas, ao contrário do silêncio do Taoísmo em relação à comunidade queer geralmente interpretado de forma positiva, o silêncio do Confucionismo tem sido mais frequentemente interpretado de forma negativa. A razão para isso são os nossos velhos amigos e a vergonha da família. Confúcio ensinava que a família era o modelo ideal para a ordem social e, além de delinear o lugar de cada parente na hierarquia familiar patriarcal, ele a usava como metáfora do bom governo.

Tão poderosamente icônico foi o uso do Confucionismo de um bom governo baseado em uma boa estrutura familiar que foi usado pelo juiz Anthony Kennedy na opinião majoritária da Suprema Corte dos EUA sobre a lendária decisão Obergefell v. Hodges em 2015 (a que legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo os EUA). Especificamente, ele escreveu: “A centralidade do casamento para a condição humana não surpreende que a instituição exista há milênios e entre civilizações…. Confúcio ensinou que o casamento está na base do governo.” 163

Ironicamente, foi essa mesma lógica confucionista que a China pré-comunista usou para suprimir os direitos LGBT+. Uma boa família era aquela que cumpria seus deveres. Para os filhos, era obedecer inquestionavelmente aos pais até se tornarem adultos, quando então se casariam e teriam seus próprios filhos, somando-se à família e fortalecendo-a. Se uma dessas crianças fosse queer, então uma chave seria lançada no sistema por sua relutância em se casar com uma pessoa do sexo oposto e/ou sua incapacidade de gerar filhos se tivessem um amante do mesmo sexo. Uma criança bissexual foi forçada a se casar apenas com o sexo oposto. Ser transgênero estava simplesmente fora de questão, pois desafiava a rígida e conservadora hierarquia de gênero do Confucionismo, onde você fica no seu lugar e não deseja ser outra coisa. E, claro, a vergonha era o chicote que mantinha todos na linha. 164

Embora algo vergonhoso, ser LGBT+ não foi crime em grande parte da história da China. Isso tudo mudou após as Guerras do Ópio de meados do século XIX, quando ficou dolorosamente claro para a derrotada Dinastia Qing que a China precisava se modernizar para ter alguma chance de ser levada a sério pelas potências imperiais ocidentais. Assim, junto com muitas outras coisas, a China adotou a moral ocidental moderna em um esforço para imitar o Ocidente e parecer igualmente moderna. Isso significava que todas as coisas queer não seriam mais toleradas legalmente, assim como na Europa. A homossexualidade permaneceu ilegal na China até que o Partido Comunista a legalizou em 1997 e a removeu da lista oficial de doenças mentais em 2001. 165

A CONTRIBUIÇÃO DO CONFUCIONISMO:

A Prevenção da Guerra Civil:

O objetivo original do Confucionismo para o qual foi criado era um código de conduta para reprimir a guerra civil. Há uma guerra civil semelhante acontecendo em nossa comunidade queer. Brigamos entre nós por tudo. Algumas das reclamações internas são legítimas; alguns são frívolos. Mas há tantas brigas internas de todos os lados que o frívolo às vezes parece legítimo e o legítimo às vezes parece frívolo.

Os direitos civis são um processo longo e lento. A maioria das pessoas neste planeta não vai acordar de repente um dia e perceber que todas as pessoas queer são iguais em todos os sentidos às pessoas não-queer. Em nenhum lugar da história do mundo isso foi o caso de qualquer questão social. Temos que vencer batalha por batalha, mas brigar entre si sobre como cada batalha deveria ser travada ou poderia ter sido melhor vencida só cria animosidade. Temos que apreciar cada vitória; desde que seja uma vitória para a comunidade queer, por menor que seja e por qualquer letra da sigla LGBT+, merece apoio e reconhecimento. O objetivo é vencer a guerra, não apenas a batalha pessoal que resolve o problema para você pessoalmente. A vitória total é uma maratona, não um sprint ou uma corrida de velocidade. Leva tempo. Até lá, todas as vitórias contam e temos de nos manter unidos.

A comunidade mágica está em apuros semelhantes. Certas tradições são tão rápidas em menosprezar outras tradições como não sendo magia real ou magia frívola ou como sendo de uma tradição que não tem raízes antigas ou “autênticas”. Os praticantes de magia já são uma minoria difamada por um grande número de pessoas. Precisamos nos manter unidos e edificar uns aos outros. Contanto que a magia de alguém seja eficaz e funcione para eles, quem se importa se não for do seu agrado ou dos padrões de sua tradição? Deixe as pessoas viverem suas próprias vidas; promulgar uma guerra civil não validará suas próprias opiniões. As guerras civis nunca mudam de opinião, apenas eliminam as mentes do lado perdedor.

Então, para sua próxima atividade mágica, escolha uma tradição mágica com a qual você sente que tem problemas e faça uma pesquisa imparcial sobre ela. Encontre algo sobre essa tradição que ressoe com você e, em seguida, incorpore-o em seu próximo feitiço. Ao encontrar algum terreno comum e realmente provar a si mesmo a eficácia de uma tradição que você não necessariamente gosta, isso ajudará a diminuir a divisão.

A ESPIRITUALIDADE QUEER NO BUDISMO MAHAYANA:

O Budismo foi a última das três principais religiões a se firmar e influenciar grandemente a cultura chinesa, chegando durante o primeiro século d.C. de missionários indianos muitos séculos após o Taoísmo (século VI a.C.) e a morte de Confúcio (479 a.C.). Especificamente, o Budismo Mahayana foi o ramo mais bem sucedido do Budismo. Atraiu a China densamente povoada por causa de sua ênfase na libertação espiritual universal para todos e não simplesmente na iluminação pessoal, que era vista apenas como um meio para ajudar melhor todos a alcançar a iluminação.

Como o Budismo estava atrasado para a festa religiosa, encontrou forte resistência. Sua chegada durante o pró-confucionismo da Dinastia Han o tornou inicialmente impopular, já que o Confucionismo era sobre o lugar e o dever de cada um na sociedade, enquanto o Budismo defendia uma fuga da sociedade por meio do desapego pessoal dos problemas sociais. Os dois não se misturavam muito bem e, como o Budismo era uma religião estrangeira, estava associado à barbárie e ao atraso. Era, no entanto, mais semelhante à religião nativa e antiga favorita do Taoísmo, pois ambas tinham visões de mundo liberais e uma aversão a hierarquias sociais estritas. Assim, os missionários indianos tentaram aumentar as semelhanças entre o Budismo e o Taoísmo. Isso levou o Budismo a se afastar de suas origens mais estoicas e ímpias na Índia e se fundir em uma tradição mais mística com um panteão de bodhisattvas sobrenaturais que, depois de atingir a iluminação, perderam a felicidade do nirvana para ajudar as massas a alcançar a iluminação também. 166

A vastidão da China e sua enorme quantidade de tribos amplamente diferentes de pessoas forçaram o Budismo a se adaptar e mudar quando necessário. É por isso que existem tantas visões únicas da filosofia budista em todo o país. Em relação a onde a comunidade LGBT+ se encaixa no Budismo chinês, a resposta está em todos os lugares e em nenhum lugar. Embora alterado e adaptado aos gostos chineses, o Budismo Mahayana tem as mesmas crenças e filosofias fundamentais originadas pelo próprio Buda na Índia. Tudo existe na mente, e tudo fora da mente são apenas rótulos que colocamos em nosso eu infinito, incluindo sexualidade e gênero. Nós somos o que somos, e qualquer coisa mais é uma rotulação da mente para dar sentido e interagir com o mundo ao nosso redor.

A CONTRIBUIÇÃO DO BUDISMO MAHAYANA:

Precedendo o Nirvana:

O Budismo Mahayana é de longe o mais popular dos três ramos budistas, reivindicando um pouco mais da metade de todos os adeptos globais. Não surpreendentemente, também é o mais popular em nações com grandes centros urbanos e condições de vida densamente povoadas, particularmente China e Japão. Em tais lugares é difícil escapar da sociedade, e só o foco social do Budismo Mahayana é relacionável.

Em um nível queer, nós, às vezes, queremos nos afastar do mundo. Queremos escapar da sociedade problemática e sua discriminação e fugir para viver entre nossa própria espécie, onde todos nos entendem. Mas isso é impossível. Mesmo enclaves altamente populosos de pessoas queer como West Hollywood e Castro District, em São Francisco, não são 100% queer nem tolerantes.

E por isso muitas vezes nos isolamos dentro de nossa comunidade. Só vamos a lugares queer, só permitimos que outras pessoas queer sejam amigas íntimas e só interagimos com pessoas cisgênero no trabalho ou quando necessário. Fabricamos um paraíso isolado para que nunca nos sintamos desconfortáveis.

Mas isso vai contra a mentalidade de libertação universal do Budismo Mahayana. Ao contrário de outros ramos budistas, o objetivo do Mahayana não é fugir do mundo para um paraíso pessoal, mas sim trazer o mundo inteiro para esse paraíso. Estar na linha de frente da defesa LGBT+ e alcançar a heterossociedade pode não ser confortável, mas é a única maneira de trazer toda a nossa comunidade para um mundo melhor. Afinal, é por causa dessas pessoas que renunciam à paz pessoal para estar no meio das batalhas pelos direitos civis que temos o nível de paz e aceitação que desfrutamos hoje.

Na comunidade mágica, estando mais em contato com o mundo natural, há uma fantasia idealizada comum de fugir das cidades e viver em meio à natureza, onde os problemas das cidades densamente povoadas não existem. Por causa disso, muitos de nós menosprezamos a vida urbana entre pessoas não-mágicas como um modo de vida menos idealizado que as circunstâncias nos forçam a viver. Mas isso só funciona contra nós em nossa magia. Como podemos criar um feitiço com as forças naturais ao nosso redor se estamos constantemente derrubando as forças naturais nas quais vivemos nossas vidas cotidianas, as forças do urbanismo?

Então, para sua próxima atividade mágica, entre em contato com o deva espiritual da cidade em que você vive, e então comece um relacionamento com essa entidade. Compreendam-se e comuniquem-se. Praticantes de magia geralmente fazem o mesmo ao entrar em lugares “naturais” como florestas, desertos e corpos d’água, então por que não a cidade em que você vive e passa a maior parte de sua vida? Como qualquer relacionamento, levará tempo para que a confiança e a amizade se desenvolvam, mas quando isso acontecer, você começará a perceber que a cidade e sua sociedade estarão ajudando você proativamente com o que você precisa.

DIVINDADES E LENDAS QUEER:

O Alquimista Raposa:

A história do Alquimista Raposa é um antigo conto popular chinês com uma forte mensagem LGBT+ que combina as filosofias taoísta e budista sobre o amor transcendente. Conforme a história, um estudioso idoso é visitado em sua casa solitária uma noite por um homem vestido de preto pedindo para fazer amor com ele. O estudioso fica desconfiado, mas o estranho explica que eles já foram amantes em uma vida anterior e que ele está procurando por sua alma gêmea desde então.

O estudioso começa a se lembrar de seu amor trágico de uma vida passada – como ele tinha sido uma jovem e o estranho seu jovem marido. Eles juraram amar um ao outro para sempre, mas durou pouco, pois eles se apaixonaram durante uma das guerras civis da China e tiveram um fim horrível ainda jovens. A esposa foi sequestrada por soldados rebeldes e tirou a própria vida para não ser estuprada. O marido juntou-se aos soldados rebeldes e morreu na batalha.

Para cada uma de suas ações, o karma os premia adequadamente. A esposa, por sua lealdade ao marido e imperador ao cometer suicídio antes que os soldados pudessem estuprá-la, foi autorizada a reencarnar como homem — não qualquer homem, mas um sábio literato. (Porque, lembre-se, esta é a China antiga e o valor patriarcal dos homens sobre as mulheres ainda era muito forte.) O homem, por sua deslealdade ao imperador e vontade de lutar pelos soldados rebeldes, reencarnou como um animal menor, uma raposa.

Mesmo sendo uma raposa, o marido ainda amava sua esposa e desejava cumprir seu voto de amá-la para sempre. Então, depois de descobrir que ela havia reencarnado em um estudioso do sexo masculino, ele estudou alquimia taoísta e encontrou a mistura mágica que o transformaria novamente em humano para que pudessem ficar juntos, com a ressalva de que os efeitos da poção durariam apenas um ano.

Agora, com a enxurrada de memórias voltando ao estudioso, ele reconhece seu ex-marido no estranho, mas ele não sabe como eles poderiam fazer amor um com o outro agora que ambos são homens. O estranho garante ao estudioso que confie nele e lhe diz que, enquanto os dois se amarem, sempre haverá um caminho.

Os dois aproveitam o tempo e fazem amor todas as noites durante 365 dias consecutivos. Inicialmente, depois que acabou e o estranho voltou a ser uma raposa, o estudioso idoso se perguntou se tudo não tinha sido um sonho, mas ele lembrou que seu amante lhe disse que a evidência de seu amor estaria para sempre nos pilares de sua casa. E assim ficaram: 365 marcas de mordidas feitas durante a agonia da paixão foram embutidas nos pilares de madeira.

Além da misoginia neste conto, é antigo como o amor não conhece limites. Está além do gênero, da idade física e até do próprio tempo. O conceito do próprio espírito é defendido como fluido de gênero, mas o amor é mostrado como sempre constante. 167

Guanyin:

Guanyin (também escrito Quan Yin ou Kwan Yin) é a bodhisattva da compaixão. De acordo com sua lenda, ela alcançou a iluminação, mas porque ela tinha tanta compaixão pela humanidade, ela se recusou a entrar no nirvana feliz até que todos os humanos pudessem vir com ela. Ela reencarnou como uma bodhisattva e se dedicou a ajudar a acabar com o sofrimento das pessoas em todos os lugares.

Seu lugar entre as divindades queer-positivas vem de ela ser uma mulher transgênero e um ícone do movimento LGBT+ na China. Historicamente, quando os missionários indianos espalharam o Budismo na China, Guanyin era o aspecto feminino do bodhisattva masculino Avalokiteshvara, mas esse aspecto feminino se tornou mais popular entre os chineses, levando Guanyin a se tornar seu próprio bodhisattva folclórico separado.

Sua identidade transgênero, no entanto, foi apoiada e mantida por taoístas e budistas, com os taoístas vendo Guanyin como uma harmonia divina das energias yin femininas e yang masculinas, e os budistas a vendo como a perfeição de um homem que aceitou sua compaixão interior e feminilidade que ele alcançou a plena feminilidade.

Por muitos séculos, Guanyin foi um símbolo sutil adotado pelas lésbicas chinesas, não apenas porque ela era uma protetora das mulheres, mas também porque ela supostamente defendia o casamento heterossexual para buscar uma vida mais espiritual. Para a maioria dos movimentos queer e feministas na China, Guanyin é um símbolo do tipo de paz, felicidade e harmonia que pode ser alcançada se a sociedade não enfatizar seu culto à masculinidade e abraçar sua feminilidade auto-suprimida, bem como amor e amor. compaixão por todas as pessoas, independentemente de quem elas sejam. 168

Os Imperadores Queer:

Enquanto muitos imperadores chineses são registrados como tendo tendências queer, nenhum foi tão lendariamente queer quanto o imperador Wu e o imperador Ai.

O imperador Wu, embora belicista, foi um grande defensor do Confucionismo, estabelecendo as primeiras universidades oficiais do país para ensiná-lo ao povo. Apesar do conservadorismo social do Confucionismo, o imperador Wu teve vários amantes do sexo masculino ao longo de sua vida. Seu amor mais forte era por um ex-colega de classe chamado Han Yun. Eles começaram um caso de amor juntos ainda jovens e, após a ascensão ao imperador, Wu lhe concedeu títulos e cargos de prestígio no governo. O favoritismo óbvio causou muita tensão na corte e fez dele um hipócrita, já que ele era o imperador que havia implementado a regra de promover e outorgar patente com base na excelência acadêmica em vez de nepotismo e ter as conexões certas. Em última análise, a pressão de todos os lados forçou Wu a ordenar que Han Yun tirasse a própria vida, encerrando o caso e o lugar indevido de seu amante no governo. 169

O outro monarca gay da China Han, o imperador Ai, é provavelmente o mais conhecido. Ai não tentou esconder sua preferência sexual por homens e teve um romance público de longa duração com um de seus funcionários menores, Dong Xian. O relacionamento deles acabou levando o eufemismo chinês da homossexualidade a ser referido como “a paixão da manga cortada”. Isso se originou de um famoso incidente em que, enquanto se aconchegava na cama, o imperador Ai queria se levantar, mas isso arriscaria acordar seu amante, que dormia profundamente em cima de uma de suas grandes mangas de corte. Então, em vez de correr esse risco, Ai simplesmente cortou sua manga.

Como o imperador Wu, no entanto, Ai mostrou grande favoritismo a Dong Xian, promovendo-o a comandante das forças armadas. Infelizmente para seu amante, o imperador Ai morreu repentina e inesperadamente, deixando Dong Xian como o oficial de alto escalão socialmente desprezado em uma corte sem imperador. Ele acabou sendo expulso e forçado a cometer suicídio. 170

Bibliografia:

[contents]

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  1. Martin Weber, “Move Over, Confucius!” The Hufftngton Post, Jan. 30, 2012, http://www.huffingtonpost.com/marten-weber/move-overconfucius_b_1240939.html (accessed Nov. 19, 2016).
  1. Associated Press, “China Decides Homosexuality No Longer Mental Illness,” South China Morning Post, Mar. 8, 2001, http://www.hartford-hwp.com/archives/55/325.html (accessed Nov. 19, 2016); Bret Hinsch, Passions of the Cut Sleeve: The Male Homosexual Tradition in China (Berkeley: University of California Press, 1992).
  1. Kang-nam Oh, “The Taoist Influence on Hua-yen Buddhism: A Case of the Sinicization of Buddhism in China,” Chung-Hwa Buddhist Journal 13 (2000), https:// web.archive.org/web/20100323000712/http://www.chibs.edu.tw/publication/chbj/13/chbjl338.htm (accessed Nov. 21, 2016).
  1. Xiaomingxiong, GLBTQ Archives, http://www.glbtqarchive.com/literature/chin ese_myth_L.pdf.
  1. Kayla Wheeler, “Women in Religion: Does Gender Matter?” in Controversies in Contemporary Religion: Education, Law, Politics, Society, and Spirituality, edited by Paul Hedges (Santa Barbara: Praeger, 2014).
  1. Hinsch, Passions of the Cut Sleeve: The Male Homosexual Tradition in China.
  1. Hinsch, Passions of the Cut Sleeve.

Fonte: Queer Magic, por Tomás Prower.

Texto adaptado, revisado e enviado por Ícaro Aron Soares.

Postagem original feita no https://mortesubita.net/asia-oculta/a-espiritualidade-queer-na-china/

O Bem e o Mal

Geralmente, glorifica-se e valoriza-se pessoas que são “boazinhas”, enquanto as pessoas que são “ruins” ou, em outras palavras, rebeldes, desordeiras, agitadas, são denegridas, segregadas ou isoladas do restante da sociedade.

Acho muito importante a ação dessas pessoas ditas “ruins”.

Muitas vezes ouve-se dizer que, se Deus existisse, não deixaria o Mal existir.

Acontece que Deus é, em última instância, Tudo. Se Ele(a) é Tudo, então, é ao mesmo tempo o Bem e o Mal.

Parece bastante estranho esse conceito porque não estamos acostumados a ver essa Entidade, se é que podemos chamá-la assim, como sendo ambivalente, ou bipolar. Parece presunção afirmar algo sobre Sua Natureza, mas podemos chegar a certas premissas, como já foi explicado no Hermetismo – Ele(a) é o Todo.

O Bem é muito conhecido pelas suas propriedades Criadoras e Mantenedoras/Amparadoras. Tudo aquilo que Cria, que Une, que provê, que dá suporte, que Gera, é visto com bons olhos, sendo geralmente classificado como “do Bem”.

O Mal é associado a tudo aquilo ligado à destruição, à doença, à tristeza, à pobreza, à miséria, aos vícios, à morte. Ou seja, seria o exato oposto daquilo que é representado pelo Bem.

Creio que a maioria já ouviu falar da célebre frase, “A Luz não existiria se não houvesse a Escuridão”, e vice-versa. É um conceito bastante útil para o que estou tentando expor aqui.

O “Bem” e o “Mal”, do modo como estão sendo apresentados aqui são, por si próprios, forças divinas. Eles atuam igualmente, em todos os níveis e em todas as esferas, como agentes balanceadores e indicadores. Se só houvesse Criação, tudo estaria em excesso, desde os Reinos mais básicos até os mais complexos. Minerais, Vegetais, Animais. Montanhas imensas, rios e mares dominando e invadindo tudo. Sistemas Solares repletos de planetas chocando-se uns nos outros. Sóis e mais sóis, gerando energia demasiada, grandes tempestades cósmicas e SuperNovas ocorrendo a cada segundo. Em todos os níveis, uma superpopulação. Tudo acabaria soterrado, aglomerado, “entulhado”, por assim dizer, se não houvesse a ação controladora da Destruição.

A Destruição e a morte nada mais são do que formas de reciclagem. Como no texto anterior dos Ciclos Naturais, em que comentei sobre o símbolo cíclico do Ouroboros (a serpente devorando a própria cauda) a construção e a destruição são o início e o fim de um Ciclo de Existência de qualquer coisa. Quando algo é construído, utiliza-se diversas matérias-primas, organizando-a e dando forma à ela, e aglomerando cada vez mais diversificadas matérias-primas à obra. Quando a obra é completada, ela é destinada para a finalidade pela qual ela foi construída. Quando terminada sua missão, seu objetivo mais natural e proveitoso é de se reciclar, ou seja, de morrer, de ser destruído em seus componentes básicos iniciais, para que o Escultor possa Esculpir uma Nova Obra, que será utilizada para uma Nova Finalidade, que só Ele(a) sabe.

Há muitas outras bipolaridades que representam essas forças, como a saúde e a doença, a felicidade e a tristeza, a riqueza e a pobreza, entre muitas outras. Muitos sábios já disseram que o mundo em que vivemos é bipolar em sua essência, ou seja, está em todas as coisas, mas que ambos os lados dessas “moedas” existem por razões fundamentais. Tomemos a saúde e a doença, por exemplo. Como poderíamos saber se certos costumes contribuem para a manutenção da vida se não houvesse a balança da saúde/doença? Balanças são usadas para medir. Nem sempre é bom permanecer somente em um lado da balança, pois a tendência é esquecer da sua contraparte, ou de seu oposto. É sábio experimentar e verificar os resultados de nossas ações ao longo do tempo, para adquirirmos sabedoria dos fatos da vida. Ficar em um oásis de paz, felicidade e saúde o tempo todo não nos trará lições, nem nos motivará para conhecermos o que há além das dualidades e dos arquétipos.

Portanto, que conselhos poderiamos extrair de tudo isso? Arrisque-se. Tente. Faça. Vá. E tome nota de tudo o que sente, imagina, raciocina, intui e percebe com seus sentidos. Experimente tudo o que quiser. Traga Vida à própria Vida. Faça aquilo que você acha que não pode fazer. Dessa forma, você brilhará e saberá no seu íntimo o que é a vida, pois isso é algo que ninguém pode te dizer, é algo que tem de ser descoberto por si próprio. Moralidade é importante no que tange a vida em sociedade. Mas na vida individual, a liberdade, a coragem e a ação são os regentes para a verdadeira realização. Carpe Diem!

#Deus

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/o-bem-e-o-mal

‘Caibalion: A Filosofia Hermética

 

Tradução de ROSABIS CAMAYSAR
Editado por F.’. L.’. FEDRO, 2001

O Caibalion é um livro esotérico e ocultista que resume e ensina sobre a Lei da Atração Hermética e as regras da Transmutação Alquímica. A palavra hebraica Caibalion, significa ‘ensinamentos trazidos por um ente superior.’. esta palavra tem a mesmaraiz que Qabala, Qibul, ou Qibal.

O livro foi escrito por três indivíduos auto-intitulados Os Três Iniciados, e segundo eles o livro contém a essência dos ensinamentos de Hermes Trismegistus. Foi publicado para o grande público pela primeira vez em  francês em 1908.

ÍNDICE

 

 

[…] Postagem original feita no https://mortesubita.net/alta-magia/caibalion-a-filosofia-hermetica/ […]

Postagem original feita no https://mortesubita.net/alta-magia/caibalion-a-filosofia-hermetica/

12 Plantas das Fadas para o Seu Jardim

Por Sandra Kynes.

Ao longo do folclore, muitas plantas foram associadas às fadas e algumas delas foram notadas como sendo especialmente favorecidas pelas fadas. Cultivar até mesmo uma planta especial em seu jardim pode atrair fadas e ajudá-lo a trabalhar com elas. Claro, as plantas têm usos mágicos e as fadas podem ajudar a guiá-lo.

  1. Dedaleira (Digitalis purpurea): Também conhecida como luvas de duende, sinos de fadas, gorros de fadas, anáguas de fadas e sinos de raposa. Talvez mais do que a maioria, esta planta está intimamente associada às fadas e, em muitas lendas, diz-se que elas ficam especialmente encantadas com as flores. Com sua forma longa e em forma de sino, dizia-se que as flores criavam um som mágico. Para uso mágico: Como se diz ser uma planta favorita, segure uma folha entre as mãos sem removê-la da planta enquanto você sussurra uma saudação às fadas e as recebe em seu jardim.
  1. Bata da Senhora (Cardamine pratensis): Também conhecido como agrião-dos-prados e leiteiras. Acreditava-se que esta planta era sagrada para as fadas e, segundo a lenda, só cresceria em lugares especiais para elas. Parecendo pequenos aventais em um varal, dizia-se que as flores eram vestidos costurados por elfos. Para uso mágico: Coloque um sachê de flores secas em seu altar durante as sessões de adivinhação para orientação.
  1. Lavanda: Lavanda inglesa (Lavandula angustifolia): Também conhecida como folha de elfo. Vestindo uma argola de flores de lavanda na véspera do Solstício de Verão (Midsummer) e jogando alguns raminhos na fogueira, dizia-se que permitia que uma pessoa visse elfos e fadas. Para uso mágico: O aroma de lavanda aumenta a consciência e a intuição para o trabalho dos sonhos e todas as formas de trabalho psíquico. O perfume também ajuda a contatar guias espirituais.
  1. Lilás: Lilás francês (Syringa vulgaris): O cheiro de lilás é tão etéreo que parece ter vindo do reino das fadas. Uma flor lilás branca com cinco pétalas em vez de quatro é chamada de lilás da sorte e diz-se que é um presente das fadas. Para uso mágico: coloque um galho em sua mesa ou em algum lugar em seu espaço de trabalho para estimular a inspiração e aumentar a criatividade. Seque um ou dois cachos de flores para usar como amuleto para atrair o amor.
  1. Lírio-do-Vale (Convallaria majalis): Também conhecido como copos de fadas, escada de fadas, sinos de maio e lírio de maio. Segundo a lenda, as fadas estavam colhendo orvalho e penduravam suas xícaras em folhas de grama quando paravam para dançar. Tendo demorado muito, seus copos ficaram presos na grama e o lírio do vale foi criado. Para uso mágico: Seque algumas raízes, triture-as em pó e use-as em amuletos para superar desafios e alcançar objetivos.
  1. Avenca (Adiantum capillus-veneris): Também conhecida como samambaia de fadas. Segundo a lenda, as fadas usavam coroas de samambaia para importantes ocasiões festivas. Eles também enrolaram as folhas para usar como travesseiros. Para uso mágico: Para aprimorar a magia defensiva, carregue uma pequena bolsa com folhas secas ou em pó. A  Avenca também é fundamental para banir qualquer coisa indesejada de sua vida.
  1. Rosa: Rosa Canina (Rosa canina): Também conhecida como rosa da praia e briar selvagem. Apaixonados por rosas em geral, é dito que as fadas acham especialmente divertido pular em arbustos de rosas caninas. A rosa mosqueta de uma roseira de cachorro é conhecida como pera das fadas. Para uso mágico: Para ajudar a aterrar e centralizar sua energia antes de uma sessão de adivinhação, segure uma folha de rosa ou pétala de flor entre as mãos. Faça isso também antes de dormir para encorajar sonhos proféticos.
  1. Alecrim (Rosmarinus officinalis): Também conhecido como folha de elfo. Na Holanda, acreditava-se que o alecrim marcava um lugar onde os elfos se reuniam. Favorecidas pelas fadas na Sicília, dizia-se que as flores serviam como berços para fadas bebês. Para uso mágico: Pendure um sachê de flores secas na cabeceira da cama para ajudar a lembrar dos sonhos. Rosemary também é eficaz em feitiços de ligação/amarração e banimento.
  1. Erva de São João (Hypericum perforatum): Também conhecida como moeda de João e rosa de resina. Em seu banquete na véspera do solstício de verão, dizia-se que as fadas dançavam ao redor das plantas de erva de São João e as borrifavam com vinho de prímula. A erva de São João é supostamente um disfarce diurno para os cavalos das fadas. Para uso mágico: Queime algumas folhas secas em uma lareira ou caldeirão e deixe sua fumaça pungente purificar sua casa e/ou área ritual.
  1. Tulipa: Tulipa de jardim comum (Tulipa gesneriana): Também conhecida como tulipa de Didier. Dizia-se que as fadas embalavam seus bebês para dormir em tulipas antes de dançar nos prados. Qualquer tulipa que parecia viver mais do que outras flores em um jardim era supostamente um berço de fada. Para uso mágico: carregue um bulbo de tulipa como um amuleto para dar sorte ou coloque um vaso de flores em sua cozinha para convidar a abundância para sua casa.
  1. Anêmona dos bosques: europeia (Anemone nemorosa), norte-americana (A. quinquefolia): Também conhecida como flor de anêmona de fada e flor de anêmona dos bosques. As anêmonas dos bosques têm a reputação de serem as favoritas das fadas. Segundo a lenda, as fadas pintavam as estacas nas flores ao luar. Para uso mágico: Para aumentar a coragem, carregue três sementes em sua bolsa ou bolso. Para dar sorte, sopre na primeira anêmona dos bosques que você vir na primavera e faça um desejo.
  1. Íris Amarela (Iris pseudacorus): Também conhecido como lírio da bandeira, lírio da espada e bandeira amarela. Nas lendas celtas, as fadas eram frequentemente descritas como tendo cabelos da cor da íris amarela. Na Inglaterra, dizia-se que as fadas se aninhavam nas flores durante o dia. Para uso mágico: mantenha uma foto de íris amarela em sua mesa ou em seu espaço de trabalho para servir de musa para inspiração criativa. Queime uma flor seca em um feitiço para trazer sucesso.

Incluir uma ou duas plantas que as fadas gostam em seu jardim  mostra seu interesse e sinceridade e ajudará na construção de um relacionamento. Um jardim não precisa ser grande; pode consistir em vários vasos de flores em uma varanda ou varanda. O importante é torná-lo acolhedor e especial, e eles virão.

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Sobre a autora:

Sandra Kynes (Mid-coast Maine) é membra da Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas e autora de dezessete livros, incluindo Star Magic, Llewellyn’s Complete Book of Correspondences, Mixing Essential Oils for Magic e Sea Magic. Além disso, seu trabalho foi apresentado no Utne Reader, The Portal e Circle Magazine. A escrita de Sandra também aparece regularmente nos populares almanaques e agendas de Llewellyn.

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Fonte:

12 Faery Plants for Your Garden, by Sandra Kynes.

COPYRIGHT (2022) Llewellyn Worldwide, Ltd. All rights reserved.

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Texto adaptado, revisado e enviado por Ícaro Aron Soares.

Postagem original feita no https://mortesubita.net/criptozoologia/12-plantas-das-fadas-para-o-seu-jardim/

‘Louis Claude de Saint-Martin

Louis Claude de Saint-Martin, o “Filósofo Desconhecido”, pensador profundo e grande iniciado, nasceu a 18 de janeiro de 1743 em Amboise, Tourraine, no centro da França, no seio de uma família nobre, mas pouco abastada e desconhecida. Logo depois do nascimento de Saint-Martin, sua mãe faleceu, e ele foi criado pelo pai e por uma madrasta, pessoa amável e de bom coração, que o iniciou na leitura de Jacques Abbadie, ministro protestante de Genebra. Com esse autor, apreendeu a conhecer a si mesmo, relegando a um plano secundário a análise decepcionante e estéril dos filósofos em voga na época.

“É à obra de Abbadie, A Arte de Conhecer a Si Mesmo, que devo meu afastamento das coisas mundanas; é a Burlamaqui que devo minha inclinação pelas bases naturais da razão; é a Martinez de Pasqually que devo meu ingresso nas verdades superiores; é a Jacob Böehme que devo meus passos mais importantes nos caminhos da Verdade.”(1)

Outro autor que influenciou o Filósofo Desconhecido desde sua juventude foi Pascal. Aos 18 anos, em meio às discussões filosóficas dos livros que lia, deu-se conta de que, existindo o Criador do Universo e uma alma, nada mais seria necessário para ser sábio. (2) Foi com base nessas concepções que fundou sua doutrina posterior. Na época de seus estudos no Colégio de Pontlevoi, o Ocultismo já fazia parte de suas meditações. Na Faculdade, igualmente, eram os estudos metafísicos que o atraíam. Estudou Direito conforme a vontade de seu pai, e esse ambiente proporcionou-lhe maior contato com o mundo filosófico e literário da época. Conheceu as obras de Voltaire, Rousseau, Montesquieu e outros autores não iniciados, mas sem ceder à inclinação dos enciclopedistas. “Li, vi e escutei os filósofos da matéria e os doutores que devastam o mundo com suas instruções; nenhuma gota de seus venenos penetrou-me; nem as mordidas de uma só dessas serpentes prejudicaram-me.”(3)

O jovem estudante procurava tudo o que pudesse conduzi-lo ao conhecimento da Verdade, particularmente as ciências e princípios exatos. Dedicou-se assim ao estudo filosófico dos números e, por algum tempo, esteve ligado a Lalande e sua escola filosófica, sintetizada em Ciência dos Números. Esse convívio, entretanto, não foi longo, pois seus pontos de vista eram divergentes e nosso Filósofo passou a estudar Jean Jacques Rousseau. Como ele, pensava ser o homem naturalmente bom; mas entendia que as virtudes perdidas originalmente, em razão da Queda, poderiam ser reconquistadas desde que o homem o desejasse ardentemente. Acreditava que o naufrágio no materialismo era conseqüência mais das associações viciosas e desvirtuadas do que do pecado original. E, nisso, afirma-nos seu discípulo Gence(4), ele se diferenciava de Rousseau, a quem considerava um misantropo por sua excessiva sensibilidade, ao olhar os homens, não como eram, mas como gostaria que fossem.

Saint-Martin amava a humanidade e considerava-a melhor do que parecia ser; e o encanto da sociedade da época levou nosso Filósofo a pensar que a vivência nas rodas sociais poderia levá-lo ao melhor conhecimento do homem e conduzi-lo à intimidade mais perfeita com os seus princípios. Assim, agiu conforme seu pensamento: freqüentou os saraus musicais e toda sorte de recreações da alta nobreza, desde os passeios ao campo até as conversas com amigos; os atos de gentileza eram a manifestação de sua própria alma.

“Foram de sua intimidade as pessoas da mais alta classe, dentre as quais podemos citar o Marquês de Lusignan, o Marechal de Richelieu, o Duque de Orléans, a Duquesa de Bourbon, o Cavaleiro de Fouflers e tantos outros que seria longo enumerar. Devotou-se inteiramente à busca da Verdade e à prática das Virtudes, que foram o objeto constante de seus estudos, dos seus trabalhos e das suas realizações.”(5)

Iniciado, pois no estudo das leis e da jurisprudência, aplicou-se mais à pesquisa das bases naturais da Justiça, relegando a um plano secundário as regras da jurisprudência. Paralelamente, desenvolvia seus estudos sobre os mistérios ocultos e logo descobriu que não poderia dedicar-se inteiramente à magistratura, como desejava sua família. Não encontrando sua vocação no Direito, abandonou a magistratura que exerceu em Tours durante seis meses. Alistou-se aos 22 anos de idade no Regimento de Foix, então aquartelado em Boudeaux, onde pode encontrar mais tempo para dedicar-se ao estudo do Ocultismo, que era sua verdadeira vocação. Após ter lido os autores mais em evidência no gênero, procurou a iniciação de uma maneira mais efetiva.

Foi graças a um colega do Regimento, Grainville, que bateu às portas do Templo. Grainville era iniciado em uma sociedade oculta muito importante, cujo chefe era Martinez de Pasqually. Este era casado com uma sobrinha do maior, comandante do Regimento, que se encontrava na mesma cidade de residência de Martinez. A Escola de Pasqually, seu iniciador nas práticas teúrgicas, era a Ordem dos Elus Cohens do Universo (Sacerdotes Eleitos), revigorada mais tarde pela ação de Saint-Martin e Jean Baptiste Willermoz, sob a inspiração das obras de M. Pasqually e de J. Böehme e a partir de suas próprias pesquisas.

Em fins de 1768, Saint-Martin foi iniciado nos três primeiros graus simbólicos da referida Ordem pela espada de Balzac, avô de Honoré de Balzac, o famoso romancista francês das primeiras décadas do século XIX. Com efeito, em carta de 12 de agosto de 1771, dirigida a seu colega Willermoz, de Lyon, confirmou ter sido iniciado por Balzac e que recebera de uma só vez os três graus simbólicos. “Não é comum darem-se os três graus simbólicos ao mesmo tempo; deixam-se, ao contrário”, prosseguiu Saint-Martin na referida carta, “grandes intervalos de tempo entre um grau e outro, segundo o progresso de cada um.”(6)

Assim, Saint-Martin submeteu-se em seguida ao método iniciático de Pasqually, de quem se tornou secretário particular e discípulo zeloso. Mas não deixou, logo depois, de criticar seu primeiro Mestre, por não concordar com tudo o que era feito em tal sistema. Considerava supérfluas todas as manifestações físicas exteriores e todos os detalhes do cerimonial Cohen: “São necessárias todas essas coisas para orar a Deus?”, perguntou Saint-Martin a seu mestre Martinez. “É preciso que nos contentemos com o que temos”(7), respondeu o Grão-Mestre.

Na realidade, era necessário trabalhar mais profundamente no sentido interior para produzir a luz. Isso certamente Martinez teria feito dentro de seu próprio sistema, se não tivesse partido da França e falecido em seguida. Sua semente ficou, no entanto, e coube a Saint-Martin e a Willermoz cuidar da planta que deveria nascer. A Providência Divina não os deixou abandonados; inspirou-os constantemente, colocando em seu caminho homens que os ajudaram, direta ou indiretamente, e proporcionando-lhes o conhecimento do sistema de Jacob Böehme. Esse sistema confirmou as descobertas que tinham feito e abriu as portas para a obtenção das chaves ainda não encontradas.

Na época em que conheceu Pasqually, tinha pouco mais de vinte e cinco anos e acabava de debutar no Ocultismo, de sorte que nem todas verdades da Iniciação pode receber de seu primeiro mestre, com o qual permaneceu cinco anos. Soube reconhecer mais tarde sua grandeza (porque é bom que se afirme que Martinez de Pasqually foi um adepto de grande iluminação).

“Havia coisas preciosas em nossa primeira Escola”, relata Saint-Martin a seu discípulo Kircheberger. “Sou mesmo induzido a pensar que o Sr. Martinez de Pasqually, que era nosso mestre, possuía a chave ativa referente a tudo o que nosso prezado Jacob Böehme expõe em suas teorias, mas não julgava que fôssemos capazes de entender tão altas verdades, naquela época. Ele era sabedor de alguns pontos que nosso amigo Böehme não conhecia, ou pelo menos não revelou, como a resipiscência do ser perverso, contra o qual o primeiro homem teria tido a missão de trabalhar… Quanto à Sofia e ao Rei do Mundo, ele nada nos revelou, deixando-nos com as noções comuns de Maria e do Demônio. Mas não afirmarei que ele não teve conhecimento delas e estou convicto de que chegaríamos a esse conhecimento, se o tivéssemos conosco por mais tempo…”(8)

Saint-Martin nunca concordou com a iniciação realizada fora do silêncio e da realidade invisível, que chamava de centro ou via interior. Para ele, o interior deve ser o termômetro, a verdadeira pedra de toque do que passa fora…; e o estudo da Natureza exterior só teria sentido se conduzisse à senda interior, ativa. Esse estudo poderia, pois, ser útil na medida em que conduzisse à Verdade, mas a Iniciação, explicava ele a Kircheberger, deve agir no ser central.

“Não lhe ocultarei que anteriormente entrei nesse caminho externo, e através dele me foi aberta a porta de minha carreira. Meu condutor era um homem de muitas virtudes ativas, e a maioria daqueles que o seguiram, inclusive eu, receberam confirmações que talvez tenham sido úteis para nossa instrução e desenvolvimento. Todavia, em todos os instantes, eu sentia forte inclinação para o caminho intimamente secreto, o externo nunca me seduziu, nem em minha juventude.”(9)

Entendia Saint-Martin que todo o aparato exterior não era necessário para encontrar Deus e que, ao contrário, em muitas ocasiões dificultava essa busca. Discordava das numerosas e freqüentes comunicações sensíveis de todos os tipos, manifestadas nos trabalhos de que tomava parte na sua primeira Escola, embora o signo do Reparador sempre estivesse presente, manifestando a ação da Causa Ativa e Inteligente no mundo objetivo. Afirmava, no entanto, que sua senda interior, desenvolvida depois, proporcionava-lhe resultados mil vezes superiores aos produzidos pela senda que denominava exterior e que era preconizada por Pasqually.

Afirmava, no entanto, e é bom repetir, que deveria haver trabalhos internos da Ordem que não lhes foram transmitidos por causa de sua curta passagem pelo sistema e por não terem ainda passado pelos estágios iniciais. O Mestre não poderia ter agido de modo diferente, revelam-lhes os mistérios de ordem mais elevada. Acreditava, ademais, que os Princípios Divinos poderiam mesmo nascer naquele sistema, mas os trabalhos para esse efeito deveriam ser mais alguns anos com Pasqually.

Não apenas Saint-Martin discordava do sistema de Martinez, uma vez que os resultados não se produziam de imediato; todos os discípulos reclamavam resultados espirituais que, em verdade, dependiam deles próprios. Willermoz parece ter sido o primeiro a manifestar a Saint-Martin seu descontentamento no que dizia respeito ao desenvolvimento das faculdades adormecidas do ser humano; é o que constatamos através da leitura de uma carta endereçada por Saint-Martin, do Oriente de Bordeaux, com data de 25 de março de 1771.

“Quanto à confiança que vos dignais a testemunhar-me, abrindo-me sem escrúpulos vosso pensamento sobre nossas cerimônias, não me compete, tendo em vista nossa dignidade, fazer qualquer observação a respeito; e, diante de meu juiz, eu só deveria escutar e calar. Entretanto, as disposições puras que trazeis à Sabedoria fazem-me supor que poderíeis perdoar-me antecipadamente se ouso acrescentar, às vossas, algumas idéias próprias. Procuro, como vós, esclarecer-me… Confesso que o objetivo que buscamos na iniciação parece-me muito difícil de ser atingido.

Acredito que, mesmo nos encontrando nas melhores condições, quando todas as cerimônias são empregadas com a maior regularidade, a Coisa pode ainda guardar seu véu para nós tanto quanto quiser; ela está tão pouco à disposição do homem que ele não pode, jamais, apesar de seus esforços, estar certo de obtê-la. Ele deve esperar e orar sempre, eis nossa condição. O espírito conduz seu sopro onde quer, quando quer, sem que saibamos de onde vem e para onde vai… Se o poder não se manifesta agora, ele poderá ocorrer mais tarde; se não se opera pela visão, ele prepara a forma daquele que se mantém puro para receber as impressões salutares, quando o espírito assim quiser. Não atribuais, então, o estado em que vos encontrais a algum problema de vossa parte ou à invalidade das cerimônias.”(10)

Willermoz procurava obter por carta maiores esclarecimentos acerca dos problemas que iam surgindo no transcorrer de sua jornada iniciática. Pelo que constatamos, os resultados práticos da iniciação não apareciam tão rapidamente como os discípulos desejavam. Era necessário muito trabalho, como em qualquer sistema de iniciação, para que surgisse alguma manifestação de aprimoramento espiritual.

A correspondência entre Saint-Martin e Willermoz, iniciada em 1768, estendeu-se até 1773. Em 1771, Saint-Martin abandonou a carreira militar para dedicar-se exclusivamente ao Ocultismo. Durante dois anos empregou todo o tempo disponível para trabalhar ao lado do mestre; foi durante esse período que se familiarizou com a ritualística dos Cohens e com a doutrina de Martinez, bem como com todas as suas práticas iniciáticas.

Partiu de Bordeaux em maio de 1773, na ocasião em que Martinez preparava-se para viajar para as Antilhas. Antes de se despedir, entretanto, Saint-Martin foi recebido no último grau dos Cohens, aquele de Réaux-Croix, como atesta uma carta de Martinez, datada de 17 de abril de 1772: “Após ter examinado e reexaminado os candidatos Saint-Martin e Seres, por nossa votação ordinária e em conseqüência das ordens que recebemos, nós os ordenamos Réaux-Croix…”(11)

Em 1773, finalmente, Saint-Martin conheceu Willermoz, em Lyon, após terem trocado correspondência durante cinco anos. Seu círculo de amizade limitava-se aos irmãos da Ordem: Grainville, Balzac, Hauterive, Bacon de la Chevalerie, o Abade Fournier e Willermoz. Permaneceu um ano em Lyon, seguindo para sua cidade natal e, posteriormente, para Paris. Em abril de 1785, Willermoz obteve sucesso com suas operações: a “Coisa ativa e inteligente” finalmente mostrou-se aos homens.

Saint-Martin, sabendo da notícia, partiu de Paris em junho do mesmo ano, com destino a Lyon, levando consigo uma bíblia em hebraico e um dicionário, para entreter-se na viagem. Ficou seis meses em Lyon, partindo mais tarde para Nápoles e Londres, onde tomou conhecimento das publicações de Willian Law, morto em 1761, e que pertencia à tradição de Jacob Böehme.

“Seríamos excessivamente prolixos se procurássemos seguir as pegadas do nosso Filósofo Desconhecido, ao longo de sua jornada terrena, onde a cada passo, não obstante, encontraríamos o exemplo dignificante e o traço indelével da imensa esteira de luz que marcou sua trajetória neste mundo. Difícil ainda seria penetrarmos na profundeza do seu pensamento, da sua filosofia, da sua doutrina de elevação e regeneração do homem na busca da iluminação e da paz…”(12)

Foi inicialmente de Lyon que o Filósofo Desconhecido procurou irradiar a luz, após a partida de Martinez para o Oriente Eterno. A direção da Ordem dos Elus Cohen não ficou com Saint-Martin nem com Willermoz, mas nas mãos de pessoas menos preparadas para levar adiante um sistema que ainda necessitava de aperfeiçoamento. Coube a Saint-Martin e a Willermoz a resignação de continuarem ocultamente a pesquisa da Verdade por suas próprias forças. O “Agente Incógnito” teria ditado inúmeras instruções e partes de um livro que Louis Claude de Saint-Martin publicou, destinado a lutar contra o materialismo vigente na época. (13)

Talvez por esse motivo Saint-Martin tenha iniciado uma série de viagens, verdadeiros apostolados, para realizar propaganda das idéias espiritualistas, recolher dados e informações iniciáticas e entrar em contato com discípulos e homens de ciência. Em todos esses contatos sempre conquistava novas amizades e discípulos para continuarem sua obra. Saint-Martin tinha uma conversa muito agradável, uma vez que seu verbo não fazia senão expressar sua paz interior, seus conhecimentos e a nobreza de sua alma.

Os salões mais aristocráticos de Paris disputavam sua presença. Essas qualidades eram agradáveis às mulheres, que não hesitavam em convidá-lo para as festas, pensando em casar suas filhas. Mas o Filósofo Desconhecido quis dedicar-se integralmente à sua obra de divulgação do Espírito. Em 1778, em Toulouse, esteve prestes a se casar; contudo, esse projeto desvaneceu-se como todos os demais a esse respeito. Afirmava sentir uma voz no seu interior que lhe dizia ser ele originário de um lugar onde não existem mulheres.

Agente Incógnito desapareceu de cena em 1788, época em que Saint-Martin retornou à Lyon, mas reapareceu em 1790 para destruir uma série de cadernos de instruções por ele próprio ditados: “Eu devolvi ao Agente“, conta-nos Willermoz, “a seu pedido, mais de 80 cadernos manuscritos inéditos, que destruiu.”

Com a morte de Pasqually, ocorrida em 1774 em São Domingos, o centro oculto da iniciação Cohen passou a Lyon e foi lá, como contam seus biógrafos, “que o Filósofo Desconhecido, armado com a Sabedoria Divina, passou a fazer oposição à doutrina materialista dos Enciclopedistas. Combatendo o materialismo revolucionário e sua doutrina errônea inserida em uma pretensa filosofia da natureza e da história, Saint-Martin chamou o homem de volta à Verdade, fundamentando-se no princípio do conhecimento de si mesmo e na natureza do ser inteligente”.(14)

Saint-Martin, entretanto, nunca ficou muito ligado ao rigor das instituições iniciáticas, mas, em razão da problemática da época, em pleno desenvolvimento da Revolução Francesa, procurou, para a salvaguarda das suas próprias doutrinas e das tradições de que então já era depositário, unir-se a grupos ou formar grupos cujos membros desejassem, sinceramente, dedicar-se ao culto da Verdade e à prática das Virtudes. Estudava, paralelamente, as doutrinas de Pasqually e de Swedenborg, as primeiras mostrando-lhe a ciência do Espírito e as segundas a ciência da Alma.

“A Revolução, em todas as suas fases, encontrou Saint-Martin sempre o mesmo, dedicado a seu objetivo. Por princípio, esteve acima das considerações de nascimento e opiniões, por isso não emigrou; enquanto se mantinha ao seu redor todo o horror das desordens e dos excessos, acreditou sempre que o bem podia surgir do terrível advento da Revolução Francesa, pela intermediação da Divina Providência; pensou ver um grande instrumento temporal no homem que se levantou para suprimir seus excessos.

“Foi em 1793, quando a família e a sociedade dissolviam-se, que vendeu as suas últimas posses para manter e cuidar de seu pai, velho e paralítico. Na mesma época, não obstante os estreitos limites a que ficou reduzida a sua fortuna, contribuiu para as necessidades públicas de sua comunidade. Retornando à capital, foi atingido pelo decreto de expulsão dos nobres. Saint-Martin submeteu-se e deixou Paris.(15)

Durante o terror revolucionário, era necessária muita prudência, mesmo para os assuntos iniciáticos. Saint-Martin recebeu um mandado de prisão, embora vivesse mergulhado nos estudos e na meditação, sem nunca ter feito política. Não subiu ao cadafalso porque Robespierre caiu em seguida. Havia a proteção do Alto, que o guiava na terra, obscurecida pela agitação dos homens.

“Uma corrente de prestígios inundou a inteligência humana em geral, e a dos parisienses em particular, porque a cidade, que comporta sábios e doutores de toda espécie, possui poucos que orientam seu pensamento na direção dos conhecimentos verdadeiros, e há menos ainda que buscam esses conhecimentos com um espírito reto. A maior parte deles não fazem mais que dissecar as cascas da Natureza, medir, pesar e enumerar todas as suas moléculas. Eles tentam, insensatos, a conquista de tudo que se encontra em composição no Universo, como se isso lhes fosse possível. Esses sábios, tão célebres e tão ruidosos, não sabem que o Universo (ou o Templo) é a imagem reduzida da indivisível e universal eternidade; eles podem contemplar e admirar, pelo espetáculo de suas propriedades e de suas maravilhas, … mas jamais poderão conquistar o segredo de sua existência.”(16)

Saint-Martin, para cumprir seu dever cívico, serviu na Guarda Nacional e, em Amboise, foi escolhido para ser um dos instrutores da Escola Normal Superior, que formava jovens professores; tomou parte em 1795 da primeira Assembléia Eleitoral, sem contudo tornar-se membro efetivo de qualquer corpo legislativo. O que buscava era o Conhecimento e a difusão de suas doutrinas. Jamais fez proselitismo e procurava ter por discípulos amigos fiéis da Verdade. Quem visse seu jeito humilde jamais poderia suspeitar de sua elevada espiritualidade. Sua docilidade para com o tratamento, sua serenidade, manifestava no entanto o sábio, O Novo Homem formado pela filosofia profunda do aperfeiçoamento moral e espiritual. A luz que irradiava de seu centro fazia justiça à sua condição de Homem-Espírito, o grande sol da transição ao século XIX.

Foi em 1788, em Estrasburgo, que Saint-Martin tomou conhecimento das obras de Jacob Böehme, o Teósofo Teutônico, através de Rodolphe de Salzmann. Surpreso, constatou que essa doutrina combinava com a de seu antigo mestre Martinez de Pasqually, sendo idênticas em essência.. Coube a ele a tarefa de fazer o feliz casamento das duas correntes doutrinárias, elaborando um sistema sintático, capaz de satisfazer seus anseios e colocar à disposição de todos os Homens de Desejo um caminho seguro para chegar à Iluminação.

A síntese iniciática foi obtida em poucos anos de trabalho pelo nosso Filósofo Desconhecido, secundado que foi por seu colega Jean Baptiste Willermoz. Necessitava, entretanto, de uma transmissão iniciática da corrente de Böehme para associar à sua, advinha de Pasqually. Essa corrente alemã de Jacob Böehme foi obtida ao ser iniciada pelo Barão de Salzmann, em Estrasburgo, e confirmada na linha mais antiga dos Templários, ao associar-se com a Estrita Observância Templária, do Barão de Hund.

Willermoz foi o encarregado, em Lyon, de organizar o sistema maçônico do Rito Escocês Retificado, fruto do Convento de Wilhelmsbad de 1782. Coube a Saint-Martin a chefia e a realização de iniciações individuais da Ordem Interior dos Filósofos Desconhecidos. Vários alemães foram iniciados no novo sistema (muitos dos quais já eram discípulos de Martinez de Pasqually), ingressando na iniciação real que conduz à Iluminação e à Reintegração a partir deste mundo na Unidade Divina.

Saint-Martin considerava as obras de Jacob Böehme de uma profundidade e de um valor inestimáveis e não se achava digno nem de desatar as sandálias de Jacob Böehme; entendia que seria necessário que o homem se tivesse tornado pedra ou demônio para não tirar proveito de tais obras. (17)

Foi assim que passou a estudar o alemão, com quase 50 anos de idade, para melhor penetrar no sentido oculto e no pensamento do autor. Procurou traduzir para o francês as principais obras do Mestre. A partir de então, sempre que se referia a Jacob Böehme dizia que o Iluminado teutônico foi a maior luz que veio a este mundo depois daquele que era a própria Luz, isto é, o Cristo.

Após ter percorrido parte da Europa, estabeleceu seu apostolado em Toulouse, Versailles e Lyon, sempre lançando a semente espiritual em uma terra que se tornou fecunda, recolhendo ele próprio as doutrinas mais apropriadas para o seu espírito e seu sistema. Mais tarde, centralizou sua ação em três cidades: Estrasburgo, Amboise e Paris, que eram, como confessou, seu paraíso, seu inferno e seu purgatório. Fora dessas cidades possuía membros correspondentes de sua sociedade, como o Barão de Kircheberger, que não chegou a conhecer, mas a quem enviou um emissário, o Conde Divonne, para certamente lhe transmitir a iniciação. Kircheberger era grande admirador das obras de Saint-Martin; pertencia à Escola de Böehme, da qual tomaram parte igualmente Khunrath e Gichtel.

Kircheberger escreveu a Saint-Martin que, segundo uma lenda corrente em sua Escola, a Virgem Celeste, a Divina Sofia, nos dias das núpcias compareceu com seu corpo celeste de Glória e escolheu Gichtel, vindo à sua casa, colocando em ordem seus papéis e completando com seu próprio punho os manuscritos por ele deixados inacabados. Em vida teria igualmente recebido favores de sua esposa celeste, pois como general venceu o exército de Luiz XIV, que pretendia conquistar Amsterdã, cidade onde o adepto residia. Durante toda a batalha, o general não teria saído do quarto.(18)

Não somente Saint-Martin acreditava no relato de Kircheberger, como lhe pedia maiores detalhes sobre Gichtel. “Se estivéssemos um perto do outro, escreveu-lhe Saint-Martin, eu também teria uma história de casamento para vos contar. Os mesmos passos foram dados por mim, mas de um modo um pouco diferente, embora chegando aos mesmos resultados. Creio, com efeito, ter conhecido a esposa de Gichtel…, mas não de modo tão particular como ele. Eis o que me aconteceu por ocasião do casamento de que falei: eu estava orando… e me foi dito intelectualmente, mas de modo muito claro, o seguinte: Depois que o Verbo é feito carne, nenhuma carne deve dispor dela própria sem que Ele o permita. Essas palavras penetram profundamente em meu ser; ainda que não tenham significado uma proibição formal, recusei-me a toda negociação posterior.”(19)

Acredita-se que a chave da iniciação está no desejo do homem de purificar-se, de evoluir e de atingir a iluminação. Essa evolução é necessária para remediar a degradação a que o homem se submeteu após a Queda Original. Antes, o homem podia obrar em conformidade com a Vontade do Pai, sendo dessa maneira poderoso, mas após ter se revestido de um envoltório material, suas capacidades espirituais atrofiaram-se e a Vontade e a pureza de outrora aniquilaram-se. Foi na cidade de Estrasburgo que Saint-Martin deu a um discípulo a chave de O Homem de desejo, que, por extensão, serve para a própria Iniciação:

A Chave do Homem de Desejo.

Avant qu’Adam mangeât la pomme,
Sans effort nous pouviouns oeuvrer.
Depouis, L’oeuvre ne se consomme.
Qu’au edu pur d’un ardent supir;
La Clef de l’Homme de Désir
Doit naître du désir de l’homme.

Isto é, antes de Adão ter comido a maçã, o homem podia realizar sua obra sem esforço; depois, a obra não se concretiza a não ser com a ajuda do fogo puro, emanado de um ardente suspiro, advindo do grande esforço individual. Assim, a chave do Homem de Desejo deve nascer do desejo do homem.

Seu livro O Homem de Desejo, publicado pela primeira vez em 1790, são litânias no estilo do salmista, nas quais a alma humana evolui para o seu primeiro estágio, num caminho que o Espírito pode ajudá-la a percorrer.

Saint-Martin escreveu este livro por sugestão do filósofo religioso Thiaman, durante suas viagens a Estrasburgo e a Londres. Lavater, então clérico em Zurique, elogiou essa obra como um dos livros que mais tinha gostado, embora reconhecesse não ter tido condições de penetrar nas bases da doutrina exposta. Kircheberger, mais familiar aos princípios do livro, considerou-o como o mais rico em pensamentos iluminados. O próprio Saint-Martin concordou que nesse livro encontram-se os germes do conhecimento que ignorava até a leitura das obras de Jacob Böehme.

O objetivo de seu livro O Homem de Desejo é mostrar que o homem deve confiar na Regeneração, chamando sua atenção para a necessidade de retorno ao Mundo Divino de onde saiu e ao trabalho que deverá realizar para alcançar esse objetivo, isto é, concentrando suas forças pelo desejo ardente de aperfeiçoar-se e tornar-se um homem de vontade forte.

“Não há nenhum outro mistério para se chegar a essa sagrada iniciação, senão penetrando cada vez mais no fundo de nosso ser e não esmorecendo até que possamos produzir a viva e edificante raiz; porque, então, todos os frutos que haveremos de gerar, conforme nossa espécie, serão produzidos dentro de nós e sem nós, naturalmente; é o que ocorre com nossas árvores terrestres, porque elas aderem às próprias raízes e, incessantemente, retiram sua seiva.”(20)

Compreende-se, assim, que o ensinamento deixado por Saint-Martin, e que veio de Martinez de Pasqually e de Jacob Böehme, era muito profundo e de natureza divina. Constitui-se uma Escola de Homens de Desejo, ávidos por adquirirem conhecimentos, uma elite do pensamento, embaçada em um sistema filosófico iniciático, tendo como objetivo o desenvolvimento moral e espiritual do homem. Não é uma Escola de especulação abstrata, mas um centro onde os membros procuram conhecer a doutrina e a experiência dos mestres e onde procuram vivê-la na vida diária, para atingir a perfeição interior, através de um processo de autotransformação.

Os grupos de homens livres eram formados por um pequeno número de pessoas inteligentes e de mente sã, escrupulosamente examinadas, Saint-Martin dizia que as grandes verdades só podem ser bem ensinadas no silêncio. Todos aqueles que não sabem calar, que falam mais do que observam, não podem ser recebidos na senda interior. Saber guardar o silêncio é condição indispensável para que o homem se torne digno de receber outros ensinamentos cada vez mais profundos, emanados não apenas de seu iniciador, como do próprio Mundo Invisível. Para isso, necessitamos de treinamento, que se efetua guardando-se o silêncio em relação às pequenas coisas, mesmo profanas. Qualquer sociedade iniciática não pode ser aberta, pois assim perderia a força que porventura tivesse recebido do Alto. Guardar o silêncio significa fechar-se às influências exteriores, às opiniões contrárias que só trazem ações conflitantes. Fechar-se em torno de si mesmo é magnetizar-se; é evitar que as próprias forças divinas se dispersem na Natureza, passando por nós. É criar um pólo de atração; é tornar-se um receptáculo das influências celestes; é tornar-se a taça que recebe o influxo divino.

A Iniciação é um processo interior de aperfeiçoamento do homem, tornando-o apto a receber as forças divinas. O homem é a soma de todos os problemas da existência; é a síntese, o enigma dos enigmas, a pedra bruta que deve ser talhada e aperfeiçoada. Esse desenvolvimento deve ocorrer de tal modo que o ser criado se religue ao Criador, através da aproximação da natureza impura com a natureza pura. Por isso, a primeira deve ser trabalhada até ficar quase no mesmo estado da segunda; somente depois haverá uma atração tal, que a Natureza Superior descerá até a inferior, purificando-a em definitivo e deixando-a conforme ela mesma: é a Iluminação do Iniciado.

Aquele que possuir o conhecimento de si mesmo terá acesso à ciência do mundo, dos demais seres. O conhecimento de si próprio é somente em si que deve buscar. É no espírito do homem que se devem encontrar as leis que dirigem sua origem. É preciso, pois, que o iniciado encontre seu centro iniciático, a divindade em si, para adquirir o pleno conhecimento de si mesmo. É necessário conhecer suas fraquezas para melhor dominá-las e não voltar a praticar os mesmos erros. Jesus Cristo dizia aos homens para não pecarem mais menos, até o dia em que, tendo encontrado seu equilíbrio iniciático, possam chegar a não pecar mais. Sua luta deve ser constante, contra as paixões, suas contrariedades internas e a ira. A docilidade representa a presença de Deus no centro iniciático; a ira representa a sua ausência.

“O homem não pode ser integralmente livre da ira e do pecado porque os movimentos do abismo deste mundo tampouco são totalmente puros ante o coração de Deus; o amor e a ira sempre lutam entre si.”(21)

A doutrina de Saint-Martin difundiu-se na Alemanha e na Rússia, através de seus discípulos. Na Rússia, a doutrina martinista encontrou um grande divulgador em Joseph de Maistre, que afirmava a existência de Deus no interior de cada indivíduo e, por conseguinte, que o segredo de toda a iniciação consistia em descobrir o centro iniciático próprio, a senda interior, a fim de proceder ao próprio desenvolvimento espiritual. Assim, a iniciação é uma senda real, interior, individual, e não se encontra no exterior, nas sociedades ou no Enciclopedismo.

Em 1803, o Filósofo Desconhecido dava seus últimos passos em direção à Eternidade, pois sua saúde mostrava-se débil. Mas não se afligiu com essa perspectiva; ao contrário, dizia que a Providência sempre lhe havia dispensado muito cuidado, de modo que só poderia render-lhe graças.

Conta-nos Gence que certa vez, visitando um amigo comum, Saint-Martin confessou-lhe que estava partindo para o Oriente Eterno e no dia seguinte, visitando seu amigo o Conde Lenoir la Roche, em Aulnay, após leve refeição, retirou-se para o quarto; sofreu um ataque de apoplexia e partiu. Era o dia 13 de outubro de 1803. Foi então que seus discípulos e amigos perderam a convivência física com o Mestre, mas ganharam a eterna e permanente proteção espiritual que nos envia do Reino da Glória, através dos Mundos Invisíveis.

Hoje, a obra de Louis Claude de Saint-Martin continua através dos Grupos de Iniciados que seguem sua doutrina. A Conquista da Iluminação é o objetivo último de todos os Homens de Desejo, que encontram nas obras do Mestre e no seu exemplo, como Homem e como Iniciado, o respaldo necessário para prosseguir na senda sem desânimo.

Que cada um possa transformar-se em um Novo Homem, renascido pela Luz, que resplandece na alma de todos, e que engendrará, no futuro, o Homem-Espírito, o novo Sol que acalentará os corações de todos com seu procedimento e com sua serenidade.

OBRAS DE LOUIS CLAUDE DE SAINT-MARTIN

1-) Des Erreurs et de la Vérité, ou les Hommes Rappelés au Principe Universel de la Science. Edimbourg, 1775, 2 vol.

2-) Suite des Erreurs et de la Vérité. A Salomonopolis, Androphile, 1784.

3-) Tableau Naturel des Rapports qui Existent entre Dieu, l’Homme et l’Univers. Édimbourg. 1782.

4-) L’Homme de Désir. Lyon, 1790.

5-) Ecce Homo. Paris, Cercle Social, 1792.

6-) Le Nouvel Homme. Paris, Cercle Social, 1792.

7-) Letre à un Ami, ou Considérations Philosophiques et Religieuses sur la Révolution Française. Paris, Louvet, Palais, Égalité, 1796.

😎 Éclair sur l’Association Humaine. Paris, Marais, 1797.

9-) Le Crocodille ou la Guerre du Bien et du Mal, Arrivée sous le Règne de Louis XV. Paris, Cercle Social, 1798.

10-) Réflexiones d’un Observateur sur la Question Proposée por l’Institut: “Quelles sont les Institutions les plus Propres à Fonder la Morale d’un Peuple?. Paris, 1798.

11-) De l’Influence des Signes sur la Pensée (inserido incialmente no Crocodile). Paris, 1799.

12-) L’Esprit des Choses ou Coup d’Deil Philosophique sur la Nature des Étres et sur l’Objet de leur Existence. Paris, 1800, 2 vol.

13-) Le Ministère de l’Homme-Esprit. Paris, 1802.

14-) Oeuvres Posthumes de Saint-Martin. Tours, 1807, 2vol.

15-) Traité des Nombres. S/1, M. Léon, 1844.

16-) Correspondence de Saint-Martin avec Kircheberger, Baron de Liebisdorf, des annèes 1792 a 1799, S. n. t.

TRADUÇÕES DAS OBRAS DE JACOB BÖEHME

17-) L’Aurore Naissante ou la Racine de la Philosophie, de l’Astrologie et de la Théologie. Paris, 1800.

18-)Des Trois Principes de l’Essence Divine ou de l’Eternel Engendrement sans Origine de l’Homme, d’où il a été Crée et pour quelle Fin. Paris, 1802, 2 vol.

19-)Quarente Questions sur l’Origine, l’Essence, l’Etre, la Nature et la Propriété de l’Âme, suivies des “Six Poit”. Paris, 1807.

20-) De la Triple Vie de l’Homme selon de Mystère des Trois Principes de la Manifestation Divine. Paris, 1809.

NOTAS

1- SAINT-MARTIN, L. C. Oeuvres Posthumes; Portrait Historique et Phisosophique de Saint-Martin fait par lui-même, p. 58-59.

2- Id., t.1, p.5.

3- Id., t.1, p.78-9.

4- J. B. M. Gence foi discípulo de Saint-Martin e com ele conviveu longos anos: seu relato encontra-se no prefácio de Teosophic Correspondence between L. C. de Saint-Martin and Kircheberger, Baron de Liebistorf, P. V.

5- Id., p. VI.

6- PAPUS. L’Illuminismo en France, 1771-1803: Louis-Claude de Saint-Martin, as Vie, as Voie Theurgique, ses Oeuvrages, son Oeuvre, ses Disciples, suivi de la Publicatino de 50 Letters Inédites, p. 109.

7- MATER, M. Saint-Martin, le Philosophe Inconnu. Ed. d’Aujourd’hui, p. 20.

8- SAINT-MARTIN, L. C. Theosophic Correspondense, op. Cit. Carta XCII.

9- Id. Carta IV.

10- PAPUS. Louis Claude de S. Martin. 1902.

11- Id., p. 12.

12- Comentário deixado por Ary Ilha Xavier, profundo conhecedor das obras de Saint-Martin.

13- Des Erreurs et de la Vérité. Edimbourg, 1775, 2v.

14- Gence. Op. Cit., p. IV.

15- Id., p. VII.

16- SAINT-MARTIN, L.C. Le Crocodile, Canto XV, p.53.

17- SAINT-MARTIN, L.C. Mont Portrait. Op. Cit., p. 42.

18- SAINT-MARTIN, L.C. Theosophic Correspondence. Op. Cit. Carta LVIII.

19- SAINT-MARTIN, L.C. Theosophic Correspondence Op. Cit. Carta LXII.

20- SAINT-MARTIN, L.C. Theosophic Correspondence. Carta número CX.

21- BÖEHME, J. Confesiones, p. 44.

Original foi retirado do site da Sociedade das Ciências Antigas.

1743 – 1803

[…] Postagem original feita no https://mortesubita.net/biografias/louis-claude-de-saint-martin/ […]

Postagem original feita no https://mortesubita.net/biografias/louis-claude-de-saint-martin/

‘O Príncipe de Maquiavel

Nicolau Maquiavel escreveu ‘O Príncipe’, um clássico da literatura política, como um presente a Lourenço II de Medici. Era uma época muito diferente. A Itália que conhecemos hoje era ainda uma série de reinos concorrentes. Seus principados eram conquistados e perdidos o tempo todo. Era uma época onde o poder dos papas se confundia com o poder dos imperadores e a Idade Média dava lugar a Renascença.

Maquiavelismo virou sinônimo de maldade, mas não é bem assim. Acima de tudo ele retratou o que via. Ele tinha uma vasta experiência no campo da política. Atuou como diplomata nas cortes europeias por décadas e testemunhou a queda e ascensão das realezas. Estes anos na corte formaram uma visão pessimista do ser humano. Ele acreditava que as pessoas são ingratas, mentirosas, covardes e gananciosas. Como governar sabendo disso?

Os livros de história e sua carreira lhe ensinaram que não podemos confiar em ninguém. Aquele que você ajudou ontem pode te trair amanhã. Para ele quem tentar ser bom com todos o tempo todo naturalmente acabará na ruína pois terminará sendo passado para trás pelas outras pessoas que não são boas. O objetivo deste livro é ser um manual que ajudasse o príncipe a conquistar e manter o poder mediante em um mundo cruel. Ele traz uma série de conselhos, sugestões e exemplos históricos.

Desde 1513, quando o livro foi escrito, muita coisa mudou. Os principados deram lugar a estados nacionais. O feudalismo virou capitalismo. O absolutismo deu lugar a repúblicas. O poder do papa diminuiu e a democracia aumentou. Mas uma coisa não mudou: o espírito humano. Muitas das ideias  deste microbook podem facilmente ser levadas para a atualidade e vistas na política e no mundo dos negócios atuais.

Segue resumo:

Virtude e Fortuna

 

O primeiro conceito importante que Maquiavel nos entrega é que o destino é guiado pela Fortuna e pela Virtude. Estas palavras têm, nesta obra um sentido um pouco diferente do que estamos acostumados. Fortuna seria tudo aquilo que acontece que você não tem nenhum controle, os golpes de sorte e de azar, também chamados de “atos de Deus”.  Virtude por sua vez  é aquilo que você planeja e faz ativamente. Um dos principais problemas dos príncipes segundo o autor é confiar demais na fortuna e não se preparar para ativamente expandir ou manter o seu reinado. É o que chamamos hoje de comodismo.

 

Se você chega ao poder pelo caminho da virtude tem uma base forte e sabe o que precisa fazer para continuar lá. Por outro lado se o seu principado é fruto de um golpe de sorte, seu trono logo será conquistado por aqueles que ativamente querem tomá-lo. Maquiavel afirma ainda que quanto mais a sorte influenciou na chegada ao poder de um príncipe, mais esforços serão necessários para mantê-lo.

 

O segredo do caminho da fortuna é saber reter os golpes de sorte e lidar com os golpes de azar. Mais importante ainda é ser proativo o bastante e não deixar as coisas ao gosto do acaso. A primeira lição que um príncipe deve aprender é não depender da sorte.

Os Novos Principados

 

Maquiavel descreve dois tipos de principados. Os hereditários e os novos. Os hereditários costumam ter menos problemas. Nestes casos basta não desprezar os costumes dos antepassados e saber lidar com os acasos. Um príncipe hereditário não precisa de grandes capacidades estratégicas e se manterá no poder. Só algo extraordinário, como um forte usurpador pode lhe tirar o trono.

 

Os maiores problemas estão com os novos principados , aqueles que acabaram de ser conquistados. Muitas vezes os homens mudam de senhor pensando que podem melhorar de situação e essa crença pode os fazer pegar em armas contra seu senhor atual. Com medo disso, os novos príncipes sempre ocupam seus territórios conquistados com soldados. Essa não é a melhor decisão pois compromete os recursos militares. Também não impede que a família do antigo príncipe se erga em contra ataque. Além disso, mesmo os melhores soldados precisam de apoio dos habitantes locais.

 

Maquiavel sugere nesses casos duas estratégias: em primeiro lugar extinguir completamente a linhagem do antigo príncipe. É importante ter certeza que ela não brotará novamente. A segunda estratégia complementar é não alterar suas leis, costumes, nem impostos deixando o povo seguir com suas vidas. Em pouco tempo o território conquistado passa a ser incorporado ao principado.

Lidando com os estrangeiros

Quando o território ocupado tem idioma, tradições e leis muito diferentes surgem dificuldades. Neste caso um dos mais eficientes remédios é o próprio príncipe ir habitá-lo. Isso evita que o local seja saqueado por subalternos e que algum forasteiro ocupa o vácuo de poder deixado pelo príncipe anterior. Além disso a presença do novo príncipe aumenta para os novos súditos as razões para amá-lo, se forem bons e temê-lo se forem rebeldes.

 

No novo território o príncipe deve cuidar de defender os menos fortes e enfraquecer os poderosos. Temos aqui um duplo benefício. Em primeiro lugar o príncipe ganha prestígio com a maior parte da população que alimenta a crença de que as coisas estão mais favoráveis, por outro lado isso garante que nenhuma das forças locais tenha poder o suficiente para tornar-se um concorrente. Por fim, mudar-se para o novo território permite vigiar de perto as desordens e rebeliões que possam surgir. Evitar a oposição é muito mais fácil quando a pegamos no início do que quando o tempo permite que ela se fortaleça.

Chegando ao poder

Maquiavel descreve quatro formas de se conquistar um Principado: pela virtude, pela fortuna, por golpes de crimes e com o apoio do povo ou das elites. Em seguida ele analisa cada um dos métodos e estratégias. O primeiro deles é o de chegar ao poder pela virtude de suas próprias armas.

 

Criar um novo principado não é fácil e exige muita virtude de seu criador. Mas quando um príncipe é fundador do seu próprio Estado é quase certo que ele se manterá no poder sem grandes dificuldades. Maquiavel usa o exemplo de Moisés da Bíblia e de Rômulo, fundador de Roma, Círio pai dos persas e Teseu fundador de Atenas. O fato destes príncipes só terem um estado para controlar faz com que sejam residentes dos mesmos, o que como já vimos facilita muito as coisas.

 

Sobre o uso da Fortuna

 

Quem ganha um principado por fortuna só com muito esforço se mantêm. É o caso dos muitos líderes gregos que foram feitos príncipes por Dario I. Estes estão sempre vulneráveis a mesma sorte ou vontade externa que lhes deu o poder. Não sabem e não podem fazer nada para manter a sua posição. Destes dois citados modos de vir a ser príncipe, por virtude ou por fortuna, quero apontar dois exemplos ocorridos nos dias de nossa memória: estes são Francisco Sforza e César Bórgia. Em primeiro lugar é necessário extinguir as famílias dos senhores anteriores para evitar que se reergam. Em segundo, é necessário conquistar a população, por meio de um bom governo que dê um pouco de poder aos mais fracos. Em terceiro deve-se conquistar o máximo de poder para que, quando o Príncipe que lhe concedeu o estado for derrubado ou morrer você consiga se manter intacto.

 

Chegando ao poder por meio de crimes

 

Em vez de criar um estado alguns príncipes chegam ao poder por meio de golpes e ações criminosas dentro de sua própria pátria. Maquiavel usa o exemplo de Agátocles que ganhou o principado da Sicília matando seus senadores e homens ricos e Alexandre VI que matou e traiu sua própria família. Nesses casos a violência deve ser rápida e pontual de modo a não precisar renová-la a cada dia. Além disso é necessário conquistar os súditos com benefícios vindos desta violência. Os crimes devem ser feitos de uma vez para que ofendam menos e os benefícios devem ser feito aos poucos para que sejam melhor apreciados.

 

Chegando ao poder pelo prestígio

 

Em todas as cidades existem duas tendências diversas: o povo que não quer ser mandado nem oprimido pelos poderosos e estes desejam governar e oprimir o povo. Destes dois anseios diversos um Príncipe pode ganhar poder. Maquiavel sugere que entre estes dois o príncipe prefira o apoio do povo. Em primeiro lugar ele entende que os anseios do povo são mais legítimos que o dos poderosos. Os poderosos querem oprimir mais enquanto a população só não quer ser oprimida. Mas há razões práticas também: a elite é difícil de manobrar enquanto o povo está acostumado a obedecer. È ainda mais fácil se proteger da inimizade dos grandes porque são poucos e concorrem entre si do que do povo que são muitos e estão em toda parte. Por fim as elites estão sempre mudando ao passo que o povo é sempre o mesmo povo. Seja quem for que o colocar no poder um príncipe deve sempre prezar a amizade do povo. Não apenas isso mas deve pensar sempre em fazer com que seus cidadãos sempre tenham necessidade do Estado e dele mesmo. Para ilustrar este tipo de principado Maquiavel escolheu o exemplo de Nabis, líder dos espartanos que com apoio do povo suportou assédio de toda a Grécia e do exército romano.

 

Milícias e Soldados Mercenários

 

Maquiavel também trata  dos meios ofensivos e defensivos que os principados se fazem valer. Estas armas podem ser suas próprias, auxiliares ou mercenárias. É um grande perigo que a segurança do seu principado dependa de forças auxiliares ou mercenárias. Mercenários são por sua própria natureza ambiciosos, indisciplinados e infiéis. Assim como foram contratadas a você podem ser contratadas por seus inimigos. As tropas auxiliares são igualmente perigosas pois também servem interesses diferentes dos seus. No caso de uma vitória sempre se sai devedor cativo dos principados auxiliares.

 

Um príncipe prudente deve sempre evitar essas alternativas  e lutar com suas próprias forças. È melhor perder com suas próprias armas do que vencer com as dos outros, pois na verdade neste caso não é você que está vencendo. Para Maquiavel a ruína do Império Romano teve início quando começaram a pedir ajuda aos godos. Entre depender de boas armas e bons amigos, é melhor escolher as armas. Sempre que se tem boas armas os amigos aparecem. Sem ter armas próprias nenhum principado está seguro.

A Arte da Guerra

 

Um príncipe não deve ter nenhum objetivo  senão a guerra, sua preparação e disciplina. Essa virtude é o que mantém aqueles que nasceram príncipes e é a que torna homens comuns ao principado. Negligenciar esta arte é o primeiro passo para ser conquistado e deposto. Quando um príncipe pensa mais nas delicadezas da corte do que nas armas, logo perde seu estado. Ciro conquistou o império dos medas quando eles se acostumaram com a paz a ponto de se tornarem frouxos demais para a guerra.

 

O príncipe pode se manter com o pensamento guerreiro de duas formas: pela ação ou pela mente. Pela ação ele mantém suas tropas organizadas, exercitadas e disciplinadas.  Ele sugere a caça e os exercícios de guerra como uma forma dos soldados se acostumarem a fadiga e ao domínio do terreno. O príncipe deve também estar mentalmente pronto para a guerra, conhecendo as histórias e ações dos grandes homens examinando as causas de suas vitórias e derrotas.

 

Um príncipe inteligente nunca deve ficar ocioso em tempos de paz, mas sim com habilidade procurar sempre estar mais forte contra a adversidade. Desta forma quando a fortuna virar ele estará preparado.

Sobre a fama e a Infámia

 

Além das preocupações externas o príncipe deve estar sempre atento aos temores internos por parte dos súditos. Em geral a situação interna estará segura se a externa for estabilizada. Mas mesmos nestes casos deve-se estar atento a conspirações e a única forma de garantir isso é evitando ser odiado ou desprezado e mantendo o povo satisfeito.

 

Quanto mais proeminente for uma pessoa, mais alvo será de julgamentos. Isso coloca o príncipe em uma situação delicada, pois será sempre analisado para a fama ou infâmia aos olhos de todos. O ódio e o desprezo foi a causa da queda de imperadores como Heliogábalo, Macrino, e Juliano,  entre tantos outros. Para evitar isso Maquiavel recomenda que o Príncipe sempre evite a infâmia e buscar as boas qualidades. Mas as boas qualidades para um príncipe não são as mesmas dos demais homens.

 

Para Maquiavel uma qualidade virtuosa é aquela que ajuda o príncipe a conquistar ou manter seu estado. Muitas vezes as boas qualidades do povo são prejudiciais ao príncipe. Por isso Maquiavel enfatiza várias vezes que não se deve ter medo de cair em algo que seja considerado um defeito se isso for salvar ou fortalecer seu principado. Por exemplo, vale mais a pena ser amado ou temido pelos súditos? O ideal, segundo Maquiavel é ser as duas coisas. Mas na falta dessa possibilidade é melhor ser temido do que amado. Isso porque nos momentos da adversidade o medo da punição é mais resistente do que os laços de afeto.

Lidando com o povo

 

Outra implicação prática sobre a questão da fama e infâmia entre o povo é se o príncipe deve buscar a fama de piedoso ou de cruel. Diz Maquiavel que o príncipe deve ser tão piedoso quanto possível mas deve ter cuidado para que essa mesma piedade não o leve a ruína. Um Príncipe não deve ter medo de ser considerado cruel se essa crueldade manter seus súditos unidos e leais. A morte de um bandido apenas faz mal a ele mas o seu perdão, diz o autor, faz mal a toda a comunidade. Outro exemplo. Entre ter fama de miserável ou gastador o príncipe deve escolher o primeiro. É melhor ter fama de parcimonioso do que ter que roubar dos súditos para manter luxos e, o que é ainda pior, não ter recursos para a guerra quando precisar se defender.

 

Entretanto mais importante do que cultivar essas qualidades é cultivar a fama de possuí-las.  Um príncipe deve aparentar ser sempre piedoso, fiel, humano, íntegro, religioso. Deve inclusive se possível sê-lo realmente, mas estar preparado para não ser nada disso quando for necessário para manter o seu poder. Muitas vezes para proteger seu Estado terá que agir contra a fé, a caridade, a humanidade e a religião.

 

O Príncipe deve ainda estimular as virtudes entre o povo, dando oportunidade aos homens virtuosos e honrando os melhores em uma arte. Os cidadãos devem ser incentivados a exercer pacificamente suas atividades em suas ocupações e prêmios devem ser instituídos a aqueles que engrandecem a cidade. Sempre que aparecer alguém que realiza algo extraordinário, para o bem ou para o mal na vida civil, deve buscar meios de premiá-lo ou puni-lo de forma que seja bastante comentada. Em algum momento do ano, sugere Maquiavel, deve-se distrair o povo com festas e espetáculos.

 

Lidando com a corte

Na corte é necessário combater os bajuladores. Não há outro meio de se proteger da adulação do que fazer com que as pessoas entendam que não te ofendem dizendo a verdade. Por outro lado quando todos falam a verdade logo começam a faltar com a reverência. Para superar este dilema Maquiavel sugere que o príncipe escolha uns poucos homens sábios e que apenas a eles seja dada a liberdade de falar a verdade e somente daquilo que se pergunte. Deve-se consultar estes conselheiros em todos os assuntos e ouvir suas opiniões com frequência e então decidir por si mesmo o que fazer. Uma vez que a decisão seja tomada é melhor ser obstinado quanto a ela, a não ser que o cenário mude drasticamente. Quem procede de outra forma abre espaço a bajuladores e a mudança frequente de opinião frente a imensa variedade de pareceres possíveis em cada situação.

O príncipe deve demonstrar aborrecimento quando notar que algum destes conselheiros  por alguma razão não lhe diz a verdade. Deve ainda deixar claro que conselhos são bem aceitos apenas quando ele solicitar e não quando desejarem. Por outro lado ele deve solicitar essas opiniões com frequência, ser grande perguntador e paciente ouvinte das coisas perguntadas.  A todos os demais deve tolher o desejo de dar conselhos que não sejam solicitados.

Na escolha destes conselheiros e de outros possíveis ministros e secretários, Maquiavel sugere os critérios duplos da capacidade e da fidelidade. Após estar certo das boas capacidades práticas e intelectuais dos ministros o autor sugere um método simples para se reconhecer um bom ou um mal subalterno. Basta ver se ele pensa mais em si mesmo do que nos interesses do príncipe. Se for assim  jamais será um bom ministro, pois nele não se pode confiar. O príncipe deve escolher entre os homens aquele que pensa primeiro nos interesses do seu príncipe. Em compensação para conservá-lo sendo um bom ministro deve, por sua vez, pensar nele, honrando-o e fazendo-o rico,  afim de que não ambicione nada maior nem possa se imaginar sem sua proteção.

Como não perder a coroa

Nos capítulos finais de sua obra Maquiavel se dedica ao estudo das razões que levam os príncipes a serem derrubados do poder. As principais razões são a negligência das próprias armas, a inimizade do povo e a inabilidade de se proteger das elites. O autor diz que esses defeitos são muito comuns em príncipes que passam anos no poder e se acostumam com ele. Quando sua incapacidade militar ou política cobra seu preço eles erroneamente acusam a própria falta de sorte. O grande defeito dos homens, diz Maquiavel é na bonança não se preocupar com a tempestade.

A chave para não perder seu estado é saber adaptar-se às mudanças. O cenário político e militar mudam a todo momento e acreditar que o destino e a sorte lhe sorrirá sempre é um grave engano. Ainda que a fortuna varie a lição final de Maquiavel é que a fortuna deve ser dominada ou mesmo contrariada até que se faça vencer pela audácia de um príncipe obstinado.

Resumo do Resumo

  • Não confie na sorte. Estratégia e esforço deve ser a base de seu poder.
  • Esteja sempre preparado para a guerra. Não deixe os períodos de tranquilidade te amolecer.
  • Fortaleça sempre seu principado para não depender da força de aliados e mercenários.
  • O aliado mais poderoso que um Príncipe pode ter é seu próprio povo, mas é necessário estar atento aos movimentos das elites.
  • Entre ser amado ou temido escolha os dois. Mas se tiver que escolher só um caminho é melhor ser temido.
  • Proclame abertamente a importância de ser bom, justo, honesto, piedoso, mas não deixe que as virtudes sejam um obstáculo.
  • Evite bajuladores criando um conselho de poucos homens sábios que sejam honestos com você quando solicitado
  • Para manter sua coroa um príncipe deve saber adaptar-se as constantes mudanças no cenário político e militar.

 

[…] Postagem original feita no https://mortesubita.net/baixa-magia/o-principe-de-maquiavel/ […]

[…] O Príncipe, Nicolau Maquiavel […]

Postagem original feita no https://mortesubita.net/baixa-magia/o-principe-de-maquiavel/

A Oração ao Deus Desconhecido

“Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós!” [1]

Quem disse isso foi um dos bigodudos mais geniais da filosofia, e também um dos maiores escritores da história. Muitos “ateus militantes” tem elegido Friedrich Nietzsche, filósofo alemão que viveu no fim do século XIX, como um de seus grandes “heróis”. Talvez pelo fato de o próprio Nietzsche ter se auto-intitulado um ateu:

“Para mim o ateísmo não é nem uma consequência, nem mesmo um fato novo: existe comigo por instinto” [2]

Basear argumentos com base na opinião de escritores famosos não deixa de ser uma falácia do apelo à autoridade – não é muito diferente de defender a infalibilidade da bíblia com base no que algum papa antigo disse sobre o assunto -, mas funciona… As pessoas ficam impressionadas – “nossa, esse bigodudo escrevia muito bem, se ele falou que Deus está morto, é bem capaz de estar mesmo!”.

Estamos mesmo na era das generalizações apressadas, talvez porque com a internet os pequenos pedaços de informação tenham sido compartilhados de forma cada vez mais frenética… Faz muito efeito citar Nietzsche em 140 caracteres e completar com algo como #orgulhoateu ou coisa do gênero.

Você deve estar achando que eu estou aqui para criticar os ateus, mas não é bem esse o meu ponto: quero criticar nossa tendência a ler frases, e não parágrafos, páginas, livros, ou quem sabe até boa parte da obra e da biografia de um dado filósofo, e interpretar a crença alheia de forma super simplificada, tornando nosso próprio conhecimento um tanto quanto superficial.

E o pior de tudo é que muitos nem se dão ao trabalho de perder uns 30 minutos na própria internet para se inteirar mais sobre o assunto. É muito simples chegar a esta interpretação um pouco mais profunda da frase de Nietzsche, pesquisando na Wikipedia:

“A morte de Deus representa metaforicamente o fato dos homens não mais serem capazes de crer numa ordenação cósmica transcendente, o que os levaria a uma rejeição dos valores absolutos e, por fim, à descrença em quaisquer valores. Isso conduziria ao niilismo, que Nietzsche considerava um sintoma de decadência associada ao fato de ainda mantermos uma sombra, um trono vazio, um lugar reservado ao princípio transcendente agora destruído, que não podemos voltar a ocupar. Para isso ele procurou, com o seu projeto de transmutação dos valores, reformular os fundamentos dos valores humanos em bases, segundo ele, mais profundas do que as crenças do cristianismo.

Segundo ele, quando o cheiro do cadáver se tornasse inegável, o relativismo, a negação de qualquer valoração, tomaria conta da cultura. Seria tarefa dos verdadeiros filósofos estabelecer novos valores em bases naturais e iminentes, evitando que isso aconteça. Assim, a morte de Deus abriria caminho para novas possibilidades humanas.”

O bigodudo atacava a religião institucionalizada, baseada em dogmas “castradores do potencial humano”. Seu alvo era, sobretudo, as igrejas baseadas no cristianismo. Segundo o filósofo alemão, “o evangelho morreu na cruz”…

Ora, o que Nietzsche anunciou não era nada de novo, muitos antes dele já haviam anunciado a decadência da igreja, e uma nova oportunidade para a ascensão da religião livre, da espiritualidade genuína [3]. Poderíamos retornar até muito mais no tempo, mas bastará lembrar de Benedito de Espinosa, o grande filósofo holandês que foi excomungado do judaísmo. Espinosa, em sua Ética, havia chegado à conclusão de que “uma substância não poderia criar a si mesma, mas haveria de ter criado tudo o que há”.

A grande peça oculta do Iluminismo também foi acusado de ateísmo – mas é preciso ser racionalmente cego para acusar Espinosa de não acreditar em Deus. Toda sua obra foi dedicada a Deus… Conforme Borges bem disse em sua homenagem em forma de poema: “O feiticeiro insiste em esculpir a Deus com geometria delicada” – Mas, que espécie de Deus estaria visualizando Espinosa do alto de sua grandiosa racionalidade geométrica? Seria um Senhor dos Exércitos? Seria um deus que opera barganhas com os homens? Seria alguma espécie de avatar divino encarnado em algum profeta?

Embora possamos hoje chamar de ateu aquele que não acredita em um Criador nem tampouco em deus algum, na época de Espinosa, de Jesus, e até mesmo de Sócrates, ser acusado de ateísmo era ser acusado de não seguir a cartilha religiosa da igreja dominante, era ser acusado de subverter dogmas, de rezar secretamente, quem sabe, para “algum deus estranho e desconhecido, que ninguém sabe onde está e nem exatamente como é”… Ora, não se enganem: Espinosa foi excomungado por ser ateu! Jesus foi crucificado por ser ateu! Sócrates se viu condenado a beber veneno por ser ateu!

Mas, é claro, todos esses acreditavam em algum Criador… Esbarramos aqui em um profundo problema etimológico. É como pedir para um grupo de pessoas interpretar a frase “disciplina é liberdade” – cada qual vai interpretá-la, obviamente, de acordo com sua própria definição dos termos “disciplina” e “liberdade”. E, por mais que tais conceitos já sejam capazes de gerar uma imensidão de interpretações diversas, mesmo combinados eles mal chegam aos pés das quase infinitas interpretações para que se responda a pergunta “o que é Deus para você?”.

Nietzsche também era um filósofo profundamente espiritual, o que pode ser constatado facilmente em uma de suas obras primas, Assim falou Zaratustra. Mas, e qual seria a visão que o bigodudo tinha de Deus? Talvez este poema, que ele escreveu na juventude, possa nos dar uma boa pista:

Antes de prosseguir em meu caminho
e lançar o meu olhar para frente uma vez mais,
elevo, só, minhas mãos a Ti na direção de quem eu fujo.
A Ti, das profundezas de meu coração,
tenho dedicado altares festivos para que, em
cada momento, Tua voz me pudesse chamar.
Sobre esses altares estão gravadas em fogo estas palavras:
“Ao Deus desconhecido”.
Seu, sou eu, embora até o presente tenha me associado aos sacrílegos.
Seu, sou eu, não obstante os laços que me puxam para o abismo.
Mesmo querendo fugir, sinto-me forçado a servi-lo.
Eu quero Te conhecer, desconhecido.
Tu, que me penetras a alma e, tal qual turbilhão, invades a minha vida.
Tu, o incompreensível, mas meu semelhante,
quero Te conhecer, quero servir só a Ti.

Oração ao Deus desconhecido (traduzido do alemão por Leonardo Boff) [4]

Existem algumas interpretações bem detalhadas sobre o motivo de Nietzsche ter escrito um poema tão profundamente espiritual, e tão aparentemente teísta, mas o que nos importa aqui é reconhecer a complexidade inata da relação que cada ser tem com Deus – e, quanto mais sábio este ser, mais deliciosamente complexa será sua interpretação, pelo menos se a formos tentar resumir com meras palavras, que no fundo são apenas cascas de sentimentos…

Se você crê ou não nalgum Criador, contente-se com sua própria crença ou descrença, pois a não ser que faça parte de alguma comunidade eclesiástica profundamente ortodoxa e dogmática, é bem provável que a interpretação do que seja Deus de seus semelhantes, mesmo aqueles mais próximos e queridos, seja algo diversa da sua própria… Uns crêem em líderes militares que comandam povos escolhidos, outros em um pai bondoso muito velho e de barba perfeitamente branca, outros em um avatar que encarnou na Terra e ressuscitou 3 dias após ser crucificado, outros em alguma espécie de ser de pela azulada que gosta muito de música e dança, outros apenas em um conceito de libertação da mente do sofrimento mundano, outros na mãe natureza, outros em uma substância que abarca a tudo e a todos, outros num evento aleatório que gerou leis profundamente simétricas por todo o Cosmos… E, quem sabe, cada um deles tenha conseguido visualizar um pequeno pedaço do incompreensível, do desconhecido, do nosso mais profundo semelhante.

Mas não adianta apenas crer, é preciso se mover em sua direção. É preciso amar. Julguemos os seres por seus frutos, por suas obras; Pois julgá-los por suas crenças ou descrenças não é muito diferente de julgar que Nietzsche era apenas mais um louco, apenas porque achamos o seu imenso bigode um tanto quanto fora de moda…

***
[1] Retirado de A Gaia Ciência, de Friedrich Nietzsche.
[2] Retirado de Ecce Homo, de Friedrich Nietzsche.
[3] Embora todo seguidor de igrejas seja religioso, nem todo religioso é um seguidor de igrejas. Religião vem do latim religare e significa “religação a Deus ou ao Cosmos”, enquanto que Igreja vem do grego ekklesia e significa algo como “a comunidade dos escolhidos por Deus”. É claro que é possível seguir uma doutrina eclesiástica ou algum dogma e ainda assim ser genuinamente religioso e espiritual, mas a maioria se contenta em repetir orações decoradas uma vez por semana, e esperar pelo tão aguardado céu de ócio eterno… A crítica de Nietzsche era endereçada diretamente e esses últimos.
[4] O texto em alemão pode ser encontrado em Die schönsten Gedichte von Friederich Nietzsche, Diogenes Taschenbuch, Zürich 2000, 11-12 ou em F.Nietzsche, Gedichte, Diogenes Verlag, Zurich 1994. Ver também o artigo Wotan, por Carl Jung; e também este trecho do livro Nietzsche, God and the Jews, por Weaver Santaniello.

***

Crédito das imagens: [topo] Bettmann/Corbis (Nietzsche); [ao longo] Philippe Lissac/Godong/Corbis (imagem de Krishna quando criança)

O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.

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Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/a-ora%C3%A7%C3%A3o-ao-deus-desconhecido

‘Baixa Magia: um estudo introdutório

Morbitvs Vividvs

Todo magista que considerar com atenção a definição de magia como “a arte de mudar a realidade conforme sua vontade” será obrigado a expandir o seu campo de atuação para além do traçar dos pentagramas.

Crowley deixou isso muito claro em Magick Without Tears e Anton Szandor LaVey também compreendia isso ao ponto de em sua Bíblia Satânica definir a prática mágica em duas categorias: A Alta Magia, de caráter ritual e natureza cerimonial e a Baixa Magia de caráter não ritual e natureza social. Segundo ele: “Magia não ritual ou manipulativa consiste de um ardil ou fraude obtida através de vários artifícios ou situações planejadas, que, quando utilizados, podem criar “mudança, de acordo com a própria vontade.”

Ele continua: “Muitas vitimas dos julgamentos das bruxas não eram bruxas. As bruxas reais raramente foram executadas, ou mesmo trazidas a julgamento, pois elas foram proficientes na arte do encantamento e podiam enfeitiçar os homens e salvar suas próprias vidas. Muitas das bruxas verdadeiras estavam dormindo com os inquisidores. Esta e a origem da palavra “glamour”. O significado antigo para “glamour” era feitiçaria. A qualidade mais importante para a bruxa moderna e a sua habilidade de ser atraente ou utilizar “glamour”. A palavra “fascinação” tem uma origem oculta similar. Fascinação foi o termo aplicado para o olho do demônio. Manter a atenção fixa da pessoa, em outras palavras, fascinar, era sua maldição com o olho do demônio.”

Em The Crystal Tablet of Set, o livro inicial que todo novo membro do Temple of Set recebe, Michael Aquino define a Baixa Magia como a arte de controlar a atenção e o comportamento das pessoas sem elas perceberem que são controladas. Em primeiro lugar isso envolve o conhecimento das motivações e leis gerais por trás das decisões das pessoas. Em seguida se aplica este conhecimento de forma a guiar as ações das pessoas de forma discreta para não ser flagrado. É em outras palavras Baixa Magia é a arte da trapaça.

Individualmente este tipo de bruxaria se traduz na maestria no traquejo social, na psicologia aplicada e em algumas leis ocultas do ser humano. Já fora do campo individual a Baixa Magia é usada para a manipulação das massas da qual o mago deve também estar atendo para se precaver – cultivando o pensamento crítico – para não cair nestas armadilhas tão comuns e indissociáveis da religião, da propaganda e da política.

Existem vários campos de estudos que podem ser explorados por quem busca a maestria nesse tipo de manipulação da realidade. Vejamos alguns deles:

Leitura das Pessoas

Significa literalmente aprender a ler o ser humano.  Consiste em um conjunto de técnicas que nos permite dizer coisas sobre a vida de uma pessoa, para impressionar, ganhar confiança ou até mesmo criar empatia. Inclui os campos de leitura fria, da leitura corporal, das leis básicas do comportamento humano e principalmente da atenção aos detalhes.

Alguns livros para quem quiser se aperfeiçoar nessa área:

Ilusionismo

Ainda em The Crystal Tablet of Set, Aquino diz que “O ilusionismo deveria ser considerado como hobby por qualquer pessoa interessada na magia de verdade. Em primeiro lugar permite placar a curiosidade daqueles que querem que você “mostre seu poder” e dá a habilidade de  maravilhar e deleitar seus amigos e quebrar o gelo com desconhecidos.

Na Bíblia Satânica LaVey diz que a quantidade de energia necessária para levitar uma xícara de chá (de fato) seria a mesma de se colocar uma ideia em um grupo de líderes mundiais motivando-os a concordar em algo. E mesmo se você tiver sucesso na levitação da xícara deveria admitir que algum tipo de truque foi usado de qualquer modo. Se deseja flutuar objetos no ar, use cordas, espelhos ou outros artifícios e guarde sua energia para coisas importantes. Diz ainda que todos os médiuns e místicos “divinos” praticam sempre a pura e aplicada mágica de palco, com seus olhos vendados e envelopes lacrados, e qualquer ilusionista competente pode duplicar o mesmo efeito.

Assim o ilusionismo é uma excelente maneira de ganhar experiência na chamada Baixa Magia de uma forma prazerosa e com um mínimo risco de ofender suas cobaias. Oferece ainda um ótimo treinamento nas técnicas básicas de controle da atenção e do comportamento humano. O mágico deve aprender a avaliar seu público e guiar sua atenção sem levantar suspeitas de modo a aparentemente realizar coisas impossíveis bem diante de seus olhos.

Embora as ilusões baseadas em prestigiação equipamentos também ajudem no desenvolvimento da habilidade do mago em manipular a plateia nenhum tipo de magia é tão adequado quando o chamado mentalismo. As técnicas do mentalismo são as mais adaptáveis às necessidades do cotidiano humano e as mais facilmente usadas foram do contexto do palco. Nelas se cria ilusão de poder ler a mente, predizer o futuro e determinar as escolhas das pessoas. Além disso as mais impressionantes rotinas de mentalismo requerem rigoroso treino de memória e outras ginásticas mentais por parte do mago que lhe trarão vantagens em várias outras esferas da vida. Ser um bom mágico é um bom começo para ser um bom mago.

Alguns livros clássicos sobre mentalismo:

Sedução

Sedução não inclui apenas o flerte bem sucedido, mas todo uso útil da sua atração pessoal. O termo latim seductione, significa literalmente “levar por outro caminho”. Da mesma forma a palavra “charme” tem origem francesa e significa “fórmula mágica”. Consiste em criar uma personalidade encantadora em todos os sentidos, em fortalecer o próprio carisma e dominar as sutilezas da comunicação não verbal, do poder dos símbolos e da estética pessoal.

Alguns bons livros sobre o tema:

Manipulação Social

Mais poderoso do que escutar espíritos e falar com demônios é saber ouvir e falar com outros seres humanos. Convencer um juiz, um chefe, um cliente ou uma multidão é tão ou mais poderoso do que convencer um espírito dentro de um triângulo.

Este talvez seja o campo mais amplo justamente por ser o próprio coração da Baixa Magia. Trata-se da percepção dos jogos sociais de um nível mais elevado, capaz de antecipar e orquestrar seus movimentos. Inclui o domínio de estratégias políticas, da oratória, da retórica, assim como técnicas de venda, negociação, liderança e propaganda.

Existem vários bons livros que podem ajudar nesse campo:

Auto-aperfeiçoamento

Por fim a Baixa Magia inclui tudo aquilo que pode ajudar a desenvolver o poder pessoal e a prevenir o praticante em não cair nas armadilhas de manipulação – em especial por aquelas praticadas a séculos pelas religiões, pelo estado e pelas grandes corporações.

Auto-Aperfeiçoamento inclui também tudo aquilo que tornará mais provável a transformação da realidade segundo a sua vontade. Fuja de cursos e grupos que simplesmente defendam o pensamento positivo ou sirvam de substituto para uma espiritualidade esvaziada. Os melhores “livros de auto-ajuda” quase nunca estarão nas prateleiras de auto ajuda.  Procure aqueles que o ajudem a desenvolver senso crítico e habilidades reais. Alguns exemplos:

Além de todas as obras indicadas neste artigo estude a biografia de grandes homens e mulheres como Mohammad, Cleópatra, Napoleão, Rainha Vitória. Existem muitos livros e filmes sobre estas e muitas outras personalidades que foram verdadeiros magos transformadores da realidade. Muitos deles como LaVey, Crowley, Rasputin e Cagliostro eram também praticantes da Alta Magia, o que pode dar a você uma compreensão maior de como estas duas modalidades da arte mágica interagem.

No fim das contas a Baixa Magia é simplesmente Magia. Consiste então em desenvolver uma inteligência aguda capaz de ver as coisas como elas realmente são e uma habilidade obstinada em transformá-las para como gostaria que fossem.

Morbitvs Vividvs é autor de Lex Satanicus: O Manual do Satanista e outros livros sobre satanismo.

Postagem original feita no https://mortesubita.net/baixa-magia/a-baixa-magia-um-estudo-introdutorio/