As Aventuras de Pi – Uma análise cabalística

Aparentemente, “As Aventuras de Pi” (The Life of Pi), filme mais premiado do Oscar de 2013 (Melhor Fotografia, Melhores Efeitos Visuais, Melhor Trilha Sonora e Melhor Diretor), é apenas um filme com fotografia de encher os olhos que conta a história de Piscine Patel, vulgo Pi, que tenta provar a existência de Deus a um escritor desencorajado, relatando sua luta por sobrevivência em um bote salva-vidas, após um naufrágio em alto-mar com seu companheiro de viagem: o tigre Richard Parker. Porém, pode-se considerar redundância fazer uma análise cabalística deste filme, tão óbvio é o viés cabalístico presente em sua essência.

Pi nasce na Índia, filho caçula do dono de um zoológico e de uma botânica. Inabalável em sua crença no sagrado, quando criança, ele encontra espaço o suficiente em seu coração para abraçar as três maiores fés do mundo: o hinduísmo, o cristianismo e o islamismo, ignorando as diferenças de dogmas e preconceitos. Pi entende a unicidade e onipresença da luz de D’us, independente das formas e dos avatares existentes na história da humanidade.

Em um episódio peculiar com Richard Parker, em seu primeiro contato íntimo com o tigre, o protagonista tenta alimentá-lo com a própria mão, encarando-o nos olhos. Pi enxerga a alma do animal e a impressão que temos é que tudo correria bem, se o pai de Pi não o tivesse impedido, com medo do que aconteceria com o filho. Para ensiná-lo uma lição, o Sr. Patel alimenta o tigre com uma cabra, pedindo-o para ficar de olhos abertos, presenciando a selvageria do animal. Pi fica desolado. Seu mundo perde a cor, e sua fé fica completamente abalada. Assim o protagonista cresce, à procura de algo que trouxesse novamente significado em sua vida.

O auge do filme, porém, ocorre após a decisão do Sr. Patel de se mudar com toda a família para o Canadá, embarcando em um navio japonês, denominado Tsimtsum, para vender os animais do zoológico. Depois de quatro dias de viagem, Pi acorda no meio da noite em meio a uma violenta tempestade. Curiosamente, ele pede “mais chuva, mais chuva” ao “Deus da Tempestade”, e o Tsimtsum afunda, deixando-o a deriva no Oceano Pacífico.

O grande cabalista Isaac Luria descreveu um fenômeno curioso. No começo não havia Nada, apenas Luz Infinita. Nesse estágio pré-Criação, não existia lugar onde algo pudesse existir. Quando Ele decidiu criar, sabendo que nada poderia existir onde existisse a Luz Infinita, tamanha sua potência, o Criador retraiu sua Luz em um determinado espaço e o circunda, resultando em um vácuo dentro da Luz Infinita. Só então Ele estendeu para dentro deste vácuo circular um raio de Luz que gerou toda a Criação.

Esse ato de contração de si mesmo para que pudéssemos existir, Luria chamou de Tsimtsum. O Criador, ao criar este espaço, delimitá-lo e enviar um raio de Luz, revela os conceitos de limite e restrição tão necessários à criação, muito similar à função do número irracional Pi.

Pi, durante a tempestade, age como a Criatura foi programada para agir: ele pede mais e mais, pois assim é a criatura em essência, em seu desejo egoísta de receber. E é nesse instante que o Tsimtsum afunda, em uma linda cena com alegorias sobre o momento da Criação para satisfazer qualquer estudante de cabala (talvez até mesmo o próprio Isaac Luria).

Após o naufrágio, o protagonista passa por diversas situações em sua luta para sobreviver. Sozinho, tendo perdido sua família, alimentando e ao mesmo tempo dominando Richard Parker, o que pode claramente ser uma alusão ao nosso Adversário, ao nosso ego e ao constante desejo de receber para si.

Durante toda a viagem de Pi e Richard Parker em alto mar, é possível identificar diversas referências cabalísticas. Em certo ponto, por exemplo, os personagens passam pela esfera de Yesod, antes de terminarem sua jornada, chegando finalmente a Malkuth. Para não entregar o ouro tão facilmente, deixemos aos leitores a percepção destes pormenores.

Ao final de sua história, Pi conta para o jornalista que existem duas versões da história e que ele deve escolher qual é a verdadeira: a que ele acabara de contar, repleta de significados, amor e milagres; e a outra, com fatos realistas e cruéis.

De acordo com Pi, D’us é a “melhor história”. Acreditar em D’us torna a vida mais rica e mais repleta de sentidos – e ainda assim, a vida é a mesma. Ele viveu seu momento pessoal de re-criação do seu universo, sobrevivendo a todas as mazelas e vendo a beleza do Criador em todas elas.

A escolha, na verdade, é sempre nossa: ver apenas o sofrimento e a dor do mundo ou descobrir o significado profundo de todas as coisas.

D’us, ao criar o Universo, oculta sua Luz de nós, para que nós possamos fazer nossas próprias escolhas. Mas Ele permanece imanentemente presente, mesmo estando oculto. De certa forma, ele está mais presente em Sua ausência que em Sua presença.

Do excelente blog CEMEC – Centro de Estudos e Meditação Cabalista

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/as-aventuras-de-pi-uma-an%C3%A1lise-cabal%C3%ADstica

A Cabala Luriânica

A Cabala Luriânica é uma escola de Cabala com o nome de Isaac Luria (1534-1572), o rabino judeu que a desenvolveu. A Cabala Luriânica deu um novo registro seminal do pensamento cabalístico que seus seguidores sintetizaram e leram na Cabala anterior do Zohar que se disseminava nos círculos medievais.

A Cabala Luriânica descreve novas doutrinas das origens da Criação, e os conceitos de Olam HaTohu (hebraico: עולם התהו “O Mundo de Tohu-Caos”) e Olam HaTikun (hebraico: עולם התיקון “O Mundo de Tikun-Retificação”), que representam dois estados espirituais arquetípicos de ser e consciência. Esses conceitos derivam da interpretação de Isaac Luria e das especulações míticas sobre referências no Zohar. O principal divulgador das idéias de Luria foi o rabino Hayyim ben Joseph Vital da Calábria, que afirmou ser o intérprete oficial do sistema luriânico, embora alguns contestassem essa afirmação. Juntos, os ensinamentos compilados escritos pela escola de Luria após sua morte são metaforicamente chamados de “Kitvei HaARI” (Escritos do ARI), embora diferissem em algumas interpretações centrais nas primeiras gerações.

As interpretações anteriores do Zohar culminaram no esquema racionalmente influenciado de Moisés ben Jacó Cordovero em Safed, imediatamente antes da chegada de Luria. Os sistemas de Cordovero e Luria deram à Cabala uma sistematização teológica para rivalizar com a eminência anterior da filosofia judaica medieval. Sob a influência do renascimento místico em Safed do século XVI, o lurianismo tornou-se a teologia judaica dominante quase universal no início da era moderna, tanto nos círculos acadêmicos quanto na imaginação popular. O esquema luriânico, lido por seus seguidores como harmonioso e sucessivamente mais avançado que o cordoveriano, em grande parte o deslocou, tornando-se a base dos desenvolvimentos subsequentes do misticismo judaico. Após o Ari, o Zohar foi interpretado em termos luriânicos e, posteriormente, os cabalistas esotéricos expandiram a teoria mística dentro do sistema luriânico. Os movimentos hassídicos e mitnágdicos posteriores divergiram sobre as implicações da Cabala Luriânica e seu papel social no misticismo popular. A tradição mística sabática também derivaria sua fonte do messianismo luriânico, mas tinha uma compreensão diferente da interdependência cabalística do misticismo com a observância judaica halakha.

A NATUREZA DO PENSAMENTO LURIÂNICO

A característica do sistema teórico e meditativo de Luria é sua reformulação da hierarquia estática anterior de desdobramento dos níveis Divinos, em um drama espiritual cósmico dinâmico de exílio e redenção. Através disso, essencialmente, tornaram-se duas versões históricas da tradição teórico-teosófica na Cabala:

  1. A Cabala Medieval e o Zohar como foi inicialmente entendido (às vezes chamado de Cabala “clássica/zoharica”), que recebeu sua sistematização por Moshe Cordovero imediatamente antes de Luria no período da Modernidade
  1. A Cabala Luriânica, a base do misticismo judaico moderno, embora Luria e os cabalistas subsequentes vejam o lurianismo como nada mais do que uma explicação do verdadeiro significado do Zohar.

A Cabala Primitiva

As doutrinas místicas da Cabala apareceram em círculos esotéricos no século 12 no sul da França (Provence-Languedoc), espalhando-se para o norte da Espanha do século 13 (Catalunha e outras regiões). O desenvolvimento místico culminou com a disseminação do Zohar a partir de 1305, o principal texto da Cabala. A Cabala Medieval incorporou motivos descritos como “Neoplatônico” (reinos linearmente descendentes entre o Infinito e o finito), “Gnóstico” (no sentido de vários poderes se manifestando da Divindade singular, em vez de deuses plurais) e “Místico” (em contraste com racional, como as primeiras doutrinas de reencarnação do judaísmo). Comentários subsequentes sobre o Zohar tentaram fornecer uma estrutura conceitual na qual suas imagens altamente simbólicas, ideias vagamente associadas e ensinamentos aparentemente contraditórios pudessem ser unificados, compreendidos e organizados sistematicamente. Meir ben Ezekiel ibn Gabbai (nascido em 1480) foi um precursor disso, mas as obras enciclopédicas de Moisés Cordovero (1522-1570) sistematizaram de maneira influente o esquema da Cabala Medieval, embora não explicassem algumas crenças clássicas importantes, como a reencarnação. O esquema Medieval-Cordoveriano descreve em detalhes um processo linear e hierárquico onde a Criação finita evolui (“Hishtalshelut“) sequencialmente do Ser Infinito de Deus. As sefirot (atributos Divinos) na Cabala, agem como forças discretas e autônomas no desdobramento funcional de cada nível da Criação, do potencial ao atual. O bem-estar do Reino Divino Superior, onde as Sephirot se manifestam supremamente, está mutuamente ligado ao bem-estar do Reino Humano Inferior. Os atos do Homem, no final da cadeia, afetam a harmonia entre as Sephirot nos mundos espirituais superiores. Mitzvot (observâncias judaicas) e atos virtuosos trazem unidade Acima, permitindo a unidade entre Deus e a Shekhinah (Presença Divina) Abaixo, abrindo o Fluxo da vitalidade Divina em toda a Criação. O pecado e os atos egoístas introduzem ruptura e separação em toda a Criação. O mal, causado por ações humanas, é um transbordamento mal direcionado Abaixo de Gevurah (Gravidade/Severidade) não controlada no Alto.

A Comunidade Moderna de Safed

O renascimento da Cabala no século XVI na comunidade galileana de Safed, que incluía Joseph Karo, Moshe Alshich, Cordovero, Luria e outros, foi moldado por sua perspectiva espiritual e histórica particular. Após a expulsão da Espanha em 1492, eles sentiram uma urgência e responsabilidade pessoal em nome do povo judeu para apressar a redenção messiânica. Isso envolvia uma ênfase em parentesco próximo e práticas ascéticas, e o desenvolvimento de rituais com um foco messiânico-comunal. Os novos desenvolvimentos de Cordovero e Luria na sistematização da Cabala anterior buscavam a disseminação mística além dos círculos acadêmicos próximos aos quais a Cabala anteriormente estava restrita. Eles sustentavam que a ampla publicação desses ensinamentos e práticas meditativas baseadas neles aceleraria a redenção para todo o povo judeu.

A CABALA LURIÂNICA

Onde o objetivo messiânico permaneceu apenas periférico no esquema linear de Cordovero, o esquema teórico mais abrangente e as práticas meditativas de Luria explicaram o messianismo como sua dinâmica central, incorporando toda a diversidade de conceitos cabalísticos anteriores como resultados de seus processos. Luria conceitua os Mundos Espirituais através de sua dimensão interna de exílio e redenção divina. O mito luriânico trouxe à tona noções cabalísticas mais profundas: teodicéia (origem primordial do mal) e exílio da Shekhinah (Presença Divina), redenção escatológica, o papel cósmico de cada indivíduo e os assuntos históricos de Israel, simbolismo da sexualidade no mundo celestial Manifestações divinas e a dinâmica inconsciente na alma. Luria deu articulações teosóficas esotéricas às questões mais fundamentais e teologicamente ousadas da existência.

Pontos de Vistas Cabalísticos

Os cabalistas religiosos vêem a abrangência mais profunda da teoria luriânica devido à sua descrição e exploração de aspectos da Divindade, enraizados no Ein Sof, que transcendem o misticismo revelado e racionalmente apreendido descrito por Cordovero. O sistema da Cabala Medieval é incorporado como parte de sua dinâmica mais ampla. Onde Cordovero descreveu as Sefirot (atributos divinos) e os Quatro Reinos espirituais, precedidos por Adam Kadmon, desdobrando-se sequencialmente a partir do Ein Sof, Luria sondou a origem supra-racional desses Cinco Mundos dentro do Infinito. Isso revelou novas doutrinas do Tzimtzum Primordial (contração) e do Shevira (quebra) e reconfiguração das Sephirot. Na Cabala, o que precedeu mais profundamente nas origens, também se reflete nas dimensões internas da Criação subsequente, de modo que Luria foi capaz de explicar o messianismo, os aspectos divinos e a reencarnação, crenças cabalísticas que permaneceram dessistemas de antemão.

As tentativas de sistematização cabalística de Cordovero e Medieval, influenciadas pela filosofia judaica medieval, abordam a teoria cabalística através do paradigma racionalmente concebido de “Hishtalshelut” (“Evolução” sequencial de níveis espirituais entre o Infinito e o Finito – os vasos/molduras externas de cada mundo espiritual ). Luria sistematiza a Cabala como um processo dinâmico de “Hitlabshut” (“Revestimento” de almas superiores dentro de vasos inferiores – as dimensões interiores/alma de cada mundo espiritual). Isso vê dimensões internas dentro de qualquer nível da Criação, cuja origem transcende o nível em que estão revestidas. O paradigma espiritual da Criação é transformado em um processo dinâmico de interação na Divindade. As manifestações divinas envolvem-se umas nas outras e estão sujeitas ao exílio e à redenção:

“O conceito de hitlabshut (“vestimenta”) implica uma mudança radical de foco ao considerar a natureza da Criação. De acordo com essa perspectiva, a principal dinâmica da Criação não é evolutiva, mas interacional. Os estratos superiores da realidade estão constantemente se revestindo dentro dos estratos inferiores, como a alma dentro de um corpo, infundindo assim cada elemento da Criação com uma força interna que transcende sua própria posição dentro da hierarquia universal. Hitlabshut é muito mais uma dinâmica “biológica”, responsável pela força vital que reside na Criação; hishtalshelut, por outro lado, é “físico”, preocupado com a energia condensada da “matéria” (vasos espirituais) em vez da força vital da alma.”

Devido a este paradigma mais profundo e interno, as novas doutrinas introduzidas por Luria explicam os ensinamentos e passagens cabalísticas do Zohar que permaneceram superficialmente compreendidos e descritos externamente antes. Conceitos aparentemente não relacionados tornam-se unificados como parte de um quadro abrangente e mais profundo. Os sistematizadores cabalísticos antes de Luria, culminando com Cordovero, foram influenciados pelo Guia filosófico de Maimônides, em sua busca para decifrar o Zohar intelectualmente e unificar a sabedoria esotérica com a filosofia judaica. Na Cabala isso incorpora o nível mental Neshamá (Compreensão) da alma. Os ensinamentos de Luria desafiam a alma a ir além das limitações mentais. Embora apresentada em termos intelectuais, continua sendo uma doutrina revelada e supra-racional, dando uma sensação de estar além do alcance intelectual. Isso corresponde ao nível da alma de Haya (insight de Sabedoria), descrito como apreensão de “tocar/não tocar”.

Pontos de Vista Acadêmicos

No estudo acadêmico da Cabala, Gershom Scholem viu o lurianismo como uma resposta historicamente localizada ao trauma do exílio espanhol, uma mitificação plenamente expressa do judaísmo e um misticismo messiânico paradoxalmente paradoxal, pois o misticismo fenomenologicamente geralmente envolve a retirada da comunidade. Na academia mais recente, Moshe Idel desafiou a influência histórica de Scholem no lurianismo, vendo-o como um desenvolvimento em evolução dentro dos fatores inerentes ao misticismo judaico por si só. Em sua monografia Physician of the Soul, Healer of the Cosmos: Isaac Luria and His Kabbalistic Fellowship (O Médico da Alma, o Curador do Cosmos: Isaac Luria e Sua Irmandade Cabalística), Stanford University Press, 2003, Lawrence Fine explora o mundo de Isaac Luria do ponto de vista da experiência vivida por Luria e seus discípulos.

OS PRINCIPAIS CONCEITOS DA CABALA LURIÂNICA:

O Tzimtzum Primordial – A Contração da Divindade:

Isaac Luria propôs a doutrina do Tzimtzum, (significando alternativamente: “Contração/Ocultação/Condensação/Concentração”), a Auto-Retirada primordial da Divindade para “dar espaço” para a Criação subsequente.

A Cabala anterior ensinou que antes da criação dos reinos espirituais ou físicos, a simplicidade divina de Ein Sof (“Sem Fim”) preenchia toda a realidade. Em uma forma mística de auto-revelação Divina, a Ohr Ein Sof (“Luz do Ein Sof/Luz Infinita”) brilhou dentro do Ein Sof, antes de qualquer criação. Na Unidade absoluta do Ein Sof, “nenhuma coisa” (nenhuma limitação/fim) poderia existir, pois tudo seria anulado. Sobre o Ein Sof, nada pode ser postulado, pois transcende toda apreensão/definição. A Cabala Medieval sustentava que no início da Criação, do Ein Sof emergiram da ocultação os 10 atributos Divinos Sephirot para emanar a existência. A vitalidade brilhou primeiro para Adam Kadmon (“Homem Primordial”), o reino da Vontade Divina), nomeado metaforicamente em relação ao Homem que está enraizado no plano Divino inicial. De Adam Kadmon emergiram sequencialmente os Quatro Reinos Espirituais descendentes: Atziluth (“Emanação” – o nível da Sabedoria Divina), Beriah (“Criação” – Intelecto Divino), Yetzirah (“Formação” – Emoções Divinas), Assiah (“Ação” – Realização Divina). Na Cabala Medieval, o problema da criação finita emergindo do Infinito foi parcialmente resolvido por inumeráveis ​​e sucessivas ocultações/contrações/encobrimentos de tzimtzumim da abundância Divina através dos Mundos, reduzindo-a sucessivamente a intensidades apropriadas. Em cada estágio, o fluxo absorvido criava reinos, transmitindo resíduos para níveis mais baixos.

Para Luria, essa cadeia causal não resolveu a dificuldade, pois a qualidade infinita da Ohr Ein Sof, mesmo sujeita a inúmeros véus/contrações, ainda impediria a existência independente. Ele avançou um salto Tzimtzum primordial inicial e radical antes da Criação, a auto-retirada da Divindade. No centro do Ein Sof, a retirada formou um metafórico (não espacial) Khalal/Makom Ponui (“Vácuo/Espaço Vazio”) no qual a Criação ocorreria. O vácuo não estava totalmente vazio, pois restava uma leve Reshima (“Impressão”) da Realidade anterior, semelhante à água que se agarra a um recipiente vazio.

No vácuo então brilhou uma nova luz, o Kav (“Raio/Linha”), uma “fina” extensão diminuída da Luz Infinita original, que se tornou a fonte de toda a Criação subsequente. Embora ainda infinita, essa nova vitalidade era radicalmente diferente da Luz Infinita original, pois agora estava potencialmente adaptada à perspectiva limitada da Criação. Assim como a perfeição de Ein Sof abarcava tanto a infinitude quanto a finitude, a Luz Infinita possuía qualidades finitas ocultas e latentes. O Tzimtum permitiu que qualidades infinitas se retirassem para o Ein Sof, e qualidades potencialmente finitas emergissem. À medida que o Kav brilhava no centro do vácuo, englobava dez Iggulim “concêntricos” (o esquema conceitual dos “Círculos”), formando as Sephirot, permitindo que a Luz aparecesse em sua diversidade.

Shevira – A Quebra dos Vasos das Sephirot:

A primeira configuração divina dentro do vácuo compreende Adam Kadmon, o primeiro reino espiritual primitivo descrito na Cabala anterior. É a manifestação da vontade divina específica para a criação subsequente, dentro da estrutura relativa da criação. Seu nome antropomórfico indica metaforicamente o paradoxo da criação (Adam – homem) e manifestação (Kadmon – divindade primordial). O homem é concebido como a futura encarnação na criação subsequente, ainda não surgida, das manifestações divinas. O Kav forma as Sephirot, ainda apenas latentes, de Adam Kadmon em dois estágios: primeiro como Iggulim (Círculos), depois englobado como Yosher (Reto), os dois esquemas de arranjo das Sephirot. Na explicação sistemática de Luria dos termos encontrados na Cabala clássica:

  • Iggulim é o Sephirot agindo como dez princípios “concêntricos” independentes;
  • Yosher é um Partzuf (configuração) no qual as Sephirot agem em harmonia umas com as outras no esquema de três colunas.

“Reto” é assim chamado por meio de uma analogia com a alma e o corpo do homem. No homem, os dez poderes sefiróticos da alma atuam em harmonia, refletidos nos diferentes membros do corpo, cada um com uma função particular. Luria explicou que é a configuração Yosher das Sephirot que é referido por Gênesis 1:27, “Deus criou o homem à Sua própria imagem, à imagem de Deus Ele o criou, macho e fêmea Ele os criou”. No entanto, em Adam Kadmon, ambas as configurações das Sephirot permanecem apenas em potencial. Adam Kadmon é pura luz divina, sem vasos, limitado por sua futura vontade potencial de criar vasos e pelo efeito limitador da Reshima.

Da configuração figurativa não corpórea de Adam Kadmon emanam cinco luzes: metaforicamente dos “olhos”, “ouvidos”, “nariz”, “boca” e “testa”. Estes interagem uns com os outros para criar três estágios do mundo espiritual particular após Adam Kadmon: Akudim (“Ligado” – caos estável), Nekudim (“Pontos” – caos instável) e Berudim (“Conectado” – início da retificação). Cada reino é um estágio sequencial no primeiro surgimento dos vasos sefiróticos, antes do mundo de Atziluth (Emanação), o primeiro dos quatro mundos espirituais abrangentes da criação descritos na Cabala anterior. À medida que as Sephirot emergiam dentro dos vasos, elas atuavam como dez forças Iggulim independentes, sem inter-relação. Chesed (Bondade) se opôs a Gevurah (Severidade), e assim com as emoções subsequentes. Este estado, o mundo de Tohu (Caos) precipitou uma catástrofe cósmica no reino Divino. Tohu é caracterizado pela grande divina Ohr (Luz) em vasos fracos, imaturos e não harmonizados. À medida que a luz divina se derramava nas primeiras sefirot intelectuais, seus vasos estavam próximos o suficiente de sua fonte para conter a abundância de vitalidade. No entanto, à medida que o transbordamento continuou, as sefirot emocionais subsequentes se despedaçaram (Shevirat HaKeilim – “A Quebra dos Vasos”) de Binah (Compreensão) até Yesod (a Fundação) sob a intensidade da luz. A sephirah final Malkhut (Reinado) permanece parcialmente intacta como a Shekhina exilada (imanência divina feminina) na criação. Este é o relato esotérico em Gênesis e Crônicas dos oito reis de Edom que reinaram antes de qualquer rei reinar em Israel. Os fragmentos dos vasos quebrados caíram do reino de Tohu na ordem criada subsequente de Tikun (Retificação), estilhaçando-se em inúmeros fragmentos, cada um animado pelas Nitzutzot (Faíscas) exiladas de sua luz original. As centelhas divinas mais sutis foram assimiladas nos reinos espirituais mais elevados como sua força vital criativa. Os fragmentos animados mais grosseiros caíram em nosso reino material, com fragmentos inferiores nutrindo os Kelipot (Conchas) em seus reinos de impureza.

Tikun – Retificação:

Partzufim – As Personas Divinas:

Os subsequentes quatro mundos espirituais da Criação abrangentes, descritos na Cabala anterior, incorporam o reino luriânico de Tikun (“Retificação”). Tikun é caracterizado por luzes mais baixas e menos sublimes que Tohu, mas em vasos fortes, maduros e harmonizados. A retificação é iniciada em Berudim, onde as Sephirot harmonizam suas 10 forças, cada uma incluindo as outras como princípios latentes. No entanto, a retificação celestial é completada em Atziluth (Mundo da “Emanação”) após a Shevira, através das Sephirot transformando-se em Partzufim ( “Faces/Configurações”) Divinas. Na Cabala Zoharica, os partzufim aparecem como aspectos divinos supernais particulares, expostos no Idrot esotérico, mas tornam-se sistematizados apenas no Lurianismo. Os 6 partzufim primários, que se dividem em 12 formas secundárias:

  • Atik Yomin (“Ancião dos Dias”) parte interna de Keter, a Deleite.
  • Arikh Anpin (“O Semblante Maior”) partzuf exterior de Keter, a Vontade.
  • Abba (“Pai”) partzuf de Chokhma, a Sabedoria.
  • Imma (“Mãe”) partzuf de Binah, a Compreensão.
  • Zeir Anpin (“O Semblante Menor” – Filho) partzuf das Sephirot emocionais.
  • Nukva (“Feminino” – Filha) partzuf de Malkhut, a Realeza.

Os Parzufim são as Sephirot agindo no esquema de Yosher, como no homem. Em vez de incluir latentemente outros princípios independentemente, os partzufim transformam cada sephirah em configurações antropomórficas completas de três colunas de 10 Sephirot, cada uma das quais interage e envolve as outras. Através do parzufim, a fraqueza e a falta de harmonia que instigou a shevirah é curada. Atziluth, o reino supremo da manifestação Divina e consciência exclusiva da Unidade Divina, é eternamente retificado pelos partzufim; suas centelhas de raiz de Tohu são totalmente redimidas. No entanto, os três mundos inferiores de Beri’ah (“O Mundo da Criação”), Yetzirah (“O Mundo da Formação”) e Assiah (“O Mundo da Ação”) incorporam níveis sucessivos de autoconsciência independente da Divindade. A retificação ativa de Tikun da Criação inferior só pode ser alcançada de baixo, de dentro de suas limitações e perspectivas, em vez de imposta de cima. A redenção messiânica e a transformação da Criação são realizadas pelo Homem no reino mais baixo, onde predomina a impureza.

Este procedimento era absolutamente necessário. Se Deus no princípio tivesse criado os partzufim em vez das Sefirot, não haveria mal no mundo e, consequentemente, nenhuma recompensa e punição; pois a fonte do mal está nas Sefirot ou vasos quebrados (Shvirat Keilim), enquanto a luz do Ein Sof produz apenas o que é bom. Essas cinco figuras são encontradas em cada um dos Quatro Mundos; ou seja, no mundo da Emanação (Atzilut), Criação (Beri’ah), Formação (Yetzirah) e no mundo da Ação (Asiyah), que representa o mundo material.

Birur – O Esclarecimento pelo Homem:

A tarefa de retificar as centelhas de santidade que foram exiladas nos mundos espirituais inferiores autoconscientes foi dada ao Adão bíblico no Jardim do Éden. No relato luriânico, Adão e Hava (Eva) antes do pecado da Árvore do Conhecimento não residiam no mundo físico Assiah (“Ação”), no nível atual de Malkhut (sephirah mais baixa “Reina”). Em vez disso, o Jardim era o reino não-físico de Yetzirah (“Formação”), e na sephirah superior de Tiferet (“Beleza”).

Gilgul – A Reencarnação e a Alma:

O sistema psicológico de Luria, no qual se baseia sua Cabala devocional e meditativa, está intimamente ligado às suas doutrinas metafísicas. Dos cinco partzufim, diz ele, emanaram cinco almas, Nefesh (“Espírito”), Ru’ach (“Vento/Fôlego”), Neshamah (“Alma“), Chayah (“Vida”) e Yechidah (“Singularidade“); sendo o primeiro deles o mais baixo, e o último o mais alto. (Fonte: Etz Chayim). A alma do homem é o elo de ligação entre o infinito e o finito e, como tal, tem um caráter múltiplo. Todas as almas destinadas à raça humana foram criadas juntamente com os diversos órgãos de Adão. Assim como existem órgãos superiores e inferiores, há almas superiores e inferiores, segundo os órgãos com os quais estão acoplados, respectivamente. Assim, há almas do cérebro, almas do olho, almas da mão, etc. Cada alma humana é uma centelha (nitzotz) de Adão. O primeiro pecado do primeiro homem causou confusão entre as várias classes de almas: a superior misturou-se com a inferior; bem com mal; de modo que mesmo a alma mais pura recebeu uma mistura do mal, ou, como Luria chama, do elemento das “conchas/cascas” (Kelipoth). Em consequência da confusão, os primeiros não são totalmente privados do bem original, e os segundos não estão totalmente livres do pecado. Este estado de confusão, que dá um impulso contínuo para o mal, cessará com a chegada do Messias, que estabelecerá o sistema moral do mundo sobre uma nova base.

Até a chegada do Messias, a alma do homem, por suas deficiências, não pode retornar à sua fonte, e tem que vagar não apenas pelos corpos dos homens e dos animais, mas às vezes até por coisas inanimadas como madeiras, rios e pedras. A esta doutrina do gilgulim (reencarnação das almas) Luria acrescentou a teoria da impregnação (ibbur) das almas; isto é, se uma alma purificada negligenciou alguns deveres religiosos na terra, ela deve retornar à vida terrena e, unindo-se à alma de um homem vivo, e unir-se a ela para compensar tal negligência.

Além disso, a alma morta de um homem liberto do pecado aparece novamente na terra para apoiar uma alma fraca que se sente desigual para sua tarefa. No entanto, essa união, que pode se estender a duas almas ao mesmo tempo, só pode ocorrer entre almas de caráter homogêneo; isto é, entre aqueles que são centelhas do mesmo órgão adamita. A dispersão de Israel tem como propósito a salvação das almas dos homens; como as almas purificadas dos israelitas cumprirão a profecia de se tornarem “Lâmpada para as nações”, influenciando as almas dos homens de outras raças a fazer o bem. Segundo Luria, existem sinais pelos quais se pode conhecer a natureza da alma de um homem: a que grau e classe ela pertence; a relação existente entre ela e o mundo superior; as andanças que já realizou; os meios pelos quais pode contribuir para o estabelecimento do novo sistema moral do mundo; e a qual alma deve se unir para se purificar.

INFLUÊNCIA DA CABALA LURIANICA

 As Heresias Místicas Sabateanas:

A Cabala Luriânica foi acusada por alguns de ser a causa da disseminação dos Messias Sabbateanos Shabbetai Tzvi (1626–1676) e Jacob Frank (1726–1791), e suas heresias baseadas na Cabala. O renascimento místico do século XVI em Safed, liderado por Moshe Cordovero, Joseph Karo e Isaac Luria, fez do estudo cabalístico um objetivo popular dos estudantes judeus, até certo ponto competindo pela atenção com o estudo talmúdico, ao mesmo tempo em que capturava a imaginação do público. O shabbetianismo surgiu nessa atmosfera, juntamente com as opressões do exílio, ao lado dos genuínos círculos místicos tradicionais.

Onde o esquema de Isaac Luria enfatizou o papel democrático de cada pessoa em redimir as faíscas caídas de santidade, alocando o Messias apenas uma chegada conclusiva no processo, o profeta de Shabbetai, Nathan de Gaza, interpretou seu papel messiânico como fundamental para recuperar essas faíscas perdidas na impureza. Agora, a fé em seu papel messiânico, depois que ele se converteu ao islamismo, tornou-se necessária, assim como a fé em suas ações antinomianas. Jacob Frank alegou ser uma reencarnação de Shabbetai Tzvi, enviado para recuperar faíscas através das ações mais anarquistas de seus seguidores, alegando que a quebra da Torá em sua era messiânica emergente era agora seu cumprimento, o oposto da necessidade messiânica da devoção haláchica por Luria e os cabalistas. Em vez disso, para os cabalistas de elite do século XVI de Safed após a expulsão da Espanha, eles sentiram uma responsabilidade nacional pessoal, expressa através de seu renascimento místico, restrições ascéticas, fraternidade devotada e estreita adesão à prática judaica normativa.

Influência na Prática Ritual e na Meditação da Oração:

A Cabala Luriânica permaneceu a principal escola de misticismo no judaísmo e é uma influência importante no hassidismo e nos cabalistas sefarditas. De fato, apenas uma minoria dos místicos judeus de hoje pertence a outros ramos do pensamento no misticismo zoharico. Alguns cabalistas judeus disseram que os seguidores de Shabbetai Tzvi evitavam fortemente os ensinamentos da Cabala Luriânica porque seu sistema refutava suas noções. Por outro lado, os Shabbetians usaram os conceitos luriânicos de faíscas presas na impureza e almas puras sendo misturadas com as impuras para justificar algumas de suas ações antinomianas.

Luria introduziu seu sistema místico na observância religiosa. Cada mandamento tinha um significado místico particular. O Shabat com todas as suas cerimônias era visto como a encarnação da Divindade na vida temporal, e cada cerimônia realizada naquele dia era considerada uma influência sobre o mundo superior. Cada palavra e sílaba das orações prescritas contêm nomes ocultos de Deus sobre os quais se deve meditar devotamente enquanto recita. Novas cerimônias místicas foram ordenadas e codificadas sob o nome de Shulkhan Arukh HaARI (O “Código de Lei do Ari”). Além disso, um dos poucos escritos do próprio Luria compreende três hinos à mesa do sábado com alusões místicas. Do hino da terceira refeição:

Vocês, príncipes do palácio, que anseiam por contemplar o esplendor de Zeir Anpin

Esteja presente nesta refeição em que o Rei deixa Sua marca

Exulte, regozije-se nesta reunião com os anjos e todos os seres celestiais

Alegrai-vos agora, neste momento tão propício, quando não há tristeza…

Convido o Ancião dos Dias neste momento auspicioso, e a impureza será totalmente removida…

De acordo com o costume de se dedicar ao estudo de Torá durante toda a noite no festival de Shavuot, Isaac Luria organizou um serviço especial para a vigília noturna de Shavuot, o Tikkun Leil Shavuot (“Retificação para a Noite de Shavuot”). É comumente recitado na sinagoga, com o Kadish se o Tikkun for estudado em um grupo de dez. Depois, os hassidim mergulham em um mikveh antes do amanhecer.

Espiritualidade Judaica Moderna e Opiniões Divergentes:

As idéias do rabino Luria gozam de amplo reconhecimento entre os judeus hoje. Ortodoxos, bem como reformistas, reconstrucionistas e membros de outros grupos judaicos frequentemente reconhecem a obrigação moral de “reparar o mundo” (tikkun olam). Essa ideia se baseia no ensinamento de Luria de que fragmentos de divindade permanecem contidos na criação material defeituosa e que os atos rituais e éticos dos justos ajudam a liberar essa energia. A teologia mística do Ari não exerce o mesmo nível de influência em todos os lugares, no entanto. As comunidades onde o pensamento de Luria tem menos influência incluem muitas comunidades alemãs e ortodoxas modernas, grupos que levam adiante as tradições espanholas e portuguesas, um segmento considerável de judeus iemenitas Baladi (ver Dor Daim) e outros grupos que seguem uma forma de judaísmo da Torá baseada mais no clássico autoridades como Maimônides e os Geonim.

Com seu projeto racionalista, o movimento Haskalah do século 19 e o estudo crítico do judaísmo descartaram a Cabala. No século 20, Gershom Scholem iniciou o estudo acadêmico do misticismo judaico, utilizando metodologia histórica, mas reagindo contra o que ele via como seu dogma exclusivamente racionalista. Em vez disso, ele identificou o misticismo judaico como a corrente vital do pensamento judaico, renovando periodicamente o judaísmo com um novo ímpeto místico ou messiânico. O respeito acadêmico da Cabala no século XX, bem como o interesse mais amplo pela espiritualidade, reforçam um interesse cabalístico renovado de denominações judaicas não-ortodoxas no século XX. Isso é frequentemente expresso através da forma de incorporação hassídica da Cabala, incorporada no neo-hassidismo e na renovação judaica.

Lurianismo Tradicional Contemporâneo:

O estudo do Kitvei Ha’Ari (escritos dos discípulos de Isaac Luria) continua principalmente hoje entre os círculos cabalísticos de forma tradicional e em seções do movimento hassídico. Mekubalim mizra’chim (orientais sefarditas cabalistas), seguindo a tradição de Haim Vital e o legado místico do Rashash (1720-1777, considerado pelos cabalistas como a reencarnação do Ari), vêem-se como herdeiros diretos e em continuidade com Os ensinamentos e esquema meditativo de Luria.

Ambos os lados do cisma hassídico-mitnagdico do século 18, defenderam a visão teológica do mundo da Cabala Luriânica. É um equívoco ver a oposição rabínica ao judaísmo hassídico, pelo menos em sua origem formativa, como derivada da adesão ao método filosófico judaico medieval racionalista. O líder da oposição rabínica Mitnagdic ao renascimento místico hassídico, o Vilna Gaon (1720-1797), estava intimamente envolvido na Cabala, seguindo a teoria luriânica, e produziu ele mesmo uma escrita cabalisticamente focada, enquanto criticava o Racionalismo Judaico Medieval. Seu discípulo, Chaim Volozhin, o principal teórico do judaísmo mitnagdico, diferia do hassidismo sobre a interpretação prática do tzimtzum luriânico. Para todos os efeitos, o judaísmo mitnagdico seguiu uma ênfase transcendente no tzimtzum, enquanto o hassidismo enfatizava a imanência de Deus. Essa diferença teórica levou o hassidismo a um foco místico popular além das restrições elitistas, enquanto sustentava o foco mitnagdico no judaísmo talmúdico e não místico para todos, exceto a elite, com uma nova ênfase teórica no estudo talmúdico da Torá no movimento lituano da Yeshiva.

O desenvolvimento judaico de maior escala baseado no ensino luriânico foi o hassidismo, embora tenha adaptado a Cabala ao seu próprio pensamento. Joseph Dan descreve o cisma hassídico-mitnágdico como uma batalha entre duas concepções da Cabala Luriânica. A Cabala de elite mitnagdica era essencialmente leal ao ensino e à prática luriânica, enquanto o hassidismo introduziu novas ideias popularizadas, como a centralidade da imanência divina e Deveikut para toda atividade judaica, e o papel místico social da liderança hassídica tzadik.

Interpretações Literais e Não Literais do Tzimtzum:

Nas décadas após Luria e no início do século 18, diferentes opiniões se formaram entre os cabalistas sobre o significado de tzimtzum, a auto-retirada Divina: deve ser tomada literal ou simbolicamente? Immanuel Hai Ricci (Yosher Levav, 1736-7) tomou tzimtzum literalmente, enquanto Joseph Ergas (Shomer Emunim, 1736) e Abraham Herrera sustentaram que tzimtzum deveria ser entendido metaforicamente.

Os Pontos de Vista Hassídicos e Mitnágdicos do Tzimtzum:

A questão do tzimtzum sustentou a nova popularização pública do misticismo incorporado no hassidismo do século XVIII. Sua doutrina central da imanência divina quase panenteísta, moldando o fervor diário, enfatizava a ênfase mais não literal do tzimtzum. A articulação sistemática desta abordagem hassídica por Shneur Zalman de Liadi na segunda seção do Tanya, esboça um Ilusionismo Monístico da Criação a partir da perspectiva da Unidade Divina Superior. Para Schneur Zalman, o tzimtzum apenas afetava a ocultação aparente da Ohr Ein Sof. O Ein Sof, e o Ohr Ein Sof, na verdade permanecem onipresentes, este mundo anulado em sua fonte. Somente, da perspectiva da Unidade Divina Inferior, Mundana, o tzimtzum dá a ilusão de aparente retirada. Na verdade, “Eu, o Eterno, não mudei” (Malaquias 3:6), pois interpretar o tzimtzum com qualquer tendência literal seria atribuir falsa corporeidade a Deus.

Norman Lamm descreve as interpretações hassídicas-mitnagdicas alternativas disso. Para Chaim Volozhin, o principal teórico da oposição rabínica do Mitnagdim ao hassidismo, o ilusionismo da Criação, decorrente de um tzimtzum metafórico é verdadeiro, mas não leva ao panenteísmo, pois a teologia mitnagdica enfatizava a transcendência divina, enquanto o hassidismo enfatizava a imanência. Como é, a impressão geral inicial da Cabala Luriânica é de transcendência, implícita na noção de tzimtzum. Em vez disso, para o pensamento hassídico, especialmente em sua sistematização Chabad, a essência divina última de Atzmus é expressa apenas na finitude, enfatizando a imanência hassídica. Norman Lamm vê ambos os pensadores como sutis e sofisticados. O Mitnagdim discordou do Panenteísmo, na oposição inicial do líder Mitnagdic, o Vilna Gaon vendo-o como herético. Chaim Volzhin, o principal aluno do Vilna Gaon, era ao mesmo tempo mais moderado, buscando acabar com o conflito, e mais teologicamente principiológico em sua oposição à interpretação hassídica. Ele se opôs ao panenteísmo tanto como teologia quanto como prática, pois sua espiritualização mística do judaísmo substituiu o aprendizado talmúdico tradicional, pois era capaz de inspirar a confusão antinomiana das restrições de observância judaica da Halachá, em busca de um misticismo para o povo comum.

Como resume Norman Lamm, ao Schneur Zalman e ao hassidismo, Deus se relaciona com o mundo como uma realidade, por meio de sua imanência. A imanência divina – a perspectiva Humana, é pluralista, permitindo a popularização mística no mundo material, ao mesmo tempo em que resguarda a Halachá. A Transcendência Divina – a perspectiva Divina, é Monista, anulando a Criação em ilusão. Para Chaim Volozhin e Mitnagdism, Deus se relaciona com o mundo como ele é através de Sua transcendência. A imanência divina – a forma como Deus olha para a Criação física, é monista, anulando-a na ilusão. Transcendência Divina – a forma como o Homem percebe e se relaciona com a Divindade é pluralista, permitindo que a Criação exista em seus próprios termos. Dessa forma, tanto os pensadores quanto os caminhos espirituais afirmam uma interpretação não literal do tzimtzum, mas a espiritualidade hassídica se concentra na proximidade de Deus, enquanto a espiritualidade mitnagdica se concentra no afastamento de Deus. Eles então configuram sua prática religiosa em torno dessa diferença teológica, o hassidismo colocando o fervor do Deveikut como sua prática central, o mitnagdismo enfatizando ainda mais o estudo intelectual talmúdico da Torá como sua atividade religiosa suprema.

Texto Original.  Texto adaptado, revisado e enviado por Ícaro Aron Soares.

Postagem original feita no https://mortesubita.net/cabala/a-cabala-lurianica/

Moisés

O nome de Moisés evoca imediatamente a idéia do povo judeu, que ele encarna e ao mesmo tempo gera. Efetivamente, tendo nascido no Egito, é considerado como da família do Faraó, pois aparece como filho da irmã deste e, como tal se diz, é iniciado pelos sumos sacerdotes nos mistérios mais profundos de Isis e Osíris, onde se sobressai por seus conhecimentos. Desde jovem, sente um chamado cada vez mais claro para algo que ainda não se define, mas que não está relacionado nem com Egito, nem com a posição invejável que ostenta, que, por outra parte, cada vez se lhe faz mais difícil, pelos ciúmes, inveja e desconfiança de seu tio Ramsés II, e de seu primo, que lhe sucederá no trono. A “casualidade” faz com que Moisés, ao defender um escravo judeu injustamente tratado, mate o agressor e tenha que fugir pois, para casos como o seu (Moisés era ministro do culto de Osíris), a justiça do Faraó aplica as penas máximas. Refugia-se onde encontra outro personagem chave: Jetro, rei de Salém, grande sacerdote e iniciado e pai espiritual de numerosos povos nômades que povoavam os desertos e terras entre as civilizações do Egito, Caldéia, Babilônia, etc., compostos por semitas, árabes, etíopes, etc.

Estes foram os judeus, aqueles que saindo de seu cativeiro em terras estrangeiras do Egito, levantam-se um dia e empreendem uma gigantesca emigração pelo deserto, sob a orientação de um chefe que os sintetiza e encarna, e sob cuja condução, como intérprete direto de seu deus Jahvé, têm de se constituir definitivamente como povo eleito, e chegar a um destino que se dá no próprio Moisés, nome cuja tradução é “O Salvo”, e que ele imprime em seu meio, no povo ao que se lhe deu a missão de constituir e dirigir. Moisés é, pois, conjuntamente, um personagem histórico e um símbolo, como todos os protagonistas da História Sagrada. É também um ser humano, e ao mesmo tempo o receptor das energias e das mensagens de uma entidade sobre-humana, Jahvé, ao qual adora e faz adorar, quando não é o próprio deus o que atua diretamente. Como ser humano, padece por quarenta anos toda sorte de infortúnios e necessidades, a maior parte delas provocadas pela ignorância e a bestialidade dos seus. Como agente divino, aviva e fixa o monoteísmo e implanta a fogo sua lei, que sela com mandamentos. Termina sua peregrinação, e em vista da terra prometida deixa como herança A Bíblia, da qual escreve os cinco primeiros livros, síntese magistral que fundamenta a vida de um povo e de uma religião, o que posteriormente engendrará o cristianismo e o islamismo. A energia assombrosa de Moisés, seu diálogo constante com a deidade, a força de seus poderes, transferidos e compartilhados com setenta discípulos que conformam o núcleo interno de sacerdotes e sábios, iniciados e iniciadores, aos que entrega a Cabala, fazem possível sua sucessão até o final deste ciclo. Cumpre-se, pois, o Destino que Moisés inicia e que terminará com a gloriosa vinda do Messias, esperada também pelos cristãos e islâmicos, e anunciada em todos os textos e tradições orais das culturas unânimes

#hermetismo

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/mois%C3%A9s

Brahma, Vishnu, Shiva, os Muçulmanos e o Zero

Retornando aos nossos posts históricos, estamos chegando às vésperas da Primeira Cruzada e das origens secretas dos Templários, Hospitalários e Teutônicos (e também das histórias do Rei Arthur, com suas dezenas de versões e adaptações, e a chegada do Tarot na Europa… sim, todos estes assuntos estão interligados e veremos isso em breve).
Hoje falaremos dos hindus, muçulmanos e da origem espiritual do número Zero.

Seja no oriente ou no ocidente, a imagem circular de uma mandala (ou diagrama sagrado) é uma das mais intensas e utilizadas formas presente na história da arte.
A Índia, o Tibete, o Islã e a Europa Medieval produziram círculos em abundância, assim como todas as culturas mais antigas, seja através da pintura, seja através das danças circulares.
A imensa maioria destes diagramas está baseado na divisão dos quatro quadrantes, com todas as partes internas inter relacionadas de uma maneira ou de outra. Estas obras de arte são de alguma maneira cosmológicas; representam um símbolo que é a própria estrutura do universo: o zero.
Para os antigos, a própria arte de edificar estava intimamente ligada com o ser humano e com sua percepção do macrocosmos e do microcosmos; os quatro elementos, as quatro estações, os doze signos atravessados pelo sol em seu percurso nos céus, os círculos de divindades que representam o próprio homem e seus múltiplos aspectos… mas o que mais impressiona nestes diagramas é a expressão da noção do Cosmos, ou seja, da realidade como algo organizado e completo dentro de si mesmo.
A geometria antiga dependia de alguns axiomas; ao contrário da geometria euclidiana e outras mais recentes, o ponto de partida do pensamento geométrico antigo não é uma rede de abstrações intelectuais, mas uma meditação dentro de uma unidade metafísica, seguida de uma tentativa de simbolizar através do visual a ordem pura que brotava através destas experiências divinas e incompreensíveis.

É esta aproximação com o divino que separa a geometria antiga (ou sagrada) da moderna (ou mundana). A geometria antiga começa pelo número um, enquanto a matemática moderna começa pelo número zero.
Antes de avançar até os muçulmanos, eu gostaria de falar mais um pouco sobre estes dois começos simbólicos: Um e Zero, porque eles proporcionam um exemplo fantástico de como os conceitos matemáticos nada mais são do que dinâmicas de pensamento, de estruturas e de ações.

Primeiramente, vamos considerar o zero, que é uma idéia relativamente recente na história do pensamento, apesar de estar tão integrado a nossos pensamentos que mal podemos conceber um mundo sem zero. As origens deste símbolo datam aproximadamente do século VIII depois de Cristo, quando aparecem os primeiros registros em textos matemáticos na Índia. É interessante notar que, paralelamente a estas anotações, florescia na Índia neste mesmo período uma Escola de Pensamento decorrente do hinduísmo (através de Shankhara) e do budismo (através do Navarana). Esta Escola tinha ênfase no objetivo de obter a transcendência através da meditação e escapar do Karma através da renúncia ao mundo material, até mesmo através da mortificação dos corpos físicos através do auto-flagelamento.
Este estado de Nirvana era atingido através do “nada”, um cancelamento total dos movimentos e dos pensamentos dentro da consciência concreta, um estado “zen”. Este aspecto de meditação era o objetivo máximo do desenvolvimento espiritual, a fusão com o “todo” e com o “nada” ao mesmo tempo.
Muitos consideram este período da historia indiana como um retrocesso, um declínio das tradições tântricas que pregavam a união e a harmonização do material e do espiritual.

Foi neste período da devoção ao “vazio” que o conceito do zero apareceu. O resultado disto foi uma manifestação tanto através de um nome específico quanto de um símbolo, tanto na matemática quanto na metafísica. Na matemática, ele acabou se tornando um número, com implicações que falarei mais adiante. Seu nome em sânscrito é “Sunya”, que significa “vazio”.

Até então, como as pessoas se viravam sem o zero?
Na Antiga babilônia, Egito, Grécia e Roma, eram utilizados símbolos que representavam quantidades, como por exemplo, I, V, X, L, C, D e M. Em valores como 1005 (MV) ou 203 (CCIII), não havia a necessidade de um zero pois os numerais eram formados por “caixinhas” que representavam uma determinada quantidade de elementos. V melancias eram 5 melancias… XII camelos eram 12 camelos e ninguém questionava os números. O conceito de “zero” camelos era marcado com um símbolo parecido com duas barras paralelas [ // ] mas existia apenas como resultado de contas, por exemplo XII – XII = // representando “todos os camelos foram vendidos”.
Mas anotar um carregamento vazio é muito diferente de tratar o zero como uma entidade tangível.
Aristóteles e outros matemáticos discutiram o conceito do zero filosoficamente, mas a matemática grega, fortificada pelas influências pitagóricas vindas do Egito, recusavam-se a incorporar o zero em seu sistema.

E chegamos aos muçulmanos…
Os árabes, que do século VI ao XIV funcionaram como os grandes transmissores do conhecimento do oriente para o ocidente, trouxeram com eles o conceito do zero, além de nove outros números que também haviam sido desenvolvidos na Índia. Os números, como os conhecemos, são baseados nos ângulos formados entre os traços, como na figura abaixo:

O responsável pela transformação dos números indianos em arábicos foi o matemático e alquimista Al-Khwrizmi, cujas obras serviram de base para os trabalhos do ocultista, astrólogo, alquimista e matemático chamado Al-Gorisma (da onde vem a palavra Algoritmo), que trouxe estes numerais para os acampamentos árabes na Espanha. Seus trabalhos foram traduzidos para o latim por volta do século XII. Gradualmente, este sistema “árabe” foi introduzido na Europa e começou a alavancar progressos na ciência e no pensamento filosófico. A mente menos mística e mais prática dos comerciantes árabes transformou o conceito espiritual do zero em algo que poderia ter aplicações práticas para facilitar os cálculos, especialmente envolvendo números grandes ou cheios de colunas vazias, como 155.521.972 ou 4.815.162.342 ou 2012, por exemplo.

Silvestre II (que foi papa de 999 a 1003), inventor do relógio mecânico, bem que tentou introduzir os algarismos na Europa, mas foi severamente reprimido e, após sua morte, seus sucessores papais consideravam o zero como sendo o “número do diabo” e mantiveram os números romanos como oficiais até meados do século XII. Apenas com a força dos comerciantes, que achavam o zero muito prático para fazer contas, é que seu uso foi definitivamente implementado na Europa.
As conseqüências para a ciência foram enormes, especialmente na aritmética. Até aquele momento, as adições de números necessariamente resultavam em números maiores que os originais. A partir do zero, chegava-se a operações como

3 + 0 = 3
3 – 0 = 3
30 = 3 x 10

Até que alguém chegou a 0 – 3 = -3… MENOS TRÊS ?!?!?
O que poderia significar aquilo? A lógica começava a quebrar. Matemáticos, rosacruzes e alquimistas se reuniram ao redor desta incrível curiosidade. Apesar de não fazer sentido no mundo real, estes “números negativos” tinham toda uma coerência dentro do sistema e despertaram uma nova gama de artifícios. Estes números eram chamados originalmente de “números espirituais”, pois não poderiam ser verificados materialmente, apesar de seus efeitos serem sentidos dentro da aritmética.
A matemática, que até então estava associada à forma e à geometria, passava a se tornar algo abstrato, mental. Originalmente, o impulso espiritual dos hindus não permitiu que o zero ficasse no início das contagens, então nos textos antigos, o zero é sempre colocado após o nove.

Somente no século XVI, quase na Era da Razão, é que o zero foi finalmente colocado antes do um.
A partir destes conceitos, foram desenvolvidos os números irracionais (como a raiz de dois, que até então era considerado um número mágico usado na geometria sagrada), logaritmos e finalmente os números imaginários (a raiz quadrada de um número negativo), números complexos (um número real adicionado a um número imaginário) e finalmente números literais (substituir números por letras).

Não apenas o zero se tornou indispensável para nossas vidas como seu uso transformou a maneira como vemos a natureza e nossas atitudes a respeito de nós mesmo. Originalmente, o zero representava o vazio (Sunya) mas foi traduzido para o latim como Chiffra (que significava “nada”), mas os conceitos intrínsecos do “vazio” hindu/zen é muito diferente do conceito materialista de “nada”. Naquele período, a palavra “Maya” em sânscrito passou de seu conceito original “véu que divide a realidade” para “ilusão” ou o aspecto ilusório do Plano Material. Durante o materialismo da matemática na Revolução Industrial, o zero tornou-se um objeto material e o Plano Espiritual tornou-se “ilusório”.
A mente racionalista começou a negar o conceito espiritual da unidade. A unidade perdeu sua posição para o zero e o advento do zero permitiu a extrapolação para as bases do ateísmo, ou “zero Deus”, a negação do espiritual.

A noção do zero também teve um efeito em nossos conceitos. Idéias como a finalidade da morte ou o medo da morte, e todas as filosofias baseadas na não-existência após a morte devem sua origem ao zero.

Al Mamum, Al-Hakim
Quando o assunto é história da arte, eu acabo me empolgando e sempre escrevo mais do que pensei a princípio… e acabei desviando do assunto…
Bem… a relação entre o início das cruzadas e a expansão dos conceitos matemáticos estão interligadas na figura dos estudiosos muçulmanos. Esta integração começa em 830 quando o califa Al-Mamum tem um sonho na qual Aristóteles conversa com ele e a partir disso, decide traduzir do grego para o árabe todos os livros de matemática e ciência que conseguissem pilhar na guerra contra os bizantinos.
Desta mistura de textos gregos, árabes e hindus, somado ao uso mais prático possível destas descobertas, que eram controle de estoques dos próprios exércitos muçulmanos… armas, comidas, saques, divisões, etc, etc, etc… sem contar a geometria, afinal de contas, os muçulmanos precisam rezar voltados para Meca, e alguém tem de calcular o ângulo correto durante as marchas dos soldados todos os dias… já parou para pensar nisso? E sem calculadoras…
Todos estes fatores fizeram com que os escribas e sábios acompanhassem a expansão do islã, chegando até a Espanha e até Jerusalém.

Como vimos nos posts anteriores, os muçulmanos tomam Jerusalém em 638, oito anos após a morte do profeta Maomé, com os exércitos do califa Omar. Jerusalém, naquele período, tornou-se um centro de estudos, pois era um ponto intermediário entre Alexandria e o oriente, servindo de passagem dos conhecimentos entre o oriente e o ocidente. Durante mais de 300 anos, a cidade tornou-se um movimentado centro de comércio e estudos.

Jerusalém é considerada a terceira cidade mais sagrada do Islamismo (atrás apenas de Meca e Medina) e neste período chegou a ter mais de 70.000 habitantes. Jerusalém estava atrás apenas de Alexandria e Bagdá em termos de estudos de matemática, astronomia, astrologia e geometria.

O começo do fim ocorre quando o califa Al-Hakim ordena a destruição dos templos e sinagogas não muçulmanos, a partir de 1009, quando ordena a destruição do Santo Sepulcro. A destruição dos outros templos cristãos acabou adiada por conta das revoltas sunitas e, ironicamente, das revoltas xiitas posteriores, que acabaram fazendo com que sua atenção ficasse voltada para as próprias mesquitas destas duas facções. Mas isto foi suficiente para acender uma “luz vermelha” nas Ordens protetoras da Arca da Aliança (ou assim diz a lenda).
Uma noite, em 1021, Al-Hakim saiu para passear nos jardins de seu palácio e desapareceu. No dia seguinte, foram encontrados apenas sua montaria e seu manto, com manchas de sangue. Seu desaparecimento nunca foi solucionado…

Curiosamente, a primeira decisão de seu sucessor, Al-Zahir, foi permitir aos monges que viviam próximos ao Santo sepulcro a reconstrução do que havia sido destruído em 1009. Seu governo durou até 1036, quando faleceu vítima de uma praga. Al-Mustansir, seu filho, tornou-se califa com a idade de 6 anos, sendo assessorado por 40 vizires até atingir a idade adulta. Al-Mustansir teve altos e baixos… no começo de seu reinado, os árabes tiveram um período de prosperidade e expansão, até 1065, quando uma seca terrível, seguida de pestes e fome assolou o Egito de 1065 a 1072, somada à guerra com os turcos e a derrota e perda de diversas cidades na região.
Com a morte de Mustansir e a tomada do poder por Al-Mustali (que muitos consideravam apenas um usurpador do verdadeiro califa, que seria Na-Nizar). Com os turcos ameaçando invadir Jerusalém a qualquer momento e a ameaça de destruição total dos templos, a guerra civil prestes a explodir e a expansão dos fatimidas pelos territórios bizantinos, a região da palestina tornou-se um problema.
A qualquer momento, algum habibs maluco iria tomar o poder e provavelmente mandar destruir todas as relíquias cristãs da cidade.
Estava na hora de fazer alguma coisa…

Semana que vem

Nove homens e um segredo…

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Para quem prefere ler textos mais esotéricos e menos históricos:
– O Bode na Maçonaria
– Biografias: Theodore Reuss, o verdadeiro fundador da OTO
– Inventário da Normalidade, um texto do Paulo Coelho.
– Paganalia
– Faça sua própria pirâmide dos Illuminati
– The Mindscape of Alan Moore
– Arcano 12 – O Enforcado
– Consagrando objetos Mágicos
– A Noite Negra da Alma (alquimia)
– Biografia: Karl Kellner, o fundador da OTO

#Hinduismo #Matemática

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/brahma-vishnu-shiva-os-mu%C3%A7ulmanos-e-o-zero

O Poder dos Mitos

Joseph Campbell, no livro O poder do Mito, explica que Mitos não são algo pra dar sentido a uma vida vazia, mas sim pistas para as potencialidades espirituais da vida humana, aquilo que somos capazes de conhecer e experimentar interiormente. Pra isso é preciso captar a mensagem dos símbolos. Leia mitos de outros povos, não os da sua própria religião, porque aí você começará a interpretar sua própria religião não mais em termos de fatos – mas de mensagem. O mito o ajuda a colocar sua mente em contato com essa experiência de estar vivo. Ele lhe diz, através de símbolos, o que a experiência É.

O casamento, por exemplo. É a reunião da díade separada. Originariamente, vocês eram um. Agora são dois, no mundo, mas o casamento é o reconhecimento da identidade espiritual. É diferente de um caso de amor, não tem nada a ver com isso. É outro plano mitológico de experiência. Quando pessoas se casam porque pensam que se trata de um caso amoroso duradouro, divorciam-se logo, porque todos os casos de amor terminam em decepção. Mas o matrimônio é o reconhecimento de uma identidade espiritual. Se levamos uma vida adequada, se a nossa mente manifesta as qualidades certas em relação à pessoa do sexo oposto, encontramos nossa contraparte masculina ou feminina adequada. Desposando a pessoa certa, reconstruímos a imagem do Deus encarnado, e isso é que é a mitologia do casamento. O ritual, que antes representava uma realidade profunda, hoje virou mera formalidade. E isso é verdade nos rituais coletivos assim como nos rituais pessoais, relativos a casamento e religião. Quantas pessoas, antes do casamento, recebem um adequado preparo espiritual sobre o que o casamento significa? Você pode ficar parado diante do juiz e se casar, em dez minutos. A cerimônia de casamento na Índia dura três dias. O par fica grudado! Isso é primordialmente um exercício espiritual, e a sociedade deveria nos ajudar a tomar consciência disso.

O homem não devia estar a serviço da sociedade, esta sim é que deveria estar a serviço do homem. Quando o homem está a serviço da sociedade, você tem um Estado monstruoso, e é exatamente isso o que ameaça o mundo, neste momento, pois a sociedade não nos fornece rituais pelos quais nos tornamos membros da comunidade. Por isso que as religiões conservadoras, hoje, estão apelando para a religião dos velhos tempos, numa tentativa de parar este trem desgovernado, e vemos bizarrices, como a volta na crença do Criacionismo com uma interpretação ipsi literis da Bíblia. Isso é um erro terrível, pois estamos voltando a algo atrofiado, algo que não serve mais ao desenvolvimento da vida. Os mitos oferecem esses modelos de vida, mas eles têm de ser adaptados ao tempo que estamos vivendo. Acontece que o nosso tempo mudou tão depressa que, o que era aceitável há cinqüenta anos não o é mais, hoje. As virtudes do passado são os vícios de hoje. E muito do que se julgava serem os vícios do passado são as necessidades de hoje. A ordem moral tem de se harmonizar com as necessidades morais da vida real, no tempo, aqui e agora. A religião dos velhos tempos pertence a outra era, outras pessoas, outro sistema de valores humanos, outro universo. Voltando atrás, você abre mão de sua sincronia com a história. Nossos jovens perdem a fé nas religiões que lhes foram ensinadas, e vão para dentro de si, quase sempre com a ajuda de drogas (uma experiência mística mecanicamente induzida). Existe uma grande diferença entre a experiência mística e o colapso psicológico: Aquele que entra em colapso imerge sem estar preparado nas águas onde o místico nada.

As máquinas já fazem parte da nossa mitologia, dos nossos sonhos. O vôo da aeronave, por exemplo, atua na imaginação como libertação da terra. É a mesma coisa que os pássaros simbolizam, de certo modo, assim como a serpente simboliza o aprisionamento à terra. Pessoas usando armas, hoje em dia, atuam no inconsciente da mesma forma que a “Dona Morte” com sua foice atuava no passado. Diferentes instrumentos assumem o papel para o qual os instrumentos antigos já não se prestam.

O computador proporciona uma revelação sobre a mitologia: Você compra um determinado programa e ali está todo um conjunto de sinais que conduzem à realização do seu objetivo. Se você começa tateando com sinais que pertencem a outro sistema de programas, a coisa simplesmente não funciona. É o que acontece na mitologia: ao se defrontar com uma mitologia em que a metáfora para o mistério é o pai, você terá um conjunto de sinais diferentes do que teria se a metáfora para a sabedoria e o mistério do mundo fosse a mãe. E ambas são metáforas perfeitamente adequadas. Nenhuma delas é um fato. São metáforas. É como se o universo fosse meu pai, ou como se o universo fosse minha mãe. Jesus diz: “Ninguém chega ao Pai senão através de mim”. O pai de que ele falava é o pai bíblico. Pode ser que você somente chegue ao pai através de Jesus. Por outro lado, suponha que você escolhesse o caminho da mãe. É simplesmente outro caminho para chegar ao mistério de sua vida. É preciso entender que cada religião é uma espécie de programa com seu conjunto próprio de sinais, que funcionam. Se uma pessoa está realmente empenhada numa religião e realmente construindo sua vida com base nisso, é melhor ficar com o programa que tem. A chave para encontrar a sua própria mitologia é saber a que sociedade você se filia.

Toda mitologia cresceu numa certa sociedade, num campo delimitado. Mas elas precisam evoluir de acordo com as circunstâncias da época. No início, Deus era apenas o mais poderoso entre vários deuses. Era apenas um deus tribal, circunscrito. Então, no século VI, quando os judeus estavam na Babilônia, foi introduzida a noção de um Salvador do mundo, e a divindade bíblica migrou para uma nova dimensão. Quando a noção de mundo se altera, a religião tem que se transformar. Mas o que vemos são as três grandes religiões do Ocidente, judaísmo, cristianismo e islamismo, com três têm nomes diferentes para o mesmo deus bíblico, e incapazes de conviver. Cada uma está fixada na própria metáfora e não se dá conta da sua referencialidade. Nenhuma permite que se abra o círculo ao seu redor. São círculos fechados. Cada grupo diz: “Somos os escolhidos, Deus está conosco”.

A irmandade, hoje, em quase todos os mitos, está confinada a uma comunidade restrita. Nessas comunidades a agressividade é projetada para fora. Por exemplo, os Dez Mandamentos dizem: “Não matarás”. Aí o capítulo seguinte diz: “Vai a Canaã e mata a todos os que encontrar”. É um campo cercado. Os mitos de participação e amor dizem respeito apenas aos do grupo, os de fora são totalmente outros. Esse é o sentido da palavra “gentio” (a pessoa que não é da mesma espécie). E, a menos que você adote minha indumentária, não seremos parentes.

Veja a Irlanda. Um grupo de protestantes foi removido para lá no século XVII, por Cromwell, e nunca se abriu para a maioria católica que ali encontrou. Católicos e protestantes representam dois sistemas sociais totalmente distintos, dois ideais diferentes, cada qual necessitando de seu próprio mito, durante toda a trajetória. Ama teu inimigo. Abre-te. Não julgues. Todas as coisas têm a natureza do Buda. Está ali, no mito. Já está tudo ali.

Existe a história sobre um selvagem nativo, que uma vez disse a um missionário: “Seu deus se mantém fechado numa casa como se fosse velho e decrépito. O nosso está na floresta, nos campos, e nas montanhas quando vem a chuva”. Não parece mais lógico? E ainda assim nos apegamos aos Templos, aos símbolos, aos livros sagrados, como se eles FOSSEM Divinos, e não só uma ponte para o Divino dentro de nós. O budismo coloca isso com clareza:

Entenda que as palavras de Buda são como um barco para cruzar o rio: Uma vez que o propósito tenha sido atingido, devem ser deixadas para trás, se quiser continuar a viagem

(Buda; Sutra do Diamante)

Uma coisa que se revela nos mitos é que, no fundo do abismo, desponta a voz da salvação. O momento crucial é aquele em que a verdadeira mensagem de transformação está prestes a surgir. No momento mais sombrio surge a luz. Este problema pode ser metaforicamente compreendido como a identificação com o Cristo, dentro de você. Esse Cristo em você sobrevive à morte e ressuscita. Ou você pode identificar isso com Shiva: “Eu sou Shiva” – essa é a grande meditação dos iogues, no Himalaia.

Céu e inferno estão dentro de nós, e todos os deuses estão dentro de nós. Este é o grande esforço conscientizador dos Upanixades, na Índia, nove séculos antes de Jesus. Todos os deuses, todos os céus, todos os mundos estão dentro de nós. São sonhos amplificados, e sonhos são manifestações, em forma de imagem, das energias do corpo, em conflito umas com as outras. Este órgão quer isto, aquele quer aquilo. O cérebro é um dos órgãos. Quando sonhamos, pescamos numa espécie de vasto oceano de mitologia que é muito profundo. Você pode ter tudo isso misturado com complexos, coisas desse tipo, mas na verdade, como afirma o dito polinésio, você está “em pé numa baleia, pescando carpas miúdas”. A baleia é a base do nosso ser, e, quando simplesmente nos voltamos para fora, vemos todos esses pequenos problemas, aqui e ali. Mas, quando olhamos para dentro, vemos que somos a fonte deles todos.

Por que os Mitos nos tocam, mesmo sabendo que são histórias inventadas? Porque SENTIMOS que elas, no íntimo, são Verdadeiras. Teria isso relação com os Arquétipos e o Inconsciente?

Nós temos o mesmo corpo, com os mesmos órgãos e energias que o homem de Cro Magnon tinha, trinta mil anos atrás. Viver uma vida humana na cidade de Nova Iorque ou nas cavernas é passar pelos mesmos estágios da infância à maturidade sexual, pela transformação da dependência da infância em responsabilidade, própria do homem ou da mulher, o casamento, depois a decadência física, a perda gradual das capacidades e a morte. Você tem o mesmo corpo, as mesmas experiências corporais, e por isso reage às mesmas imagens.

Por exemplo, uma imagem constante é a do conflito entre a águia e a serpente. A serpente ligada à terra, a águia em vôo espiritual – esse conflito não é algo que todos experimentamos? E então, quando as duas se fundem, temos um esplêndido dragão, a serpente com asas. Em qualquer parte da terra, as pessoas reconhecem essas imagens. Quer eu esteja lendo sobre mitos polinésios, iroqueses ou egípcios, as imagens são as mesmas e falam dos mesmos problemas. Apenas assumem roupagens diferentes quando aparecem em épocas diferentes, como se a mesma velha peça fosse levada de um lugar a outro, e em cada lugar os atores locais vestissem roupas locais. Surge aí a explicação para o Mito de Cristo. Ele é verdadeiro? Não tem nada mais verdadeiro. É inventado? Muito provavelmente. A confusão só se estabelece pra aquele que está preso ao materialismo, ao tempo, ao espaço. Coisas que, sabemos, só existem para nossos corpos, e não para nossa mente.

Texto extraído e adaptado do livro “O poder do Mito”, de Joseph Campbell

#Mitologia

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/o-poder-dos-mitos

A Ordem dos Assassinos

Entre os finais do século XI e a metade do XIII, a terrível seita dos ismaelitas, minúscula no universo do Islã, trouxe temor e, por vezes, pânico à região do Oriente Médio.

Tratava-se da Ordem dos Assassinos, assim chamada porque os seus integrantes, antes de praticar os atentados, inalavam um estupefaciente, o Hashishiyun, o haxixe. Seus seguidores caracterizavam-se pela entregada total à missão que lhes era atribuída por seus superiores e por não demonstrarem medo nenhum frente à morte que fatalmente os aguardava após terem praticado suas ações terroristas.

O anúncio da ressurreição“Nada é verdade, tudo é permitido!” Hassan Sabbah.

No ano de 1166, na praça central da fortaleza de Alamut, no alto dos Montes Elburz, no norte do Irã, o Grão-Mestre dos nizarins (como a Ordem dos Assassinos chamava-se oficialmente), Hassan II, uma seita dissidente do Islã, exultava frente aos companheiros e seguidores que ocupavam todo o espaço à sua frente. Ele os convocara para um importante anúncio.

O profeta dos assassinos

Queria dizer-lhes que, enfim, aproximava-se o dia da Qiyamat al Qiyamat, a Ressurreição da Ressurreição, estando muito perto do momento em que, pondo fim àquela época, iniciada há muito tempo por Adão, o Imam oculto finalmente viria liderá-los na renovação de tudo. Dali em diante, assegurou, não haveria mais liturgia, pois a religião tornara-se puramente espiritual, sem templos ou culto. Que se preparassem, portanto, para os novos tempos, concentrando-se todos eles dentro da fortaleza de Alamut, um lugar inexpugnável para os seus inimigos, de onde só sairiam para realizar suas operações de assassinatos seletivos.

A seita, obediente aos extremos rigores do militarismo, havia sido fundada no ano de 1090 d.C., quando o missionário ismaelita Hassan Sabbah (1034-1124 d.C.), encarnação de Deus na Terra, retornara do Egito para a sua Pérsia nativa (ele nascera em Qom). Envolvido nas lutas pelo poder entre a casa real egípcia e de Bagdá, ele decidira fundar uma ordem secreta para enfrentar os seus adversários. Para tanto, se inspirou nos antigos rituais de iniciação adotados pelos gnósticos, com seu gosto pela ciência esotérica – a batanya – e pelo culto aos sinais secretos, só alcançados depois de muita disciplina e dedicação ao estudo. Em pouco tempo verificou-se que Hassan Sabbah, o xeque (título dos soberanos árabes) das montanhas, criou uma teologia totalitária, onde um só deus (Alá) se fazia representar por um só Imam (um líder espiritual), e por um só representante (o próprio Hassan), com autoridade de vida e morte sobre os seus seguidores. Tendo uma visão trágica do mundo, considerando-o perdidamente maculado pela heresia e pelo desacerto dos governantes, ele declarou guerra à religião oficial, o Islamismo sunita, e também às dinastias que reinavam na região, fossem as de raiz árabe ou turca seldjúcida. Líder de uma seita absolutamente minoritária, Hassan Sabbah percebeu que somente poderia impor-se naquelas circunstâncias por meio do terror. Em colocar seus inimigos em permanente pavor de virem a serem assassinados. Ao apoiar um dos governantes chamado Nizan, sua ordem denominou-se dos nizarins.

A estrutura da ordem

Consta que Hassan Sabbah além de um rigoroso exame de admissão dos iniciados, recolhia crianças abandonadas ou as comprava de casais miseráveis para fazer delas o seu exército de fiéis. Carentes de tudo, os jovens aspirantes nizarins viam-no com um deus-pai, dedicando-se integralmente à sua vontade, jamais ousando criticar uma ordem recebida sequer. Tratou também de cultivar uma soberba biblioteca, considerada uma das mais completas daquele tempo, não vendo nenhuma contradição entre harmonizar a alta cultura islâmica com a prática de assombrosos atentados terroristas. Ele gabava-se de ter à sua disposição 70 mil homens e mulheres espalhados por boa parte do Oriente Médio, capazes de executar qualquer missão por ele ordenada, mesmo que isso lhes custasse a vida. Sim porque seus alvos não eram gente comum, mas vizires, sultões, xeques, mulás, ulemás, cavaleiros cruzados, fosse quem fosse importante que, aos olhos do Grão-Mestre dos assassinos, criava impedimentos à sua política.

A mística

Hassan Sabbah apresentava-se com o Hojjat do Imam, aquele que falava e agia em lugar do Imam oculto, que assim se encontrava apenas aguardando o momento apropriado para aparecer. Era inerente à doutrina ismaelita, a crença messiânica segundo a qual, fatalmente, dar-se-ia a Grande Revelação. O salvador, que pairava sobre a sociedade sem mostrar-se, num determinado dia deixaria o mundo das sombras. Os seus seguidores, enquanto esse momento sagrado da Parusia não se dava, usariam os punhais para purificar o ambiente, afastando da paisagem as ervas daninhas e os frutos estragados que poderiam vir a ferir ou envenenar o ar do Imam revelado. Nada mais perfeito para ele do que a sua morada naquela fortaleza isolada do mundo, o Alamut, o ninho de águia, que logo seus inimigos deram a indicar como “o ninho da serpente”, dado o bote traiçoeiro das operações que ele ordenava (*).

(*) A fortaleza de Alamut ficava nos Montes Elburz, pertencente a uma cadeia de montanhas situadas ao Norte do Irã, na margem sul do Mar Cáspio. Área com escasso povoamento por causa da aridez geral.

O método dos assassinos

Apesar de andarem uniformizados na fortaleza de Alamut – trajes brancos com um cordão vermelho enlaçando-lhes a cintura (cores que os cavaleiros templários irão adotar) -, os fadavis, os devotos, quando recebiam uma missão, camuflavam-se. Preferiam misturar-se aos mendigos das cidades da Síria, da Mesopotâmia, do Egito e da Palestina para não despertarem a atenção. Em meio à multidão urbana, eles eram “adormecidos”, levando uma vida comum sem atrair suspeitas, até que um emissário lhes trazia a ordem para “despertar” e atacar. Geralmente eles aproximavam-se da sua vítima em número de três. Se por acaso dois punhais fracassem, haveria ainda um terceiro a completar o serviço. Atuavam esses “anjos da destruição” do Velho da Montanha, como muitos chamavam Hassn Sabbah, em qualquer lugar – nos mercados, nas ruas estreitas, dentro dos palácios e até mesmo no silêncio das mesquitas, lugar por eles escolhido em razão das vítimas estarem ali entregues à oração e com a guarda relaxada. Até o grande sultão Saladino, inimigo de morte deles, eles chegaram a assustar, deixando um punhal com um bilhete ameaçador em cima da sua alcova.

O uso da droga

Capturados, eles nada diziam. Viviam, como se dizia, num estado alheio as coisa do mundo, numa esfera especial amparada pela Lei Divina, mostrando absoluta indiferença pelo seu destino da terra. Seguiam para o cadafalso sem pestanejar, deixando aos executores a terrível sensação de impotência perante aquele fanatismo.

Esse comportamento autista é que contribuía para que acreditassem que eles inalavam haxixe antes de aplicarem as sentenças de morte, advindo daí, por corruptela, a palavra assassino. Alguns historiadores ponderam que a utilização de um estupefaciente tão poderoso como o haxixe não poderia excitar a violência nem a agressividade necessária para praticar um crime a sangue frio.

A droga teria ainda uma outra função. Acreditam, isso sim, que ela fosse usada por Hassan Sabbah nos rituais de iniciação da ordem como uma introdução à ideia do Paraíso, para que os aspirantes tivessem, experimentando a erva que lhes era oferecida num jardim das delícias, uma primeira prova das volúpias imateriais que guarda-los-iam no futuro, quando da sua morte em função da causa. Foi esse o sentido que o poeta Baudelaire captou com o seu Poème du Haschisch (Paraísos artificiais, 1858-60).

Aproximação com os cruzados

Hassan Sabbah e seus sucessores trataram de ocupar a maior parte dos fortes e fortins, numa linha que se estendia do Irã até a Palestina, passando pela Síria, para fazer com que a influência da ordem fosse sentida em todas as paragens e para que os punhais dos devotos provocassem medo em toda a parte. Odiados por turcos e árabes, por sunitas e xiitas, dos quais eram um ramo dissidente, foi inevitável que a Ordem dos Assassinos, num primeiro momento, se aproximasse dos cavaleiros cruzados, tão estranhos na região da terra Santa como eles mesmos se sentiam.

Não só isso. Seguramente foi aquela simbiose entre fé fanática e disciplina militar extremada que fascinou os primeiros nove cavaleiros cristãos, liderados por Hugo de Payens, decidiram-se por fundar a Ordem dos Cavaleiros do Templo, no ano de 1118. A dedicação integral e absoluta dos devotos, a abjuração de tudo, inclusive da vida, a cega obediência e o espírito de ordem monástico-guerreira que os tornavam membros de uma cavalaria espiritual, logo estreitou ainda mais o ideário dos cavaleiros cristãos com dos assassinos.

Assassinos e zelotes

Guardadas as devidas distâncias e motivações, há muita similitude no modus operandi dos assassinos a mando do Velho da Montanha, com as ações e atentados realizados pelos zelotes, militantes da causa judaica anti-romana. Aparecidos no século I a.C. eles reagiram à presença das águias imperiais na Palestina e na Judeia, praticando atentados seletivos, matando não só representantes da autoridade romana, mas fundamentalmente judeus que se mostravam dispostos a colaborar com eles.

Os zelotes tiveram um notável papel no levante antirromano e, seguramente, formavam a maioria dos fanáticos que se refugiaram na fortaleza de Massada, para lá resistirem até o fim, uns mil deles, sem se renderem às legiões do general Silva, que a ocupou no ano de 73 a. C. Por eles portarem ostensivamente suas adagas e facas em público, ameaçando meio mundo, os gregos os chamavam de Sicarii (do grego Sikarion = homem do punhal).

O historiador Arnold Toynbee determinou o comportamento dos povos invadidos daquela região em dois tipos. Chamou de herodianos (do rei Herodes, um monarca judeu colaboracionista), aqueles que não só aceitam o domínio estrangeiro como abertamente colaboram com o ocupante, enquanto que os zelotes eram justamente o contrário. Seriam os que rejeitavam qualquer aproximação ou acordo com os estrangeiros invasores. Os assassinos ismaelitas não se enquadram nessa classificação porque não estavam a serviço de uma causa nacionalista, mas sim de uma ordem religiosa sectária, que repudiara tanto a dinastia Fatímida do Egito quanto a Abássida de Bagdá.

Cavaleiros e poetas

Os templários não só adotaram uma série de preceitos e regulamentos tomados emprestados da Ordem dos Assassinos, como também fizeram suas as cores deles: o branco e o vermelho. Tão próximas foram estas relações que até Luís IX, rei da França, certa vez enviou uma missão diplomática a visitar o castelo de Jebel Nosairi, ocupado por um chefe local da Ordem dos Assassinos.

Frederico II, o Barbarossa, o imperador alemão que participou das cruzadas convidou vários ismaelitas para que o acompanhassem de volta à Europa, dando-lhes copa franca na sua corte.

A atração por sociedades secretas seduziu também aos poetas italianos do Dolce stil nuovo, como Guido Cavalcanti e Dante Alighieri, que, inspirando-se num livro da mística xiita intitulado “Jardim dos Fiéis do Amor” criaram a sua própria irmandade secreta, a dos Fedeli d´Amore.

Portanto, o gosto de muitos europeus por congregarem-se ao redor de lojas esotéricas, com rígidos rituais de iniciação e um ar secretíssimo, hábito tomado na época das cruzadas, provavelmente lhes foi instilado pelos feitos da Ordem dos Assassinos.

O fim da ordem

Protegidos por uma fortaleza tida como inexpugnável, que nenhuma força local poderia tomar de assalto, foi preciso esperar a invasão dos mongóis, no século XIII, para que finalmente o ninho da águia fosse destruído pelos poderosos invasores no ano de 1260, pondo fim a ameaça que a seita dos assassinos representava em todo o Oriente Médio. A legenda que deixaram foi difundida no Ocidente pelos cavaleiros cristãos e pelos monges escribas que os acompanharam, impressionados com a história terríveis a que os devotos estavam associados, símbolos vivos do que era possível fazer com um ser humano, tornado simples objeto maligno ao serviço do fanatismo.

#Islamismo

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/a-ordem-dos-assassinos

A Evolução da Bíblia: da boca de Deus até as cabeceiras dos motéis

Nota desta segunda edição, corrigida e ampliada.

O objetivo desta revisão foi o de deixar o texto mais completo. Corrigir erros. Deixar a leitura mais fluída. O texto que você tem em mãos nasceu de um projeto desenvolvido pela Morte Súbita Inc. em parceria com o Jesus Freak para se criar um texto que desenvolvesse não apenas a história da Bíblia de sua origem aos dias de hoje, mas uma pesquisa com bases em achados arqueológicos e estudos modernos sobre como ela se desenvolveu através da história.

Para dar corpo a este texto resolvemos criar uma forma diferente de organizar os tópicos a serem pesquisados e desenvolvidos. No ano de 2008 pegamos crianças de escolas religiosas e deixamos que elas fizessem perguntas sobre a Bíblia, que pudessem matar a curiosidade que tivessem sobre determinados assuntos. Então organizamos as perguntas e fomos respondendo.

O texto acabou ficando longo e foi colocado no ar assim que as perguntas haviam sido respondidas, mas algumas informações acabaram ficando de fora, então o organizador deste texto resolveu acrescentar alguns dados. Além disso por ter sido originado de perguntas feitas por pessoas diferentes, num processo aleatório o texto acabou ficando meio “truncado” quando se passava de um tópico para o outro, surgiu então a idéia de tentar, mudando a ordem de algumas perguntas e rearrumando a informação das respostas, dar um pouco mais de ritmo para sua leitura.

Depois de algumas reuniões os membros do projeto acharam interessante também expor a forma como o texto foi formado nem que fosse apenas como um adendo divertido, mas com o tempo perceberam que as curiosidades das crianças eram interessantes pois mostravam que muitas questões que pessoas podem ter já em idade adulta são as mesmas que surgem em suas mentes quando ainda são crianças e seja por falta de material de pesquisa, de liberdade em casa, na escola ou no templo/igreja que frequenta, seja por pura preguiça de ir atrás de uma resposta permanecem por anos. É engraçado notar como a “inocência” da infância vira a “ignorância” adulta. Assim as perguntas, que no dia em que foram sendo feitas já eram respondidas, foram aqui reorganizadas e o texto adaptado a elas de forma a não ficar repetitivo ou com assuntos parecendo apenas soltos. Assim a entrevista original foi, com alguma liberdade, refeita aqui mas mantendo o espírito das questões originais.

E por fim, o texto foi montado em blocos separados e reunidos alguns foram revisados, outros não, então aproveitamos para revisar e corrigir vários dos erros que passaram desapercebidos na primeira edição deste texto. Se você já o leu e desejar relê-lo encontrará novas informações e um formato um pouco diferente das que já existiam. Se está lendo a primeira vez então tem a sorte de já ter em mãos um texto melhorado e mais amplo em suas respostas.

Introdução

Por séculos, a Bíblia tem sido, no ocidente, a autoridade máxima sobre diversos assuntos. A Palavra Divina capturada em papel, a vontade de Deus nua e crua. Argumente com algum religioso abrahâmico[1] que a Bíblia pode ter sido um bom livro, mas que mexeram tanto nela que do original só resta o nome e você consegue presenciar uma experiência em miniatura da formação de tornados bem na sua frente.

De fato, argumentar qualquer coisa sobre o que foi feito ou não com a Bíblia acaba se tornando um exercício de especulação ou simplesmente do bom e velho cinismo. De um lado uns a defendem com unhas e dentes, de outro atiram paus e pedras sem mirar nem ver onde acertam. Para ambos os lados a conversa se torna um simples ato de gritar e se fazer ouvir e ambos saem tão convencidos de suas certezas quanto quando começaram.

Então ao invés de assumir qualquer um dos lados – “sim, é possível uma entidade supra humana inspirar outros de forma que registrem suas impressões em papel” ou “grande parte do que existe na Bíblia não passava de folclore, poesia e leis de uma época, que foram divinizadas como forma de se controlar um povo” – vamos simplesmente fazer uma listagem de fatos sobre ela para nos entreter e nos ajudar a tirar nossas conclusões.

Antes de mais nada é importante deixar claro que a própria Bíblia, historicamente, teve um propósito muito diferente do que tem hoje em dia. Quando foi criada, seu objetivo era o de garantir que o povo fosse fiel a Deus e a si mesmo. Nos primórdios das formações de nações ou sociedades era muito dificil que um mesmo povo tivesse um mesmo consenso sobre um único assunto e a inexistência de “universidades” ou centros de estudo oficiais sobre um determinado assunto acabava criando muito disse que disse e visões pessoais sobre este assunto. E dai surge a vontade desse povo espalhado de ter a certeza não apenas de estar adorando ou sendo gratos a Deus da maneira correta, mas de também terem a mesma visão sobre Deus. Deus teria sido o responsável por tudo o que existia? Havia algo antes de Deus? Deus era Pai, Mãe ou ambos ou nenhum? Se aquele era o povo escolhido porque tanta perseguição e miséria? Deus era o responsável pelas coisas boas e más? O que esperar d’Ele? Para responder a isso começaram a ser reunidos pedaços de textos, tradições orais, histórias sobre o povo e então foram organizados e colocados em pergaminhos e tábuas, não como forma de instituir uma palavra de Deus, mas apenas como uma tentativa individual de estarem sendo fiéis à própria crença. E assim ocorre o nascimento deste livro que até hoje tem grande influência sobre o mundo, seja positivo ou negativo, não como uma rótulo mas como uma preocupação de que essa fidelidade fosse transmitida a outros e a futuras gerações. Apenas eras após seu surgimento o povo encontrou nela a expressão da vontade e a presença real de uma Palavra Santa.

Não podemos negar a influência que esse poder descoberto com o tempo deu para aqueles que foram proclamados ou se proclamaram a si mesmos os herdeiros do direito de interpretar o seu conteúdo. Mas o objetivo deste texto não é apontar dedos ou simplesmente mostrar como um registro de uma vontade se tornou uma ferramenta e sim acompanhar o desenvolvimento do livro baseado em fatos concretos que temos à disposição hoje em mãos.

Como este texto foi organizado? Foram reunidas 17 crianças com idades entre 8 e 14 anos, frequentadoras de colégios religiosos, católicos e protestantes, e a cada uma foi dada a oportunidade de escrever em uma folha de papel 3 perguntas que teriam sobre a Bíblia. Estas perguntas então foram organizadas de forma cronológica, algumas foram mudadas levemente de forma a terem uma resposta mais ampla e outras ainda foram fundidas pois eram perguntas semelhantes feitas apenas utilizandon-se palavras diferentes. O resultado desta entrevista é o texto que se segue.

1- O que é a Bíblia

Bíblia (do grego βίβλια, plural de βίβλιον, transl. bíblion, “rolo” ou “livro”) é o texto religioso central do judaísmo e do cristianismo.

2- A Bíblia sempre foi a Bíblia? Ela é o livro mais antigo do mundo?

Respondendo a primeira questão:

Na verdade não. No início era conhecida como Tanakh ou Tanach (em hebraico תנ״ך), pelos Judeus. O seu conteúdo é equivalente ao do Antigo Testamento, mas seus textos estão organizados de forma diferente e são apresentados em outra ordem.

O nome Tanakh é formado pelas sílabas iniciais dos três livros que a formam:

– A Torá (תורה), também chamado חומש (Chumash, isto é “Os cinco”) refere-se aos cinco livros conhecidos como Pentateuco, o mais importante dos livros do judaísmo.

– Neviim (נביאים) “Profetas”

– Kethuvim (כתובים) “os Escritos”

O Tanach é às vezes chamado de Mikrá (מקרא)

É importante ter em mente que a Bíblia como existe hoje é um livro cristão, ou seja, surgiu como algo que avoluiu do judaísmo. O ponto mais importante disso é que para o judaísmo os textos sagrados são aqueles que ficaram conhecidos para os não judeus como o Antigo Testamento. O Novo Testamento é uma coleção de textos, ou livros, exclusivamente cristãos, surgiram depois do advento do cristianismo. Muitos estudiosos e religiosos hoje inclusive estão trocando os termos Antigo e Novo Testamento por Primeiro e Segundo Testamento para não tornar irrelevante ou ultrapassado os textos judaicos, que fazem parte da primeira parte da Bíblia. Com o tempo o cristianismo, na sua vontade de se tornar uma religião independente do judaísmo, acabou atacando suas raízes se tornando muitas vezes anti-semita e este é um sentimento que aos poucos alguns cristãos vem tentando corrigir.

Quanto à segunda questão podemos dividí-la em duas para responder melhor:

2.1 A Bíblia é o livro mais antigo existente?

e

2.2 A Bíblia é o livro religioso mais antigo existente?

Em ambos os casos a resposta é não. O livro mais antigo que se tem notícias hoje é o I-Ching. Apesar das várias lendas que circulam a respeito de sua criação em algum momento da antiguidade os trigramas e hexagramas que formaram o seu conteúdo foram compilados tábuas de bambu entre os anos 3000 e 2000 antes da era Cristã (a.C. ou a.e.C.).

No caso de o livro religioso mais antigo ou mesmo o texto religioso mais antigo temos que ter em mente que o Judaísmo, a religião que começou a compilar e escrever os primeiros textos da Bíblia, não é a religião mais antiga, desde os primóridos da raça humana as pessoas tinham religiões, as mais antigas sendo classificadas como xamanismo, mas mesmo as mais modernas como o zoroastrismo ou o hinduísmo são bem mais antigas e já tinham seus textos sagrados respectivos.

3- E a Tanakh sempre foi a Tanakh? Ela é a versão mais antiga da Bíblia?

O nome Tanakh, ou seja a divisão refletida pelo acrônimo Tanakh está registrada em documentos do período do Segundo Templo (515 a.C. a 70 depois da era Cristã, ou d.C.) e na literatura rabínica (A Mishná e a Tosefta – compiladas a partir de materiais anteriores ao ano 200 d.C. – são as primeiras obras existentes da literatura rabínica, e a literatura rabínica já era desenvolvida por rabinos, ou seja por líderes religiosos, portanto o judaísmo já existia como religião estabelecida nesta época). Durante aquele período, entretando, o acrônimo Tanakh não era usado, sendo que o termo apropriado era Mikra (“Leitura”). Este termo continua sendo usado em nossos dias, junto com Tanakh, em referência as escrituras hebraicas.

No hebraico moderno, o uso do termo Mikra dá um tom mais formal do que o termo Tanakh.

De acordo com a tradição judaica, o Tanakh consiste de vinte e quatro livros. A Torah possui cinco livros, o Nevi’im oito livros e o Ketuvim onze.

Então o registro mais antigo dos textos já organizados na forma que temos hoje no Antigo Testamento data do século VI a.C.

4 – Mas espere ai. A Bíblia não vem desde a antiguidade? Mesmo não sendo o livro mais antigo ela não tem milhares e milhares de anos de idade?

Então, ai as coisas começam a ficam interessantes. Quando falamos da Bíblia temos que separar a tradição oral e o documento escrito. A tradição oral judaica é muito antiga, mas no que diz respeito a material sólido existente, letras registradas no papel (ou pergaminho ou papiro ou metal) o que temos é um pouco mais recente.

Para entender vamos recorrer à tradição que cerca a Bíblia. A primeira pessoa que supostamente começou a colocar o texto no papel. De acordo com a própria Bíblia, foi Moisés. Mas muita coisa que está escrita nela aconteceu muito antes de Moisés, e ai já temos o primeiro impacto que a tradição oral tem no texto. Muita coisa lá foi passada de pessoa para pessoa, algumas provavelmente já escritas e registradas, mas tudo foi juntado e compilado depois de Moisés.

O primeiro registro bíblico da passagem de uma tradição oral para uma escrita, ou seja a primeira vez que a própria Bíblia cita a escrita da tradição do povo, surge no livro do Êxodo quando Deus diz para Moisés que se prepare para receber “as tábuas de pedra, a lei e os mandamentos que escrevi para os ensinar” (Ex 24:12). Então antes da lei e dos mandamentos de Deus não havia um livro religioso oficial dos Judeus. E mesmo assim na Torá fica claro que não estão presentes todos os comandos e leis de Deus, ou seja muito da tradiçào oral não foi registrada como um texto sagrado. Um exemplo claro é o Shabat. Apesar de estar presente nos Dez Mandamento – tradição escrita – não existem detalhes de como fazer isso. Deus fala a Moisés que guarde o Shabat: “Santificai o dia de sábado, como ordenei a vossos pais” (Jeremias 17:22), mas não existe um relato dessas ordenanças, pelos textos contidos na Bíblia não existem as instruções de como guardar o sábado, mais para frente no texto existem amostras do que se podia fazer ou não, mas quando o texto foi registrado apenas se guardou o “santificar o sábado”. Outro exemplo está em Deuteronômio quando Deus diz para Moisés que “poderás degolar do teu gado e do teu rebanho … como te ordenei” (Deuteronomio 12:21) mas não existe um registro escrito na própria Bíblia que explique de que maneira isto deveria ser feito.

Assim vamos que mesmo que tenha surgido um registro escrito das leis muita coisa ficou de fora dele ainda, era uma tradição oral que foi mantida até muito depois.

E essa ausência de registros faz parte da cultura religiosa, como já afirmou o Rabino Aryeh Kaplan, “Visto que a Torá Escrita mostra-se primariamente incompleta a menos que complementada pela tradição oral…”.

Assim vemos que mesmo com a escrita a tradição oral sempre foi muito forte, e permanece assim até hoje.

5 – Mas não foi Moisés que escreveu a Torá? Essa parte não é tão antiga quanto ele? Qual o texto mais antigo da Tanakh?

De acordo com os cálculos de Jerónimo de Stridon, Moisés teria vivido entre 1592 a.C. e 1472 a.C., então se foi ele mesmo que escreveu a Torá ela teria que datar desta época. Mas embora a tradição reze que o pentateuco, os cinco livros de Moisés (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) sejam os livros mais antigos, como evidência, o pedaço de documento mais antigo encontrado até hoje datam de 100 a.C.

Em 1947 foram encontrados em uma caverna de Q’umran os textos bíblicos mais antigos. O livro bíblico mais antigo que se tem notícias hoje de existir é o Livro de Isaías, um rolo de pergaminho de 7 metros datado do ano 100 a.C.. O Livro de Isaías, com mais de dois mil anos de idade, é uma prova única da autenticidade da tradição da Sagrada Escritura, pois o seu texto concorda com a redação das Bíblias atuais.

Ou trocando a ordem, o Livro de Isaías que temos hoje nas Bíblias é o mesmo que usavam em 100 a.C.

Antes desta descoberta os manuscritos mais antigos existentes datavam principalmente do século III e IV.

Além deste, o documento mais antigo com um trecho apenas da Bíblia é uma passagem de um dos livros de Samuel, escrito em torno de 225 a.C. então como evidência real o trecho bíblico mais antigo nos chegou direto do século III a.C. e o livro bíblico mais antigo do século I a.C.

Agora isso não significa que esses textos tenham surgido nessa época. As descobertas de Q’umran mostram bem que um documento existente não prova que tenha sido o primeiro, graças ao manuscritos encontrados vimos que documentos com mais de 700 anos de idade surgiram daqueles que eram os textos mais antigos. Pergaminhos podem ser resistentes mas eles se perdem e assim evidências valiosas dos txtos se perdem com eles. E isto pode ser um problema.

Já que os textos em parte se baseavam em uma tradição oral, como podemos ter certeza de que o que foi registrado era ainda uma descrição fiel dos ocorridos, ou uma cópia exata dos fatos?

Antes de mais nada vamos imaginar que os escritores originais acreditavam em Deus e acreditavam que estavam registrando a Sua Vontade e a história de Seu povo. Imaginem o zelo de uma pessoa que deseja registrar um texto que está chegando a ela diretamente do criador. E mais, ela ainda tem o peso de ter que passar isso de forma que não existam erros ou dúvidas para as gerações presentes e futuras. Voltando para a Torá esse zelo aparece na passagem em que antes de morrer Moisés revisa a tradição passada por Deus que não havia sido registrada para esclarecer qualquer ponto que pudesse dar margens à dúvida ou interpretação: “Além do Jordão, na terra de Moab, começou Moisés a explicar esta Lei” (Deuteronômio 1:5). Mas veja que não existem registros ainda destas explicações, a preocupação não era registrar, mas passar adiante.

Ainda existe outro ponto interessante que é a resistência do próprio Deus de se registrar tudo o que se passasse. Sem querer ser leviano, era algo como: Passei os registros que impostavam ser registrados, agora obedeçam, não percam tempo escrevendo qualquer coisa que Eu diga!

Em Eclesiastes 12:12 lemos: “Escuta ainda, filho meu: escrever livros é tarefa sem fim, e muito estudo esgota a carne”. Ou em Oséias 8:12: “Se tivesse escrito a maioria de minha Torá, [Israel] seria contado igual a estranhos”, onde vemos a tradição como algo que deveria permanecer dentre o povo e não ser acessível ou passada para estranhos.

Assim temos uma relutância entre começar um registro da Vontade Divina, gravando-a para o futuro. Mas esse registro aconteceu, ao menos em parte. Para ver qual o impacto disso na acuidade do registro vamos fazer um exercício: imagine que Deus passou uma importante lei para o seu bisavô, que por sua vez a passou para seu pai, seu pai para você e você decide registrá-la para que não se perca. Você tem como saber que está registrando exatamente o que foi passado para seu antepassado não tão distante?

Claro que podemos afirmar que se algo é repetido diariamente ele permanece íntegro. Mas temos casos quotidianos que mostram que não é bem assim que a coisa funciona. Uma expressão muito conhecida hoje é “cor de burro quando foge”, mas ela acaba sendo aplicada em inúmeras situações que implicariam significados diversos. Estudando a origem da frase vemos que ela não se referia a uma mudança na coloração do asinino quando ele bate em retirada, e sim a um ditado que originalmente era: “corro de burro quando foge”. Um burro é um animal dócil, quando ele se irrita e sai correndo se torna um animal perigoso, a expressão significaria algo como: “quando a situação fica preta eu não perco tempo: dou no pé!”.

Vemos ai um caso de tradição oral que perde o sentido com o tempo e o uso. Um exemplo de outra tradição oral que não perde o sentido simplesmente mas muda de sentido completamente quando registrada é a famosa: “Quem tem boca, vai a Roma”. Se consultarmos o Dicionário de Máximas, Adágios e Provérbios, de Jayme Rebelo Hespanha (1936), a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (1948), o Grande Dicionário da Língua Portuguesa de António de Morais Silva (1949 a 1959), o Livro dos Provérbios Portugueses, da Editorial Presença (1999) e Dicionário de Provérbios, Adágios, Ditados, Máximas, Aforismos e Frases Feitas, da Porto Editora (2000) podemos atestar que este provérbio está registrado há muito tempo já, desde 1936 pelo menos, e que ainda existem variantes dele: «Quem tem língua vai a Roma»; «Quem língua tem a Roma vai e de Roma vem»; «Quem tem língua a Roma vai e vem».

Em cima disso existem estudos sobre o significado dele, como por exemplo:

” A frase «Quem tem boca vai a Roma» traduz a notoriedade da Cidade Eterna, mas também a verdade de que quem sabe perguntar consegue chegar seja onde for (literal e figuradamente), consegue obter os conhecimentos de que precisa para se orientar. As palavras-chave aqui são três: boca, vai e Roma. A boca significa a capacidade de falar, de perguntar, de comunicar; o verbo ir tem que ver com o percurso, a caminhada, significando passar de um lugar a outro, deslocar-se, mas também evoluir, progredir; Roma fora, aquando do Império Romano, a capital, a cidade mais importante do mundo conhecido dos europeus, mas uma cidade que ficava longe, sob o ponto de vista dos mais remotos territórios que constituíam o vasto império, e, por outro lado, esta é a cidade cabeça da Igreja Católica, traduz a própria Igreja, o seu governo, o papado, significando para os católicos o que de melhor existe e que se procura alcançar. Chegar a Roma poderá ser difícil, mas quem tem a capacidade de falar ultrapassará os obstáculos e alcançará o que pretende: conseguirá chegar longe, até conseguirá chegar a Roma.

Roma entrou no adagiário por causa da sua importância, do seu valor, do seu mérito, e não por aspectos negativos: «Roma locuta est» (= «Roma falou»: se Roma falou, o que ela disse deve ser seguido pelos católicos); «Roma locuta, causa finita» (= «Roma falou, a causa acabou»); «Roma e Pavia não se fizeram num dia»; «Em Roma, sê romano»; «Todos os caminhos vão dar a Roma», «O que vai aqui não vai em Roma».”

Agora se passarmos algum tempo lendo livros protestantes encontramos uma versão diferente deste adágio dizendo: Quem tem boca vaia (do verbo vaiar) Roma. Vamos nos lembrar agora que os protestantes se tornaram protestantes por protestar contra a Santa Sé Católica, personificada por Roma, como vimos no estudo acima. A origem do adágio não tinha como objetivo mostrar que com vontade chegamos ou conseguimos o que quisermos mas como crítica contra a corrupção do Clero.

Existe algum debate sobre qual o adágio original, mas isso serve apenas para mostrar como a tradição oral pode sofrer mutações nos significados de seus ensinamentos e como depois de registrados eles se tornam uma base que pode ser falha. Imagine que existisse no Novo Testamento uma passagem dizendo como Jesus, durante a Santa Ceia havia dito aos apóstolos que quem tem boca vai a Roma. E imagine que recentemente se encontrasse um pergaminho datado do século I com a mesma passagem contendo a variante “vaia Roma”. Como poderíamos ter certeza do que o Messias disse naquela noite?

Claro que nesses dois casos podemos dizer que são expressões populares que não podem ser comparadas a um ensinamento religioso passado por Deus aos Homens, mas podemos ver um outro caso onde algo semelhante ocorre.

Elvis Aaron Presley foi um homem admirado por muitos, em alguns casos essa admiração beirava a histeria e a mania. Ele nasceu em 1935 e morreu em 1977, mas se tornou febre só após os anos 1950 quando começa a sua carreira profissional.

O interessante de pensarmos em Elvis, é que este período em que virou uma febra cheio de fãs é bem recente, dos anos 1950 para os dias de hoje não transcorreram nem 60 anos. E em parte deste período ele esteve vivo ainda. No auge de sua carreira as pessoas desejavam por cada detalhe sobre sua vida que pudessem por as mãos e assim a mídia supria essas pessoas com tudo que pudesse imaginar, relatos de conhecidos e do próprio Elvis, entrevistas registradas, filmes, etc… Uma das manias de Elvis que ficou registrada era seu gosto por um sanduíche que ficou conhecido como Sanduíche de Elvis. É raro encontrar um fã que não tenha ouvido falar dele e muitos já o experimentaram, mas ai existe um problema interessante: não existe uma receita oficial aceita. As maiores biografias do Rei registram essa iguaria, dando também a receita, mas as receitas são diferentes.

O sanduíche era simples, Elvis morreu há pouco mais de 30 anos, três décadas, haviam cozinheiros, amigos, familiares, mas parece que cada um se lembra do sanduíche de maneira diferente. Alguns diziam que consistia de pão de forma, bananas fritas, manteiga de amendoim e bacon. Outros que não havia bacon, existem aqueles que dizem que havia sorvete, outros geléia.

Isto pode parecer uma comparação boba, mas não é. Se em três décadas uma simples receita de sanduíche se perde, por ficar apenas no boca a boca, imagine textos passados por Deus que ficaram no boca a boca por séculos antes de serem registrados?

Um último exemplo é talvez mais simples. Pare agora para cantar o hino nacional do Brasil. Então escreva numa folha de papel. Depois pare 5 pessoas na rua, de forma aleatória e peça para elas cantarem, anote a letra ou grave, e depois compare com a sua, veja se o hino que é cantado em escolas, jogos de futebol e pronunciamentos da república é passado oralmente da mesma forma por todas as pessoas.

Então embora a tradição oral seja tão antiga quanto um povo, essa tradição pode muitas vezes mudar desde quando foi formulada e repassada a primeira vez até finalmente ser registrada.

Portanto mesmo que Moisés tenha começado a registrar os textos da Bíblia não temos como saber o quanto eles se aproximam da tradição original que os criou. Assim temos que nos ater ainda aos textos mais antigos encontrados e compará-los com os textos que temos hoje para se ter uma idéia de a quanto tempo um texto como o que temos hoje é usado.

6 – Deixando a tradição oral de lado então, quando foi que os textos que compõe a Tanakh foram escritos originalmente?

Como vimos, a Tanakh é composta por três divisões: Torá, Neviim e Kethuvim.

A tradição judaica mais antiga defende que a Torá existe desde antes da criação do mundo e foi usada como um plano mestre do Criador para construir o mundo a humanidade e principalmente o povo judeu. No entanto, a Torá como conhecemos teria sido entregue por Deus a Moisés (que como vimos teria vivido entre 1592 a.C. e 1472 a.C.), quando o povo de Israel, após sair do cativeiro no Egito, peregrinou em direção à terra de Canaã.

Então aqui, culturalmente, teríamos uma primeira data. Apesar do mundo – de acordo com a Bíblia – ter sido criado milênios antes do cativeiro – precisamente 6000 antes de Cristo, de acordo com a tradição da época – ela teria sida recebida pelos humanos através de Moisés. Então – culturalmente – até o livro do Êxodo a Tanakh não circulava por ai. Portanto a Bíblia mais antiga, ainda culturalmente falando, deveria datar do séc. XVI a.C. A ênfase no culturalmente é: de acordo com o senso comum esta seria uma data, apesar da falta de evidências físicas para provar ou desmentir essa data.

Então, existem os que defendem que , ainda que a essência da Torá tenha sido trazida por Moisés, a compilação do texto final foi executada por outras pessoas, já que os textos tratam de assuntos que incluem a morte do próprio Moisés, tornando difícil para ele escrever sobre isso.

De acordo com Jan Astruc, pioneiro na sistematização do estudo do desenvolvimento da Torá, a mesma é constituída por três fontes básicas, denominadas jeovista, eloísta e código sacerdotal, e mais algumas outras fontes além destas três. Deixando claro que, quando se fala destas fontes, ele não se refere a autores isolados mas sim a escolas literárias.

Um estudo sobre a história do antigo povo de Israel mostra que, apesar de tudo, não havia uma unidade de doutrina e desconhecia-se uma lei escrita até os dias de Josias (16º rei de Judá, reinou durante o período de 640 a.C. a 609 a.C.). As fontes jeovista e eloísta teriam sua forma plenamente desenvolvida no período dos reinos divididos entre Judá e Israel (onde surgiria também a versão conhecida como Pentateuco Samaritano). O livro de Deuteronômio só viria a surgir no reinado de Josias (621 a.C.). A Torá como conhecemos viria a ser terminada nos tempos de Esdras, onde as diversas versões seriam finalmente fundidas. Vemos então o início de práticas que eram desconhecidas da maioria dos antigos israelitas, e que só seriam aceitas como mandamentos na época do Segundo Templo (de 515 a.C. a 70 d.C.) como a Brit milá, Pessach e Sucót por exemplo.

Então datar a Tanakh se torna complicado, pois apesar de ter condições de existir desde o século XVI a.C. – a época de Moisés – culturalmente o povo Judeu só teria condições de ter o livro nas mãos da forma que temos hoje depois do século VI a.C.

7 – E quando juntaram todos esses textos em um único volume?

Aproximadamente no século VI d.C. um grupo de escribas judeus recebeu a missão de reunir os textos inspirados por Deus que eram utilizados pela comunidade hebraica em um único escrito. Este grupo foi batizado de Escola de Massorá – o termo “massorá” provém do hebraico “mesorah” (מסורה ou מסורת) e indica “tradição”.

Os “massoretas” escreveram a Bíblia de Massorá, examinando e comparando todos os manuscritos bíblicos conhecidos à época. O resultado deste trabalho ficou conhecido posteriormente como o “Texto Massorético”.

Então na nossa linha do tempo a versão original do texto do Antigo Testamento da Bíblia, a Tanakh, se conclui finalmente no século VI d.C. 2200 anos depois de Moisés, aproximadamente.

8 – E então a Tanakh virou a Bíblia? O Antigo Testamento só ficou pronto depois de Cristo, depois do Novo Testamento?

Não, nada disso. O Texto Massorético foi extremamente importante porque deu uma unidade que não existia ainda nos textos judaicos. Apesar de ter sido escrito e compilado apenas no século VI, haviam já outras versões do Antigo Testamento circulando e muitas pessoas dão a elas mais importância do que a do Texto Massorético.

As outras versões existentes antes eram o Pentateuco Samaritano, que vimos lá atrás, e a Septuaginta.

9 – Preciso perguntar?

Não, não precisa.

O Pentateuco samaritano ou Torá samaritana é o nome que se dá à Torá usada pelos judeus samaritanos.

Os Samaritanos são um pequeno grupo étnico-religioso aparentado aos judeus que habita nas cidades de Holon e Nablus situadas em Israel e na Cisjordânia respectivamente. Designam-se a si próprios como Shamerim o que significa “os observantes” (da Lei). Os samaritanos recusam o restante dos livros do Tanakh, aceitando apenas sua Torá como livro inspirado.

O Pentateuco samaritano está escrito no alfabeto Samaritano, que é diferente do hebraico e era a forma de escrita usada antes do cativeiro babilônico (cerca de 597-586 a.C). Além da linguagem diferente existem outras discrepâncias entre o Texto Massorético e a Torá Samaritana. Um exemplo é que na versão Samaritanda dos 10 mandamentos Deus comanda o povo que construa o altar no Monte Gerizim.

Agora temos que ter em mente que o Pentateuco Samaritano ficou conhecido mundialmente quando Pietro della Valle trouxe de Damasco em 1616 uma cópia do texto.

Mesmo assim essa versão do Texto Samaritano não é absoluta. Em Q’umran foram encontrados fragmentos de textos da Torá que combinam com o Texto Massorético e são diferentes do texto samaritano, como por exemplo não trazer nenhuma referência ao Monte Gerizim. Ou seja existem diferentes versões deste texto.

Já a Versão dos Setenta, ou Septuaginta Grega, é como ficou conhecida a tradução grega do Antigo Testamento, elaborada entre os séculos IV e II a.C., feita em Alexandria, no Egito. O seu nome surgiu da lenda que dizia que essa tradução foi o resultado milagroso do trabalho de 70 (em alguns casos se citam 72) eruditos judeus que pretende exprimir que não só o texto, mas também a tradução, havia sido inspirada por Deus. De acordo com a dita lenda, cada sábio foi confinado a um aposento e não poderia ter contato com nenhum dos outros, para que não influenciassem um na tradução do outro, no final todas as traduções eram idênticas – vale notar que não existe hoje registro ou evidências arqueológicas dessas 70 ou 72 traduções originais. A Septuaginta Grega é a mais antiga versão do Antigo Testamento que conhecemos. A sua grande importância provém também do fato de ter sido essa a versão da Bíblia utilizada entre os cristãos desde que surgiram e a que é citada em grande parte do Novo Testamento. Então é importante ter em mente que grande parte das menções que o Novo Testamento faz do Antigo Testamento são tiradas não do texto original, mas da tradução que fizeram do original para o grego.

Da Septuaginta Grega fazem parte, além da Bíblia Hebraica, a Tanakh, os Livros Deuterocanônicos (aceitos como canônicos apenas pela Igreja Católica) e alguns escritos apócrifos (não aceitos como inspirados por Deus por nenhuma das religiões cristãs ocidentais).

10 – E finalmente temos a Bíblia…

Ainda não.

Preste atenção que até o momento todas essas versões que vimos do Texto da Lei, dos livros dos Profetas e dos Escritos eram usadas por Judeus. Não haviam cristãos ainda no mundo, mesmo o texto massorético do século VI d.C. ainda diz respeito aos judeus, foi compilado por judeus para os judeus. E para entender o surgimento do que os cristãos chamam de Bíblia temos que entender o que era o cristianismo, e não estamos falando de Jesus.

Os Judeus sempre se dividiram em vários grupos e todos eles, em um determinado momento, esperavam a vinda do Messias para unir o povo sob a Lei de Deus e trazer consigo um período de paz. O advento do Cristianismo foi a divulgação que de esse Messias teria finalmente chegado, na figura de Jesus, e então através de Cristo o povo teria uma nova aliança com Deus.

Mas a importância histórica disso não foi a maneira como o povo enxergava Cristo – se era ou não o messias judeu – e sim a mudança que ele trouxe para a fé judaica. Os primeiros cristãos, ou seja, as primeiras pessoas que pregavam a filosofia de Cristo e que a seguiam, eram todos judeus, a briga começou quando alguns deles começaram a defender que, como a mensagem de Cristo era para todos, os gentios – não judeus – poderiam compartilhar a mesma fé, deixando de lado alguns costumes judaicos, como por exemplo a circuncisão. Veja que a circuncisão foi usada por Abrahão para mostrar que estava a serviço de Deus, desde então todo Judeu deveria ser circuncidado; imagine o que era então para muitos dos cristãos judeus, terem que aceitar que pessoas que não faziam parte da crença judaica e que não obedeciam a certos costumes judeus fossem aceitas em seu grupo, um grupo formado por judeus que seguiam o messias do judaismo.

Isso criou a necessidade de um material para divulgar a crença judaica – não havia novo testamento ainda – para os novos convertidos, que não eram judeus, para eles se familiarizarem com as leis e a vontade divina, com o seu Deus, etc. Apesar do Judaísmo não ser a religião mais antiga, até hoje muitos afirmam que ela foi a religião monoteísta mais antiga, então os novos convertidos ao judaísmo cristão tinham que conhecer essa filosofia e essa religião antes de qualquer coisa já que Jesus não pregava uma nova religião, Jesus pregava o judaísmo, com algumas mudanças.

Quando o cristianismo começou a se espalhar pelo Império Romano, ou seja, quando o judaísmo começou a crescer e a divuldar a mensagem de que o Messias havia chegado e trazido com ele novas Leis de Deus, surgiu um novo público para a fé, não apenas os gentios que viviam na região do oriente médio, mas também os romanos, e assim nasceu uma nova necessidade de se traduzir os escritos sagrados para os cristãos que não liam nem grego nem hebraico.

Essa tradução surgiu no século I e foram realizadas por tradutores informais. Ficou conhecida como a Vetus Latina. Podemos dizer que ela foi a primeira versão da Tanakh para cristãos e mesmo assim não era carregada debaixo do braço para cima e para baixo; era usada como forma de catequese, para se criar uma base comum para todos: “se querem se beneficiar da salvação e das boas novas trazidas pelo Messias, estes textos são o mínimo que vocês tem que conhecer!” foi nesta época que a Tanakh começou a ser compartilhada com não judeus e deixou de ser um texto exclusivo da religião judaica. Um ponto importante para se ter em mente aqui é grande parte dos novos convertidos eram analfabetos, os textos eram lidos para eles, que absorviam a mensagem e tentavam viver de acordo com ela, em encontros grupais a mensagem era repetida e dúvidas tiradas. Ninguém levava para casa a cópia de um texto para ficar lendo.

11 – Então a primeira Bíblia Cristã surgiu no século I?

Não da forma como temos a Bíblia hoje. A Vetus Latina não era uma bíblia ainda. Como dissemos ela foi feita por tradutores informais, isso significa que pedaços dos textos antigos, tanto os judaicos quanto os gregos eram traduzidos de acordo com a necessidade. Assim ela não era uma Bíblia Latina. Ela era mais uma gambiarra para poder mostrar ao povo que não estava familiarizado com os textos Judeus a religião e então ter um texto que eles pudessem compreender e usar como base quando se convertessem. E mesmo assim suas primeiras versões não traziam os textos conhecidos como o Novo Testamento. Eles só surgiram nos séculos seguintes. E ainda não era um livro fechado, eram traduções avulsas de pedaços separados da Tanakh, muitas vezes nem eram os livros inteiros, mas os fragmentos que pareciam ser importantes, que foram sendo distribuídos e usados e só com o tempo foi crescendo e recebendo os livros que temos hoje do Novo Testamento.

Os textos da Vetus Latina chegaram até nós através de vários códices.

Os códices (ou codex, da palavra em latim que significa “livro”, “bloco de madeira”) eram os manuscritos gravados em madeira, em geral do período da era antiga tardia até a Idade Média. Manuscritos do Novo Mundo foram escritos por volta do século XVI.

O códice é um avanço do rolo de pergaminho e gradativamente substituiu este último como suporte da escrita. O códice, por sua vez, foi substituído pelo livro impresso.

Os códices mais conhecidos da Vetus Latina são:

Códice Bobienus (K) – séc. IV. É um manuscrito africano em Unçais. Contém fragmentos dos Evangelhos de Marcos e Mateus;

Códice Vercellensis (a) – Séc. IV. Texto em Unçais. Contém todos os quatro Evangelhos;

Códice Bezae (q) – Séc. V. É um manuscrito bilingüe, com o Grego no verso e o Latim na frente. Contém os quatro Evangelhos, Atos e 3 João;

Códice Monacensis 13 (q) – Séc. VI-VII. Texto em Unçais. Contém os quatro Evangelhos;

Palimpsest 53 (s) – Séc. VI. Conhecido também como Bobiensis ou Vindobonensis. Texto em meio unçal. Contém fragmentos dos Atos e as 14 Cartas Católicas.

Os textos da Vetus Latina organizados como um único livro foram encontrados em manuscritos tardios, datados do séc. XIII. Muitas das versões nem chegaram a ser  consideradas autorizadas como traduções bíblicas que poderiam ser usadas por toda igreja – veja que nesta época já havia uma igreja cristã regulamentando que textos podiam e não podiam ser usados. A estas traduções precedentes, muitos estudiosos adicionam freqüentemente citações das passagens bíblicas que aparecem nos escritos dos Pais da igreja Latina.

Mas para se ter uma idéia da bagunça que era, mesmo com a boa vontade dos primeiros tradutores era inevitável que diferentes traduções acabassem ficando diferentes entre si. Depois de comparar a leitura de Lucas 24,4-5 nos manuscritos da Vetus Latina, Bruce Metzger contou “não menos que 27 variações!”. Agora imaginem os pais da igreja com esses textos uns diferentes dos outros pregando o cristianismo sem uma base ainda para qual era a versão correta do texto.

Os livros bíblicos reunidos no conjunto de manuscritos disponíveis da Vetus Latina são:

VETUS TESTAMENTUM
Genesis
Exodus
Leviticus
Numeri
Deuteronomium
Josue
Judicum (Juízes)
Ruth
1-4 Regum (1 e 2 Reis (1 e 2 Samuel) e 3 e 4 Reis (1 e 2 Reis))
1-2 Paralipomenon (Paralipômenos ou Crônicas)
Esdras
Nehemias
3-4 Esdras
Tobit
Judith
Hester
Job
Psalmi (Salmos)
Proverbia
Ecclesiastes
Canticum Canticorum
Sapientia (Sabedoria de Salomão)
Sirach, Ecclesiasticus (Sabedoria de Sirac ou Eclesiástico).
Esaias (Isaías)
Jeremias (Lamentationes, Baruch)
Daniel
XII Prophetae (Doze Profetas)
I-II Macchabaeorum (1 e 2 Macabeus).

NOVUM TESTAMENTUM
Matthaeus
Marcus
Lucas
Johannes
Actus Apostolorum
Ad Romanos
Ad Corinthios I
Ad Corinthios II
Galatas
Ad Ephesios
Ad Philippenses
Colossenses
Ad Thessalonicenses
Timotheum
Ad Titum
Philemonem
Hebraeos
Epistulae Catholicae (1 e 2 Pedro; 1, 2 e 3 João; Tiago e Judas)
Apocalypsis Johannes

Mas esses livros foram surgindo com o tempo assim no século I a maioria destes textos ainda não existia e eles ainda não estavam juntos em um único livros. Muitas comunidades usavam apenas alguns deles. Se você pegar uma bíblia moderna vai ver que alguns desses textos antigos nem constam mais hoje como livros canônicos.

12 – E a Bíblia que existe hoje veio da Vetus Latina?

Não.

Como vimos, o texto “definitivo” – entre aspas porque ainda não é aceito por todo como unânime – do judaísmo, surgiu no século VI d.C., a versão destinada para cristãos ainda levou mais algum tempo para surgir.

No século IV d.C. Dâmaso (hoje conhecido como São Dâmaso ou ainda como Papa Dâmaso I) pediu que Jerônimo (conhecido como São Jerônimo, o padroeiro dos bibliotecários e das secretárias), criasse uma versão autorizada da Bíblia na língua latina. A idéia era parar com a enormidade de textos avulsos que surgiam, traduzidos por pessoas diferentes conforme a necessidade individual e criassem um texto padrão, que pudesse ser usado por todos, e assim eles saberiam que um cristão da África havia recebido exatamente a mesma doutrina de um cristão da Espanha, por exemplo, acabando assim com variações de um mesmo texto.

Jerônimo então reviu a Septuaginta grega e os textos da Vetus Latina e decidiu que a melhor coisa a fazer era jogar tudo for a e começar a criar o texto oficial da Bíblia Cristã a partir do zero. Este trabalho ele batiza de Vulgata. O nome vem da frase “versio vulgata”, isto é “versão dos vulgares”, e foi escrito em um latim cotidiano, que era a forma antiga de se dizer: “escrito em um latim atual e popular”.

Até então a igreja[2] usava textos na língua grega, foi inclusive nesta língua que se escreveu todo o Novo Testamento, incluindo a Carta aos Romanos, de Paulo, bem como muitos escritos cristãos nos séculos seguintes.

A Vulgata foi produzida para ser mais exata e mais fácil de compreender do que suas predecessoras. Foi a primeira, e por séculos a única, versão da Bíblia que possuiu os textos do Velho Testamento traduzidos diretamente do hebraico e não da versão grega (a Septuaginta). No Novo Testamento, Jerônimo selecionou e revisou textos. Ele inicialmente não considerou canônicos os sete livros, chamados por católicos e ortodoxos, de deuterocanônicos. Porém, trabalhos posteriores mostram sua mudança de conceito, pelo menos a respeito dos livros de Judite, Sabedoria de Salomão e o Eclesiástico (ou Sabedoria de Sirac), conforme atestamos em suas últimas cartas a Rufino.

13 – Perai, Jerônimo não considerou como canônico alguns livros? Mas quem decidia o que era canônico ou não? E o que é canônico?

Vamos começar de trás para frente.

Um cânone ou cânon normalmente se caracteriza como um conjunto de regras (ou, frequentemente, como um conjunto de modelos) sobre um determinado assunto, em geral ligado ao mundo das artes e da arquitetura. A canonização é a sistematização deste conjunto de modelos. Cânone, em hebraico é qenéh e no grego kanóni, têm o significado de “régua” ou “cana (de medir)”, no sentido de um catálogo.

O Cânone Bíblico designa o inventário ou lista de escritos ou livros considerados pelas religiões cristãs como tendo evidências de Inspiração Divina.

Quanto a quem decidia se um livro era canônico ou não é uma história interessante. Vamos responder juntamente com as próximas questões.

14 – Bom, então com a criação da Vulgata nós temos uma Bíblia, ou ainda não?

Glória aos Céus! Agora sim.

A Vulgata se tornou a primeira versão fechada da Bíblia, com todos os textos que temos hoje. Mesmo assim ela ainda passou por alguns ajustes que levaram mais alguns séculos. Finalmente entre os anos de 1545 e 1563 a igreja católica realizou seu 19º concílio ecumênico, também conhecido como o Concílio de Trento. Ele foi convocado pelo Papa Paulo III para assegurar a unidade da fé (sagrada escritura histórica) e a disciplina eclesiástica. O concílio tem este nome em referência à cidade de Trento, onde transcorreu, e nele foi estabelecido um texto único para a Vulgata, a partir de vários manuscritos existentes, e oficializado como a Bíblia oficial da Igreja. Esta Bíblia ficou conhecida como Vulgata Clementina.

Após o Concílio Vaticano II, por determinação de Paulo VI, foi realizada uma revisão da Vulgata, sobretudo para uso litúrgico. Esta revisão, terminada em 1975, e promulgada pelo Papa João Paulo II em 25 de abril de 1979, é denominada Nova Vulgata, estabelecendo esta como a nova Bíblia oficial da Igreja Católica.

15 – Mas a Bíblia só passou a existir desta forma no século XVI, ou no século XX?

Não extamente. Existem alguns fatos que devem ser levados em consideração quando falamos de o texto final e definitivo da Bíblia. Existe um processo por trás que durou séculos e que está em andamento até hoje.

Por exemplo, se levarmos em conta os textos sagrados em si, a Bíblia levou 1600 anos para ser escrita. Já que teoricamente ela começou a ser registrada na época de Moisés (cerca de 1500 a.C.) e terminou com o evangelho de João (cerca de 96 d.C.). Essa é a datação cultural dos textos.

Mesmo assim na época do evangelho de João, no final do século I d.C.,  não havia unidade nos textos. Para se ter idéia, os textos só passaram a ser conhecidos como Bíblia com Jerônimo (cerca de 347d.C. – 419/420 d.C.), que chamou pela primeira vez ao conjunto dos livros do Antigo Testamento e Novo Testamento de “Biblioteca Divina”. “Bíblia”, inclusive, é uma palavra que não aparece na Bíblia. Ela vem do termo grego biblos, por causa da cidade fenícia de Biblos, um importante centro produtor de rolos de papiro usados para fazer livros. Com o tempo, a palavra biblos passou a significar “livro”. Biblia é a forma plural (“livros”).

Então a primeira Bíblia oficial foi organizada, compilada e preparada pela igreja católica nos séculos IV e V d.C. como já vimos.

Mas antes de Jerônimo por a mão na massa tiveram que decidir quais dos textos existentes fariam parte da Bíblia, afinal além dos textos que temos hoje haviam dezenas, mesmo centenas de outros que circulavam na época.

E agora voltamos à pergunta 13: quem decidia que livros fariam parte da Bíblia?

Sempre houve uma preocupação muito grande de se ter as informações corretas sobre Deus e sobre as maneiras corretas de seguir suas leis e mandamentos, de honrá-lo e adorá-lo. Como dissemos lá na introdução, a Bíblia nasceu de uma necessidade dos povos de se manterem fiéis à fé, não como livro de regras a ser instituído a todos os povos. No início queriam apenas juntar os textos que julgavam pertinentes e sinceros em relação à fé. Assim durante a história muitos estudiosos, religiosos se reuniram e estudaram para analisar que textos eram de fato textos enviados por Deus ou eram textos sérios e quais seriam invenções ou simplesmente opiniões de outros religiosos e escritores.

Hoje muitas pessoas acreditam que o primeiro trabalho sério de se decidir quais seriam os textos aceitos pelos cristãos e que fariam parte da Bíblia foi o Concilio de Nicéia, realizado em 325 d.C., vinte e dois anos antes de Jerônimos começar seu trabalho. Embora algumas obras afirmem que no Concílio de Nicéia discutiu-se quais evangelhos fariam parte da Bíblia, quando pegamos os documentos que existem hoje sobre esta reunião não há menção de que esse assunto estivesse em pauta, nem nas informações dos historiadores do Concílio, nem nas Atas do Concílio que chegaram a nós em três fragmentos: o Símbolo dos apóstolos, os cânones, e o decreto senoidal.

No ano de 150 d.C. Marcião, um cristão muito influente na época, propôs uma lista dos livros que deveriam fazer parte do conjunto de livros religiosos do cristianismo. Nesta lista ele considerou apenas o Evangelho de Lucas e as cartas paulinas como textos inspirados. Essa lista ficou conhecida como o Cânone de Marcião.

No ano de 1740 foi publicado o Cânone Muratori – também conhecido por fragmento muratoriano ou fragmento de Muratori – descoberto na Biblioteca Ambrosiana de Milão por Ludovico Antonio Muratori (1672 – 1750). Apesar de ser consensual datar o manuscrito como sendo do século VII, ele é cópia de um texto mais antigo, datado como tendo sido escrito por volta do ano 170, já que nele existem menções ao Pastor de Hermas e ao papado de Pio I, morto em 157.

Na lista figuram os nomes dos livros que o autor, desconhecido até os dias de hoje, considerava admissíveis junto com alguns comentários. A lista está escrita em latim e encontra-se incompleta, daí ser chamada de fragmento.

Os livros canônicos mencionados no Cânone Muratori são aproximadamente os mesmos que se encontram hoje na Bíblia com algumas variações. O Cânone de Muraori aceita quatro evangelhos, dos quais dois são o Evangelho de Lucas e o Evangelho de João, não se conhecendo os outros dois, pois falta o princípio do manuscrito, onde estariam os nomes dos dois primeiros. A lista segue com os Atos dos Apóstolos e com 13 epístolas de Paulo de Tarso (não menciona a Epístola aos Hebreus). O autor considera falsificações as epístolas supostamente escritas por Paulo aos laodiceanos e a escrita aos alexandrinos. Nele só se mencionam duas epístolas de João, sem as descrever. Figura também no fragmento o Apocalipse de Pedro, ainda que com certas reservas (“o qual alguns dos nossos não permitem que seja lido na Igreja”).

O Livro da Sabedoria do Antigo Testamento também é citado como sendo canônico.

No Cânone de Muratori está escrito:

“…aos quais esteve presente e assim o fez. O terceiro livro do Evangelho é o de Lucas. Este Lucas ‘médico que depois da ascensão de Cristo foi levado por Paulo em suas viagens’ escreveu sob seu nome as coisas que ouviu, uma vez que não chegou a conhecer o Senhor pessoalmente, e assim, a medida que tomava conhecimento, começou sua narrativa a partir do nascimento de João. O quarto Evangelho é o de João, um dos discípulos.

Questionado por seus condiscípulos e bispos, disse: ‘Andai comigo durante três dias a partir de hoje e que cada um de nós conte aos demais aquilo que lhe for revelado’. Naquela mesma noite foi revelado a André, um dos apóstolos, que, de conformidade com todos, João escrevera em seu nome.

Assim, ainda que pareça que ensinem coisas distintas nestes distintos Evangelhos, a fé dos fiéis não difere, já que o mesmo Espírito inspira para que todos se contentem sobre o nascimento, paixão e ressurreição [de Cristo], assim como sua permanência com os discípulos e sobre suas duas vindas ´ depreciada e humilde na primeira (que já ocorreu) e gloriosa, com magnífico poder, na segunda (que ainda ocorrerá).

Portanto, o que há de estranho que João freqüentemente afirme cada coisa em suas epístolas dizendo: ‘O que vimos com nossos olhos e ouvimos com nossos ouvidos e nossas mãos tocaram, isto o escrevemos’? Com isso, professa ser testemunha, não apenas do que viu e ouviu, mas também escritor de todas as maravilhas do Senhor.

Os Atos foram escritos em um só livro. Lucas narra ao bom Teófilo aquilo que se sucedeu em sua presença, ainda que fale bem por alto da paixão de Pedro e da viagem que Paulo realizou de Roma até a Espanha.

Quanto às epístolas de Paulo, por causa do lugar ou pela ocasião em que foram escritas elas mesmas o dizem àqueles que querem entender: em primeiro lugar, a dos Coríntios, proibindo a heresia do cisma; depois, a dos Gálatas, que trata da circuncisão; aos Romanos escreveu mais extensamente, demonstrando que as Escrituras têm como princípio o próprio Cristo.

Não precisamos discutir sobre cada uma delas, já que o mesmo bem – aventurado apóstolo Paulo escreveu somente a sete igrejas, como fizera o seu predecessor João, nesta ordem: a primeira, aos Coríntios; a segunda, aos Efésios; a terceira, aos Filipenses; a quarta, aos Colossenses; a quinta, aos Gálatas; a sexta, aos Tessalonicenses; e a sétima, aos Romanos.

E, ainda que escreva duas vezes aos Coríntios e aos Tessalonicenses, para sua correção, reconhece – se que existe apenas uma Igreja difundida por toda a terra, pois da mesma forma João, no Apocalipse, ainda que escreva a sete igrejas, está falando para todas. Além disso, são tidas como sagradas uma [epístola] a Filemon, uma a Tito e duas a Timóteo; ainda que sejam filhas de um afeto e amor pessoal, servem à honra da Igreja Católica e à ordenação da disciplina eclesiástica. Correm também uma carta aos Laodicenses e outra aos Alexandrinos, atribuídas [falsamente] a Paulo, mas que servem para favorecer a heresia de Marcião, e muitos outros escritos que não podem ser recebidos pela Igreja Católica porque não convém misturar o fel com o mel.

Entre os escritos católicos, se contam uma epístola de Judas e duas do referido João, além da Sabedoria escrita por amigos de Salomão em honra do mesmo. Quanto aos apocalipses, recebemos dois: o de João e o de Pedro; mas, quanto a este último, alguns dos nossos não querem que seja lido na Igreja. Recentemente, em nossos dias, Hermas escreveu em Roma ‘O Pastor’, sendo que o seu irmão, Pio, ocupa a cátedra de Bispo da Igreja de Roma.

É, então, conveniente que seja lido, ainda que não publicamente ao povo da Igreja, nem aos Profetas ´ cujo número já está completo , nem aos Apóstolos ´ por ter terminado o seu tempo. De Arsênio, Valentino e Melcíades não recebemos absolutamente nada; estes também escreveram um novo livro de Salmos para Marcião, juntamente com Basíledes da Ásia…”

Então já na época haviam dúvidas a que textos eram de fato inspirados pelo Espírito de Deus e quais eram criações – sinceras ou não – de homens.

E como faziam para decidir?

Até hoje existem pessoas que tem um certo recentimento desses primeiros cristãos, que dizem que uma pessoa não teria como decidir que texto seria inspirado por Deus, diretamente ou via Espirito Santo, ainda mais porque os textos já existiam e estavam circulando, não haveria um modo seguro de se saber se o autor estava cumprindo a Vontade Deus ou simplesmente escrevendo o que achava ser correto. E assim se cria uma visão de que o caso foi resolvido através de puro dogmatismo e abuso de autoridade.

Existem estudiosos que citam Irineu (205 d.C.) afirmando que:

“O evangelho é a coluna da igreja, a igreja está espalhada por todo o mundo, o mundo tem quatro regiões, e convém, portanto, que haja também quatro Evangelhos… O Evangelho é o sopro do vento divino da vida para os homens, e pois, como há quatro ventos cardiais, daí a necessidade de quatro Evangelhos… O Verbo criador do Universo reina e brilha sobre os querubins, os querubins têm quatro formas, e eis porque o Verbo nos obsequiou com quatro Evangelhos.”

Ainda existem outras lendas e histórias de como se escolheram os textos como conta a obra Libelus Synddicus, de um autor anônimo: “estando os bispos em oração, os Evangelhos inspirados foram por si colocar-se em um altar…”

Outras lendas contam como todos os textos existentes foram colocados sobre um altar e aqueles que não eram inspirados caíram ou como uma pomba atravessou o vitral da igreja, durante o concilio de Nicéia e pousou no ombro de cada bispo e cochichou ao seu ouvido quais eram os livros inspirados.

Bem, como vimos o Concilio de Nicéia tem uma fama enorme em relação à escolha de que livros eram ou não inspirados, mas não existe um registro do evento que fale sobre o assunto, e já haviam listas, como o cânone Muratori onde os livros já eram escolhidos.

Isso sem contar que muitas destas afirmações mostram um certo descontentamento com a Instituição da Igreja Católica mas deixa de lado um pequeno detalhe: os livros sagrados judaicos da Bíblia, o Antigo Testamento, também foram criados a partir de livros aceitos e não aceitos, eles também foram peneirados. O mesmo trabalho de catalogação de um cânone oficial foi realizado pelos judeus, então este processo de identificar quais livros eram sagrados para fazer parte ou não da Bíblia não foi um trabalho unicamente cristão.

Em relação à Bíblia sabemos hoje que o bispo de Alexandria Anastásio, no ano de 367, propôs uma lista de livros inspirados. Essa lista foi posteriormente defendida no Concilio de Hipona, em 398, e a lista de Anastásio acabou sendo aprovada pelos bispos. Isso 50 anos depois de Jerônimo ter começado seu trabalho de criar a Vulgata.

E para se criar o concenso de que livros seriam aceitos foram criados uma série de critérios que deveriam ser observados, não apenas em ralação a textos cristãos mas a textos judaicos também. Nesta época a igreja já começava a se organizar e mesmo havendo vários grupos que possuíam textos próprios a idéia era começar a criar um corpo oficial de textos, literalmente um cânon. Assim os critérios adotados foram:

a) O livro deveria conferir identidade religiosa ao povo judeu e cristão.
b) O livro não poderia ser escrito em grego – isso em relação aos livros do Antigo Testamento.
c) Ainda em relação ao Antigo Testamento, o livro deveria ter sido escrito durante a época que vai de Moisés a Esdras.
d) Deveria ter sido catalogado na lista de Flávio Josefo, o historiador judeu.
e) O livro não deveria “manchar a mão”.

E finalmente dois critérios que refletiam muito bem o período histórico onde já haviam sinais do surgimento da igreja:

f) O livro não poderia ter origem em grupos de oposição ao pensamento dominante.
g) Deveria ser usado por muitas comunidades. Quanto maior fosse a aceitação de um livro, maior era a indicação que era um livro inspirado.

Se um texto passasse por esse crivo ele finalmente deveria ser reconhecido como

h) inspirado pelo Espírito Santo.

Assim para um texto passar pelo crivo religioso e ser aceito ele deveria primar pela consciência de que o povo judeu era o povo eleito, mantendo vivo essa fé como símbolo da indentidade nacional, também deveria professar a fé em Jesus crucificado, morto e principalmente ressuscitado. Se o texto fazia parte do Antigo Testamento deveria ter sido escrito originalmente em hebraico (com pequenas excessões onde o original se apresentava em aramaico) e deveria ter sido compilado até o século V a.C. na época de Esdras. Ele teria que ter estado presente nos escritos de Flávio Josefo e não poderia ter origem em grupos considerados subversivos. Por exemplo no Antigo Testamento temos o caso dos dois livros dos Macabeus, que era um dos grupos de judeus que lutava contra o império romano e desejava reestabelecer o judaísmo, eles eram inimigos dos Fariseus, que eram aqueles judeus que formavam o grupo religioso judaico que conduzia a religião judaica e que foi responsável pela criação do cânone judaico de Jâmnia. Assim os textos sobre os Macabeus não foram considerados inspirados pelos Judeus. Já no Novo Testamento os textos de origens gnósticas, que iam contra os grupos cristãos que estavam se tornando dominantes, foram descartados como fraudes. Deveria ser considerado um Best-Seller da época e aprovado por aquelas que eram consideradas as pessoas mais religiosas e ligadas a Deus.

Uma curiosidade sobre o critério e) é que nunca ficou muito claro o que os judeus queriam dizer com “manchar as mãos”. Se acreditavam que um livro impuro fosse uma aberração tão grande que mancharia aquele que o tocasse ou se havia o costume de algumas pessoas alterarem textos antigos escrevendo passagens novas e a tinta fresca seria a responsável pela mácula na mão daquele que o lesse.

Assim com o tempo os livros foram sendo aceitos e descartados da compilação final que existe hoje.

Além disso a Bíblia sempre foi apresentada como um longo texto corrido, ela foi dividida em capítulos apenas no século XIII d.C. (entre 1234 e 1242), pelo teólogo Stephen Langhton, então Bispo de Canterbury, na Inglaterra, e professor da Universidade de Paris, na França. Foi apenas nos séculos IX e X d.C. que estudiosos Judeus dividiram o Antigo Testamento em versículos. O Novo Testamento recebeu a divisão em versículos no ano de 1551, o responsável foi  um impressor francês chamado Robert d´Etiénne.

Até boa parte do século XVI, as Bíblias eram publicadas somente com os capítulos. Foi assim, por exemplo, com a Bíblia que Lutero traduziu para o Alemão, por volta de 1530. A primeira Bíblia a ser publicada incluindo integralmente a divisão de capítulos e versículos foi a Bíblia de Genebra, lançada em 1560, na Suíça.

E mesmo assim nem todas as Bíblias traziam os mesmos textos.

16 – Como assim? Com todo esse trabalho de escolher textos que eram ou não inspirados existiam Bíblias diferentes?

Sim.

Apesar da antiguidade dos livros bíblicos, os manuscritos mais antigos que possuímos datam a maior parte dos séculos III e IV d.C.. Tais manuscritos são o resultado do trabalho de copistas (escribas) que, durante séculos, foram fazendo cópias dos textos, de modo a serem transmitidos às gerações seguintes. Por causa desse processo manual e artesanal o texto bíblico, obviamente, está sujeito a erros e modificações, involuntários ou voluntários, dos copistas. E isso acaba se traduzindo na coexistência, para um mesmo trecho bíblico, de várias versões que, embora não afetem grandemente o conteúdo, suscitam diversas leituras e interpretações dum mesmo texto.

Por causa disso criou-se o que ficou conhecido como Crítica Textual, que é o trabalho desenvolvido por especialistas que se dedicam a comparar as diversas versões e a selecioná-las. O resultado deste trabalho são os Textos-Padrão.

Ou seja, existe um esforço para se descobrir quais as formas originais dos textos que temos hoje, e quais deles estariam mais próximos da forma como foram concebidos originalmente.

A grande fonte hebraica para o Antigo Testamento é o Texto Massorético, que como já vimos, foi fechada no século VI d.C.

Esses processos de cópia e produções de Bíblias combinados com as várias igrejas que se formaram depois do surgimento do cristianismo serviram para que várias versões da Bíblia sobrevivessem até os dias de hoje, cada uma com características próprias.

17 – Mas com o estabelecimento do cristianismo não houve um consenso sobre que textos fariam parte da Bíblia e que versões de cada texto era aceita?

Infelizmente não.

E para isso vamos voltar ao conceito de Cânone Bíblico e um pouco antes para o conceito de “cânone” judaico.

Segundo a literatura judaica Esdras, na qualidade de escriba e sacerdote, presidiu um conselho formado por 120 membros chamado Grande Sinagoga, que teria selecionado e preservado os rolos sagrados. Alguns acreditam que foi ai que o Cânone das Escrituras do Antigo Testamento foi fixado (Esdras 7:10,14). Entretanto esta tese é desacreditada pela crítica moderna. Os estudiosos concordam que foi essa mesma entidade que reorganizou a vida religiosa nacional dos repatriados e, mais tarde, deu origem ao Supremo Tribunal Judaico, denominado Sinédrio.

Curiosamente os Saduceus e os Samaritanos só aceitavam como canônicos os cinco livros de Moisés. Por esta razão, os especialistas especulam que Esdras tenha reunido apenas o Pentateuco, isto é, os cinco livros de Moisés.

O prólogo da versão grega do Eclesiástico, datado em 130 a.C. parece já confirmar a suspeita dos estudiosos modernos. Com efeito nele lemos: “Pela Lei, pelos Profetas e por outros escritores que os sucederam, recebemos inúmeros ensinamentos importantes (…) Foi assim que após entregar-se particularmente ao estudo atento da Lei, dos Profetas e dos outros Escritos, transmitidos por nossos antepassados […]”.

Nota-se que o cânon indicado neste escrito considera canônicos livros posteriores ao tempo dos profetas.

O Cânone Hebraico de 39 livros, só foi realmente fixado no Concílio de Jâmnia – criado para procurar um rumo para o judaísmo, após a destruição do Templo de Jerusalém, no ano 70 d.C – em 90 d.C.. Mesmo assim estudiosos como Leonard Rost garantem que tais decisões demoraram muito para serem aceitas e até hoje não tiveram aceitação em algumas comunidades judaicas como é o caso dos judeus do Egito.

Neste concílio os participantes decidiram considerar como textos canônicos do judaísmo apenas os que existiam em língua hebraica e que remontassem ao tempo do profeta Esdras, rejeitando todos os outros livros e demais escritos, considerando-os como apócrifos, ou seja, não tendo evidências de inspiração por Deus e fonte de fé. Houve muitos debates acerca da aprovação de certos livros, como Ester e Cântico dos Cânticos, conforme registro da Mishiná.

Apesar da crítica moderna afirmar que vários livros que constam no Cânon Hebraico são posteriores ao tempo de Esdras (como é o caso do Livro de Daniel), os estudiosos explicam que os Fariseus não dispunham do método científico que existe hoje para se datar uma obra, ou mesmo para se atribuir a ela um autor. De qualquer forma, os critérios por eles adotados excluíram os livros deuterocanônicos do Cânon Hebraico.

Para não confundir: o Concilio de Jâmnia (ano 90 d.C.) decidiu quais os livros que fariam parte do cânon. Os Massoretas, século VI, decidiram qual a forma correta dos textos que haviam sido selecionados.

Já do lado dos cristãos, temos que ter em mente que no início não havia uma igreja organizada como hoje e desde o tempo de Jesus, entre seus discípulos, sempre existiram controvérsias doutrinárias e disciplinares, como se vê em At 15, 1-5. Havia grupos em Roma, no Oriente e norte da África que, sob influência helenística, zoroastrista e de convicções pessoais, queriam adaptar a doutrina de Jesus às suas idéias. Tais foram os grupos dissidentes ou heréticos fundados por Donato, a gnose de Marcião (o “Primogênito de Satanás”), Montanus, Nestório, Paulo de Samósata e Valentinus entre outros. Os escritos de Tertuliano contra os heréticos e o “Contra as heresias” de Ireneu foram respostas às heresias. O Concílio de Nicéia foi convocado pelo imperador Constantino devido a disputas em torno da natureza de Jesus “não criado, consubstancial ao Pai”. Na Santíssima Trindade, as três pessoas têm a mesma natureza, ou seja, a divina.

Então apesar do Antigo Testamento já ter uma aceitação mais ou menos geral de que textos eram inspirados e quais não eram, o Novo Testamento ainda não possuía unidade. Mesmo com tentativas como a do Cânone Muratori, 170 d.C., o Novo Testamento ainda era um Deus nos Acuda, já que as pessoas ainda não tinham nem muita certeza sobre o que era o Cristianismo.

A partir de 325, algumas verdades do Cristianismo foram estabelecidas como dogma através de cânones promulgados por vários concílios, como o de Nicéia.

Desde Jesus Cristo (Jo 17,21) passando por todos os apóstolos, especialmente Paulo, existe um impulso para estabelecer unidade no cristianismo. A primeira forma de demonstração desse impulso foi a manutenção da unidade em torno de Pedro. Se há um só Deus, que se revelou em Jesus Cristo, que fundou Sua única Igreja (Mt 16,18) e se Jesus Cristo mesmo diz que Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida, não podem existir outras verdades verdadeiras. Uma das linhas que foi condenada como heresia eram as que divergiam da afirmação de que Cristo era totalmente divino e totalmente humano e que as três pessoas da Trindade são iguais e eternas. Este dogma (Um só Deus em Três Pessoas = Três pessoas e uma só natureza divina assim como existem bilhões de pessoas e uma só natureza humana) só foi estabelecido depois que Ário, um celebrado professor do cristianismo – e também mártir – o desafiou.

E assim, muitos textos que poderiam fazer parte da Bíblia foram banidos, por serem considerados heréticos.

Assim não apenas os textos finais foram escolhidos, mas também a forma que o cristianismo dominante teria também. Escolhendo-se textos que mostrassem certos aspectos de jesus e descartassem outros.

E ai voltamos ao cíclo vicioso da falta de gráficas, porque uma vez definidos os textos que fariam parte da Bíblia Cristã, eles estavam sujeitos à manipulação por parte dos copistas (seja essa manipulação causada por erro sincero ou pela maldade no coração do homem).

E como vimos, mesmo com a tentativa de Jerônimo de criar um texto único, muitos textos e livros ainda não haviam sido aprovados mesmo cinco décadas depois que ele começou o trabalho. Assim haviam algumas variantes dos mesmos textos.

Haviam também grupos que não estando ligados à igreja continuavam a usar textos próprios ou versões próprias de textos existentes, assim quando era o momento de se apontar que versão era a original não haviam uma base para se ter certeza.

18 – Então além do Antigos Testamento, e dos livros do Novo Testamento, haviam outros livros e textos religiosos circulando por ai?

Sim, tecnicamente esses livros receberam dois nomes: Deuterocanônicos e Apócrifos.

O termo “deuterocanônico” é formado pela raiz grega deutero (segundo) e canônico (que faz parte do Cânon, isto é do conjunto de livros considerados inspirados e normativos por uma religião ou igreja). Assim, o termo é aplicado a livros e partes de livros bíblicos que só num segundo tempo foram considerados como canônicos.

O adjetivo “deuterocanônico” é originalmente aplicado a estes textos pelos cristãos, que depois de um tempo passaram a encará-los como inspirados e fazendo parte integrante da Bíblia.

O fato de muitas pessoas, cristãs ou não, não os considerarem inspirados, eles ainda são obras muito importantes tanto para a fé cristã quanto para historiadores. Hoje eles são considerados patrimônios históricos da fé, pois refletem e fizeram parte das crenças cristãs ao longo da história.

São deuterocanônicos os seguintes livros bíblicos:

– Tobias
– Judite
– I Macabeus e II Macabeus
– Sabedoria
– Eclesiástico (também chamado Sirácide ou Ben Sirá )
– Baruc

Fora os livros deuterocanônicos podemos também encontrar fragmentos deuterocanônicas dentro de livros canônicos como:

– adições em Ester.
– adições em Daniel – especificamente os episódios da Casta Susana e de Bel e o dragão.

Estes livros eram já conhecidos pelos cristãos, que os citavam e utilizavam. Os estudiosos encontraram citações destes livros nas obras de Ireneu, Justino, Agostinho, Jerônimo, Basílio Magno, Ambrósio e muitos outros. E ainda haviam aqueles que julgavam esses textos como sendo somente eclesiásticos, isto é, não eram canônicos porém também não eram contrários à Fé. Foi o caso de Melitão, Rufino, Atanásio e outros. Como podemos ver o assunto não era pacífico, e houve bastante discórdia sobre o tema.

Jerônimo inicialmente negou a canonicidade dos deuterocanônicos. Porém, os estudiosos encontraram uma mudança posterior de sua opinião em suas cartas escritas a Rufino e a Paulino, Bispo de Nola.

Mas no fim das contas esta discórdia parece ter sido resolvida ou então não influenciou o parecer comum da igreja antiga.

Nenhum Concílio da igreja primitiva recusou a canonicidade destes livros, muito pelo contrário. Foram declarados canônicos nos Concílios regionais de Roma (382 d.C, dando origem ao Cânon Damaseno), Hipona I (cânon 36, 393 d.C), Cartago III (cânon 47, 397 d.C), IV (cânon 24, 417 d.C), Trullo (cânon 2, 692).

Um documento conhecido como Decreto Gelasiano (496 d.C) também confirma a canonicidade dos deuterocanônicos.

Mas isso não significa que todos os cristãos, fossem apenas seguidores da fé ou os sacerdotes de comunidades, aceitassem isso. Com a formação de uma igreja se destacando de outros grupos menores essa aceitação acontecia entre os cristãos católicos apostólicos romanos.

A aceitação comum dos deuterocanônicos como livros sagrados fica ainda mais clara ao encontrarmos os textos presentes nas primeiras versões Bíblicas, como a Vetus Latina e a Vulgata. Na época, no Oriente, a Septuaginta foi adotada como a versão oficial do Antigo Testamento.

Os livros deuterocanônicos foram escritos entre Malaquias e Mateus, ou seja, numa época em que segundo o historiador judeu Flávio Josefo, cessara por completo a revelação divina. Entretanto segundo os Evangelhos a revelação do Antigo Testamento durou até João Batista (cf. Mt 11,12-13 e Lc 16,16). Essa já começava a se mostrar a futura divisão que aconteceria entre o judaismo e o recém criado cristianismo.

Os textos deuterocanônicos chegaram até nós apenas em grego (alguns escritos originalmente nessa língua, outros traduzidos duma versão hebraica, que se perdeu), fazendo parte da Septuaginta. Tais textos não se encontram na Tanakh.

É importante dizer que também no Novo Testamento existem livros deuterocanônicos. São eles:

– Tiago
– Hebreus
– Apocalipse
– 2 Pedro
– 2 e 3 João.

Assim como os livros deuterocanônicos do Antigo Testamento, estes também tiveram sua canonicidade contestada por muitos séculos.

E mesmo depois deste tempo todo ainda não havia consenso. Martinho Lutero, o reformista da Igreja Católica e pai do Protestantismo, chegou até mesmo não considerar canônicos Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse, que na sua tradução da Bíblia para o Alemão deixou-os num apêndice sem numeração de páginas. Depois os demais reformadores decidiram que estes livros deveriam voltar à Bíblia, pela larga utilização nas comunidades cristãs, mas não fizeram o mesmo com os deuterocanônicos do AT.

No início do séc. XV, um grupo dissidente da Igreja Copta (também chamados de Monofisistas), conhecidos como Jacobitas questionaram muitos dos concensos cristãos da época, inclusive o Cânon Alexandrino. Em 1441, O Concílio Ecumênico de Florença, através da Bula Cantate Domino (4/2/1442) reafirma o caráter canônico do Cânon Alexandrino.

Com a Reforma Protestante, Lutero volta a questionar o caráter canônico dos Deuterocanônicos negando inclusive seu caráter eclesiástico, pois para ele estes livros eram contrários à Fé. Em 1545, é convocado o Concílio de Trento, que novamente afirma o caráter canônico do Cânon Alexandrino.

No início não houve consenso entre os Protestantes sobre o Cânon do Antigo Testamento. O Rei Jaime I da Inglaterra, responsável pela famosa tradução KJV (King James Version), defendia que os Deuterocanônicos deveriam continuar constando nas Bíblias Protestantes. Praticamente na mesma época surgiu uma tradução conhecida como Bíblia de Geneva ou Genebra, que caracterizava os Deuterocanônicos como apócrifos.

Somente após a “Confissão de fé de Westminster” (séc. XVII), protestantes ingleses que eram influenciados pelo calvinismo e puritanismo removeram das suas listas os livros deuterocanônicos, passando a adotar como lista de composição do Antigo Testamento o Cânon Hebraico conforme instituído no Concílio de Jâmnia. Princípios desta confissão foram espalhando-se por várias denominações e seu conteúdo funcionou como resposta ao concílio de Trento. Então novamente os textos do Antigo Testamento que não eram aprovados pelos Judeus foram retirados da Sagrada Escritura.

Até hoje existem muitos cristãos protestantes que chamam os deuterocanônicos de apócrifod, alegando que os textos trazem muitos erros, como por exemplo erros geográficos, e por acreditar que muitos fatos narrados neles não se concretizaram, eles chegam mesmo e remover os textos de suas Bíblias e dizem que não são textos inspirados. Outro argumento apontado é de que foram escritos no período intertestamentário (período de 400 anos compreendidos entre o novo e o velho testamento), ou seja em um período que segundo os teólogos reformadores Deus não teria levantado nenhum profeta. Este período também ficou conhecido como “silêncio profético”, e isso faz com que não reconheçam estes livros como fazendo parte da palavra de Deus.

Então se formos tentar colocar ordem nesta bagunça:

Os deuterocanônicos já faziam parte da vida dos judeus através Septuaginta, dos judeus cristãos através da Vetus Latina e da Vulgata. A primeira Bíblia impressa da história, conhecida como a Bíblia de Gutenberg (1450-1455) também já continha os livros deuterocanônicos do Antigo Testamento. Eles estavam presentes mesmo nas primeiras versões protestantes como a KJV (King James Version).

Já os Apócrifos, do grego Apokruphoi, secreto, separado ou excluído, eram conhecidos como Livros Pseudo-canônicos. O termo “apócrifo” foi cunhado por Jerônimo, no quinto século, para designar basicamente antigos documentos judaicos escritos no período entre o último livro das escrituras judaicas, Malaquias, e a vinda de Jesus Cristo. São livros considerados não  inspirados e portanto não entraram no Cânon.

No cristianismo ocidental atual existem vários livros considerados apócrifos; nos sínodos realizados ao longo da história esses livros foram banidos do canon, outros obtiveram uma reconsideração e retornaram à condição de Sagrados.

O número dos livros apócrifos é maior que o da Bíblia canônica. É possível contabilizar 113 deles, 52 em relação ao Antigo Testamento e 61 em relação ao Novo. A tradição conservou outras listas dos livros apócrifos, nas quais constam um número maior ou menor de livros. A seguir, alguns desses escritos segundo suas categorias.

Evangelhos:

– de Maria Madalena
– de Tomé
– Filipe
– Árabe da Infância de Jesus
– do Pseudo-Tomé
– de Tiago
– Morte e Assunção de Maria
– Judas Iscariotes

Atos:

– de Pedro
– Tecla e Paulo
– Dos doze apóstolos
– de Pilatos

Epístolas:

– de Pilatos a Herodes
– de Pilatos a Tibério
– dos apóstolos
– de Pedro a Filipe
– Paulo aos Laodicenses
– Terceira epístola aos Coríntios
– de Aristeu

Apocalipses:

– de Tiago
– de João
– de Estevão
– de Pedro
– de Elias
– de Esdras
– de Baruc
– de Sofonias

Testamentos:

– de Abraão
– de Isaac
– de Jacó
– dos 12 Patriarcas
– de Moisés
– de Salomão
– de Jó

Outros:

– A filha de Pedro
– Descida de Cristo aos Infernos
– Declaração de José de Arimatéia
– Vida de Adão e Eva
– Jubileus
– 1,2 e 3 Henoque
– Salmos de Salomão
– Oráculos Sibilinos

E isso para citar alguns. E todos esses textos de uma forma ou de outra passaram por aquele crivo do qual falamos anteriormente sendo banidos para sempre ou então ficando em cima do muro, aparecendo e sendo retirados e voltando a aparecer nas escrituras.

19 – Mas a Bíblia é uma zona!

Sim, mas só se você parar para pensar a respeito.

Vamos tentar criar aqui duas linhas do tempo, a primeira a cultural que representa como a Bíblia teria sido desenvolvida de acordo com a história que ela mesma conta:

A Bíblia como a que você compra hoje em uma loja foi escrita por um período de 1500/1600 anos, por cerca de 40 pessoas diferentes com profissões, origens culturais e classes sociais diferentes. Para quase todos os Judeus e Cristãos ela é a Palavra de Deus, ou seja, muito mais do que simplesmente um livro.

Ela teria sido escrita da época de Moisés entre 1592 a.C. e 1472 a.C. aproximadamente, até o último livro, o Apocalipse de São João, datado de cerca de 96 d.C., tendo passado por um período sem registros inspirados por Deus, o “silêncio profético”, que separou a época do Antigo Testamento (Judeus) do Novo Testamento (Cristãos), esse período foi de aproximadamente 400 anos.

Então lá pelo ano de 96 d.C. a Bíblia com textos de mais de 1600 anos de tradição estaria, em tese, pronta para circular e ser reproduzida integralmente até os dias de hoje para se chegar na sua mão.

Agora uma pausa para os cínicos de plantãos ou aqueles simplesmente confusos até agora antes de nos aventurarmos a montar nossa segunda linha do tempo, a criada a partir de registros e evidências históricas, arqueológicas e culturais. Nós estamos passando por uma revisão ortográfica que está definindo a nova regra da escrita da língua portuguesa. Um exemplo é a palavra Bem-Vindo sendo atualizada para Benvindo.

Se no ano de 2500 fossem realizar um estudo de capachos de portas para se publicar um desses livros de mesa de centro que algumas pessoas gostam tanto, eles teriam várias fotos de capachos dizendo SEJA BEM-VINDO anteriores a 2009 e várias fotos com capachos dizendo SEJA BENVINDO posteriores a esta data. Mesmo hoje em dia com a midia que temos e a pressão social de aceitar mudanças, podemos apostar que pelos próximos anos ainda serão produzidos muitos capachos com os dizeres BEM-VINDO, ou seja a forma que o texto foi escrito no capacho não é indicativo de que ele date de antes de 2009 ou depois de 2009.

Vamos dizer que lá pelo ano de 2050 surjam os puristas que defendem que se as pessoas cultas se reunem e decidem que BENVINDO é a melhor forma de se escrever algo então é porque deve ser seguido, pode ser que surja uma lei do INMETRO que defina que os capachos só poderão chegar no mercado caso tenham a grafia correta do termo. Ai podemos chamar esta manifestação de o primeiro Concílio de BENVINDO.

Acontece que isso acaba influenciando os maiores centros comerciais, cidades afastadas ou fabricantes de capacho que não ligam para a lei podem continuar com a sua grafia errada e assim teríamos os primeiros hereges – sejam conscientes (eu não vou comprar uma máquina nova que imprima a palavra nova), sejam os inocentes (mudou a palavra? eu não sabia).

Agora temos que levar em conta também outro fator, os capachos que tinham a grafia BENVINDO antes da mudança da norma ortográfica, ou seja, aqueles que já estavam errados antes do errado virar certo.

Só ai já teríamos problemas, 400 anos depois, de datar um capacho, simplesmente pela grafia de uma palavra, ele poderia ser anterior à data do Concílio de BENVINDO, poderia ser posterior, poderia ser um erro mais antigo ou poderia ser um capacho com a escrita antiga “gambiarrado” para apresentar a nova sem ter que mudar as máquinas, com um M deformado e o espaço entre as palavras coberto por um desenhinho qualquer.

Como isso se aplica à Bíblia?

Só porque um texto foi tomado como correto no século VI d.C. não significa que ele já não existisse 1600 anos antes, assim como um texto que começou a aparecer em determinado século não existisse com uma circulação muito mais restrita antes. Da mesma forma dois textos diferentes não querem dizer automaticamente manipulação maldosa. O fato de não termos hoje em mãos um original não significa que ele nunca tenha existido, e um texto que só se tornou oficial em um ano X não era sem valor antes. Pense que a palavra e o conceito Bem-Vindo existiam antes da correção ortográfica e provavelmente antes de inventarem a escrita e a registrarem pela primeira vez.

Vamos ver então como fica a história da Bíblia em termos de registros históricos:

640 a.C – Data em que se criou uma unidade doutrinária necessária para o reconhecimento da lei escrita.

287 – 247 a.C. – Criação da Septuaginta

225 a.C. – Trecho bíblico mais antigo: passagem de um dos livros de Samuel.

100 a.C. – O texto mais antigo conhecido da Bíblia: Livro de Isaías

0-100 d.C. – Vetus Latina & suposta época da composição do Novo Testamento

90 d.C. – Concilio de Jâmnia decidiu quais os livros que fariam parte do cânon judaico (Antigo Testamento)

125 d.C. – Texto mais antigo do Novo Testamento: fragmentos do evangelho de João, incluindo a pergunta de Pilatos a Jesus: “Você é o rei dos judeus?”

325 d.C. – Canonização do Novo Testamento

404 d.C. – Jerônimo completa a Vulgata.

500-600 d.C. – Texto Massorético (Antigo Testamento)

500 d.C. – A Bíblia começa a ser traduzida para mais de 500 línguas diferentes.

600 d.C. – Cria-se a Lei que determina que a Bíblia apenas pode ser copiada e distribuída em Latim.

995 d.C. – Surgem novas traduções anglo saxônicas da Bíblia do Novo Testamento.

1384 d.C. – Wycliffe se torna a primeira pessoa a se criar uma versão completa da Bíblia em Inglês (era uma versão manuscrita).

1455 d.C. – Gutenberg cria a primeira Máquina de Impressão e a partir de então as bíblias podem ser produzidas em massa. Até então todas as versões eram manuscritas.

1560 d.C. – Bíblia de Genebra

1611 d.C. – Surgimento da versão da Bíblia do Rei James.

1753 d.C. – Primeira publicação de uma Bíblia em Português.

1844 d.C. – Sociedade Bíblica Internacional traduz a Bíblia para os últimos idiomas vivos que restavam.

1885 d.C. – Os livros considerados apócrifos são removidos das versões impressas das Bíblias Protestantes.

1898 d.C. – Os Gideões Internacionais levam a Bíblia para as prisões, escolas e favelas, hoje qualquer quarto de hotel ou motel americano possui uma versão desta Bíblia.

1993 d.C. – Biblegateway.com é o primeiro site a colocar a Bíblia na internet com ferramenta de busca e diversas traduções sincronisadas.

20 – Mas existem muitas diferenças entre as Bíblias que circulam por ai hoje?

Novamente a resposta é positiva, e não apenas entre as Bíblias mas entre as Bíblias e os textos originais.

Tenha em mente que este texto não tem como objetivo julgar se a Bíblia é um livro sagrado ou uma arma de manipulação popular e sim estudar fatos que estejam relacionados com ela.

Como já vimos, mesmo os textos em hebraico da Tanakh possuem algumas diferenças, como no caso do pentateuco samaritano e outros que existiam. A que se devem estas diferenças? Não há como dizer.

Um grande ressentimento moderno contra a Igreja Católica afirma que todos foram causados como forma de garantir que a igreja tivesse poder e riquezas, e mesmo que este seja o caso em alguns momentos, não existe como provar isso – não que houve ou não manipulação, mas que ela foi realizada com este ou aquele objetivo específico. Muitas pessoas dizem que a igreja adotou o celibato dos padres, por exemplo, como forma de impedir que eles tivessem família e assim suas posses acumuladas em vida retornassem à igreja. Mas será que isto é verdade? Se pensarmos que tanto o judaísmo quanto o cristianismo sempre possuíram grupos ascetas, que renunciavam a existência mundana em prol da vida espiritual, chegando a casos extremos como monges que se flagelavam, castrações e outras, podemos ver que muitos dos primeiros cristãos eram adeptos do celibato, assim como vários grupos dentro do judaísmo como os Essênios, por exemplo, e que quando a igreja foi fundada e o cristianismo foi adotado como religião oficial de Roma o celibato já era um costume que mesmo que não obrigatório, era muito comum, não apenas para aqueles que pregavam o cristianismo mas também para aqueles que o tinham como religião pessoal. Então mesmo que afirmemos que a igreja tomou proveito disto não podemos afirmar com certeza que ela oficializou e incentivou este hábito motivada simplesmente pela cobiça assim como não temos como negar que este hábito também foi muito lucrativo para ela.

Assim, não vamos apontar dedos tentando imaginar que diferenças bíblicas foram criadas por quem e por que motivos, mas vamos apontar algumas delas para mostrar que mesmo que a Bíblia seja tomada como um livro absoluto, os textos impressos em suas páginas não o são.

Vamos começar levantando algumas mudanças que já ocorreram nas origens de seus textos.

Originalmente foram utilizados três idiomas diferentes na escrita dos diversos livros da Bíblia: o hebraico, o grego e o aramaico. Em hebraico foi escrito todo o Antigo Testamento, com excepção dos livros chamados deuterocanônicos e de alguns capítulos do livro de Daniel, que foram redigidos em aramaico. Em grego, além dos já referidos livros deuterocanônicos do Antigo Testamento, foram escritos praticamente todos os livros do Novo Testamento. Segundo a tradição cristã, o Evangelho de Mateus teria sido primeiramente escrito em hebraico, visto que a forma de escrever tinha como objetivo alcançar os judeus.

O hebraico utilizado na Bíblia não é todo igual. Encontramos em alguns livros o hebraico clássico (por ex. livros de Samuel e Reis), em outros um hebraico mais rudimentar e em outros ainda, nomeadamente os últimos a serem escritos, um hebraico elaborado, com termos novos e influência de outras línguas circunvizinhas. O grego do Novo Testamento, apesar das diferenças de estilo entre os livros, corresponde ao chamado grego koiné (isto é, o grego “comum” ou “vulgar”, por oposição ao grego clássico), o segundo idioma mais falado no Império Romano.

Precisamos então nos lembrar de que a Tanakh foi traduzida do hebraico (as diferentes formas de hebraico que foram compiladas por séculos) para o grego na criação da Septuaginta, termos primitivos, rebuscados, simples e de uso diário foram passados para uma forma corrente de grego, um mesmo estilo de grego do princípio ao fim e então essa versão assim como a hebraica foram traduzidas para o latim da Vetus Latina. Com Jerônimo a Septuaginta é deixada de lado e ele pega todos os textos antigos – com suas variantes linguísticas – e são novamentes traduzidos para um latim de um único estilo, mas isso não fez com que as versões da Vetus Latina fossem recolhidas do mercado, elas existiam de forma paralela e quando o cristianismo se espalha surgem novas traduções para línguas locais, essas traduções não vinham de um único documento oficial, mas dos textos que cada um tinha em mãos. Então enquanto uma versão Romena pudesse vir do Latim de Jerônimo, uma versão alemã poderia vir do grego da Septuaginta e um texto espanhol ter vindo de um dos muitos livros da Vetus.

Embora a mensagem geral destes textos fossem a mesma muitas coisas surgiam, eram adaptadas ou simplesmente mudavam.

Vejam um exemplo: pegando-se o texto da Tanakh de Oséias que usamos na questão quatro:

Oséias 8:12: “Se tivesse escrito a maioria de minha Torá, [Israel] seria contado igual a estranhos”

Vamos comparar com uma tradução atual da versão Almeida da Bíblia Corrigida e Revisada Fiel de 1994:

Oséias 8:12: “Escrevi-lhe as grandezas da minha lei, porém essas são estimadas como coisa estranha”

Com a versão da Sociedade Bíblica Britânica:

Oséias 8:12: “Embora eu lhe escreva a minha lei em miríades de preceitos, estes são tidos como coisa estranha”

Dentre as versões cristãs não existe muita diferença no significado, mas veja a diferença entre a passagem judaica e a passagem cristã. Numa o recado é para o povo escolhido, na outra o recado é para todos os não cristãos, independentes da origem do cristão em questão. Não há porque segregar o conhecimento apenas aos judeus, mas ele deve ser aberto aos que acreditam e aos que não acreditam.

Qual das duas versões você acha que deve ser mantida hoje? E quando for pensar nisso, pense que esta é a Palavra de Deus, e por isso deveria ser passada adiante de forma mais fiel o possível.

Outro caso que acontece não é apenas mudar o público alvo de determinada passagem, mas de se criar novas figuras na história. Vamos prestar atenção em uma que talvez tenha se tornado a mais célebre de todas: o diabo!

O Diabo se tornou, acidentalmente ou não, uma das figuras centrais da religião hoje em dia, mas ele não esteve sempre presente na Bíblia.

Um dos nomes atribuídos ao diabo é Lúcifer, mas este nome não existe nos textos originais. A primeira vez que este nome é citado é no livro de Isaías quando Deus protege seu povo destruindo o orgulho de seu inimigo. Em Isaías 14:13 surge a frase: “Como caíste do céu, ó Lúcifer, filho da alva!”. No original a expressão utilizada não era o nome Lúcifer e sim helel bem shahar, que significa aquele que brilha. Quando traduziram esta passagem para o grego o termo foi traduzido por um que era conhecido dos gregos: eosphorus; e então para o latim Lucifer. Agora Lucifer era a tradução literal para “aquele que brilha” – lux, lucis = luz; ferre = carregar; Lucifer = o portador da luz. Ao mesmo tempo este era o título dado ao planeta Vênus, a estrela da manhã, que brilhava em pleno dia. Desta forma, apenas por causa de traduções o termo helel – aquele que brilha – se torna eosphorus grego – o portador do archote – pois era o termo mais próximo de aquele que brilha, e então para Lucifer em latim que era o termo mais próximo nesta linguagem, só que lúcifer é o nome da estrela da manhã, Vênus, a estrela da alvorada.

Entretanto o nome de “Estrela d’alva”, ou Lúcifer, foi interpretado como sendo o nome de Satanás antes de sua queda do Paraíso. Segundo esta interpretação Lúcifer e seus anjos caíram por sua própria escolha, o motivo teria sido o orgulho, representado pela tentativa de se equipararem a Deus. Desejavam colocar sua própria vontade no lugar da vontade de Deus. E isto era considerado como a base do pecado em todos os níveis. Aos poucos, estas idéias começaram a se transformar na base dos ensinamentos tradicionais sobre o Diabo.

Mas se este trecho não fala do Diabo, fala do que? De acordo com os textos originais podemos supor que trata-se de uma interpretação errônea do seguinte trecho de Isaías que fala da “morte do rei da Babilônia” Nabucodonosor (Nebukadneççar em hebraico), que recebeu a maldição suprema da privação da sepultura:

«Como caíste do céu,
ó estrela dálva, filho da aurora!
Como foste atirado à terra,
vencedor da nações!
E, no entanto, dizias no teu coração:
‘Hei de subir até o céu,
acima das estrelas de Deus colocarei o meu trono,
estabelecer-me-ei na montanha da Assembléia,
nos confins do norte.
Subirei acima das nuvens, tornar-me-ei semelhante ao Altíssimo.’
E, contudo foste precipitado ao Xeol,
nas profundezas do abismo”.
Os que te vêem fitam os olhos em ti,
e te observam com toda atenção, perguntando:
“Porventura é este o homem que fazia tremer a terra,
que abalava reinos?”»
(Isaías 14, 12-15)

Isaías compara a queda do rei Nabucodonosor à Lúcifer! A queda do rei seria semelhante à queda da estrela da manhã – planeta Vênus no céu – ou seja, uma queda muito rápida.

E assim o diabo ganha o nome de Estrela da Manhã e Lúcifer, o que é irônico se pensarmos que este nome também é dado para Jesus no Apocalipse de São João 22:16: ” Eu, Jesus, enviei o meu anjo para vos testificar estas coisas a favor das igrejas. Eu sou a raiz e a geração de Davi, a resplandecente estrela da manhã.”

O mesmo podemos dizer sobre o nome Satã. Satã surge nos textos hebraicos originais como um adjetivo e não como um nome. Satã significa Adversário, mas não necessariamente o Adversário de Deus. Por exemplo a passagem 1Samuel 29:4, sobre o que pedem os príncipes filisteus a Davi, surge em algumas versões da Bíblia como: “Não se volte contra nós no combate”, mas no texto hebraico original está “Não se torne satã (inimigo) nosso no combate”. Davi aplica o termo satã aos homens que se opõem à vontade de Deus tentando o rei para que mate o benjaminita que o injuriou. Satã significa a oposição humana a Deus.

Outro exemplo é o livro de Jó 1:6, que se refere a um dos filhos de Deus que se apresenta diante do trono. O nome que lhe é dado é Satã. O nome comum representa o cargo de acusar e também a adversidade, a inimizade, a oposição que é permitida ou sancionada por Deus.

O próprio termo Diabo surge de uma tradução. O Livro da Sabedoria foi escrito em grego e não temos como saber qual seria a palavra escolhida pelo autor se o tivesse escrito em hebraico. O autor utiliza a palavra grega diábolos, termo usado na Septuaginta como tradução da palavra hebraica Satã: “É por inveja do Diabo que a morte entrou no mundo” (Sb 2,24).

Assim, no Antigo Testamento Satã não representa um ser que possamos considerar um demônio no sentido cultural cristão de um ser sobre-humano e perverso. O nome Satã, ou Satanás, no Antigo Testamento personifica a inimizade, dificuldade, contradição. A palavra satã, na sua forma verbal, stn em hebraico, aparece seis vezes no Antigo Testamento (Zc 3,1; Sl 38,21; Sl 71,13; Sl 109,4; Sl 120,29). Poderia ser traduzida por “satanizar”. A Septuaginta geralmente traduz o verbo stn por endiabállo, em grego; caluniar nas línguas vernáculas (e o substantivo satã, a Septuaginta geralmente o traduz por diábolos, que significa caluniador). A Bíblia de Jerusalém geralmente traduz por acusar.

E por causa dessas traduções se cria uma figura Mitológica do demônio.

Hoje é praticamente impossível se separar o Maligno do cristianismo, os protestantes são a prova viva disso. E agora essas traduções ajudam a incorporar novas culturas e hoje não apenas demônios, mas também encostos atormentam aqueles que escolhem trilhar o caminho apontado por Cristo.

Para não nos estendermos muito mais neste assunto vamos dar mais dois exemplos rápidos de como uma tradução pode mudar um texto original, seja de maneira sutil e inofensiva ou de uma forma mais agressiva.

Em Mateus 3:4 lemos que Jesus afirmou que: “E, outra vez vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus.”

Apenas neste trecho encontramos dois problemas com tradutores do grego para outras línguas.

Apesar de ser uma mensagem clara de que a humildade, e não a cobiça, é o caminho que leva a Deus esta passagem ficou muito exagerada.

Por um lado temos a palavra camelo. Além do animal existia outro camelo que os gregos conheciam, que era uma corda muito grossa utilizada por pescadores. Assim poderíamos entender que é mais fácil se passar uma corda grossa por um buraco de agulha do que um rico entrar nos céus. Apesar de ser uma idéia que de cara exclui automaticamente os ricos, sejam quem forem ou seja lá qual foi o método de se conseguir suas riquezas entrar no céu, fica uma metáfora menos exagerada. Agora temos que ter em mente que muitos patriarcas tiveram muitos bens, assim como reis e juízes, e eles com certeza devem ter entrado no céu, um exemplo é Abrahão. Mesmo das pessoas que conviviam com Cristo haviam aquelas ricas, o próprio José de Arimatéia, que cedeu a tumba onde Cristo ressuscitou, era rico; apenas se imaginarmos que mesmo tendo vivido com Cristo, respeitado tanto o Homem quanto sua mensagem, ele tenha sido deixado de fora do reino dos céus, temos que concluir que essa passagem é muito extrema. Jesus estaria dizendo que a riqueza é um grande mal, não importa de onde ela veio?

Podemos responder isso com o segundo problema de tradução, a palavra agulha. A agulha além do utensilho de costura é o nome dado às pequenas portas das cidades fortificadas para passagem dos animais das caravanas, utilizadas à noite depois que é dado o toque de recolher. Eram também utilizadas nos tempos de guerra, através das quais podia-se fazer o transporte de armas e comida. Essas agulhas são muito presentes ainda hoje nas muralhas da cidade antiga de Jerusalém.

Camelos com carga eram proibidos de passar por essas portinholas para evitar o comercio e o barulho durante o sono dos cidadãos. Além disso existe outro costume interessante, pelas portas principais das cidades eram comum que se passassem em sua maioria os mais bem quistos, ilustres e visitantes nobres. Pela agulha passavam os trabalhadores, o proletariado e os mercadores. Era como o elevador social e o elevador de serviço nos prédios hoje em dia. Além disso, mesmo durante o dia era realmente difícil se passar um camelo por elas. Era necessário bater no camelo e fazê-lo abaixar e na maioria dos casos, tirar a carga dele para passá-lo. Os camelos de grande porte, raramente passavam. Mas mesmo assim alguns passavam.

Desta forma temos dois fatores culturais, a corda dos pescadores – camelo – e as portinholas nos muros – agulhas – que deveriam ser levadas em conta no momento de se traduzir um texto como este.

A idéia de um animal passando por um buraco de agulha nos mostra que Jesus disse que ninguém rico entraria no reinos dos Céus. Isso poderia ser usado para mostrar que uma pessoa que aceite Deus deve se livrar de seus bens materiais. Já uma tradução que levasse em conta os costumes gregos e judaicos poderia levar em conta que a riqueza não é o que impede alguém de entrar no reino dos céus, mas aquilo que foi o motivo da riqueza – o trabalho ou a cobiça?

Por si só, a tradução deste trecho tem uma interpretação que muda de forma sutil um conceito que pode, por um efeito de bola de neve mudar a mensagem original.

Outro caso interessante de tradução é a famosa passagem da crucificação em que Jesus pergunta a Deus porque foi abandonado.

Em Mateus 27:45 e em Marcos 15:34 está registrado que depois de crucificado, Jesus, quando se aproximava a nona hora bradou/exclamou em voz alta: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”

Esta é uma exclamação curiosa que confunde várias pessoas. Como Jesus na cruz poderia ter sido abandonado por Deus.

Algumas pessoas dizem que neste momento Cristo não estava perguntando a Deus porque havia sido abandonado e sim estava recitando os salmos, já que o Salmo 22:1 – Salmo de Davi para o músico-mor, sobre Aijelete Hashahar – se inicia com a frase: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”

Este é um caso interessante da Bíblia, já que o Novo Testamento foi escrito quase todo em grego, mas contém palavras e frases que foram transliteradas do hebraico diretamente para o grego. Então a palavra יקתנב שé transliterada para σαβαχθανι. Assim em Mateus temos: “Eli! Eli! lamma sabachthani” e em Marcos: “Eloi! Eloi! lamma sabachthani”. Em ambos os casos a palavra sabachthani tem o significado de abandonastes.

Agora eis o caso que surge quando olhamos para algumas outras bíblias, como a versão espanhola de Casiodoro de Reina, de 1569 impressa na América onde a palavra que Jesus usa é sabachtani e não sabachthani. Antes de prosseguir vamos nos lembrar do Texto Massorético e sua importância.

O alfabeto hebraico não possiu vogais. Por isso a letra Beth pode ter as cinco pronúncias Ba, Be, Bi, Bo e Bu dependendo da palavra em que encontra. É como se em português a palavra “Belo” fosse escrita Bl, apenas o B e o L. Se a pessoa está escrevendo sobre uma pessoa e lemos que a achavam Bl podemos deduzir que ela era considerada bela, mas e se pegamos apenas Bl e deixamos escrita no meio de uma folha de papel? Está escrito ali Belo, Bela, Bala, Balé, Bolo, Bula, etc? Não temos como saber. Por isso foram criados os sinais massoréricos, eram sinais utilizados pelos massoretas para saber se a letra B tinha som de Ba ou de Be. Os sinais massoréticos são uma série de pontos e traços que podem estar embaixo, no meio ou em cima de cada letra e o objetivo era registrar uma palavra da forma que havia sido pronunciada. Só ai temos um problema novamente, isso faz com que tradições antigas dependam da tradição oral.

Imagine agora a seguinte cena, um patriarca recebe de Deus a mensagem de que devemos nos amar uns aos outros. Essa tradição vai sendo transmitida oralmente, até o momento em que a colocam no papel, usando um alfabeto onde não existem diferenças claras entre a pronúncia das palavras. Agora imagine que dois judeus, um que conhece a tradição e outro que não conhece recebam a tarefa de pintar nos muros a mensagem de Deus, e dão para cada um uma parte da cidade para que espalhem o recado.

Um deles pega seu balde e tinta e sai escrevendo nos muros: Deus mandou que nos amássemos uns aos outros. O outro escreve nos muros: Deus mandou que nos amassemos uns aos outros. Você percebe a diferença que as duas mensagens possuem? De um lado da cidade as pessoas declarariam o amor, do outro sairiam se amassando.

E ai voltamos ao trecho da crucificação. Jesus dá o seu brado, estava cercado por Judeus, eles levam o recado adiante e o transmitem. Apesar dos evangelhos terem sido escritos originalmente em grego os termos eram judeus, tanto que as palavras de Cristo vem escritas no original e então lhe oferecem a tradução. Acontece que os manuscritos gregos trazem a transcrição: “Li’Li LMH ShBHhTh-NI”, ou seja “sabachthani”, que tem como tradução “glorificas”, e não “abandonastes”. E assim por um erro mínimo, a compreensão da pronuncia de uma palavra ao invés do brado “Deus! Deus! O quanto me glorificas!” temos “Deus! Deus! Por que me abandonastes?”.

Pensando nos dois brados, qual parece o mais lógico por ter sido dado por Jesus, que sabia que seria crucificado, que sabia que Judas o delataria, que pediu para Judas na última ceia para ir fazer o que devia, que quando surgiram os soldados romanos procurando por Cristo se adiantou a todos e disse “Sou eu!” mesmo antes de ter sido apontado por Judas, que quando teve várias chances de evitar seu destino na frente de cada juiz e governante romano que o interrogou permaneceu calado? Bem a realidade nem sempre segue o que julgamos ser lógico, mas temos ai outro exemplo de como uma simples tradução pode influenciar um texto que deveria ser um registro exato criando sentidos tão diferentes para uma mesma passagem.

Assim cada nova versão que surgia e era usada como base para novas cópias, sejam manuais ou impressas geravam bíblias com textos trazendo algumas diferenças, em uma Jesus se lamenta em outra exalta Deus. E muitas dessas diferenças estão presentes até hoje.

21 – Mas não existe hoje uma Bíblia que seja aceita como a mais fiel aos textos originais, tipo uma Bíblia aceita por todos como a mais correta?

Não, a palavra de Deus recebeu várias versões durante a sua publicação e não apenas isso, diferentes grupos cristãos tem diferentes Bíblias oficiais.

Para se ter uma idéia a igreja primitiva, formada pelos primeiros seguidores da mensagem de Cristo começou a apresentar mudanças na crença original desde o século V. Nos dias de hoje existem dezenas, se não centenas, de variações do cristianismo e cada um com diferenças fundamentais entre si.

Vamos olhar uma breve linha do tempo da igreja para entender um pouco essas variantes.

Com o Concílio de Efeso em 431 uma vertente se solidifica, os Noestorianos, que entre outras coisas acreditavam que Cristo era formado por duas pessoas distintas, uma humana e outra divina, dois entes completos e independentes. Essa doutrina surgiu na Antióquia e influenciou a Síria, ela foi proposta pelo monge Nestório por causa das disputas cristológicas que surgiram nos séculos III, IV e V. No Concílio de Éfeso criou-se uma disputa centrada fundamentalmente em torno do título com o qual se devia referir a Maria, se somente cristotokos (mãe de Cristo, a dizer, de Jesus humano e mortal), como defendiam os nestorianos, ou de theotokos (mãe de Deus, ou seja, também do Logos divino), como defendiam os partidários de Cirilo. Resolveu-se adotar como verdade de fé a doutrina proposta por Cirilo, concedendo a Maria o título de Mãe de Deus e os nestorianos foram considerados hereges.

Até hoje é possível encontrar nestorianos, que se propagaram pela Ásia Central, chegando até a China e que durante algum tempo influenciaram os mongóis. Atualmente subsistem as igrejas nestorianas (conhecidas, de uma forma geral, como Igreja Assíria do Oriente) na Índia e no Iraque, Irã, China e nos Estados Unidos, além de alguns outros lugares onde haja migrado comunidades cristãs dos países citados. A Igreja Assíria do Oriente teve um papel fundamental na conservação de antigos textos gregos que foram traduzidos para o siríaco (um ramo do arameu). Mais tarde foram traduzidos para o árabe e no século XIII para o latim. Além da Igreja Assíria do Oriente, existem atualmente várias denominações cristãs que são também fortemente influenciadas pelo nestorianismo. Exemplos destas denominações, que foram fundadas muito após a igreja Assíria, são os anabatistas, os cristadelfianos e os rosacrucianos.

Em 451 com o Concílio de Calcedônia surgiram as igrejas não-calcedonianas – também conhecidas como antigas igrejas orientais. Elas surgiram por se recusarar a aceitar a doutrina das “duas naturezas de Cristo” (ou união hipostática), decretada pelo Concílio de Calcedônia e aceitada pelos católicos e ortodoxos. São acusadas de serem monofisita apesar de se recusarem a aceitar esta classificação se descrevendo como miafisitas. Isto porque as Igrejas não-calcedonianas também acham que o monofisismo é herético.

Para equilibrar as doutrinas antitéticas do monofisismo e da união hipostática (ambas também não aceitas pelos ortodoxos orientais), estas Igrejas defendem que em Jesus há a parte humana e a parte divina, mas que estas duas partes se unem para formar uma única e unificada Natureza de Cristo. Eles acreditam que uma união completa e natural das Naturezas Divina e Humana em uma só Natureza é autoevidente, de maneira a alcançar a salvação divina da humanidade, em oposição à crença na união hipostática (onde as Naturezas Humana e Divina não estão misturadas, porém também não estão separadas) promovida pelas atuais Igrejas Católica e Ortodoxa, esta crença defendida pelos não-calcedonianos chama-se miafisismo.

Atualmente, existem cerca de 79 milhões de ortodoxos não-calcedonianos que são organizados em seis Igrejas nacionais autocéfalas e em várias Igrejas autônomas associadas às Igrejas autocéfalas:

– Igreja Apostólica Armênia;
– Igreja Ortodoxa Síria;
– Igreja Ortodoxa Copta ou Alexandrina (egípcia ou etíope);
– Igreja Ortodoxa Etíope;
– Igreja Ortodoxa Indiana;
– Igreja Ortodoxa Eritréia

Apesar de serem autocéfalas, isto é, independentes umas das outras, estas Igrejas estão ainda em comunhão total entre si, partilhando as mesmas crenças e doutrinas cristãs.

No século XI acontece aquilo que ficou conhecido como o Grande Cisma do Oriente, que causou a separação entre a Igreja Católica Romana e a Igreja Católica Ortodoxa.

As tensões entre as duas igrejas datam no mínimo da divisão do Império Romano em oriental e ocidental e a transferência da capital da cidade de Roma para Constantinopla no século IV.

Uma diferença crescente de pontos de vista entre as duas igrejas foi causada pela ocupação do oeste pelos invasores bárbaros, enquanto o leste permaneceu herdeiro do mundo clássico. Enquanto a cultura ocidental se foi paulatinamente transformada pela influência de povos como os germanos, o Oriente permaneceu ligado à tradição da cristandade helenística. Era a chamada Igreja de tradição e rito grego. Isto foi exacerbado quando os papas passaram a apoiar o Sacro Império Romano no oeste, em detrimento do Império Bizantino no leste, especialmente no tempo de Carlos Magno. Havia também disputas doutrinárias e acordos sobre a natureza da autoridade papal.

A igreja de Constantinopla respeitou a posição de Roma como a capital original do império, além disso existia a oposição do Ocidente em relação ao cesaropapismo bizantino, isto é, a subordinação da igreja oriental a um chefe secular, como acontecia na igreja de Bizâncio.

Uma ruptura grave ocorreu de 456 a 867, tocada pelo patriarca Fócio que sabia que contribuía para aumentar o distanciamento entre gregos e latinos e usou a questão do filioque – uma expressão latina que significa “e do Filho”, que foi acrescentada pela igreja Católica Romana ao credo para explicitar que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho enquanto a Igreja Ortodoxa entende que o Espírito Santo procedeu apenas do Pai – como ponto de discórdia, condenando a sua inclusão no Credo da Cristandade ocidental e lançou contra ela a acusação de heresia. Além disso ela desconsidera a liderança papal.

Aqui vai uma lista das jurisdições que formam a igreja Ortodoxa:

– Patriarcado de Constantinopla
– Patriarcado de Alexandria
– Patriarcado de Antioquia
– Patriarcado de Jerusalém
– Patriarcado de Moscou
– Patriarcado da Geórgia
– Patriarcado da Sérvia
– Patriarcado da Roménia
– Patriarcado da Bulgária
– Igreja Ortodoxa de Chipre
– Igreja Ortodoxa Grega
– Igreja da Albânia
– Igreja da Sérvia
– Igreja Ortodoxa da Polónia
– Igreja das terras Checo-eslovacas
– Igreja Ortodoxa na América
– Igreja do Sinai
– Igreja da Finlândia
– Igreja da Ucrânia
– Igreja do Japão
– Igreja da China
– Igreja de Portugal

Já no século XVI acontece a Reforma Protestante, um movimento reformista cristão iniciado no século XVI por Martinho Lutero, que, através da publicação de suas 95 teses, protestou contra diversos pontos da doutrina da Igreja Católica, propondo uma reforma no catolicismo. Os princípios fundamentais da Reforma Protestante são conhecidos como os Cinco Solas:

1 – Sola fide: conhecida como Doutrina da justificação pela Fé, que afirma que é exclusivamente baseado na Graça de Deus, através somente da fé daquele que crê, por causa da obra redentora do Senhor Jesus Cristo, que são perdoadas as transgressões da Lei de Deus.

2 – Sola scriptura: significa “somente a escritura”, é o principio no qual a Bíblia tem primazia ante a Tradição legada pelo magistério quando os princípios doutrinários entre estas e aquelas forem conflitantes. Na Reforma, não se rejeita a Tradição, ela continua a ser usada como legitimadora para qualquer assunto omitido pela Bíblia.

3 – Solus Christus: a “salvação somente por Cristo”. Os protestantes caracterizavam os dogmas relativos ao Papa como representante de Cristo e chefe da Igreja sobre a terra, o conceito de mérito por obras e a idéia católica de um tesouro vindouro por causa das boas obras, como uma negação de que Cristo é o único mediador entre Deus e os homens.

4 – Sola gratia: “Somente a Graça”. A doutrina da salvação da Igreja Católica Romana seria uma mistura de confiança na graça de Deus e confiança no mérito de suas próprias obras, já a posição reformada é a de que a salvação é inteiramente condicionada a ação da graça de Deus, ou seja, só a graça através da regeneração unicamente promovida pelo Espírito Santo, em conjuto com a obra redentora de Jesus Cristo.

5 – Soli Deo gloria: “Glória somente a Deus”, é o princípio segundo o qual toda a glória é devida a Deus por si só, uma vez que salvação é efetuada exclusivamente através de sua vontade e ação. Não só o dom da expiação de Jesus na cruz, mas também o dom da fé, criada no coração do crente pelo Espírito Santo. Os reformadores acreditavam que os seres humanos – mesmo santos canonizados pela Igreja Católica Romana, os papas, e as autoridades eclesiástica – não eram dignos da glória que lhes foi atribuída.

Lutero foi apoiado por vários religiosos e governantes europeus provocando uma revolução religiosa, iniciada na Alemanha, e estendendo-se pela Suíça, França, Países Baixos, Reino Unido, Escandinávia e algumas partes do Leste europeu, principalmente os Países Bálticos e a Hungria. A resposta da Igreja Católica Romana foi o movimento conhecido como Contra-Reforma ou Reforma Católica, iniciada no Concílio de Trento.

O resultado da Reforma Protestante foi a divisão da chamada Igreja do Ocidente entre os católicos romanos e os reformados ou protestantes, originando o Protestantismo.

Foi por causa da reforma que surgiram outros grupos como:

– Os Anabatistas
– Pentecostais
– Adventistas
– Batistas
– Calvinistas
– Presbiterianos
– Congregacionalistas
– Puritanos Separatistas
– Metodistas
– Luteranos
– Pietistas
– Anglicanos

E cada uma com uma visão próprio da Mensagem de Deus e a meneira de utilizá-la. Por exemplo para os católicos a Bíblia é a fonte de fé, mas devia ser interpretada pelos padres da Igreja, a tradição Católica também é uma fonte de fé, assim como o Magistério da Igreja. Para os Calvinistas a Bíblia é a única fonte de fé e deve ser examinada por qualquer um livremente. Já para os Anglicanos a Bíblia é a fonte principal de fé mas deve ser interpretada pela Igreja (tradição) e então ela pode ser examinada livremente.

Além desses grupos principais cristãos durante a história surgiram outros grupos cristãos também:

Os Restauracionistas: que usam doutrinas surgidas após a Reforma Protestante cujas bases derrogam as de todas as outras tradições cristãs, basicamente tendo como ponto em comum apenas a crença em Jesus Cristo. A maioria deles não se considera propriamente “protestante” ou “evangélico” por possuirem grandes divergências teológicas. Nesta categoria estão enquadradas a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, a Igreja Adventista do Sétimo Dia e as Testemunhas de Jeová, entre outras denominações. Quanto às Testemunhas de Jeová, embora afirmem ser cristãs, também não se consideram parte do protestantismo. As Testemunhas aceitam a Jesus como criatura, de natureza divina, seu líder e resgatador, rejeitando, no entanto a crença na Trindade e ensinando que Cristo é o filho do único Deus, Jeová, não crendo que Jesus é Deus.

O Cristianismo esotérico: que é a parte mística do cristianismo, e compreende as escolas cristãs de mistérios e sincretismo religioso. A este ramo pertence o Gnosticismo que é uma crença com raízes anteriores ao próprio cristianismo e que tem características da ciência egípcia e da filosofia grega. O Rosacrucianismo também se enquadra nessa vertente sendo uma ciência oculta cristã que ressalta as boas ações por meio da fraternidade.

O Espiritismo: que algumas vezes é contestado como sendo uma vertente do cristianismo. Os espíritas não acreditam que uma pessoa ou ser, como Jesus Cristo, pode redimir “os pecados” de uma outra, contudo para a maior parte dos adeptos do espiritismo a obra de Allan Kardec constitui uma nova forma de cristianismo, ou então um resgate do cristianismo primitivo, que não inclui os dogmas adicionados pela Igreja Católica em seus diversos Concílios. Inclusive, um dos seus livros fundantes é denominado de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Esse livro apresenta uma reinterpretação de aspectos da filosofia e moral cristã, crendo em parte na Bíblia Sagrada.

O Rastafarianismo: também conhecido como movimento rastafári ou Rastafar-I (rastafarai) é um movimento religioso que surgiu na Jamaica entre a classe trabalhadora e camponeses negros em meados dos anos 20, iniciado por uma interpretação da profecia bíblica.

Como vimos cada um desses grupos, apesar de terem crenças cristãs em comum, possuem muitas divergências em crenças fundamentais, como a natureza de Cristo, o poder dado por Cristo a seus apóstolos, a fundação de uma igreja, etc… e isso acaba afetando a maneira como interpretam a Bíblia, os livros da Bíblia que são aceitos como realmente inspirados por Deus e a maneira como passam a Bíblia adiante.

E isso chega a afetar inclusive os textos de livros da Bíblia que são aceitos por todos. Para se ter idéia, alguns grupos acreditam que a Bíblia deveria ser não apenas passada a diante, mas ser atualizada com termos novos e atuais, um bom exemplo disso é a Bíblia Viva, editada no Brasil pela Editora Mundo Cristão. Ela foi considerada uma das traduções mais bem sucedidas do século XX pela revista Christianity Today. Kenneth N. Taylor ao invés de traduzir palavra por palavra resolveu traduzir “conceito por conceito”. Para ele não fazia sentido um texto como: “A criança de peito brincará sobre a toca da áspide e o já desmamado meterá a mão na cova do basilisco” e assim temos o trecho nesta Bíblia hoje como: “Criancinhas brincarão perto de cobras e não serão picadas, mesmo que enfiem a mão nas suas covas”.

Assim, mesmo a Vulgata de Jerônimo, que já buscava unificar os textos sagrados, acaba sendo traduzida e adaptada para termos correntes e locais, assim em 500 d.C. já haviam mais de 500 traduções diferentes. E lembre-se ainda das versões da Vetus Latina e da Septuaginta que surgiam e eram usadas.

Assim cada grupo novo que surgia não apenas encorajava mudanças nos textos aceitos – os católicos tem em sua versão da Bíblia os Deuterocanônicos, os protestantes não, os gnósticos usam os textos apócrifos, alguns grupos, mesmo Cristãos, rejeitam o Novo Testamento, outros rejeitam o antigo Testamento já que Cristo veio trazer uma nova aliança e a antiga não era mais necessária.

Para se ter uma idéia do quanto essas traduções afetaram a Bíblia, Thomas Linacre depois de ler os evangelhos em grego e os comparar com a versão da Vulgata em 1490, disse: “Ou isto (o texto grego original) não é o Evangelho… ou nós não somos cristãos”. Mostrando a corrupção das traduções para o Latim. De novo, isso não se devia exatamente a um plano da igreja de manipular a Bíblia, mas à maneira com que a Bíblia atravessava as eras. Quando os antigos copistas reproduziam os livros, reescreveendo-os integralmente à mão eles deixavam notas de rodapé sempre que percebiam que haviam cometido algum erro, principalmente no caso de terem omitido uma palavra ou mesmo uma linha do texto original. Quando escribas de um período posterior começavam a copiar essas cópias muitas vezes deixavam essas notas de rodapé de lado, não corrigiam o texto do livro (seria um pecado enorme um mero copista incluir em uma reprodução algum texto que não estivesse no original) e também deixavam de lado as notas que apontavam os erros que eram percebidos durante o processo de reprodução.

A primeira versão em inglês da Bíblia foi feita por John Wycliffe em 1380, ele era um professor de Oxford, um estudioso e teólogo. Wycliffe era conhecido também por se opor aos ensinamentos da igreja, os quais ele acreditava serem exatamente o oposto daqueles pregados pela Bíblia. Com a ajuda de seus seguidores, chamados de Lollardes, e de seu assitente Purvey, associados a inúmeros copistas ele conseguiu produzir dúzias do manuscrito em inglês. Eles foram traduzidos direto das Vulgatas em latim, que eram as únicas fontes da Bíblia disponíveis na época. O Papa ficou tão furioso com essa ousadia que 44 anos após a morte de Wycliffe mandou desenterrar seus ossos, esmagá-los, então moê-los para atirar o que restasse deles no rio.

Ainda no século XV surge uma versão Hussita da Bíblia e em 1478 uma versão em catalã escrita com o dialeto de Valência. Todas elas versões proibidas pela igreja católica.

Em 1496 John Colet decide traduzir partes do Novo Testamento do Grego para o inglês para repassá-las a seus alunos e mais tarde para os freqüentadores da Catedral de São Paulo em Londres. Nesta época as pessoas tinham tamanha ânsia em ouvir a Palavra do Senhor em sua língua nativa – já que eram muito poucos os que entendiam Latim – que em seis meses o público que entrava na Igreja para ouvir a missa ultrapassava as 20.000 pessoas e um número igual se acotovelava do lado de fora tentando entrar, comparando com os dias de hoje apenas 200 pessoas costumam estar na igreja presente para o culto e a grande maioria é composta por turistas.

Em 1516 a Froben Press publicou uma versão em grego do Novo Testamento editado por Desiderius Erasmus, que reconstruiu o texto grego recombinando vários manuscritos bizantinos com traduções do texto da Vulgata, do latim para o grego novamente, quando os textos que tinha em mãos não estavam completos. Essa sua versão da Bíblia possuiu 4 edições posteriores. A publicação de Erasmus foi a primeira versão das escrituras que não derivava da Vulgata que surgia em mil anos e a primeira tradução dos originais a ser impressa. Além disso o alerta dado por sua versão do Novo Testamento era o de o quanto a Vulgata havia se afastado dos textos originais e daí a importância de uma versão da Bíblia que fosse traduzida do hebraico original e do grego original.

Em 1530 surge a primeira versão francesa, traduzida por Lefèvre d´Étaples e publicada na Antuérpia. Em 1531 aparece a Bíblia Froschauer, conhecida também como a Bíblia de Zurique, traduzida por Huldrych Zwingli, contendo mais de 200 ilustrações (as traduções de porções de textos Bíblicos traduzidos para o alemão mais antigas existentes hoje datam dos anos 311 a 380, e foram feitas direto do grego).

Com a reforma protestante começaram a surgir as principais diferenças de tradução e de apresentação da Bíblia. Lutero e companhia já defendiam a livre consulta há pelo menos 60 anos. Mas vale uma ressalva aqui. Inicialmente a proposta não era que qualquer pessoa pegasse o livro e fundasse sua própria igreja, mas sim tirar o poder da interpretação como sendo uma exclusividade do sacerdócio católico e passá-la também ao clero alemão. A idéia era que a Bíblia poderia ser compreendida por qualquer pessoa com estudo e não apenas pelos membros do clero romano. Seis décadas foram mais do que o suficiente para o primado de Pedro se organizar na chamada Contra Reforma.

O jogo de poder agora estava entre o Papa e as monarquias nacionais. Cada país possuía seu próprio intelectual protestante que fazia a parte de autoridade erudita enquanto os seus respectivos reis acumulavam o poder político. A sociedade passou por grandes mudanças e o mesmo aconteceu com nosso livro sagrado. Em 1560 muitos destes líderes protestantes estavam refugiados na Suíça se escondendo dos olhares severos dos inquisidores. Juntos, criaram a primeira “Bíblia de Estudos” que serviria de modelo para quase todas as bíblias impressas posteriormente.

Bíblia de Genebra foi a primeira edição onde a hoje consagrada divisão em versículos foi usada. Foi um salto de gigante na evolução pedagógica da Bíblia pois permitiu uma notação de referências precisas de onde encontrar esta ou aquela passagem. A partir dai o sermão da montanha não estaria “em algum lugar do livro de Matheus” mas sim precisamente em Mt 5:1 ~ 7:29. Além disso a Bíblia de Genebra trouxe outras inovações importantes como suas incontáveis notas de rodapé contendo a visão protestante dos textos antigos e a primeira lista de referências cruzadas de que se tem notícia. Com estas ferramenta novas relações puderam ser feitas entre os vários livros já pertencentes ao Canon, e isso fortaleceu o protestantismo como movimento social. O resultado disso foram Bíblias onde a tradução fidedigna deu lugar a uma cristalização do cristianismo dominante de hoje. Diversas palavras que sequer poderiam ter sido usadas na época em que os livros foram escritos foram adicionadas ao livro sagrado: homossexualismo, espiritismo e médiuns são alguns dos exemplos.

Este novo movimento de reformulações da Bíblia, não apenas traduzindo-as para as línguas nativas dos diferentes países, mas também de buscar traduções mais coerentes e fiéis aos textos originais deu origem a inúmeras novos livros. Uma versão polonesa conhecida como Bíblia Brzeska é publicada em 1563.

Após a Bíblia de Genebra houve a necessidade de uma nova versão da Bíblia, que não atacasse de maneira tão veemente a igreja enquanto instituição e assim publicaram a Bíblia dos Bispos (Bishop’s Bible), que apesar de ter tido alguma aceitação, nunca foi páreo para a Bíblia de Geneva em termos de aceitação popular.

Em 1584 tanto o Novo quanto o Antigo Testamento foram traduzidos para o Esloveno pelo teólogo protestante Jurij Dalmatin, tornando os Eslovenos a décima segunda nação a ter uma Bíblia completa em sua própria língua.

Com essas versões em inglês da Bíblia, a própria Igreja Católica desistiu, em 1582, da regra de só haverem Bíblias em latim e assim deram início à preparação de uma versão oficial da Bíblia aprovada pela igreja católica em Inglês – a primeira tradução oficial das Escrituras Sagradas, um projeto compatível com a criação da Vulgata por Jerônimo mais de mil anos antes. Assim, tendo como base o texto corrupto em latim, eles criaram a versão que ficou conhecida como O Novo Testamento de Rhemes. Seguido pela Publicação do Antigo Testamento de Douay. A Bíblia resultante ficou conhecida como a versão Doway/Rhemes.

Em 1589 o Dr. William Fulke, de Cambridge, publicou o livro conhecido como a Refutação de Fulke, no qual colocava em colunas paralelas passagens da Bíblia dos Bispos e da Versão Rhemes, para mostrar como a Bíblia Católica continha textos cujas traduções estavam erradas, baseadas num latim que por si só já continha muitos erros.

Neste período morre a Rainha Elizabeth da Inglaterra e James I ocupa seu lugar no trono. O clero protestante então declara ao rei o seu desejo de uma nova tradução da Bíblia para substituir a Bíblia dos Bispos, impressa em 1568. Eles sabiam que a Bíblia de Geneva havia consquistado o povo inglês, mas queriam uma versão da Bíblia que fosse tão bem construida, com o mesmo cuidado e esmero, mas sem as notas de rodapé controversas – como as que afirmavam que o papa era o anticristo e outras semelhantes – ou seja, queriam uma bíblia para o povo com referências para as escrituras mas apenas com significados de palavras e um guia de referências cruzadas, nada que atacasse a igreja e seus membros.

Assim surge a Bíblia do Rei James, impressa pela primeira vez em 1611, que ficou conhecida como “a tradução para acabar com todas as traduções”. A Bíblia do Rei James levou mais de duas décadas para se tornar mais popular do que a versão da Bíblia de Genebra e isso se tornou algo que pode ser visto como uma das grandes ironias da história, já que muitas igrejas protestantes de hoje fazem uso da Bíblia do Rei James afirmando que ela é a única tradução dos textos sagrados para inglês considerada legítima, mas ela nem é uma tradução protestante! Ela foi impressa para competir com a Bíblia protestante, a Bíblia de Geneva, e foi encomendada e desenvolvida por autoridades que não gostavam dos Protestantes, que os perseguiam e matavam-nos, a Igreja Anglicana.

E a partir do século XVII os jesuítas se tornam responsáveis pela tradução da Palavra em inúmeras línguas do Novo Mundo.

Agora voltando os olhos para nossa língua, os primeiros registros de trechos da Bíblia para o portugês remontam ao final do século XIII, um trabalho creditado a Dom Dinis. Mas o principal responsável pela tradução de toda a Bíblia para o português foi João Ferreira de Almeida que iniciou o trabalho em 1644, quando contava com 16 anos, e prosseguiu até sua morte, em 1691, tendo traduzido todo o Novo Testamento e grande parte do Antigo Testamento, as partes que faltaram foram posteriormente traduzidas pelo pastor presbiteriano Jacob Akker, tendo sido publicada pela primeira vez em 1753 depois de alguns tropeços. Já no ano 2000 a Sociedade Bíblica Internacional editou O Livro, uma tradução dos dialetos europeus e foi concluída a Nova Versão Internacional.

Estes três trabalhos de tradução para o português ilustram bem como a revisão e constante tradução, mesmo que de uma fonte original podem criar diferenças básicas num texto, vejamos o exemplo do trecho João 3:16:

Tradução João Ferreira de Almeida
Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.

Tradução O Livro
Deus amou tanto o mundo que deu o seu único Filho para que todo aquele que nele crê não se perca espiritualmente, mas tenha a vida eterna.

Tradução NVI
Porque Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna.

Vale notar que tanto a tradução d’O Livro e da NVI foram realizadas pela mesma editora, a International Bible Society.

Outro exemplo é a versão da Bíblia das Testemunhas de Jeová, onde quase todas as palavras que se referem a Deus como Senhor, Deus, Criador, Pai, etc, foram substituídas pelo nome Jeová, foram mais de 7000 alterações no texto. A idéia é mostrar que se existem 7000 menções ao nome Jeová este é realmente o nome de Deus. O problema é que nos textos originais da Bíblia esse nome não aparece uma única vez, ele seria uma adaptação da palavra JHVH que surge na Tanakh, essa mesma palavra que quando provida de vogais também orgina outros nomes como Javé, Iavé, etc. Nem é preciso dizer que essa mudança é considerada por muitos como uma mutilação da Palavra de Deus, mas para os Testemunhas essa mudança é o texto correto e o aceito.

Assim podemos ver que de fato não existe uma versão aceita universal, uma tradução “correta” ou um concenso geral. Em determinadas épocas surgiam aqueles que pegavam para si o trabalho de traduzir, adaptar ou reorganizar os textos, e muitos desses trabalhos eram clandestinos e depois aceitos pelo público geral, por esse motivo acabaram se criando versões muito sólidas e muito difundidas, mas diferentes entre si.

22 – Mas então a Palavra de Deus é um samba do crioulo doido! Não é mais simples voltarem aos textos mais antigos e originais e tentarem chegar a um concenso, para que a Palavra seja universal e haja uma única Bíblia como os judeus e os cristãos originais queriam?

Veja, ai esbarramos no problema da Fé e da Crença. É indiscutível que todas essas pessoas citadas acima acreditavam e acreditam em Deus. Desde Judeus até Rastafaris, passando por Mórmons, Espíritas e muitos outros. E por mais cínicos que tentemos ser não podemos afirmar que todos os que se envolvem com a Bíblia apenas querem enriquecer e controlar as massas. Mas a coisa complica quando uma crença específica acha que a maneira dela é a única correta, a única verdade que leva a este Deus.

Hoje achamos que as inquisições caçavam bruxos e feiticeiras e que as guerras religiosas buscavam os pagãos e pessoas que cuspiam na cruz. Mas isto não é verdade, não completamente. Essa máquina de busca, apreensão e destruição era o resultado de diferentes grupos cristãos brigando entre si. Se um grupo achava que Cristo era um profeta, mas não era Deus encarnado, o pessoal que acreditava na história do Deus encarnado se ofendia e ia tirar satisfações. Invariavelmente o grupo mais forte falava mais alto e para se manter no caminho daquilo que julgavam ser a verdade estavam dispostos a exterminar quem julgassem estar trazendo a discórdia e a mentira para o próprio meio. Grupos Cristãos que tinham uma visão diferente do grupo principal e eram mais fracos (tinham menor número de seguidores e menos recursos para atacar ou se defender) eram chamados de hereges, recebiam a chance de abrir mão da própria crença e adotar uma nova. A maioria nem sonhava com isso, já que o Cristianismo ainda tem o diferencial de atrair pessoas com um gosto para se tornarem mártires, acreditando que morrer pela própria fé apenas consolida esta fé como sendo a mais real de todas. E assim grupos cristãos inteiros foram erradicados por outros grupos cristãos. Este é mais ou menos o resumo da história para a formação do que na Idade Média se tornou o Cristianismo aceito, ou heterogêneo e que depois com a reforma e as divisões da igreja voltou a ser um cristianismo plural.

E até hoje existe uma rixa acirrada entre os grupos existentes. Protestantes chutam santas católicas. Anglicanos criticam protestantes mas dizem que os católicos exageram na sua vontade de dominar o mundo. Católicos dizem que todos tem boa vontade mas estão errados. E no fundo o que parece é que se esquecem do Deus em que acreditam para discutir quem tem o melhor carro e o mapa correto para chegar no Paraíso.

E isso cria um impasse. Um grupo já com tradição não vai ceder sua crença para aceitar uma nova corrigida é o mesmo que assumir que por tanto tempo ele esteve meio que no caminho errado. E um católico dificilmente aceitaria se colocar no mesmo nível de um Testemunha de Jeová (seja lá qual for esse nível, se é que ele existe) e um protestante diria que só aceitaria uma mesma crença se os católicos parassem com essa besteira de Papa e de Santos e Nossa Senhora.

Assim dificilmente surgiria uma versão nova e original aceita por todos, ironicamente, talvez, uma versão assim seria aceita mais por céticos, estudiosos e simpatizantes do que pelos religiosos.

E isso porque não falamos de outro ponto interessante que dificulta a criação de uma versão única do texto.

Quando falamos em Jesuítas desbravando o mundo e levando a palavra de Cristo, muitos imaginam caravelas, índios e negros contrabandeados, fogueiras e colonizadores. Mas a verdade é que o processo de cristianização está a pleno vapor hoje em dia e parece que cada grupo cristão aceitou o desafio não apenas de levar a Palavra de Deus para todos, mas de levar a sua própria versão da Palavra de Deus.

Vejamos três exemplo que fogem da imagem que temos dos principais grupos cristãos – católicos e protestantes.

As Testemunhas de Jeová possuem adeptos em mais de 236 países e territórios autônomos, com mais de sete milhões e trezentos mil participantes. Segundo o anuário das Testemunhas de jeová de 2010 nos últimos dez anos mais de dois milhões e setecentos mil pessoas foram batizadas nesta crença em particular, uma média de cinco mil pessoas por dia. Além dessas pessoas, atire a primeira pedra aquele que nunca acordou num domingo de manhã com uma dupla de terno tocando a campainha com uma bíblia debaixo do braço, ou pelo menos que não conhece alguém que passou por isso.

E todas essas pessoas, junto com os simpatizantes da crença – que em 2009 foram contabilizados na casa dos dezoito milhões de pessoas – acabam aceitando a versão das Testemunhas da Bíblia.

Além deles existe uma organização, formada em 1899, conhecida como Gideons International (os Gideões Internacionais) que decidiram distribuir a Palavra para o mundo todo, para que todos tivessem acesso, a ideia original foi a de traduzir a bíblia para 80 línguas e atingir pelo menos 190 países, muitos deles já possuíam a bíblia em sua língua nativa, mas mesmo assim se fizeram novas traduções para se distribuir. Assim os Gideões começaram a distribuir bíblias de graça e com isso conseguiram, por exemplo, que nos Estados Unidos cada quarto de hotel ou motel tivesse uma bíblia em seu criado mudo – as pessoas que já assistiram Missão Impossível com Tom Cruise devem se lembrar do momento em que ele precisa de uma bíblia e simplesmente abre uma gaveta e lá está ela. Além disso eles tem o trabalho de distribuir suas versões da Bíblia em hospitais, asilos, prisões, exército e em escolas – que ironicamente são lugares onde as pessoas em sua maioria preferiam não estar.

Até o ano de 2007 mais de um bilhão e quintentos milhões de Biblías haviam sido distribuídas por eles. Cada uma, a versão dos Gideões do texto sagrado, antigamente a tradução da Bíblia do Rei James e hoje em dia a tradução da Nova Bíblia do Rei James.

Outro grupo são os Mórmons, também cohecidos como a Igreja de Jesus Cristo dos Últimos Dias, que surgiram na década de 1830. Em 2007 a igreja registrou o número de treze milhões e quinhentos mil de mebros ao redor do mundo, com mais de um milhão aqui no Brasil. Os Mórmons além da Bíblia seguem o livro conhecido como “O Livro de Mórmon, um outro testamento de Jesus Cristo”, que segundo a igreja, é um volume de escrituras sagradas com um propósito semelhante ao da Bíblia e da teologia e é considerado por seus membros como a pedra fundamental de sua religião. É uma história de comunicação de Deus com os antigos habitantes das Américas. A história começa 600 anos a.C, quando Deus ordenou que um profeta chamado Leí deixasse Jerusalém com sua família e rumassem todos para uma terra da Promessa: As Américas. Depois de Leí, o Senhor chamou outros profetas, como Néfi, Mosias, Helamã, entre outros. Mórmon foi um desses profetas.

A religião cresce e também há pregação, como os Testemunhas de Jeová.

Assim temos grupos espalhando milhões de versões da Palavra por ano, e isso cria um quadro onde de um lado existem pessoas já familiarizadas com a Bíblia – ou ao menos a versão aceita por sua crença – e de outro pessoas que não estão tão familiarizadas com a bíblia. E a base que a grande maioria das pessoas que entram em contato com todos esses evangelistas e catequisadores tem é de que:

1- Existe um Deus.

2- Essas pessoas estão distribuindo a Bíblia, que é a Palavra de Deus.

Dificilmente saberiam que aquela é uma das versões e que existem outras, muitas vezes com textos muito diferentes e significados que chegam a ser opostos uns aos outros.

Desta forma não só é dificil a aceitação de uma Biblia única como a cada dia mais e mais versões diferentes são divulgadas e com a sinceridade daquele que a distribui de ser a única Palavra correta.

E ainda existe uma questão interessante aqui: e quem pode julgar que versão está correta ou não? Da mesma forma que Deus e o Espírito Santo divulgaram a Palavra a primeira vez, como julgar que diferentes versões não foram inspiradas pela mesma fonte? Deus descansou no sétimo dia ou se aposentou da empresa que Ele criou e caiu fora dela? É difícil afirmar, se é que não é impossível. Assim se acreditamos que a Bíblia é de fato a Palavra, como podemos julgar qual delas é a correta ou mesmo se alguma delas pode ser apontada como uma versão errada?

23 – E essa loucura não vai acabar?

Vejamos. Por um lado temos cada dia mais acesso a informações que deveriam servir como base para corrigir erros históricos das coisas, a Bíblia seria uma delas. Com o material que existe hoje, desde os famosos textos do Mar Morto a grupos de arqueologia bíblica, deveriam haver meios de tornar a Bíblia em si mais factível, mais alinhada com fatos que já foram comprovados. Mas de novo isso provavelmente interessaria apenas a estudiosos e curiosos. Existem hoje cristãos que apresentam uma curiosidade digna da afirmação de Cristo: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” Mesmo assim são indivíduos e grupos pequenos, não tem o tamanho ou a influência necessária para se cria ruma nova versão das Escrituras ou talvez nem tenham a vontade de mudar as escrituras, apenas aprender os novos fatos.

Por outro lado cristãos e judeus tem um histórico de quando mais apanharem em nome da própria crença parece que mais certeza eles tem de estarem no caminho certo, então negar mesmo as evidências pode dar um ar de “não importam o que digam, minha crença é tão correta que eu não abro mão dela nem para o que aparenta ser o bom senso”.

Então não dá para dizer exatamente se essa zona vai continuar ou se a tendência é que todas essas pessoas comecem a buscar não apenas um livro impresso, mas a verdade comprovada por trás deste livro. Como dissemos no começo deste texto, originalmente o objetivo da Bíblia era que as pessoas se mantivessem fieis a Deus e seus Mandamentos e Leis, mas com o tempo a Bíblia se tornou um rótulo e hoje esse rótulo é defendido com unhas e dentes.

Mas acreditamos ser possível supor algumas probabilidades sobre o que seria o futuro da Bíblia.

Como vimos os grupos principais de Cristãos ainda esperam a segunda vinda de Cristo, alguns grupos não tão famosos acreditam que ele já voltou e existem aqueles que não acreditam que ele voltará. Assim, mesmo que existam por ai livros de novos profetas e novas palavras da segunda vinda de Cristo, no mainstream os profetas estão quietos há milênios e o Messias não retornou.

Umas das possibilidades é que surjam novos grupos cristãos e novas versões da Bíblia. Existem sempre aqueles que buscam os textos o mais próximos do original o possível. Bíblias multilingues com os originais em hebraico e grego são populares, o problema óbvio disso é que dificilmente a grande parte dos religiosos tem acesso a essas línguas e isso torna essas bíblias curiosidades. Existem versões ainda com quatro linguas e cinco linguas. Hebraico, Grego, Latim (inglês) e português. Mas de novo a grande maioria acaba contando apenas com a coluna em português (ou na sua língua natal) para ler o texto, já que hebraico e grego não possuem nem mesmo as mesmas letras que o alfabeto latino.

A tendência é que essas Bíblias acabem se aperfeiçoando trazendo pequenos glossários para tirar a dúvida de termos ambiguos ou mesmo apontando a direção certa em termos culturais e históricos de quando os textos foram escritos. Mas essas edições costumam ser caras, não dá para apostar que se tornem populares comparadas as bíblias distribuídas de graça.

Então a questão não se foca tanto na acuidade do texto em si, mas na popularidade daqueles que divulgam tais textos e na acessibilidade que eles tem, quanto mais baratos melhor, se estiverem disponíveis de graça, Amém. Existe a chance de surgirem grupos cristãos que tentem se aproximar mais das formas primitivas e originais dos textos e então trazê-los para o presente, mas eles só se tornariam maioria caso sua popularidade fosse maior do que a dos cristãos “concorrentes”. Então o futuro da Bíblia estaria ligado de novo a mensageiros e não à Palavra em si.

A internet talvez ajude a popularizar para um grupo grande novas versões e uma outra possibilidade é o surgimento de “meta” bíblias, ou seja, textos que sejam interpretados por indivíduos não ligados à igreja e assim vários interessados podem julgar que textos teriam mais coerência, mas de novo isso fugiria a uma unidade e acabaria estando preso à erudição de cada pessoa que poderia julgar que mesmo que tal versão fosse de alguém famoso ela tem passagens estranhas que são melhores ser deixadas de lado.

Talvez uma resposta que apontasse a uma direção certa seria a que o movimento Jesus Freak prega em seu manifesto, uma forma de cristianismo não presa em palavras, mas no exemplo deixado por Cristo, claro que isso não afetaria muito a Bíblia e suas variantes, apenas a relação de cada um com o texto.

Manifesto Jesus Freak

1 – Nós propomos que, seguindo o exemplo de Jesus Cristo, não nos deixemos limitar pela religião. Os primeiros inimigos de Cristo foram os altos sacerdotes do Templo. O primeiro amigo de Cristo foi um louco que gritava no deserto.

2 – Nós propomos que as Escrituras são a mais alta autoridade cristã. Portanto devemos nos esforçar para compreendê-las muito mais do que nos esforçamos para aceitar a forma que nossos ancestrais a compreenderam. O mundo dos homens muda a cada instante. O mundo de Deus permanece o mesmo para sempre.

3 – Nós propomos que cada cristão tenha o mesmo credo essencial de Paulo de Tarso, Francisco de Assis, Martinho Lutero, William J. Seymour, Martin Luther King e ainda assim sejam livres para expressar sua fé de sua própria maneira especial, assim como o fez cada um destes cinco homens.

4 – Nós propomos que ninguém tem o direito de dizer quem que uma pessoa não será salva em Cristo, uma vez que a hora cabe ao Pai e a salvação cabe ao Filho. Assim, ainda que o próximo viva em escândalo você não deve se escandalizar.

5 – Nós propomos que os livros de orações sejam deixados de lado por um tempo. Talvez seja difícil usufruir de nossa liberdade de expressão em um primeiro momento, mas seremos recompensados com uma relação mais intima e próxima com Deus. Por muito tempo temos usado de maneira pobre o nosso missal. É hora de orarmos mais e irmos menos à missa.

6 – Nós propomos que devemos nos preservar um pouco dos hinários e livros de salmos. Eles são lindíssimos, mas nossa mente precisa respirar e perceber que está vivendo em uma época nova e radiante. Devemos compor novas músicas com novas letras, que sejam atuais e de acordo com nossa época. Não existe nenhum problema em cantar as glórias antigas, mas há uma infinidade de glórias novas aguardando e clamando para serem cantadas.

7 – Nós propomos nos libertarmos da arquitetura do passado criando novos espaços para nossos cultos. Derrubemos as igrejas e templos para não haver mais a separação entre irmãs e irmãos, entre crentes e ateus, entre humanos e resto da criação. Chamemos de volta a todo aquele que expulsamos de nossas igrejas: os infieis e os piores pecadores! A Casa de Deus não é uma casa de desespero. Chamemos todos de volta, ainda que continuem pecando para sempre.

8 – Nós propomos que descubramos como os avanços tecnológicos de nossa época podem ser usados para a glória de Deus. “Frutificai e multiplicai-vos” nunca foi um desejo ligado única e exclusivamente ao sexo. “Eis que saiu o semeador a semear” nunca foi restrito as praças públicas. Deus nos presenteou com tecnologias que nossos antepassados sequer sonharam poder existir. Está na hora de aceitarmos essa graça e fazer bom uso dela. Vamos organizar oficinas e mostrar como a arte e a ciência podem fazer parte de nossas festas e nossos exercicios de contemplação.

9 – Nós propomos o uso do intercâmbio cultural para enriquecer nossa literatura litúrgica com materiais até então ignorados por nossos cultos tradicionais. Há uma abundância de sabedoria e beleza nos textos considerados apócrifos pela igreja medieval, nas escrituras sagradas de outras crenças e mesmo na poesia secular que podem e devem ser usados em nossa liturgia para atingirmos um propósito estético superior ao atual.

10 – Nós propomos que em um mundo dominado pela mídia onde o uso da imagem supera o do texto, os cristãos devam fazer uso das figuras mais fortes, corajosas e chocantes possíveis. O cinema, a televisão e mesmo intervenções urbanas devem ser usados. Não há lógica em mostrar o caminho, a verdade e a vida usando imagens piegas, meia luz e baixa resolução.

Notas:

[1] Abrahâmico faz referência a crenças que se originaram da revelação divina de Abrahão como o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo.
[2] Aqui Igreja tem a conotação de igreja primitiva, uma igreja não organizada, eram grupos de pessoas que seguiam a mesma crença mas sem uma instituição formada ainda.

Por Rev. Obito para o movimento Jesus Freak


Sentindo-se freak? Conheça Jesus Freak: o Guia de Campo para o Pecador Pós-Moderno


 

Postagem original feita no https://mortesubita.net/jesus-freaks/a-evolucao-da-biblia-da-boca-de-deus-ate-as-cabeceiras-dos-moteis/

Os Muitos Caminhos para o Topo

Texto de Sri Ramakrishna

Deus fez diferentes religiões para satisfazer diferentes aspirações, épocas e países. Todas as doutrinas são apenas outros tantos caminhos; mas um caminho não é, de modo algum, o próprio Deus. Na verdade, podemos chegar a Deus seguindo quaisquer dos caminhos com sincera devoção. Não importa a maneira de comer um bolo com glacê: ele sempre terá sabor doce.

Assim como a água, única e mesma substância em todo o mundo, recebe diferentes nomes dos diferentes povos – água, water, eau, aqua, pani – também o Eterno, a Imperecível Bem-Aventurança, é invocado por diferentes nomes: alguns o chamam de Deus, outros de Alá, alguns o chamam de Javé, outros de Brahman.

Assim como podemos subir ao teto de uma casa usando uma escada, um bambu ou uma corda, diversos são também os caminhos e os meios para chegarmos até Deus, e cada religião do mundo mostra um desses caminhos.

Inclinar-se e adorar, quando outros se ajoelham – onde muitos prestam o tributo da adoração o Senhor Se manifestará, pois Ele é misericórdia.

O Salvador é o mensageiro de Deus. Ele é como o vice-rei de um poderoso monarca. Quando há distúrbios em uma província distante, o rei manda seu vice-rei subjulgá-los; sempre que há um declínio da religião em alguma parte do mundo, para ali Deus envia seu Salvador. É um único e mesmo Salvador que, tendo mergulhado no oceano da vida, ergue-se em um lugar e é conhecido como Krishna e, mergulhando novamente, ergue-se em outro lugar e é conhecido como Cristo.

Cada um deve seguir a sua religião. O cristão deve seguir o cristianismo, o muçulmano deve seguir o islamismo e assim por diante. Para os hindus o antigo caminho, o caminho dos sábios arianos, é o melhor.

As pessoas dividem suas terras por meio de fronteiras, mas ninguém poderá dividir o céu que está acima de nossa cabeça. O céu indivisível cerca tudo e tudo inclui. Na sua ignorância as pessoas dizem: “Minha religião é a única verdadeira, minha religião é a melhor”. Mas o coração, quando iluminado pelo verdadeiro conhecimento, sabe que acima de todas essas guerras de seitas e sectarismos preside a indivísivel, eterna e onisciente bem-aventurança.

A mãe, cuidando dos filhos doentes, dá arroz e curry para um, araruta para outro e pão com manteiga para o terceiro; também o Senhor oferece diferentes caminhos para pessoas diferentes, cada um apropriado a cada natureza.

Havia um homem que adorava Shiva, mas odiava todas as outras divindades. Um dia Shiva apareceu diante dele e disse: “Eu nunca te estimarei enquanto odiares todos os outros deuses”. Mas o homem se manteve inflexível. Depois de alguns dias, Shiva reapareceu e lhe disse: “Eu nunca te estimarei enquanto odiares”. O homem se manteve em silêncio. Alguns dias se passaram e Shiva voltou a aparecer diante dele. Dessa vez, um lado de seu corpo era o de Shiva e o outro, o de Vishnu. O homem ficou metade satisfeito e metade insatisfeito. Fez suas oferendas ao lado que representava Shiva, mas nada ofereceu ao lado que representava Vishnu. E então Shiva disse: “Tua intolerância é insuperável. Eu, assumindo este aspecto duplo, tentei te convencer que todos os deuses nada mais são do que os vários aspectos do Brahman Absoluto”.

#Budismo

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/os-muitos-caminhos-para-o-topo

9 dicas para se livrar da sua religião

 

Este artigo foi escrito como intuito de ajudar pessoas infectadas por memes prejudiciais, em especial aos da religião institucionalizada. Caso você não esteja familiarizado com o conceito original de meme. Leia o artigo, O Poder do Meme-Meme, de Susan Blackmore, e depois volte aqui.

Não vou entrar no mérito de quais meme são prejudiciais ou não. Isso ficará implícito no decorrer de meu texto que certamente refletirá o meu próprio túnel limitado de realidade. O ponto que sustento é que uma simples análise racional, muitas vezes não basta para que uma pessoa se liberte de um modo de vida irracional. O ser humano é uma entidade complexa que possui corpo, emoções, hábitos, meio e moral não sendo portanto somente uma máquina de pensar. Com isso em mente resumi neste artigo nove pontos que podem ajudar de forma prática, todas aquelas pessoas que atualmente se sentem na triste condição de infectados.

1 –Não Alimente Memes Prejudiciais. Esta é a primeira e mais importante regra.  A questão é que existem diversas formas de se fortificar um memeplexo que forma um túnel específico de realidade, e se quisermos nos livrar deste memes todas estas formas devem ser evitadas. Se você quer ser alguém livre novamente é melhor começar a agir como alguém livre desde já. Isso é especialmente importante quando falamos dos hábitos que certas realidades impõem. Pode ser difícil no começo, mas você deve parar de por exemplo orar antes das refeições se quiser deixar de ser um cristão ou, se for o caso, deve parar de rezar voltado para Mecca cinco vezes ao dia se quiser deixar de ser um muçulmano. Se quiser mudar a si próprio, mude seus hábitos primeiro, o resto é conseqüência.

2 – Abra sua mente. Uma boa maneira de se desprender de memeplexos daninhos é contemplar túneis de realidade contraditórios. Esta é uma ótima maneira de descobrir os pontos fracos de alguma visão de mundo em particular, pois mostra o quão fortemente elas estão fixadas em princípios insólitos. Em outras palavras, neste primeiro momento procure as criticas escritas por seus concorrentes diretos. Isso é admiravelmente eficaz no caso de memeplexos religiosos: Judeus desmentirão o islamismo, o islam acusara o hinduismo de incoerência, o hinduismo refutará brilhantemente o cristianismo. Isso sem contar as disputas internas que também são valiosas fontes de contradições: Sunitas mostrarão a fraqueza do argumento Shiita e vice e versa, protestantes passarão a perna nos católicos que mostrarão o erro evidente em que estão os neo-pentecostais. De certa forma todos estão certos em acusar o outro de estar errado e isso pode ser uma ferramenta valiosa. Esta pratica não deve ser estendida por muito tempo, pois é preciso ter cuidado que no processo você não seja levado a engolir todo um novo sistema que usou as criticas a outro sistema como uma espécie de isca. De qualquer forma una rápida contemplação, leitura ou conversa com outros pontos de vista servirão para tirar você de um mundo maniqueísta e preto-e-branco onde não existe a necessidade do raciocínio.

3 – Saída a francesa. Em casos mais graves de infecção o psiconauta pode se livrar gradualmente de seus memes dominantes. E o que eu chamo de Libertação Gradual. Pode parecer hipócrita, e na verdade é mesmo, mas o fato é que funciona e pode ajudar você. Todo túnel de realidade possui variações diversas: existem católicos conservadores e existe a renovação carismática, existem hindus místicos e hindus absolutamente laicos. O truque é buscar conhecer a vertente ideológica que esteja ligada a sua atual, mas que ao mesmo tempo represente um passo (ainda que pequeno) para fora das amarras. Haverá muito poucos conflitos memético para atrapalhar e criar rejeição, nada que não se possa tolerar, mas mesmo assim este será um passo a mais na sua busca por sanidade. Um idealista da extrema direita poderia , por exemplo buscar conhecer os pensadores de centro-direita, enquanto que um radical de esquerda poderia mergulhar em um universo social-democrata. Passo a passo ambos verificarão que estão relativamente menos presos a seus antigos memes.

4 – Blasfêmia é entendido como ultrage dirigido contra pessoa ou coisa respeitável e é uma ferramenta poderosíssima para o psiconauta pois é uma oficialização de total rejeição a aquilo que antes era sagrado. A Blasfêmia deve de preferência ser feita em particular, para não agredir o túnel de realidade das outras pessoas. Ela inclui a profanação de objetos e figuras de autoridade antes tido como sagrados. A blasfêmia é um ato essencialmente simbólico e deve ser o tão desrespeitosa quanto possível (contanto que não agrida ninguém), pois desencadeará impressões mentais importantes e será um verdadeiro ato de liberdade ao que antes o oprimia. A idéia não tem nada de mística como podem sugerir alguns, mas é simplesmente a quebra factual de um tabu para assim iniciar um novo processo mental. Há algo de profundamente errado com o ex-nazista que ainda guarda com carinho sua cópia do Mein Kampf em um lugar de destaque de sua biblioteca particular. A blasfêmia eficaz é aquela que é seguida por um sentimento de indiferença. Ao sentir-se culpado por jogar no lixo seu crucifixo ou sua coleção de fotos do Elvis, atente aos demais conselhos deste artigo.

5 – Heresia é toda doutrina contrária ao que foi definido por alguma conceituação oficial, donde se conclui que todos somos hereges de uma forma ou de outra. Para fins de se purgar de memes prejudiciais a heresia será a crítica clara e sensata ao túnel de realidade em questão. È necessário que se contemple o memeplexo que esta em jogo sob a fria luz da lógica. Ao contrario da blasfêmia a heresia é mais eficiente quando feita em público, ela deve ser a oficialização de seu desprezo pelo seu antigo memeplexo parasita e não um convite aos sofismas daqueles que ainda os defendem. Na visão daqueles ainda contagiados você será visto ou como tolo, ou como traidor. No primeiro caso eles buscarão lhe “ajudar” tentando reprogramar o seu cérebro para a aceitar novamente seus memes, na segunda irão lhe atacar indiscriminadamente. Ambos os casos se resolvem com o isolamento higienico.

6 – Isolamento Higiênico. Com vista a limpar a mente dos memes prejudiciais é essencial que se evite também todo os vetores que os propagam. Isso quer dizer que você não deverá ir mais a sinagoga ou as reuniões do partido. De preferência deve-se eliminar não só os que encontramos fora de casa, mas também os vetores que estão ao alcance de nossas mãos em nossa própria residência. Não atenda ao telefonemas dos seus amigos SkinHeads. Mande a sua coleção de revistas Sentinela/Despertai para o centro e reciclagem. Tire o site da Cientologia da sua pasta de favoritos. E por favor, não leia a Biblia ou qualquer livro doutrinário antes de dormir. Se você quer sua mente limpa novamente terá que parar de arrastar ela na lama.

7 – Abrace o inimigo. Quase todo o túnel de realidade tem um túnel de realidade que é seu arquiinimigo ou possui algum grupo humano para ser bode expiatório. Como eu gosto de colocar: todo mundo é o idiota de alguém. Memeplexos daninhos comumente partem do principio da generalização para manter a sua coerência, ainda que a generalização não se sustente quando analisada coerentemente. Então se você precisa deixar de ser capitalista descubra um socialista que possa admirar e se quer deixar de ser nazista, procure um judeu que tenha uma história de vida admirável. Um membro da KKK pode por exemplo desenvolver um respeito por algum negro de destaque e a partir daí tomar coagem para fazer amigos negros no seu dia a dia. Um Ateu incorrigível pode buscar conhecer a vida de grandes teistas e com isso se livrar da crença de que todo crente é um ignorante. A essência desta pratica é q compreensão de que as pessoas estão acima das ideologias.

8 – Conheça suas necessidades.  Muitos memplexos constroem seus túneis de realidade valendo-se para isso de necessidades naturais do ser humano. Como fontes fornecedoras estes memeplexos criam uma situação de dependência que muitas vezes resulta em um incondicional retorno do psiconauta a condição de infectado. A melhor coisa a se fazer nestes casos é identificar exatamente quais são estas necessidades preenchidas e então buscas fontes alternativas para satisfazê-las. Uma congregação cristã pode por exemplo empurrar todo um discurso doutrinal satisfazendo antes necessidades emocionais, sociais e mesmo físicas. Estas mesmas necessidades poderiam ser satisfeitas de maneira muito mais saudável como na participação de um grupo de teatro, de uma equipe de basquete ou na pratica e artes marciais.

9 – Não se culpe. O primeiro sinal de reação memetica é o sentimento de culpa. A culpa é um sentimento humano natural usado pelos genes para corrigir atos insensatos como bater na mãe. Acontece que alguns memes se valem deste sentimento para fazer alguns atos parecerem insensatos, quando absolutamente não o são. É como se sentir triste por uma tragédia que nunca ocorreu. Não tente portanto argumentar com este tipo de culpa ou vergonha. A culpa e a vergonha não são argumentos e portanto não precisam de contra-argumentação. Na maioria das vezes a culpa surge porque alguma necessidade discutida no parágrafo anterior foi ignorada. Este tipo de sentimento é na verdade o último golpe dado pelos memes que não “querem” abandonar a memesfera de sua mente. O bom humor unido à razão é sempre o melhor remédio para contornar este problema.

Tamosauskas

[…] Postagem original feita no https://mortesubita.net/baixa-magia/9-dicas-para-se-livrar-da-sua-religiao/ […]

Postagem original feita no https://mortesubita.net/baixa-magia/9-dicas-para-se-livrar-da-sua-religiao/