Bonecos Vampiros Gigantes

Shirlei Massapust

Muito se discute se BJD de tamanho 1/1 é algo para além de um mero boneco. A Fonte (1917) de Marcel Duchamp é um urinol, todavia se expõe como obra de arte. BJD de tamanho 1/1 é boneco, mas raramente é tratado como tal. Aparece mais como representação artística daquilo que de fato é.[1] Estes sobrebonecos são sofregamente achados em galerias de arte ou leilões onde as vezes se paga até para dar lances perdidos. Seus produtores são bonequeiros conhecidos. A Geração Y viveu para ver Marmite Sue, Bleuacide (Taissia Abdoullina) e Marina Bychkova deixando o comércio de colecionáveis para mergulhar nas brumas do mundo invisível da alta sociedade.

O tamanho máximo para um BJD que o homem médio asiático planeja ter em casa varia de 55 a 75 cm, muito raramente obtendo também algum de 80 ou 90cm. A maioria dos colecionadores não chega a consumir figuras humanas em escala 1/1 por não terem onde guardá-las e porque nem tudo convém levar para casa. É mais cômodo adquirir periódicos, livros de arte e outros materiais impressos, donde vem o costume entre os escultores-bonequeiros de trabalhar em dupla com fotógrafos.

No século XIX já existia isto que nos países de língua inglesa é chamado de “ball jointed doll” (BJD), nos de língua francesa de “sujet de la jointure à boules”, nos de língua alemã de “das kugelgelenk”, etc. Porém eram brinquedos infantis, bonecos ocos articulados com juntas esferoides e esqueleto de elástico. Quem primeiro os julgou impróprios para menores de oito anos e teve a ideia de produzir BJD em escala 1/1, para apreciação do público adulto, foi o alemão Hans Bellmer (1902-1975).[2]

A junta universal – que gira para todos os lados – surgiu na época transitória da substituição do astrolábio geocêntrico pelos globos terrestres. Graças a ela a caneta tinteiro deu lugar à esferográfica e a mobilidade dos bonecos foi ampliada ao ponto da imitação fidedigna dos movimentos humanos. Por este motivo Hans Bellmer imaginou que o manejo do BJD pode estimular o engendramento de novas aplicações da junta universal na elaboração de teorias científicas, criação de máquinas e artesanato.

Isto nos permite identificar precisamente a função da boneca, que é o “estimulador poético”. Não importa se mais ou menos realista ou confusa — flutuando, como costuma fazer, entre os papeis de animado ou inanimado — nós sempre estaremos olhando para uma coisa móvel, passiva e incompleta que pode ser personificada. Em última análise, no quadro geral cujo princípio do objeto articulado parece atender à demanda, nós devemos estar tratando do fator mecânico por trás da mobilidade: A junta universal. [3]

Hans Bellmer definia os jogos de interpretação como uma categoria de poesia experimental. Por isso chamava a projeção do humano em relação ao boneco de “das Du”, na segunda pessoa singular, repudiando termos usados em psicologia (ego e id são Ich ou self e Es em idioma alemão). Ficção não se mistura com realidade; logo, a réplica guarda sua própria natureza enquanto objeto de abstração e espelhamento.

1) Antiga fotografia anônima duma boneca de Hans Bellmer em exibição temporária no Art Institute of Chicago.[4]

 2) Antiga fotografia de La Poupée (1935) de Hans Bellmer.[5]

 

O gênero de bonecos Iki-ningyō (生人形) retrata fielmente a imagem humana e, não raro, critica a realidade em que vivemos. Sua tipologia assimilou o hiper-realismo difundido nos EUA e na Europa desde 1969, porém uma forma primária já existia no Japão desde o século XIX permeando a confecção de bonecos de todos os tamanhos.

O Museu Nacional do Japão possui uma ala inteira destinada à exposição permanente 球体関節人形展・Dolls of Innocence, onde são exibidos vários bonecos com juntas esféricas em escala 1/1 ou maiores. A peça mais antiga é La Poupée (1935), criada por Hans Bellmer; um corpo feminino com dois sexos, quatro pernas e nenhum busto, notoriamente uma mulher em mitose. Essa é a boneca autorreplicante que se desdobra em dois corpos inteiros na introdução de três minutos e vinte e nove segundos que fez do filme Innocence (イノセンス, 2004) o produto da franquia Ghost in the Shell (攻殻機動隊) mais ovacionado pela crítica filosófica.

Depois desta amostragem da arte de Hans Bellmer, as bonecas mais antigas da referida exposição são peças datadas de 1986 produzidas pelo chinês Ryo Yoshida (吉田 良) e pelo japonês Jin Yamamoto (山本仁), os quais trabalharam com temas mórbidos, eróticos e infantis. Outros vieram depois, inclusive a japonesa Koitsukihime (恋月姫) que esculpiu quatro bonecas adquiridas pela curadoria do museu. Uma delas é uma graciosa menina deitada num caixão, produzida em 2003.

1) Criança no caixão, esculpida por Koitsukihime e fotografada por Mario Ambrosius na exposição 球体関節人形展・Dolls of Innocence do Museu Nacional do Japão.[6]

2) Vampiro da série Kamitsukitai (咬みつきたい) esculpido por Katan Amano e fotografado por Ryo Yoshida.[7]

 

Esta última pode ser uma vampira pois Koitsukihime[8] exibiu sua especialidade, em parceria com o fotógrafo Hiroshi Nonami (野波浩), na coleção de cartões postais Misericordia (恋月姫展 ミゼリコルディア; 2008), editada pelo Studio Parabolica. Nela vemos dezoito fotografias de treze bonecas esculpidas entre 1980 e 2006. Isso foi anunciado como matéria de capa do número especial sobre vampiros de revista de artes Yaso 夜想 ヴァンパイア (2007), também impressa pelo Studio Parabolica.

Posteriormente a escultora-bonequeira Mari Shimizu (清水真理) também publicou o livreto Ashes to Ashes, Dust to Dust (2014) contendo cinco fotos duma série de bonecas com temática vampírica, todas esculpidas por ela, junto a um conto bilingue (inglês/nihongo) escrito por Mari Ishigami (石神茉莉). Foi um projeto tão bem sucedido que, no ano seguinte, Mari Shimizu fez mais seis BJDs e uma escultura na série Kyūketsuki gensō (吸血鬼幻想), “Fantasia de Vampiro”, divulgada pelo Twitter.[9]

BJD vampiros em tamanho 1/1:

1) Escultura Harukanaru nemuri 「遥かなる眠り」 (sono distante), esculpida por Koitsukihime e fotografada por Hiroshi Nonami, reproduzida na capa da revista Yaso 夜想 ヴァンパイア (2007).

2) Capa do livreto bilingue Ashes to Ashes, Dust to Dust (2014) com fotografias de esculturas de Mari Shimizu e texto de Mari Ishigami.

 

Jovens vampiras estão na ponta dum iceberg que se avoluma numa profusão de outras coisas impressionantes que os apreciadores de horror e arte obscura podem encontrar no Japão do século XXI. A própria Koitsukihime esculpiu gêmeas siamesas. Entre as bonecas que se destacam há mulheres-violino, mulheres de ventre aberto e outros temas macabros esculpidos pelo bonequeiro Miura Etsuko (三浦悦子).[10] A bonequeira Tari Nakagawa (中川多理)[11] frequentemente esculpe cadáveres putrefatos. Uma cabeça enfaixada aparece na capa do livro Emmurée (アンミュレ, 1993) onde o fotografo Masaaki Toyoura (豊浦正明) expõe a arte de Yuriko Yamayoshi (山吉由利子).

Escultura Inside Vampire, da série Kyūketsuki gensō (吸血鬼幻想; 2005). Arte de Mari Shimizu. Fotos de Yukio Yoshinari.

O escultor-bonequeiro Katan Amano (天野可淡; 1953-1990) produziu alguns croquis aquarelados de arte conceitual e pelo menos quatro bonecos – três vampiros masculinos e uma vítima feminina – destinados à montagem de cenas vampirescas na série Kamitsukitai (咬みつきたい), “Eu Quero Morder”, fotografada por seu parceiro e biógrafo Ryo Yoshida (吉田 良).[12] A inspiração foram os filmes clássicos do cinema ocidental, com Bela Lugosi e Christopher Lee. Os bonecos estão vestidos como o Conde Drácula, com smoking e capa de ópera, e posando à semelhança dos atores. Também dormem no caixão e, num croqui, o vampiro voa como homem-morcego.

Outras esculturas de humanoides com asas de morcego, que nos lembram vampiros, podem ser representações de animais comuns que se tornaram bakemono, como os tsukumogami transformados aos noventa e nove anos. A mulher-morcego com relógio no ventre (腹時計蝙蝠婦人), de Kai Akemi, é metáfora da vida noturna.

1) Mulher-Morcego (腹時計蝙蝠婦人). Arte e foto © 1995, Kai Akemi. 2) Fotografia de Ryo Yoshida duma escultura de Katan Amano (天野可淡, 1953-1990), no livro Katan Doll (1989).

Quando alguém tão celebre quanto Katan Amano sai da vida para entrar para a História tendo deixado cópias fieis do mitologema e da iconografia padronizada pelos filmes ocidentais, ao esculpir vampiros articulados, é porque falta um toque original, regional, no projeto… Seu bebê morcego é muito melhor que seus Dráculas.

Notas:

[1] Exceto casos excepcionais como o da coleção trinity doll da Dollmere, composta de bonecas de 1,05 m de altura, reproduzidas em série e vendidas junto com outros bonecos de tamanho pequeno, da mesma marca.

[2] Hans Bellmer (1902-1975) foi um fotógrafo, escultor, escritor e pintor associado ao movimento surrealista.

[3] BELLMER, Hans. The Doll. Trad. Malcolm Green. London, Atlas Press, 2005, p 60.

[4] BUNYAN, Marcus. Exhibition: ‘shatter rupture break’ at the Art Institute of Chicago: Exhibition dates: 15th February – 3rd May 2015. Publicado em Art Blart, 19/03/2015. URL: <https://artblart.com/2015/03/19/exhibition-shatter-rupture-break-at-the-art-institute-of-chicago/>.

[5] EQUIPE EDITORIAL. Hans Bellmer e suas bonecas perturbadoras: Seu polêmico trabalho destacava temas do subconsciente, sonhos, sexualidade e morte. Em: Arte Ref, 02/05//2022. URL: <https://arteref.com/escultura/hans-bellmer/>.

[6] AMBROSIUS, Mario. 球体関節人形展・Dolls of Innocence. Tokyo, Nippon Television Network Corporation, 2004, p 46.

[7] YOSHIDA, Ryo. Katan’s Vampire. 「吸血鬼人形に込められた思い」 Em: YASO 夜想 ヴァンパイア. Japão, Studio Parabolica, 2007, p 53.

[8] Para obter bonecas em tamanho 1/1 de Koitsukihime o colecionador de arte deve preencher um cadastro em nihongo no portal Chateau de Lune <http://koitsukihime.jp>, verificar a disponibilidade do artesanato na área reservada, pagar o preço combinado e viajar ao Japão para buscar sua escultura em terracota de boneca gigante.

[9] 清水真理 作品集発売中。@shimizumari. Publicado no Twitter em 09/06/2016 5:34 AM. URL: <https://twitter.com/shimizumari/status/740824451298758656>.

[10] MIURI ETSUKO. Site oficial: <http://www.miuraetsuko.com/>.

[11] KOSTNICE: Tari Nakagawa Doll Site. <https://www.kostnice.net/>.

[12] YOSHIDA, Ryo. Katan’s Vampire. 「吸血鬼人形に込められた思い」 Em: YASO 夜想 ヴァンパイア. Japão, Studio Parabolica, 2007, p 47-53.

Postagem original feita no https://mortesubita.net/vampirismo-e-licantropia/bonecos-vampiros-gigantes/

As Influências Religiosas em Silent Hill

Os mitos da franquia de jogos Silent Hill contém vários paralelos e temas religiosos.

Cristianismo:

A religião que a maioria das pessoas pensa quando olha para a Ordem. Como o cristianismo, a Ordem chama sua divindade de “Deus”. Ambos os Deuses são divindades salvadoras que se acredita que um dia retornarão à Terra e darão aos crentes (ou a toda a humanidade, dependendo da interpretação de cada um) vida eterna e felicidade.

Outra ideia em que a Ordem acredita é o Inferno. Embora nem todos os cristãos acreditem no inferno, especialmente na era moderna, mas como a Ordem, a maioria dos cristãos por agora acredita no inferno.

O Deus da Ordem também é dito ser uma divindade solar, e dentro do Cristianismo Esotérico, Jesus é uma divindade solar.

Valtiel também é considerado pela Ordem como o mesmo ser que Metatron.

Por fim, o culto do filme Terror em Silent Hill, The Brethren (A Irmandade), parece seguir alguma crença arcaica de fanáticos cristãos sobre a caça às bruxas, embora o roteiro diga que são maniqueístas.

Catolicismo:

A Ordem também tem semelhanças com o catolicismo especificamente. O clero realiza confissões como os católicos. Ambos acreditam no Purgatório.

Alessa também tem semelhanças com Maria. Ambas estavam grávidas de deuses apesar de serem virgens. Ambos os deuses deveriam levar a humanidade à salvação. Acreditava-se que Maria nasceu sem o Pecado Original, e Alessa nasceu com poderes. Finalmente, no terceiro jogo, a Ordem fez de Alessa em “Santa Alessa, Mãe de Deus, Filho de Deus”. As diferenças são óbvias, pois Maria foi abençoada e voluntariamente deu à luz Jesus, enquanto Alessa foi desfigurada e atormentada.

Gnosticismo:

Alguns apontaram temas gnósticos em Silent Hill. A Ordem acredita que este mundo é um Inferno, enquanto o Outro Mundo mais fantástico é um reino agradável, assim como os Gnósticos acreditam que o mundo físico é um mundo inferior. Isso é, no entanto, revertido em que o Outro Mundo é na verdade um reino infernal, enquanto os vislumbres que temos do mundo real são um lugar normal.

Alessa também foi comparada a Sophia. Sophia no Gnosticismo é um ser que dá à luz o Demiurgo, a divindade maligna que criou este mundo físico inferior. Da mesma forma, a Deusa da Ordem é uma divindade criadora e quando realmente a vemos, ela é má. Como Sophia, Alessa também odiava seu “filho” e tentou impedi-lo.

O roteiro do filme também afirma que os membros de A Irmandade são maniqueístas, que é uma seita do gnosticismo.

Wicca e Neopaganismo:

Perto do final de Silent Hill 3, Heather lê parte de um livro sobre Tarô. Ele menciona o “deck de Gardner”. Esta é provavelmente uma referência a Gerald Gardner, um dos fundadores da Wicca.

A divindade principal da Ordem também é uma deusa feminina, que espelha a Wicca e muitas religiões neopagãs, pois dão grande ênfase às divindades femininas.

Religiões Mesoamericanas:

Os criadores afirmaram que a Ordem estava parcialmente fora dos rituais e crenças mesoamericanas. Vemos isso na prática de sacrifício humano da Ordem, especialmente quando Heather derrama sangue no altar encontrado no Hospital Brookhaven do Outro Mundo.

Os nomes de dois deuses importantes nas crenças da Ordem são Xuchilbara e Lobsel Vith. Ambos os nomes vêm da língua maia.

Antiga Religião Celta:

O Outro Mundo é um termo do paganismo celta. No paganismo celta, o Outro Mundo era um lugar mágico onde viviam fadas, deuses e outras criaturas mágicas. Alguns também acreditavam que era a vida após a morte celta. Os celtas acreditavam que o Outro Mundo estava localizado do outro lado do mar ocidental, sob os montes das fadas, ou ao lado do nosso próprio mundo. Na maioria das fontes, acreditava-se que o Outro Mundo era uma terra verde livre de doenças, fome e velhice. No entanto, algumas fontes dizem que às vezes pode ser um lugar escuro e aterrorizante para aqueles que não deveriam estar lá. Também é notado que o Outro Mundo deve ter névoas em suas fronteiras. A série parece fazer referência a isso em Silent Hill 3, quando uma placa no shopping pode ser vista que diz “Tirn Aill”, que é o termo em galês para “mundo das fadas” ou “outro mundo”.

Xintoísmo:

Outra possível influência é a religião xintoísta. No xintoísmo, há uma crença nos “Kami”. “Kami” é muitas vezes mal traduzido como “deus”, mas na verdade é mais complexo do que isso. Kami é realmente considerado algo superior em beleza e poder. Nesse sentido, os seres humanos eram tecnicamente considerados Kami. Kami também poderia ser a “alma” animista de um lugar, pois acreditava-se que muitas árvores, montanhas e nascentes tinham seus próprios Kamis. É possível que o poder de Silent Hill tenha sido influenciado pela crença nos Kamis.

Outro aspecto do Xintoísmo que aparece em Silent Hill é a crença na limpeza e na poluição. Está implícito que o poder de Silent Hill foi manchado pelos eventos que ocorreram lá.

O Book of Lost Memories (Livro das Memórias Perdidas) também afirma que o santuário encontrado em Silent Hill 1 se parece com um santuário xintoísta.

Por último, o Toluca Lake (Lago Toluca) é um tanto importante na série. No folclore japonês, pensava-se que a água era um portal para Yomi, o mundo dos mortos.

Adoração do Diabo:

Alguns apontaram que a Ordem tem semelhanças com a Adoração do Diabo. Ambas as religiões acreditam no Ocultismo e tentam obter poderes Ocultos. Quando o Deus foi expulso de Alessa no primeiro jogo, criou o Incubus (mais tarde identificado como Samael), que se parece com o Baphomet, uma figura associada ao Caminho da Mão Esquerda.

Judaísmo:

O primeiro jogo contém referências cabalísticas na forma de um quebra-cabeça. O terceiro jogo também faz referência à Cabala quando Heather lê sobre o Aglaophotis (um líquido vermelho que é obtido a partir do refinamento de uma erva de mesmo nome. Tem a capacidade de dissipar forças demoníacas e conceder proteção contra tais forças àqueles que usam o item). Além disso, os inimigos da Ordem chamam seu Deus de “Samael”. Samael é um anjo que às vezes é equiparado ao diabo cristão, e também é o anjo da morte.

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Fonte:

Religious Influences On Silent Hill.

https://silenthilltheories.fandom.com/wiki/Religious_Influences_On_Silent_Hill

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Texto adaptado, revisado e enviado por Ícaro Aron Soares.

Postagem original feita no https://mortesubita.net/popmagic/as-influencias-religiosas-em-silent-hill/

Amatsu Norito (天つ祝詞) – Oração Shinto

A oração Amatsu-Norito remonta a uma época anterior à de Jinmu, o primeiro imperador do Japão. Foi escrita por um “deus” da linhagem de Amaterassu-Oomikami, adorado pelo clã Yamato. Por isso suas palavras possuem um espírito muito elevado e uma ação intensa, tendo o poder de purificar o Céu e a Terra.

Ouvir o Norito no trabalho pode ser uma experiência muito relaxante e espiritual para alguns. Algumas das maiores cidades do mundo, como Nova York ou Tóquio, contêm algumas indústrias de alto estresse, como profissionais de saúde, vendas, forças policiais e advocácia, nas quais os empregados podem se beneficiar das leituras de Norito.

Amatsu Norito

Japonês

高天原に 神づまります
神ろぎ、神ろみの命 以て
皇御祖(の)神、伊邪那岐命
筑紫の日向の
橘の小戸の仰ぐ原に
禊 払いたもう時になりませる
払いどの大神達
諸々の禍事、罪、汚れを
払いたまえ、清めたまえと申すことの由を
天つ神、国つ神、八百万の神達ともに
天の斑駒の 耳振り立てて聞こし召せと
畏み畏みも申す
弥勒大神
守り給え幸栄え給え
雄雄し 御祖主の神
守り給え幸栄え給え
随神の道栄えませ

Transliteração

Takaamahara Ni Kami Tsumari masu.
Kamurogi Kamuromi no Mikoto wo Mochite
Sumemioya Kamu Izanagi No Mikoto
Tsukushi No Himuka No Tachihana No Odo No
Ahagi Hara Ni Misogi Harai Tamau Toki Ni
Narimaseru Haraidono Ookami Tachi
Moromoro No Magagoto Tsumi Kegare Wo
Harai Tamae Kiyome Tamae To Mousu Koto No Yoshi Wo
Tamatsu Kami Kunitsu Kami Yaoyorozu No Kamitachi Tomomi
Ameno Huchikoma No Mimi Furitatete Kikoshimese To
Kashikomi Kashikomi Mo Maosu

Tradução

Ó deuses da purificação, criados por ordem do pái e da mãe
que habitam o Céu, justamente quando o Deus Izanagui no Mikoto
se banhou na foz estreita de um rio coberto por árvores permanentemente frondosas, na região Sul.
Com todo o respeito e do fundo do coração pedimos que nos ouçam,
tal como o equino que ouve atento, com ouvidos aguçados e,
juntamente com os demais deuses do Céu e da Terra, purifiquem todas as maldades, desgraças e pecados.

Miroku Oomikami.
Abençoai-nos e protejei-nos

Meishu Sama
Abençoai-nos e protejei-nos

Para expansão da nossa alma
Seja feita a Vossa vontade

Fonte: nihonkunka

Postagem original feita no https://mortesubita.net/asia-oculta/amatsu-norito-oracao-xinto/

Almas Vintage

Shirlei Massapust

Em mandarim yāo (妖) significa um monstro, geralmente de origem exógena, com corpo formado de ectoplasma modelável, como o ātman (आत्म) do hinduísmo. Este termo passou para o nihongo como prefixo de palavras tais como yōkai (妖怪) ou monstro misterioso, yōma (妖魔) ou monstro mágico, yōtō (妖刀) ou kataná monstruosa, etc. Menos frequentemente yāo pode designar um humano que se tornou feiticeiro ou até um fantasma. Geralmente os imaginamos com má aparência, embora a partícula ocorra também em termos venturosos como yōen (妖艶), que designa uma personagem encantadora, sensual. A palavra utilizada para traduzir o inglês faery (fada) é geralmente yāojing (妖精), em mandarim, yojeong (요정) em hangul e yōsei (妖精) em nihongo.

Um ponto leva a outro. Pelas sílabas de yōkai (妖怪) obtemos os sinônimos yōbutsu (妖物) e kaibutsu (怪物), designando poder de mutação; algo que nos leva em trilha semântica ao bakemono (化け物), um ser com poder de metamorfose, apto a assumir ao menos duas formas distintas. Outras combinações do superlativo honorífico o (お) com bake (化け, mudando, corrompendo)[1] e o substantivo mono (物, objeto) dão-nos as variantes sinônimas obake (お化け) e obakemono (お化け物).[2]

No Japão uma casa mal assombrada é uma bakemono-yashiki (化物屋敷). No folclore oriental o ser humano tem ki (氣), uma força vital que nos sustenta e se espalha pelo meio-ambiente do mesmo modo que deixamos fios de cabelo, células mortas, fragmentos de unhas, suor, etc., para traz. Enquanto nossos restos matérias atraem ácaros que produzem fezes, nossos restos de carga atraem yōkai que, por sua vez, recarregam o ambiente com rastros de sua potência mutagênica e vivificante.

Casas repletas de mobília antiga e objetos que nunca são renovados acumulam carga até as coisas entrarem num estado de existência animista[3] indicativo da corrupção ou mudança, chamado de tamashī (魂), reikon (靈魂), konpaku (魂魄) e hakurei (魄霊)[4] em diferentes épocas. Isto que hoje conhecemos por bakemono é um corpo material (objeto, animal ou pessoa) que prodigiosamente muda daquilo que era antes para algo que vem a ser. Um exemplo: No templo budista Mannenji, localizado em Iwamizawa, Hokkaido, existe uma boneca chamada Okiku (お菊人形), antiga e já bastante erodida.

A tradição oral revela que este item foi comprado por Eikichi Suzuki, um rapaz de dezessete anos, no ano 1918, em Tanuki-Koji, na ilha Sapporo. Eikichi Suzuki deu Okiku à sua irmã de três anos, chamada Kikuko ou Kiyoko. A menina amou o presente e não se separou da boneca até morrer de virose no ano seguinte. Após a cremação do corpo da menina, Okiku foi posta no oratório da família bem ao lado da urna funerária. Com o passar do tempo o corte de cabelo em estilo okappa, antes nos ombros, alongou visivelmente. A família interpretou a mudança como sinal de que a sombra da morta penetrou naquele objeto por osmose, vivificando-o.

Em 1938 a família Suzuki se mudou para Sakhalin e doou Okiku ao templo, onde permanece exposta até hoje, junto à urna contendo as cinzas da falecida. Todos os anos romeiros participam duma cerimônia em memória de Okiku. Dizem que os olhos da boneca causam sensação de vigilância real. Dizem que sua boca abriu e que cabelos continuam a crescer. Graças à boneca, este templo acabou virando atração turística.[5]

É triste quando o bonequeiro, ningyōshi (kanji 人形師, kana にんぎょうし), fabrica o boneco, ningyō (kanji 人形, kanaにんぎょう), com propósitos artísticos e o item acaba na fogueira porque alguém julgou aquele objeto como algo capaz de absorver a moléstia e curar uma criança adoentada quando posto no leito onde ela dorme.

No Japão as bonecas não são apenas brinquedos infantis e muitas vezes representam símbolo da história dos costumes do país. Elas são chamadas de ningyō e ao longo de toda a história do Japão foram sofrendo pequenas modificações. As primeiras referências de bonecos são os haniwa, estatuetas de barro encontradas em tumbas pré-históricas, onde o que menos contava era o apelo decorativo. No período Heian (794-1185) eram usados para afastar demônios.

Inicialmente as bonecas eram muito simples, moldadas em palha ou papel sendo que as primeiras serviam para afastar epidemias e eram colocadas nas fronteiras das antigas aldeias. E para purificar corpo e alma, se usavam bonecas feitas de papel que depois eram jogadas no rio para levar embora os maus fluídos. (…) Durante o fechamento do país para o mundo, no período Edo (1603-1868), o país desenvolveu uma cultura própria. Neste período as bonecas ainda carregavam uma forte superstição pois muitas pessoas as tinham como amuleto para afastar pragas de plantações ou para garantir um bom parto. Mas foi em meio a esta mentalidade que surgiram as karakuri, bonecas que tocavam instrumentos e dançavam através de um sistema simples de cordas retorcidas, roldanas e fios.[6]

Noutro artigo já mencionamos a lenda da yōtō (妖刀), espada de uso bélico que se apega à sua função social, tem sede de sangue e induz qualquer usuário a continuar matando mesmo em tempos de paz. Outros artefatos de uso militar também podem ganhar vida, conforme narrativas folclóricas e artísticas. O abumi-guchi (鐙口) é o estribo de hipismo, utilizado por um comandante militar, que com o tempo se transforma numa criatura peluda.[7] Certa vez Ozamu Tezuka preencheu uma página do gibi Dororo (どろろ) com um único quadro onde equinos sem cabeça, de pescoços flamejantes, galopam assustando o protagonista. Parecem com a mula-sem-cabeça do folclore brasileiro.

Não é normal num gibi que o desenhista gaste uma página inteira com apenas um quadro, especialmente contendo uma cena desprovida de pertinência temática com o roteiro. Na página seguinte o menino sonha com o passado, lembrando de como ele se tornou um órfão predestinado à vida de ladrão.[8] Seriam aqueles cavalos de guerra decapitados anunciadores de pesadelos?[9] Na esperança de obter mais informações procurei pela primeira versão animada de Dororo (どろろ; 1969) cuja música da abertura e encerramento é pausada pela recitação de poemas por uma voz feminina. Na primeira interrupção ela fala sobre as posses do samurai moeru yoroini (燃えるよろいに) ou “armadura flamejante” e moeru uma (燃える馬) ou “cavalo flamejante”:

赤い夕日に照り映えて

燃えるよろいに燃える馬

天下めざしてつきすすむ

 

No crepúsculo vermelho

Armadura em chamas, cavalo em chamas

Correndo veloz, galopando pelo mundo[10]

Na abertura do remake de Dororo (どろろ; 2019) vemos a cena do quadrinho onde vários cavalos sem cabeça galopam numa fração de segundo e não tornam a aparecer no seriado em si, assim como nunca vemos a cena da putrefação do cadáver do protagonista igualmente presente naquela amostragem.

Nossa energia impregna num animal doméstico mimado em excesso do mesmo modo que entra em objetos estimados. Por isso a forma primária dum bakemono pode ser um ser vivo, como o bakeneko (化け猫, gato metamorfo). Um animal selvagem que atinge idade avançada para muito além do normal também se transforma, como o bake-danuki (化け狸, tanuki metamorfo). Isso é o contrário das lendas ocidentais de homens que viram animais (lobisomem, capelobo, etc.) pois no caso nipônico é o gato, o tanuki, a raposa, etc., que vira gente temporariamente ou reencarna como gente.

Quando itens domésticos ganham vida e senciência eles ainda estão apegados aos velhos usos e atuam de modo obsessivo compulsivo. Sendo assim, na China uma zhǒu shén (箒 神), chamada no Japão de wawakigami (ははきがみ), é uma vassoura que, descontroladamente, varre sozinha as folhas que caem em dias de vento frio.[11]

Objetos domésticos de uso regular só se tornam agressivos quando passionais, podendo buscar vingança contra pessoas que os inutilizaram ou os jogaram no lixo. Por conta disso, alguns santuários oferecem o serviço de “consolar” objetos quebrados ou que não são mais usados.[12] Muitos países como a Tailândia, por exemplo, constroem templos para alguns objetos com fama ou origem sobrenatural.[13] No Japão cerimônias de consolação são realizadas em templos budistas e xintoístas. Por exemplo, existe o festival hari kuyō (針供養), celebrado em 8 de fevereiro na região de Kanto, mas em 8 de dezembro nas regiões de Kyoto e Kansai, onde as costureiras levam suas agulhas quebradas para agradecer os préstimos antes do descarte.[14] Assim elas não as furam.

Ningyō kuyō (人形供養) é um serviço de memorial para bonecas antigas, com presença de gueixas e monges, onde as famílias agradecem os préstimos dos objetos que cumpriram sua função social fazendo companhia e protegendo suas crianças, mas que perderam a utilidade e foram entregues à cremação. Isto ocorre desde sempre no templo zen-budista Hōkyō-ji (宝慶寺), em Kyoto, conhecido como Templo dos Bonecos devido ao seu acervo de peças imperiais coletadas e acumuladas durante séculos.[15] Posteriormente o mesmo costume foi introduzido no templo Kiyomizu Kannon-dō (清水観音堂), em Tokyo, e virou matéria da revista Superinteressante (agosto de 1992).

No Japão, até hoje as duas definições (boneca e ídolo) se misturam tanto quanto se misturavam entre romanos e gregos. Há pelo menos 900 anos, todo dia 3 de março, as meninas reverenciam a casa imperial reunindo suas bonecas prediletas numa grande festa. Uma a uma, todas as bonequinhas são visitadas, apresentadas às amigas e, durante o chá, têm o privilégio de serem servidas em primeiro lugar. (…) Para os japoneses, bonecas têm espírito. (…) Ainda hoje, muitos japoneses acreditam que, colocada no leito de uma criança doente, a boneca pode levar a moléstia embora. Se presenteadas no dia do casamento, são consideradas símbolo de prosperidade e felicidade conjugal para o jovem casal. Há pouco mais de vinte anos, o sindicato dos fabricantes e comerciantes de Tóquio aproveitou a deixa dessa crença para promover um grande lance comercial chamado ningyō kuyō. Tradução: “consolo da alma das bonecas”, ritual de cremação que se tornou tradicional na capital japonesa. Todo dia 25 de setembro, as mulheres estéreis que obtiveram a graça de ter um filho levam uma boneca para ser cremada no templo Kiyomizu-Kannon-dō. A ideia é que, queimando a boneca, seu espírito carregado do desejo de maternidade vai embora com a fumaça e a criança pode crescer em paz. Vai-se o espírito infantil, fica o comercial.[16]

Na antologia de poemas Ise monogatari (伊勢物語), seção 63, datada do século IX, lemos a palavra tsukumogami (つくも髪) referente aos cabelos brancos, kami (髪), duma idosa. Setecentos anos depois o autor-ilustrador do pergaminho Tsukumogami emaki (付喪神絵巻) explicou que o intraduzível prefixo tsukumo na palavra tsukumogami (desta vez 付喪神) também poderia ser escrito com o kanji 九十九, que significa um período de noventa e nove anos. Sendo assim uma ferramenta ou utensílio doméstico desenvolveria um espírito evoluído após a passagem de noventa e nove anos. Mas há um problema: A truncagem de kami (髪, cabelo) por kami (神, divindade) sugere que ele não entendia o sentido original de tsukumogami ou formulou um homônimo homófono.            Segundo o pergaminho do século XVI, à época as pessoas descartavam objetos antes de completarem o período chamado de susu-harai (煤払い). Conforme exposto, se demorassem mais a ferramenta “mudaria e adquiriria um espírito, e enganaria o coração das pessoas”. Tal ensinamento constaria no livro Onmyō Zakki (陰陽雑記), livro que também informaria sobre a coisa vivificada que assume aparência humana, tanto masculina quanto feminina, tanto idosa quanto jovem; bem como “a semelhança de chimi akki” (aparência de oni) e “a forma de korō yakan” (forma de animais), entre outras. Seu aspecto após a mutação é referido com palavras como youbutsu (妖物).[17]

Há dúvidas sobre se o susu-harai é, de fato, um período de exatos noventa e nove anos porque tsukumo (九十九) pode se referir literalmente a um número ou, menos precisamente, a uma hipérbole no sentido de muito tempo. A boneca Okiku só precisou de um ano para adquirir uma natureza espiritual pois isso representou um terço da vida de sua dona, que a amou com intensidade, agonizou e morreu com ela. No primeiro volume do romance gráfico Tokyo Babylon (東京BABYLON), do grupo CLAMP, editado pela Shinshokan, em 1990, uma personagem adoece e apresenta comportamentos estranhos após comprar uma jaqueta numa liquidação de roupas. Subaru descobre que a jaqueta ficou carregada de energia negativa por conta da competição da clientela por aquele objeto, ao ponto de aquilo necessitar de exorcismo.[18]

Papéis encantados

No Japão, em templos da religião xintó, são vendidos ofuda (御札), que são amuletos de papel produzidos por monges para atrair o amor, a saúde, a prosperidade financeira e até proteger contra mal olhado e fantasmagorias. Do mesmo modo, no taoísmo e noutras religiões chinesas, existe o jufu (呪符) ou gofu (護符), amuleto de papel ou madeira produzido para finalidades que mudam conforma a inscrição.

Os ofuda tem efeito imediato porque o monge xintó é competente para canalizar a energia dos kami (神) aos quais ele presta culto. Porém existem métodos para o leigo carregar papel com os eflúvios energéticos de origem humana, de modo voluntário ou involuntário. Hoje há todo um ritual construído em torno da tradição de confeccionar, expor e descartar o washi ningyō (和紙人形); um ningyō (人形) ou boneco feito de washi (和紙), tipo de papel artesanal feito a partir das cascas das árvores das amoreiras.

Livro de arte com fotografias de washi ningyō produzidos pela artesã japonesa Eika Ito.[19]

Dizem que o washi ningyō teria o poder de remover a dor quando posto no leito dum enfermo que dorme. Logo depois, o boneco descartável carregado pela energia da enfermidade deve ser cremado ou levado para longe e dissolvido em água.

Fotos: 1) washi ningyō produzidos pela fábrica Kyugetsu representando Shinzo Abe, o Primeiro Ministro do Japão, e Caroline Kennedy, Embaixatriz dos Estados Unidos no Japão. (Foto © 2014, The Japan Times). 2) Monges levando um barco cheio de bonecos para o rio.

Com o passar dos séculos este rito individual originou uma festa coletiva. Hina-ningyō (雛人形) é um washi ningyō introduzido no festival Hinamatsuri (雛祭り), o “Dia das Meninas”, realizado anualmente por japoneses e italianos descendentes de japoneses. Neste festival inúmeros bonecos são expostos sobre carpete vermelho.

Bonecos de papel ou palha representando a corte imperial, com roupinhas em estilo antigo, são levados para templos onde ficam expostos ao público desde meados de fevereiro até o dia três de março. Depois o excesso é cremado pelos monges. Contudo, muitos ainda chegam ao fim do procedimento onde as pequenas figuras humanas são postas para navegar à deriva em barquinhos de madeira, empurrados pela correnteza dos rios ou pelo movimento das ondas.  Estes se tornam hina-nagashi (雛流し), bonecos flutuantes, que levam as doenças e problemas com eles para longe.

No Brasil existe um costume parecido onde, no dia do Réveillon, os umbandistas pulam sete ondas na Praia de Copacabana e enviam oferendas para Iemanjá dentro de réplicas de barcos em miniatura que podem ou não conter uma imagem da santa.

No Japão até um maço de papel pode ser imbuído de poder mágico. Kyōrinrin ( 経凛々) é um bakemono resultado da transmutação de pergaminhos, livros, etc., que foram negligenciados e deixados sem leitura[20] por bastante tempo. Antigamente o papel branco era produzido com fibras da planta chamada asa (麻) ou o (苧), conhecida em botânica como Cannabis sativa. Havia grandes campos de plantações destinadas a este fim. Na ausência de nanquim a tinta era obtida de materiais biológicos, como gema de ovo e sangue animal. Segundo Aline Ribeiro, durante o shogunato de Tokugawa (1853-1867) os samurais eram submetidos a um rito de passagem:

A lealdade tinha certos rituais muito profundos, como um “contrato” firmado entre o guerreiro e seu daimyō. O documento era escrito com o sangue do próprio samurai, assinado e, logo em seguida, queimado. As cinzas eram dissolvidas em água e bebidas, fazendo com que se criasse um laço eterno entre a linhagem do samurai e a do senhor.[21]

Coisas estranhas acontecem quando um papel impregnado de energia aleatória não é cremado nem exposto aos elementos. Muitos acreditam que o shōji – tipo de porta deslizante feita de papel de arroz, – assim como as fechaduras e outras benfeitorias necessárias do lar, se transmutam em mokumokuren (目目連) e tendem a criar muitos olhos quando deteriorados e esburacados pelo tempo ou pela má conservação.[22]

A lanterna chōchin (提灯お), feita de bambu ou papel de seda, é um objeto de grande beleza, onipresente na decoração nipônica. O yóuzhǐ sǎn (油纸伞), um guarda chuva de papel em estilo chinês, é estruturalmente semelhante ao kasa (傘), o guarda-chuva comum, porém se trata dum item decorativo que os noivos carregam na cerimônia de casamento. Se alguém decidir guardar estes apetrechos perecíveis e descartáveis, em algumas décadas eles se tornarão os monstros folclóricos chōchin-obake (提灯お化け) e kasa-obake (傘おばけ)[23]. Assim como um gato doméstico muito mimado pode se tornar um bakeneko (化け猫), um tanuki eventualmente evolui para bake-danuki (化け狸) e outros animais da fauna local se convertem nas mais variadas fantasmagorias.

Um kasa-obake não precisa necessariamente evoluir de um yóuzhǐ sǎn, mas suponhamos que assim seja. Como todo bakemono ele é um objeto imbuído da força vital projetada por alguém que congelou sentimentos experimentados à época de sua posse. Quem não deseja mudar de atitude ou de opinião faria bem em ter um bakemono amigo. As emoções impregnadas na memorabilia nupcial carregariam e vivificariam o objeto de estimação que transmuta a haste de sua alma artificial num corpo sutil e abre as asas na forma do animal que lhe é mais semelhante: Um elegante morcego.

Este quiróptero etéreo promoveria a união do casal evocando a lembrança daqueles momentos felizes. Enquanto o objeto existisse, ele faria tudo para não deixar seus proprietários se separarem, brigarem ou pararem de desejar um ao outro. Contudo, se fosse jogado fora ou acabasse nas mãos de outrem, por herança ou mero acaso, tumultuaria a vida alheia tentando controlar sua vontade para realizar sua função social. Enfim, o novo dono viraria um mulherengo, um libertino, ou se apressaria a casar.

Ilustração de Hokusai representando um chōchin-obake (1826/1837) e detalhe de uma ilustração de Yoshitoshi (1839-1892) figurando um provável kasa-obake ou morcego associado ao guarda-chuva. Ele pode ser a alma do objeto porque, em nihongo, uma das palavras sinônimas tanto de quirópteros quanto de guarda-chuvas é kōmori (コウモリ ou こうもり), por causa dos dedos e estruturas que suportam tecidos esticados. Cesar Gordon observou que em mebêngôkre, o idioma dos indígenas Kayapó, os guarda-chuvas também são chamados de morcegos (njêp).[24]

No início não havia nenhuma padronização da aparência de objetos mutantes na arte nipônica. E nem seria lógico se houvesse; afinal, eles têm poder de mutação. Hoje, contudo, a variação na aparência depende do tipo de item que os originou, assim como as condições de como o objeto estava. [25] Imagens da lanterna chōchin-obake (提灯お化け), do guarda-chuva kasa-obake (傘おばけ), do chinelo de palha bakezōri (化け草履) e doutros objetos que viram obake muitas vezes os mostram fazendo careta, com língua de fora, certamente por influência do padrão iconográfico estabelecido na era Kanei (1848-1853) pelo bonequeiro Hikoshichi Nishijinya (西陣屋彦七), natural da cidade Kumamoto, criador do boneco mecânico obake no Kinta (おばけの金太).

Arte em de papel machê: 1) Cabeças vermelhas e outros brinquedos obake no Kinta que exibem as línguas na Loja de Bonecos Atsuga (厚賀人形店), em Kumamoto, Japão.[26] 2) Máscara “O Linguarudo” representando o diabo, produzia por Dionísio (1909-2007), em Niterói, RJ, Brasil.

Este brinquedo folclórico tem aspecto duma cabeça humana ou animal de papel machê, fixada sobre haste de bambu, com engrenagens internas que permitem mover os globos oculares, abrir a boca e mostrar a língua quando puxamos uma corda.[27] Os descendentes de Hikoshichi Nishijinya ainda fabricam o brinquedo e explicam que seu nome era Kinta, porém alguém se assustou com o movimento e supôs ser um obake.

Oposição entre valores morais e pecuniários

Uma antiga lenda diz que Bodhidharma () atingiu o nirvana meditando durante nove anos numa caverna. Durante esse exercício meditativo ele permanecia imóvel, observando fixamente o vazio numa posição chamada bìguān (壁觀) ou “olhar perene” até suas pupilas ficarem reduzidas ao tamanho mínimo. Depois que o fundador do zen-budismo na China se mumificou em vida, os chineses começaram a esculpir santos e brinquedos verdadeiros sem pupilas em sua homenagem, transmitindo a tradição aos japoneses que hoje fabricam o boneco-amuleto Darumá (だるま).

Diz a lenda que Bodhidharma meditou em uma caverna por 9 anos sem nem ao menos piscar. Sua persistência foi tão forte, que ele continuou sem parar mesmo depois de seus braços, pernas e pálpebras caírem. Essa lenda (…) é a origem do formato redondo do Darumá. Os Darumás possuem mais peso na parte inferior para que fiquem de pé, não importa quantas vezes sejam derrubados.[28]

Na tradição zen-budista japonesa o devoto compra o Darumá cego, pinta uma pupila no olho esquerdo e faz um desejo. Quando o Bodhidharma atende este desejo o devoto retribui concedendo a visão do olho direito, desenhando a pupila que falta. Esses são bonecos inarticulados, humildes, feitos de materiais baratos, geralmente vendidos em feiras e festivais religiosos, mas também em lojas de souvenir. Ao fim de um ano é preciso devolver o Darumá para qualquer templo, onde ele será queimado num ritual, liberando o seu espírito. Esse ritual pode ser individual ou coletivo. Em razão da enorme demanda, desde 1954 o templo budista Nishiarai Daishi (西新井大師) promove o festival Darumá kuyō (だるま供養) onde milhares de exemplares são queimados juntos.

No Japão, China e Coréia do Sul é comum encontrar bonequeiros e vidraceiros produtores de olhos para bonecos de Resina PU com opções de íris monocromática, sem pupilas, disponíveis inclusive em cores fantasia como salmão e vermelho vivo. A artesã chinesa Heise Jin Yao (黑色禁药) é uma entre os muitos comerciantes de olhos para BJD que parodiam a iconografia do Darumá. Porém seus bonecos não são santos conservadores e ninguém os queimaria em sã consciência, pois hoje cada um chega a valer mil dólares americanos. Eles são personagens fantásticos de novelas de temática BDSM. Um deles, Huika (毁卡), teve o nome inspirado por Huìkě (慧可), discípulo de Bodhidharma, segundo patriarca da escola de zen-budismo na China, historicamente conhecido por haver sido um nobre de pouca virtude, pouca sabedoria, coração raso e mente arrogante, descendente direto de Sidarta Gautama.

O filme de horror coreano The Doll Master (인형사; 2004), dirigido por Yong-ki Jeong, foi patrocinado pela Ai Dolls, atual Custom House. Imagine como seria se a indústria estadunidense Mattel, produtora da boneca Barbie, patrocinasse um filme protagonizado por uma Bárbie assassina. Foi exatamente isto que a Custom House fez com seus preciosos produtos! Estariam decretando a obsolescência e recomendando aos proprietários que cremem todos os modelos antigos, a serem substituídos pela nova coleção? No Brasil juristas formulariam hipóteses de crime contra a economia popular; pois, se não destruir, papões com mãos geladas puxarão seus pés para baixo da cama!

Verificamos que o filme The Doll Master retrata fielmente a antiquíssima crença oriental de que certos objetos inanimados podem prejudicar seus donos quando tratados de modo irregular. Ou seja, que “se você se apegar a um objeto e andar sempre com ele a coisa pode formar uma alma”, e que objetos inanimados “como uma rocha, uma boneca ou uma casa” pela qual alguém se apega desmesuradamente, obsessivamente, acabam carregados de sentimentos deletérios que eles reproduzem e irradiam.

Esta obra de ficção apresenta vários resultados para o que acontece quando objetos feitos de Resina PU desenvolvem alma por culpa de seus donos: Damian, um boneco articulado por elásticos internos (BJD), foi adotado e transportado pela mesma pessoa durante dezenove anos, sete meses e vinte e oito dias. Esta mulher tímida se tornou ouvidora de vozes e dialogava com a coisa. Virou uma excluída social. No mesmo filme uma designer de bonecos encontrou um manequim sentado sobre um túmulo. O espírito vingativo do manequim passou para o corpo da mulher e começou a perseguir todos os descendentes do assassino do seu criador. A artesã possessa disse:

Eu acredito que meu trabalho da vida aos objetos inanimados. (…) Você nunca possuiu coisas às quais era apegado? Você já ficou triste após perder aquelas coisas? Eu penso que quando os objetos perdem seus donos, eles ficam tristes também. Você sabia que quando algo está perdido, há algumas ocasiões em que parece que ele nunca desapareceu do seu local de origem? Eles retornam para os seus antigos donos.

Mina, outra BJD, ganhou alma quando sua dona sofreu um acidente. Com o tempo a menina enjoou da boneca e jogou fora, mas a boneca não enjoou da menina. Mina passou a perseguir sua dona, inconformada com o descarte e esquecimento. A boneca era capaz de projetar seu espírito em forma humana diante da antiga proprietária, fazendo-a acreditar que dialogava com uma menina de verdade enquanto os outros a viam falar sozinha. Por isso aquela mulher deixou de ser uma modelo desinibida e bem sucedida. Ela acabou igualmente rotulada como louca.

O exemplo da BJD Mina, de The Doll Master, é idêntico ao da pequena boneca de porcelana Mary, que aparece no episódio 11 do anime Histórias de Fantasmas (学校の怪談; Japão, 2000), Mary reencontrou o caminho de casa e voltou, querendo brincar, mas só achou a filha órfã da sua falecida dona, que era bastante madura e não gostava de bonecas. O brinquedo problemático assombrou a adolescente até ser entregue a um templo budista onde um monge explicou que o certo teria sido cremar os pertences da falecida junto ao corpo na data do óbito. Enfim, nestas obras de ficção as almas dos brinquedos amados sempre requerem mais amor e as dos brinquedos maltratados devolvem a violência às pessoas. Assim todos continuam absorvendo energia alheia.

Propaganda da microempresa sul-coreana HyperManiac, onde são comercializados personagens da designer de bonecos Ka-Hyun.

No sexto episódio da série Witch Hunter Robin (2002), criada por Sunrise e pelo diretor de animação Shūkō Murase, uma jovem bruxa diagnosticada com transtorno de personalidade múltipla transfere suas personalidades para várias bonecas até restar só uma delas em sua mente.  No seriado Another (アナザー; 2012) a filha duma bonequeira extrai um olho tomado pelo câncer e equipa um olho de vidro, um olho de boneca, que transmuta e lhe dá capacidade de ver o mundo sob a perspectiva de um bakemono.

No segundo episódio da primeira versão do seriado Vampire Princess Miyu (吸血姫美夕; 1988), de Narumi Kakinouchi e Toshiki Hirano, algumas pessoas foram transformadas em bonecos articulados por uma criatura de mesma espécie que lhes prometeu beleza eterna. A energia emitida pelos embonecados sustentava o bakemono, porém a Princesa Miyu nada obteve ao mordiscar um aparentemente saboroso menino de plástico. No meio de tudo um personagem coadjuvante se recusou a comprar um brinquedo para sua filha: “Você não acha que as bonecas japonesas são assombradas? O folclore diz que o cabelo das bonecas cresce, e outras coisas deste tipo”.

No desenho animado Dantalian no Shoka (ダンタリアンの書架), sexto capítulo Funsho kan (焚書官), que foi ao ar no Japão pelo canal TV Tokyo, em 19/08/2011, os personagens protagonistas descobrem que todos os coadjuvantes moradores duma cidade misteriosa são bonecos articulados transformados por meios mágicos em shikigami (式神) para servirem de receptáculo das almas dos mortos.[29]

Isto parece uma versão em roteiro de horror da história real da aldeia Nagoro, situada na ilha de Shikoku, Japão, onde a artesã Tsukimi Ayano (月見綾乃) enfeitou áreas públicas e prédios vazios com centenas de bonecos de pano forrados com palha, jornal, etc., para combater a solidão, de modo que sua arte ocupa hoje os lugares dos mortos e dos moradores abduzidos pelo êxodo rural. Esses bonecos são mantidos limpos e substituídos quando se deterioram. Quando a quantidade de falsas pessoas superou a população humana na proporção de dez para um, agências de turismo passaram a chamar Nagoro de Kakashi No Sato (かかしの里), a Vila dos Espantalhos.[30]

Bonecos para um vampiro

Na primeira vez em que assisti ao filme Higanjima (彼岸島; Japão, 2010) pensei que Miyabi (雅) fosse um baquemono tsukumogami pois este personagem, interpretado pelo ator e modelo fashion Louis Kurihara (栗原 類), têm uma presença estética bastante diferenciada da dos demais vampiros. O seu nome significa elegância, refinamento ou cortesania, podendo designar um metrossexual, um destruidor de corações. Enfim, ele parece um boneco e foi achado num templo repleto de bonecos. Além do mais, o jogo Ragnarök Online apresenta uma versão da futa-kuchi-onna (二口女) chamada Miyabi Ningyō (雅人形) vivendo num mapa que obviamente inspirou a criação do labirinto que aparece no capítulo 295 do primeiro romance gráfico da outra franquia.

Miyabi (Louis Kurihara) em Higanjima (彼岸島; Japão, 2010).

Porém tudo se explica no capítulo 39 do romance gráfico, com roteiro e desenho de Kōji Matsumoto (松本 光司).[31] Uma mutação genética ocorrida numa família nobre criou os vampiros. Miyabi foi aprisionado num frigorífico. Durante os cinquenta e sete anos em que esteve preso os ilhéus oraram e construíram ao seu redor. Fizeram um altar para oferendas de alimentos e prosseguiram com as benfeitorias até o local virar um templo ornamentado com estantes de bonecos representando vampiros. No exterior erigiram um torii[32], uma escadaria e tudo que um templo tem direito. Enfim, tentou-se de tudo para apaziguar o vampiro exceto deixa-lo escapar do confinamento.  Foi assim até que um turista desinformado e curioso cometeu o erro de abrir a prisão.

Às vezes os seres humanos imaginam que deuses abstratos precisam de olhos e corpos para representação. O mesmo acontece com fantasmas. Em Chihuahua, México, uma loja de roupas chamada La Popular se transformou em atração turística por ostentar a mesma manequim na vitrine desde 25 de março de 1930. Esta manequim com olhos de vidro está sempre vestida de noiva e foi chamada de Pascualita por parecer com Pascuala Esparza, filha da primeira proprietária da loja, que morreu envenenada pela picada duma aranha viúva negra bem no dia do seu casamento.

Desde o início as pessoas espalharam a lenda urbana de que Pascualita observa os clientes da loja e muda de posição à noite. No Japão, a desenhista Naoko Takeucki parodiou uma lenda urbana semelhante: Até 1992 existia uma loja de vestidos de noiva num shopping de Minami Aoyama, que, para chamar atenção, posava uma manequim prestes a pular da janela do terceiro andar. Muitos transeuntes se assustaram pensando ser uma suicida e contaram estórias. Na versão fictícia do quinto ato do romance gráfico Sailor Moon esta noiva manequim[33] foi animada pela yōma (妖魔) do corpo redivivo do avatar dum shitenōu (四天王) controlado por poderes das trevas e pulava da sacada à noite procurando noivos para extrair energia (精力) e, com isso, nutrir o Dark Kingdom[34].

O sepultamento da cultura

Na vida real enquanto milhares de pessoas comparecem ao Darumá kuyō, dispondo peças para consolação e cremação, e bastante gente leva washi ningyō ao festival Hinamatsuri, como deve ser, somente poucas dezenas participam do ningyō kuyō. E mesmo assim a maioria leva washi ningyō, evitando o desapego de bens duráveis e dispendiosos que são o verdadeiro foco desta bonita cerimônia religiosa.

Fica óbvio que japoneses têm dó de entregar qualquer item superior a bichos de pelúcia. Coisas boas são revendidas, pois a maioria entende que o ideal é cremar no templo aquilo que se faz pelo templo e para o templo. Ou então os próprios monges preservam brinquedos seletos para a não-cremação conforme critérios misteriosos.

Se o problema ainda não ficou claro observem o polêmico artesão chinês Ryo Yoshida (吉田 凌) cremando duas bonecas de terracota que ele mesmo esculpiu, numa ilustração da monografia Articulated Doll, Anatomy of the Ball-Jointed Maiden (2007). Tenha em mente que seis bonecas articuladas, em tamanho humano, esculpidas por Ryo Yoshida entre os anos 1986 e 1999 constam na exposição permanente 球体関節人形展・Dolls of Innocence, do Museu Nacional do Japão.[35] Estando o artista vivo e atuante, o valor mínimo para essa categoria de arte gira em torno do equivalente a quatro mil dólares americanos. Então são pelo menos oito mil dólares em obras de arte com qualidade de museu crepitando no fogo. (Pense no Coringa queimando dinheiro).

O que acontece quando monges pedem para cremar uma categoria de bonecos que custa vários salários mínimos? O homem médio obedece ou questiona? Um artista consagrado como Ryo Yoshida pode se dar ao luxo de capitalizar a religião vendendo livro e postais com foto do rito secular, porém os colecionadores guardam itens valiosos mesmo que sejam objetos agourentos. Geralmente, quando solicitado, o colecionador leva qualquer treco dizendo “este é meu boneco”, os monges educadamente fingem que foram enganados e os bonequeiros se divertem desconstruindo o dogma.

A ideia duma dimensão espiritual intrinsecamente relacionada à produção de bonecos aparece ludicamente sugerida nos nomes-fantasia de microempresas sul-coreanas e chinesas, surgidas no século XXI, fabricantes de peças em Resina PU, a exemplo da Loong Soul (龙魂人形社; alma de dragão), Immortality of Soul (imortalidade da alma), Resin Soul (alma de resina), Souldoll (boneca com alma), Angel Studio (fábrica de anjos), Illusion Spirit (espírito ilusório), etc. No catálogo da Souldoll o nome do modelo Kagel vem de kage (影, sombra) e ele existe nas versões humano e vampiro.

O ateliê chinês ★ANother Secret★ produz cabeças para montagem de bonecos e possui uma coleção chamada Hyakki Yakō (百鬼夜行) que leva o nome duma folclórica parada onde uma centena de yōkai percorre as ruas à noite, aterrorizando os humanos.

Esses bonecos orientais de Resina PU destinados ao nicho do hobby específico já não são tão enormes e dispendiosos quanto as peças de terracota e porcelana fria em escala 1/1, mas ainda são maiores que a escala 1/6 adotada perlo padrão ocidental, custando em média de trezentos a setecentos dólares, salvo casos excepcionais.

Por que os bonequeiros do século XXI descontroem e subvertem a religiosidade popular? Quem fabrica peças para consumo em território nacional e internacional são predominantemente mulheres vivendo em países onde a lei e os costumes estabelecem salário diferenciado para o sexo masculino, a fim de assegurar a posição hierárquica do homem como arrimo de família. A existência de artistas de sexo feminino ganhando mais do que o homem médio nas indústrias de publicação de mangás shoujo e josei, nas fábricas de bonecos, etc., quebra todos os tabus. Elas chefiam os seus negócios.

A classe conservadora se mostra hostil às mulheres trabalhadoras e seus iguais, que retribuem com deboche e – no caso das bonequeiras – chegam a utilizar o ônus do folclore como propaganda indireta ao promover produções de horror, como The Doll Master (2004) e Rozen Maiden – Träumend (2005). Afinal, já dizia o velho bordão: “falem mal, mas falem de mim”. Entretanto, não podemos descartar a possibilidade de às vezes estarmos importando objetos feitos por algumas pessoas que sinceramente acreditam na tradição local e tiveram a intenção de nos vender seus receptáculos de programação energética sujeitos ao ganho de vida artificial.

Resumo geral: fluxo e refluxo energético

A queima de artefatos não é uma realidade apagada no ocidente. No Brasil, nos Estados Unidos e noutros lugares onde organizações religiosas cristãs possuem grande influência no ambiente cultural, existe uma ostensiva propaganda de “batalha espiritual” ordenando o exorcismo de pessoas e a queima de determinados objetos passíveis de canalizar a possessão demoníaca (normalmente brinquedos, revistas em quadrinhos, filmes, discos de vinil, camisetas com estampa de banda musical, livros de biologia lecionando sobre os princípios da seleção natural e da ancestralidade comum, etc.).

Isso é diferente do que acontece no oriente porque o cristão queima os objetos proscritos com desdém, em nome Jesus, lutando contra o Diabo, enquanto o zen-budista crema com respeito. O bakemono do folclore nipônico não é um objeto possuído por anjo rebelde. Ele ficou impregnado de energia desprendida por um ou mais humanos e fixou-a como uma espécie de programação, passando então a reproduzi-la e irradiá-la. Ou seja, qualquer objeto pode adquirir o poder de congelar sentimentos havidos à época de seu uso. Por isso quando qualquer coisa absorve um malefício o prejuízo se torna parte da coisa e ela precisa ser destruída, mesmo que seja uma estátua de santo.

A sabedoria oriental aconselha a consolar e cremar, como se morto fosse, quase tudo que vira bakemono porque não é possível transformar tantas coisas em artigos de devoção. Se uma coisa dessas for doada para caridade ou jogada no lixo ela continuará amando e sofrendo, ficará ressentida e retornará ao usuário, podendo expressar desejo de vingança. Depois, em caso de morte do usuário, a herança buscará os herdeiros.

O ser humano exala grandes quantidades de energia durante momentos de angústia, stress, paixão, etc. A energia exalada por um estressado, por exemplo, ficaria impregnada na casa como a poeira que se acumula atrás dos móveis. Isso faria com que os objetos inanimados se transformassem em verdadeiros depósitos de stress. Visitas que sentassem num sofá estressado perderiam a alegria e ficariam estressadas em decorrência da contaminação. Nem o proprietário da coisa conseguiria melhorar e mudar de humor, pois ele continuaria a absorver e exalar o seu próprio baixo astral.

Todos nós conhecemos contos folclóricos sobre imóveis que influenciam novos habitantes porque, no passado, houve ali algum crime violento ou alguém morreu de doença grave, em intensa agonia. Antigos hospícios enlouquecem visitantes. Antigas prisões e cemitérios geralmente são mal assombrados. Museus também. Todavia nem todos as coisas são tão grandes ou carregam experiências tão intensas. A diferença entre uma boneca carregada, uma memorabilia nupcial e uma espada de guerra é que a boneca quer brincar, a memorabilia quer presenciar o amor e a espada quer matar.

Várias narrativas descrevem coisas dotadas de pouca inteligência, emotividade excessiva e inclinação ao cometimento de crimes passionais. Quem descarta algo que foi um dia muito amado deixa a coisa saudosa, indignada, ciumenta e enraivecida.  Um bakemono criado a partir dum objeto superestimado será intensamente passional. Quando um homem vive intensamente a paixão por uma companheira ele está feliz, mas quando o sentimento acaba e a mulher rejeitada demonstra um ciúme doentio, ela o persegue e o faz infeliz. Com bakemono é a mesma situação.

Um objeto dotado de espírito precisa ser consolado em sinal de agradecimento e, depois, diluído em água corrente ou cremado para que descanse em paz após a prestação de serviços. Depois que um item não descartável promove uma cura absorvendo um malefício por osmose, a energia negativa absorvida se torna parte da coisa e o objeto precisa receber limpeza espiritual para não causar um refluxo, um efeito reverso, contaminando o ambiente.

Quem não deseja mudar de atitude ou opinião não precisa cremar o bakemono. Ele é literalmente sua alma gêmea (a menos que esteja possuído por um yōkai). Tem gente que programa cristais para catalisar a energia canalizada pelo Eu superior na intenção de auxiliar a si mesmo a manter o foco no serviço ou num objetivo a ser alcançado. Tudo bem se você se apaixonar por um brinquedo, permanecer com ele durante setenta anos e alguém depositar isto no seu túmulo. Provavelmente vocês serão felizes para sempre. O problema não existirá até que você deixe de ter prazer na interação com algo que passou a lhe causar vergonha e incômodo, que te deixa infeliz e escraviza como um vício. Desse jeito este velho amigo pode paralisar a vida do dono.

Não importa se o folclore alerta sobre a possibilidade de o espírito do vampiro de brinquedo sair do baú à noite para penetrar nos seus sonhos e mordiscar seu pescoço. As vezes a carga mitológica só agrega valor ao item de estimação, assim como histórias de fantasmas incitam a curiosidade sobre prédios históricos. Certa vez, no programa Trato Feito, o proprietário duma estátua de cavalo forjada no velho oeste estadunidense ficou feliz por encontrar nela um furo porque no que diz respeito às antiguidades do velho oeste “buracos de bala sempre deixam a coisa interessante”.

Bibliografia recomendada:

AMBROSIUS, Mario. 球体関節人形展・Dolls of Innocence. Tokyo, Nippon Television Network Corporation, 2004. 152p.

ITO, Eika (伊藤 叡香). Washi ningyō o tsukuru和紙人形を創る」. Japão, MPC (エムピーシー), 01/06/2002. 140p

YOSHIDA, Ryo. Articulated Doll, Anatomy of the Ball-Jointed Maiden.解体人形 吉田良人形作品集」. Japão, Editions Treville, 2007. 152p.

Notas:

[1] O termo bake (化け), “transformando”, é a forma ren’yōkei (連用形), correspondente ao nosso gerúndio, do verbo bakeru (化ける), “transformar” ou “mudar”.

[2] Todos os catálogos virtuais de folclore escritos em idiomas ocidentais classificam o bakemono dentro da categoria ontológica yōkai (妖怪). Porém na série Natsume Yūjinchō (夏目友人) o protagonista explica que existem diferenças entre bakemono e yōkai. “Se você conseguir beber sem se embebedar, você deve ser um bakemono…”.

[3] O animismo é a cosmovisão em que entidades não humanas possuem uma essência espiritual.

[4] WIKTIONARY, verbete 「霊魂」. URL: <https://en.wiktionary.org/wiki/%E9%9C%8A%E9%AD%82>. Acessado em 19/04/2022 14h16.

[5] TRAVI, Mauricio. A misteriosa lenda da boneca japonesa Okiku. Em: DANJOU, publicado em 08/06/2018. URL: <https://www.danjou.com.br/post/2018/06/08/a-misteriosa-lenda-da-boneca-japonesa-okiku>.

[6] NINGYOO – BONECAS. © 2003 Aliança Cultural Brasil Japão de Joinville. Texto salvo do Geocities em outubro de 2009. Acessado em 28/04/2022 às 19h. <URL: http://www.oocities.org/br/japaojoinville/ningyoo.htm>.

[7] ABUMI-GUCHI. Em: Yōkai Wiki. Acessado em 14/05/2022. URL: <https://yokai.fandom.com/wiki/Abumi-Guchi>.

[8] TEZUKA, Osamu. 無残帖Cruel. Em: TEZUKA, Osamu. Dororo: Volume 2. São Paulo, New Pop, 2011, p 07.

[9] Talvez não seja inútil mencionar o MMORPG coreano Ragnarök Online onde os avatares do jogador combatem cavalos pegando fogo chamados “pesadelos sombrios”.

[10] DORORO WIKI, verbete Dororo no Uta. URL: <https://dororo.fandom.com/wiki/Dororo_no_Uta#English>. Acessado em 18/04/2022 16h02.

[11] TUZI. Tsukumogami: yōkai de objetos antigos. Publicado na Radio Hero em 18/03/2021, 01h23. URL: <https://radiojhero.com/tsukinousagi/2021/03/tsukumogami-yokai-de-objetos-antigos/>.

[12] PAN. O que são os Tsukumogami: Os Objetos Possuídos. Publicado no blog Suco de Manga em 31/10/2021. URL: <https://sucodemanga.com.br/saiba-o-que-sao-os-tsukumogami-os-objetos-possuidos/>.

[13] TUZI. Tsukumogami: yōkai de objetos antigos. Publicado na Radio Hero em 18/03/2021, 01h23. URL: <https://radiojhero.com/tsukinousagi/2021/03/tsukumogami-yokai-de-objetos-antigos/>.

[14] TSUKUMO-GAMI: OS ESPÍRITOS ZOMBETEIROS DE ANTIGOS ARTEFATOS JAPONESES. Publicado em Caçadores De Lendas, 06/2013. URL: <https://cacadoresdelendas.com.br/japao/tsukumo-gami-espirito-de-artefato/>.

[15] DAVE, Ronin. Japanese Doll Memorial with Geisha in Kyoto – Ningyo Kuyo 人形供養. Publicado no canal do autor no Youtube em 16/10/2015. URL: <https://www.youtube.com/watch?v=JwiDg7mMU5Q>.

[16] A MAGIA DAS BONECAS. Em: Super Interessante. Publicado em 31/07/1992, 22h00. Atualizado em 31/10/2016. URL: <Leia mais em: https://super.abril.com.br/historia/a-magia-das-bonecas/>.

[17] WIKIPEDIA, verbete Tsukumogami. URL: <https://en.wikipedia.org/wiki/Tsukumogami>. Acessado em 27/04/2022 17h06.

[18] PAN. O que são os Tsukumogami: Os Objetos Possuídos. Publicado no blog Suco de Manga em 31/10/2021. URL: <https://sucodemanga.com.br/saiba-o-que-sao-os-tsukumogami-os-objetos-possuidos/>.

[19] ITO, Eika (伊藤 叡香). Washi ningyō o tsukuru和紙人形を創る」. Japão, MPC (エムピーシー), 01/06/2002, p 30-31.

[20] Tsundoku (積ん読) é o hábito de comprar livros e deixá-los de lado sem ler.

[21] RIBEIRO, Aline. Guia Conhecer Fantástico Extra: Samurai & Ninja. São Paulo, OnLine, 2015, p 31.

[22] TUZI. Tsukumogami: yōkai de objetos antigos. Publicado em Rádio Hero, em 18/03/2021, 01h23. URL: <https://radiojhero.com/tsukinousagi/2021/03/tsukumogami-yokai-de-objetos-antigos/>.

[23] Um Kasa Obake (傘お化け) é também chamado Karakasa Obake (唐傘お化け) ou Karakasa Kozo (唐傘小僧).

[24] GORDON, Cesar. Economia selvagem: Ritual e mercadoria entre os índios Xikrin – Mebêngôkre. São Paulo SciELO – Editora UNESP, 2006, p 356-357.

[25] TSUKUMO-GAMI: OS ESPÍRITOS ZOMBETEIROS DE ANTIGOS ARTEFATOS JAPONESES. Publicado em Caçadores De Lendas, 06/2013. URL: <https://cacadoresdelendas.com.br/japao/tsukumo-gami-espirito-de-artefato/>.

[26] SHIRAISHI, Yuta (白石雄太). Kumamoto no kyōdo omocha “obakenokinta” (熊本の郷土玩具「おばけの金太」). Publicado em Story Nakagawa, 27/08/2019. URL: <https://story.nakagawa-masashichi.jp/104515>.

[27] OBAKE NO KINTA お化けの金太 KINTA THE GHOST. Publicado na Daruma Pedia, em 26/05/2015. URL: <https://darumapedianews.blogspot.com/2015/05/mingei-kyushu-obake-no-kinta.html>.

[28] NISISHIMA, Leandro. A surpreendente história do boneco Daruma. Em: GO! GO! NIHON, 12/01/2022. URL: <https://gogonihon.com/pt/blog/boneco-daruma/>

[29] ANIME REVIEW: DANTALIAN NO SHOKA – 6. Publicado no blog Population GO, no Tumblr, em 24/08/2011. URL: <https://populationgo.tumblr.com/post/9338032459/anime-review-dantalian-no-shoka-6>.

[30] CONHEÇA NAGORO, A VILA JAPONESA ONDE BONECOS SUBSTITUEM OS MORTOS. Publicado no portal de notícias Mega Curioso. Acessado em 18/05/2022. URL: <https://www.megacurioso.com.br/artes-cultura/114824-conheca-nagoro-a-vila-japonesa-onde-bonecos-substituem-os-mortos.htm>.

[31] Higanjima (彼岸島) foi originalmente publicada na antologia de quadrinhos Shukkan Young Magazine (週刊ヤングマガジン), pela editora Kōdansha (講談社), desde 04/04/2003 até 06/12/2010.

[32] Um torii (鳥居) é um portão tradicional japonês encontrado na entrada ou dentro de um santuário xintoísta, onde simbolicamente marca a transição do mundano para o sagrado.

[33] NAVOK, Jay e RUDRANATH, Sushil K. Warriors of Legend: Reflections of Japan in Sailor Moon. South Carolina, BookSurge, 2006, p 51

[34] TAKEUCHI, Naoko. コードネームはセーラーV— 1. Japão, Kodansha Comics, 1993, ato 5, p 172-173.

[35] AMBROSIUS, Mario. 球体関節人形展・Dolls of Innocence. Tokyo, Nippon Television Network Corporation, 2004, p 66-71.

Postagem original feita no https://mortesubita.net/asia-oculta/almas-vintage/

04/10 – Dia de São Francisco de Assis

São Francisco nasceu em 1182 em Assis, Itália. Filho de um comerciante rico, ele teve tempo e dinheiro para gastar com leituras e hospedar banquetes para os jovem nobres, que o proclamaram “O Rei de Banquetes”. Jovem e bonito, ansiou por uma vida de aventuras como cavaleiro. Assim, aos 20 anos entrou na guerra entre Assis e Perugia. Ao partir, jurou voltar consagrado cavaleiro. Foi ferido e feito prisioneiro. Passou um ano em um calabouço, onde contraiu malária. Resgatado por seu pai, voltou a Assis mais reflexivo. Ainda assim, o desejo de lutar pela “justiça” através das armas não o abandonou. Quando soube das vitórias militares do Conde Walter de Brienne voltou a querer ser um cavaleiro. A caminho de juntar-se a Brienne, Francisco parou em Spoleto e ouviu as notícias da morte de seu futuro ex-líder. Tomado pela depressão, sua malária retornou.

Uma noite, uma voz misteriosa perguntou a ele: “Quem você pensa que pode melhor recompensar você, o Mestre ou o empregado?” Francisco Respondeu, “O Mestre.” A voz continuou, “Então por que você deixa o Mestre pelo empregado?” Francisco percebeu que o empregado era o Conde Walter. Ele deixou Spoleto seguro de que Deus havia falado com ele. Durante os próximos dois anos Francisco sentiu uma força interna que o estava preparando para uma mudança. A visão de leprosos causava uma convulsão na alma sensível de Francisco. Um dia, enquanto montava seu cavalo, ele encontrou um leproso. Seu primeiro impulso era o de lançar uma moeda e esporear seu cavalo pra sair dali o mais rápido possível. Ao invés disso, Francisco desmontou, abraçou e beijou o leproso, dando-lhe uma bolsa de moedas. Muito depois, em seu leito morte, ele recordou o encontro como o momento de coroamento de sua conversão: “O que antes parecia amargo pra mim se converteu em doçura de alma e corpo”.

Passou a evitar a vida de banquetes e esportes ao lado de suas companhias habituais, que, em tom de brincadeira, perguntavam se ele estava pensando em casar. Ele respondeu “sim, com a mais formosa dama que vocês já viram”. Mais tarde saberíamos que ele se referia à Madonna Povertà – a Senhora Pobreza – como costumava dizer. Ele passou muito tempo em locais solitários, pedindo a Deus por Iluminação.

Após uma peregrinação à Roma, onde clamava pelos pobres nas portas das Igrejas, São Francisco volta a Assis e ora ante a imagem do Cristo Crucificado nas ruínas da Igreja de São Damião. No que pareceu-lhe ouvir claramente: “Francisco, Francisco, vai e repara minha casa, que, como podes ver, está em ruínas” Pensando tratar-se do velho templo onde se achava, agiu de pronto, vendendo o cavalo e os tecidos de seu pai, que tinha em mãos. Seu pai, indignado com o novo gênero de vida adotado por Francisco, após ameaças e castigos, queixou-se ao bispo Dom Guido III e, diante dele, pediu a Francisco que lhe devolvesse o dinheiro gasto. A resposta foi uma renúncia total à vultosa herança: tirou, ali mesmo na Igreja, as próprias vestes, e exclamou: “… doravante não direi mais pai Bernardone, mas Pai nosso que estás no céu…”

Ele se tornou um mendigo, e com o dinheiro dos viajantes ajudou a reconstruir mais três pequenas igrejas abandonadas: a de São Pedro, a de Porziuncola e a de Santa Maria dos Anjos, sua preferida (e lugar onde morreu).

Por essa época ouve um sermão que mudou sua vida. Era sobre Mateus 10:9, no qual Cristo fala aos seus seguidores que eles deveriam ir adiante e proclamar que o Reino de Céu estava neles, que não deveriam levar nenhum dinheiro com eles, nem mesmo uma bengala ou sapatos para a estrada. Assim, Francisco foi inspirado por esse sermão a se dedicar completamente a uma vida de pobreza. Suas humildes túnicas amarradas por um simples cordão levam até hoje três nós, são seus votos de: Pobreza, Obediência e Castidade. Começa a atrair outras pessoas com seus sermões, e em 1209 já são 11 companheiros de jornada. Frascisco recusa o título de padre, e a comunidade se dá o nome de Fratres minores (irmãos menores, em Latim). Eles vivem uma vida simples e alegre perto de Assis, sempre com muitas canções, embora fossem bastante sérios em suas pregações. Viviam em cabanas de taipa; suas igrejas eram modestas e pequenas; dormiam no chão. Não tinham cadeiras ou mesas, e possuíam poucos livros.

AS ORDENS

Em 1209 Francisco foi com seus 11 novos irmãos à Roma, buscar a permissão do Papa Inocêncio III para fundar uma ordem religiosa. O biógrafo Frei Boa Ventura conta que o Papa não quis aprovar logo a regra de vida proposta por Francisco, porque parecia estranha e por demais penosa às forças humanas no parecer de alguns cardeais. Mas o cardeal João de São Paulo, bispo de Sabina, intercedeu e disse a Francisco: “Meu filho, faze uma oração fervorosa a Cristo para que por teu intermédio nos mostre a sua vontade. Assim que a tivermos conhecido com maior clareza, poderemos aceder com mais segurança aos teus pedidos”.

Francisco o fez, e com suas humildes súplicas obteve do Senhor que lhe revelasse o que deveria falar ao Pontífice e que este sentisse em seu íntimo os efeitos da inspiração divina. Contou então ao Pontífice a parábola de um rei muito rico que, feliz, desposara uma bela senhora pobre e dela tivera vários filhos com a mesma fisionomia do rei, pai deles, e que por isso forem educados em seu palácio. E acrescentou: “Não há nada a temer que morram de fome os filhos e herdeiros do Rei dos céus, os quais, nascidos por virtude do Espírito Santo, à imagem de Cristo Rei, de uma mãe pobre, serão gerados pelo espírito da pobreza numa religião sumamente pobre. Pois se o Rei dos céus promete a seus seguidores a posse de um reino eterno, quanto mais seguros podemos estar de que lhes dará também todas aquelas coisas que comumente não nega nem aos bons nem aos maus!” O Papa ficou maravilhado e já não duvidava de que Cristo havia falado pela boca daquele homem. Especialmente porque tivera, pouco tempo antes, um sonho onde a basílica do Latrão estava prestes a ruir e um homem pobre, pequeno e de aspecto desprezível, a segurava nos ombros para não cair. Ainda assim, o Papa aprova as regras só verbalmente (um ano depois a aprovaria no papel). Surge assim a Fraternidade dos Irmãos Menores, a Primeira Ordem.

No Domingo de Ramos de 1212, uma nobre senhora, chamada Clara de Favarone (hoje conhecida por Santa Clara ou Clara de Assis), foi procurar Francisco para abraçar a vida de pobreza. Alguns dias depois, Inês, sua irmã, segue-lhe o caminho. Surge a Fraternidade das Pobres Damas, a Segunda Ordem. Aqueles que eram casados ou tinham suas ocupações no mundo e não podiam ser frades ou irmãs religiosas, mas queriam seguir os ideais de Francisco, não ficaram na mão: por volta de 1220, Francisco deu início à Ordem Terceira Secular para homens e mulheres, casados ou não, que continuavam em suas atividades na sociedade, vivendo o Evangelho.

NO ORIENTE

A parábola que Francisco contou ao Papa para convencê-lo a reconhecer a Ordem guarda uma fantástica semelhança com a história do Islã, pois Abraão (o patriarca do judaísmo) tinha duas esposas: Sarah e Hagar. Sarah deu a luz a Isaac, e Hagar a Ismael (futuro patriarca do povo árabe, não apenas dos islâmicos). Sarah, enciumada, pediu o banimento de Hagar e seu filho, e Abraão a mandou da Palestina para o deserto Árabe, crendo que Deus cuidaria deles. Quando acabaram as provisões (água especialmente), Hagar correu enlouquecida pelo deserto, até que Deus milagrosamente fez um poço (o Zam-Zam, que existe até hoje) e com ele se sustentaram. Uma cidade (Meca) se desenvolveu neste local, e hoje ela é O local sagrado para todo o povo árabe. A semelhança aqui é que os sufis podem ser considerados, por isso, os filhos pobres de Abraão.

A atmosfera e organização da Ordem franciscana é mais parecida com os Dervixes (Ordem sufi) que qualquer outra coisa. Além dos contos sobre Francisco serem muito parecidos com os dos professores sufis, todos os tipos de pontos coincidem. Como os sufis, os franciscanos não se preocupam com sua salvação pessoal (considerado uma vaidade). Francisco iniciava suas pregações com a frase “Que a paz de Deus esteja com você”, que ele disse ter recebido de Deus, mas que era (obviamente) uma saudação árabe. Até a roupa, com seu capote coberto e mangas largas, é a mesma dos dervixes de Marrocos e da Espanha, por onde Francisco se aventurou em 1212, plena época das cruzadas, dedicando-se a tentar converter os Sarracenos pela não-violência. O próprio nome da Ordem, “Fraternidade dos Irmãos Menores”, pressupõe haver os Irmãos maiores, e os únicos com esse nome na época eram os “Grandes Irmãos”, uma Ordem sufi fundada por Najmuddin Kubra, “o Grande”. As conexões impressionam. Uma das maiores características deste grande sufi era sua misteriosa influência sobre os animais; Desenhos o mostram cercado de pássaros; Ele amansou um cachorro feroz apenas olhando para ele (exatamente como Francisco fez com um lobo). Todas essas histórias eram conhecidas no ocidente 60 anos antes de Fracisco nascer.

Por tudo isso, não é de se espantar que, em Damietta, no Egito, de alguma forma Francisco e seus companheiros tenham conseguido cruzar a linha de batalha onde os Cruzados lutavam com os Árabes e se encontrar pessoalmente com o sultão Malik el-Kamil. E ser bem recebido. Diz-se que Francisco desafiou os líderes religiosos muçulmanos a um teste de fé através do fogo, mas eles recusaram. Então Francisco propôs entrar no fogo primeiro e, se ele saísse de lá incólume, o sultão teria que reconhecer o Cristo como o verdadeiro Deus. O sultão não aceitou, mas ficou tão impressionado com a fé deste homem que permitiu aos franciscanos acesso livre aos locais sagrados para os cristãos, como a sagrada sepultura. Deu um salvo-conduto para que eles pudessem trafegar e até mesmo PREGAR em terras árabes, e ainda pediu para que ele o visitasse novamente.

Entretanto, Francisco de Assis não teve sucesso convertendo o sultão, e as últimas palavras de Malik para Francisco foram: “Reze para que Deus me revele qual Lei e fé é a mais agradável para Ele”. Francisco recusou todos os ricos presentes oferecidos pelo sultão e voltou aos exércitos cristãos. No entanto, essa viagem parece ter causado uma transformação (conversão) maior em Francisco de Assis do que no sultão, como se ele tivesse encontrado no Oriente (e no sufismo) suas raízes. Tanto é que, ao retornar aos Cruzados, tentou dissuadi-los de atacar os Sarracenos. Ele gastou alguns meses peregrinando na Terra santa, até que ele foi chamado urgentemente por notícias de mudanças que tinham acontecido na Ordem que ele tinha fundado.

DE VOLTA PRA CASA

A Ordem Franciscana tinha crescido com o passar dos anos. Em 1219 houve uma grande expansão para a Alemanha, Hungria, Espanha, Marrocos e França. Durante sua ausência, vigários modificam algumas regras da Ordem e no mesmo ano Francisco se demite da direção da mesma. Com o crescimento – quase 5.000 frades em 1221 – uma nova regra foi escrita por São Francisco em 29 de novembro de 1223 que foi aprovada pelo Papa Honório. É a que vigora até hoje.

Por volta de 1220 Francisco celebra o Natal na cidade de Greccio (perto de Assis) com uma novidade: O presépio. Ele usou animais de verdade para recriar a cena do nascimento de Jesus, de forma que as pessoas podiam experimentar sua fé fazendo uso dos sentidos, especialmente a visão.

A Ordem tinha passado para as mãos de Pietro Cattini. Entretanto, um ano depois o irmão Cattini morreu e foi enterrado em Porziuncola. Quando numerosos milagres foram atribuídos ao falecido, várias pessoas começaram a peregrinar para Porziuncola, perturbando o dia-a-dia dos frades franciscanos. Francisco, então, rezou a Pietro, pedindo que ele parasse com os milagres, obedecendo em morte do mesmo jeito que ele obedecia em vida. Os milagres então cessaram.

COM OS ANIMAIS

A proximidade de Francisco com a natureza sempre foi a faceta mais conhecida deste santo. Seu amor universalista abrangia toda a Criação, e simbolizava pra muitos um retorno a um estado de inocência, como Adão e Eva no Jardim do Éden. Entretanto, esta não foi uma característica apenas de Francisco, havendo casos semelhantes de santos ingleses e irlandeses. Muitas histórias com animais cercam a vida de Francisco de Assis. Elas estão contadas no Fioretti (pequenas flores, em italiano), uma coleção póstuma de contos populares sobre este santo. Certa vez ele viajava com seus irmãos e eis que viram ao lado da estrada árvores lotadas de passarinhos. Francisco disse a seus companheiros: “aguarde por mim enquanto eu vou pregar aos meus irmãos pássaros”. Os pássaros o cercaram, atraídos por sua voz, e nenhum deles voou. Francisco falou a eles:

“Meus irmãos pássaros, vocês devem muito a Deus, por isso devem sempre e em todo lugar dar seu louvor a Ele; porque Ele lhe deu liberdade para voar pelo céu e Ele o vestiu. Vocês nem semeiam nem colhem, e Deus os alimenta e lhes dá rios e fontes para sua sede, montanhas e vales para abrigo e árvores altas para seus ninhos. E embora vocês nem saibam como tecer, Deus os veste e a suas crianças, pois o Criador os ama grandemente e o abençoa abundantemente. Então, semprem busquem louvar a Deus.”

Outra lenda do Fioretti nos fala que na cidade de Gubbio, onde Francisco viveu durante algum tempo, havia um lobo “terrível e feroz, que devorava homens e animais”. Francisco teve compaixão pela população local e foi para as colinas achar o lobo. Logo, o medo do animal fez todos os seus companheiros fugirem, mas Francisco continuou e, quando achou o lobo, fez o sinal da cruz e ordenou ao animal para vir até ele e não ferir ninguém. Milagrosamente, o lobo fechou suas mandíbulas e se colocou aos pés de Francisco. “Irmão lobo, você prejudica a muitos nestas paragens e faz um grande mal” disse Francisco. “Todas estas pessoas o acusam e o amaldiçoam. Mas, irmão lobo, eu gostaria de fazer a paz entre você e essas pessoas”. Então Francisco conduziu o lobo para a cidade e, cercado pelos cidadãos assustados, fez um pacto entre eles e o lobo. Porque o lobo tinha “feito o mal pela fome”, a obrigação da população era alimentar o lobo regularmente e, em retorno, o lobo já não os atacaria ou aos rebanhos deles. Desta maneira Gubbio ficou livre da ameaça do predador.

Também se conta que, quando Francisco agradeceu ao seu burrinho por tê-lo carregado e ajudado durante a vida, o burrinho chorou.

ÚLTIMOS ANOS

Enquanto rezava no Monte La Verna, em 1224, durante um jejum na quaresma, Francisco teve a visão de um Seraph, um anjo de seis asas numa cruz. Este anjo deu a ele um “presente”: as cinco chagas de Cristo (relativas às marcas feitas pelos pregos na cruz). Foi o primeiro caso de stigmata (estigma) registrado na história. Entretanto, Francisco manteve segredo e o caso só ficou conhecido dos próprios franciscanos dois anos depois, após sua morte, quando uma testemunha resolveu contar.

Logo após receber as chagas, Francisco ficou muito doente, e no ano seguinte ficou cego. Sofreu muito com as formas primitivas de cirurgias e tratamentos medievais, mas foi por esta época que ele escreveu seus mais belos textos – sendo considerado por muitos o primeiro poeta italiano – deixando registrado seu amor universal em lindos versos (assim como os sufis o fazem), como o O cântico do Sol (também conhecido como “Cântico das criaturas”), escrito em companhia de sua alma gêmea, Clara, em São Damião, por volta de 1224/1225, quando já sofria muitas dores e estava quase cego. A estrofe que fala da paz foi acrescentada um mês depois, a fim de reconciliar o bispo e o prefeito de Assis, que estavam em discórdia. Francisco defendia que o povo devia poder rezar a Deus em sua própria língua, por isso ele escreveu sempre no dialeto da Umbria, ao invés de Latim.

Agradeço a Sergio Scabia pela oportunidade de ler o Cântico numa tradução quase literal, sem o floreio encontrado nas versões em português:

O Cântico do Sol

Altíssimo, todo-poderoso bom Senhor

Seus são os louros, a gloria, a honra e todas as bênçãos

Somente a Ti são reservadas

e homem algum é digno de te mencionar

Louvado seja, meu Senhor, com todas suas criaturas

principalmente com o senhor irmão sol,

que é dia e ilumina por isso.

E ele é belo irradiando imenso esplendor;

de ti, traz o significado.

Louvado seja, meu Senhor, pelas irmãs lua e estrelas,

que no céu criaste claras, preciosas e belas

Louvado seja, meu Senhor, pelo irmão vento

e pelo ar e as nuvens e o céu azul e para qualquer tempo,

pelos quais às tuas criaturas fornece alimento.

Louvado seja, meu Senhor, pela irmã água,

a qual é muito útil e humilde e preciosa e pura.

Louvado seja, meu Senhor, pelo irmão fogo,

pelo qual iluminas as noites,

e ele é belo, brincalhão, robusto e forte.

Louvado seja, meu Senhor, pela irmã nossa mãe terra,

que nos sustenta e governa,

e produz diversos frutos, com flores coloridas e grama.

Louvado seja, meu Senhor, por aqueles que perdoam pelo seu amor,

e suportam infinitas tribulações.

Abençoados os que as suportarão em paz,

que por ti, Altíssimo, serão coroados.

Louvado seja, meu Senhor, pela irmã morte corporal,

à qual nenhum homem vivo pode escapar

Ai dos que morrerão em pecado mortal;

abençoados aqueles que se encontrarão nas tuas santíssimas vontades,

que a segunda morte não lhes fará mal

Louvem e abençoem o meu Senhor,

e agradeçam e sirvam-no com grande humildade

Uma oração que sempre me impressionou pela beleza e singeleza foi a Oração da Paz, atribuída a São Francisco de Assis e comumente denominada de “Oração de São Francisco”. Na verdade trata-se de uma oração anônima, escrita em 1912, tendo aparecido inicialmente num boletim paroquial na Normandia (França), e em menos de dois anos foi impressa em Roma numa folha onde, no verso, estava impresso uma figura de São Francisco; por isto e pelo fato de que o texto reflete muito bem o franciscanismo, esta oração começou a ser divulgada como se fosse de autoria do santo.

Senhor,

Fazei de mim um instrumento de vossa paz!

Onde houver ódio, que eu leve o amor,

Onde houver ofensa, que eu leve o perdão.

Onde houver discórdia, que eu leve a união.

Onde houver dúvida, que eu leve a fé.

Onde houver erro, que eu leve a verdade.

Onde houver desespero, que eu leve a esperança.

Onde houver tristeza, que eu leve a alegria.

Onde houver trevas, que eu leve a luz!

Ó Mestre,

fazei que eu procure mais.

Consolar, que ser consolado.

Compreender, que ser compreendido.

Amar, que ser amado.

Pois é dando, que se recebe.

Perdoando, que se é perdoado e

é morrendo, que se vive para a vida eterna!

Francisco morreu ouvindo o Evangelho de João, onde se narra a Páscoa do Senhor. Isso foi em 03 de outubro de 1226, num sábado, aos 45 anos. Foi sepultado no dia seguinte, na Igreja de São Jorge, na cidade de Assis. Em 1230 seus ossos foram levados para a nova Basílica construída para ele, a Basílica de São Francisco, hoje aos cuidados dos Frades Menores Conventuais.

São Francisco de Assis foi canonizado em 1228 por Gregório IX e seu dia é comemorado em 04 de outubro.

Na tradição teosófica, Francisco de Assis é o Mestre Kuthumi, da Grande Fraternidade Branca, e na linha espírita, é a reencarnação de João Evangelista (enquanto Clara fora Joana de Cusa).

#Religião

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/04-10-dia-de-s%C3%A3o-francisco-de-assis