O Compasso e o Esquadro

Ao falar da Arquitetura, indicamos a importância que tem a forma do cosmo físico como modelo no qual se inspiravam os antigos construtores para a edificação dos recintos sagrados e das moradias humanas. E entre os principais instrumentos utilizados para tal fim destacamos o compasso e o esquadro. Ambos são os símbolos respectivos do Céu e da Terra, e assim os contempla em diversas tradições, ou mais precisamente, iniciações, como o Hermetismo, a Maçonaria e o Taoísmo. O círculo ao qual desenha o compasso, ou seu substituto a corda, simboliza o Céu, porque este efetivamente tem forma circular ou abobadada, qualquer que seja o lugar terrestre de onde o observe. Por sua vez, o quadrado (ou retângulo), que traça o esquadro, simboliza a Terra, quadratura que lhe vem dada, entre outras coisas, pela “fixação” no espaço terrestre dos quatro pontos cardeais assinalados pelo sol em seu percurso diário. Além disso, a Terra sempre foi considerada como o símbolo da estabilidade, e a figura geométrica que melhor lhe corresponde é precisamente o quadrado, ou o cubo na tridimensionalidade.

Para a Ciência Sagrada, o compasso designa a primeira ação ordenadora do Espírito no seio da Matéria caótica e amorfa do Mundo, estabelecendo assim os limites arquetípicos deste, quer dizer, criando um espaço “vazio”, apto para ser fecundado pelo Verbo Iluminador ou Fiat Lux. Na Gênese bíblica, a separação das “Águas Superioras” (os Céus) das “Águas Inferiores” (a Terra) deu nascimento ao cosmo, cuja primeira expressão foi a criação do Paraíso, que como se sabe tinha forma circular. A este respeito se diz nos textos hindus: “Com seu raio (rádio) mediu os limites do Céu e da Terra”, e nos Provérbios de Salomão, pela voz da Sabedoria se diz: “quando (o Senhor) riscou um círculo sobre a face do abismo…”. Igualmente em um quadro do pintor e poeta inglês William Blake, vê-se o “Ancião dos Dias” (o Arquiteto do Mundo) com um compasso na mão desenhando um círculo.

O compasso é pois um instrumento que serve para determinar a figura mais perfeita de todas, imagem sensível da Realidade Celeste, que é precisamente o que está simbolizando a cúpula ou abóbada do Templo. O compasso é o emblema da Inteligência divina, do “Olho de Deus” que reside simbolicamente no interior do coração do homem, a luz do intelecto superior que dissipa as trevas da ignorância e nos permite acessar o interior do sagrado. Por isso mesmo, o conhecimento da “ciência do compasso” implica uma penetração nos arcanos mais secretos e profundos do Ser. Entretanto, o conhecimento plenamente efetivo desses mistérios seria tal a culminação, se assim pode se dizer, do próprio processo da Iniciação.

Mas no momento de pôr “mãos à obra”, a casa não se começa pelo telhado. O trabalho começa por baixo, em definitivo pelos alicerces, pelo conhecimento das coisas terrestres e humanas. Aqui entra em função a “ciência do esquadro”, tão necessária para riscar com ordem e juízo os planos de base do edifício e seu posterior levantamento, dando-lhe a estabilidade e comprovando o perfeito talhado das pedras que servirão de suporte e fundamento à abóbada, teto ou parte superior.

No trabalho interno é imprescindível, para que este siga um processo regular e ordenado, “enquadrar” todos nossos atos e pensamentos na via assinalada pela Tradição e pelo Ensino, separando o sutil do grosseiro. É isto precisamente o que assinala o Tao-Te-King: “Graças a um conhecimento convenientemente enquadrado, caminhamos sem dificuldades pela grande Via”. Recordaremos, neste sentido, que em latim esquadro também se diz “norma”, que é também uma das traduções da palavra sânscrita dharma, a Lei ou Norma Universal pela que são regidos todos os seres e o conjunto da manifestação cósmica. Poderíamos então dizer que o esquadro é o compasso terrestre, posto que não é mais que a aplicação na terra e no humano dos princípios e idéias simbolizados pelo compasso.

Por outro lado, esta união do círculo celeste e do quadrado (ou cruz) terrestre, está em relação com o enigma hermético da “quadratura do círculo” e a “circulatura do quadrante”, que sintetiza os mistérios completos da cosmogonia. Efetivamente, na “ciência do compasso” e na “ciência do esquadro” estão contidos a totalidade dos “pequenos mistérios”, cujo percurso é, em primeiro lugar, horizontal (terrestre), e posteriormente vertical (celeste). Com tudo isto, queremos indicar que na realidade existe uma aplicação filosófica da Geometria, que poderíamos denominar a “Geometria Filosofal”, que era perfeitamente conhecida pelos construtores medievais, os companheiros e maçons operativos, como por todos aqueles que se dedicaram à Arquitetura ou ordem do cosmo como meio de elevar-se ao conhecimento do que o ponto primitivo simboliza. Sem fatuidade, Platão fez pôr sobre o frontispício de sua escola: “Que ninguém entre aqui se não for geômetra”, indicando assim que seus ensinos só podiam ser compreendidos por quem conhecia o aspecto qualitativo e esotérico da geometria.

Desde outro ponto de vista, o trabalho com o compasso e com o esquadro sintetiza igualmente todo o processo alquímico da consciência, do que a edificação e construção não são mais que símbolos. Por isso que em alguns emblemas hermético-alquímicos se vê o Rebis, ou Andrógino primitivo, sustentando em suas mãos o compasso e o esquadro, quer dizer, reunindo na natureza humana as virtudes e qualidades do Céu e da Terra, harmonizando-as em uma unidade indissolúvel.

#hermetismo

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/o-compasso-e-o-esquadro

A Real Liberdade Humana

“O problema da paz é o problema da liberdade.”

Jiddu Krishnamurti

É comum que os seres das mais variadas classes e segmentos da sociedade divulguem ideais que considerem os melhores para que possamos viver em um mundo mais harmonioso e justo. Este tipo de posicionamento é muito incentivado pela mídia ou por propaganda política, em especial em épocas de crise ou de pleitos eleitorais. Portanto, torna-se corriqueiro na nossa civilização atual esses temas serem comentados e solicitados diariamente das mais diversas formas.

Contudo, nós sabemos o que repetimos constantemente? Ao clamar por justiça, igualdade, liberdade ou verdade, temos plena consciência do que realmente estas palavras significam? As dificuldades maiores já ocorrem porque determinadas palavras assumem significados diferentes para classes de pessoas diferentes. Apenas para exemplificar podemos levar duas questões sobre um mesmo assunto: Será justo uma nação atacar e invadir outra “em nome da democracia e da liberdade”? Por outro lado, será justo deixar uma nação ser massacrada por um ditador que também diz defender a democracia e a liberdade? Ficando apenas no aspecto ético da palavra já podemos perceber o problema de não se conhecer o que se invoca.

Sim, invoca. Cada ideal é uma egrégora que vai se plasmando no inconsciente coletivo da maneira que este incosciente começa a definí-la. E mais, essa egrégora cedo ou tarde se manifestará da maneira que foi definida. Um exemplo clássico é o do inferno cristão. Durante séculos a Europa se deixou dominar pela idéia de que o inferno teria demônios que queimariam, espetariam e torturariam das mais diversas formas os seus prisioneiros. E como se escolheriam os prisioneiros deste inferno? Bastaria que fossem renegados pela Igreja ou acusados de renegarem Deus. Ora, o que foi a “Santa Inquisição”? Multidões sendo queimadas, espetadas e torturadas por serem renegados pela Igreja ou acusados de renegarem Deus! Esta egrégora do “inferno”, após séculos sendo trabalhada, manifestou-se e cumpriu o seu papel!

Portanto, se devemos defender um ideal, devemos conhecê-lo. Falar levianamente em justiça e não ser justo é um erro de consequências graves, pois a egrégora se formará de acordo com aquilo que se age, fala, mas principalmente sente e pensa.

O ideal de Liberdade

Tendo isto em mente, vamos falar de Liberdade. Escolhemos a Liberdade por ser ela um dos mais importantes, repetidos e mal-compreendidos ideais da nossa história. Cabe salientar aqui que os ideais – assim como as Egrégoras – nascem, evoluem e se transformam. Seria importante, neste momento chave por que passa a Evolução Humana, que este conceito seja revisto e devidamente defendido.

Para compreendermos o que é Liberdade, devemos primeiro compreender o Homem. Ou melhor, o que no Homem foi capaz de criar este conceito e é capaz de refletir sobre ele.

Segundo a Sabedoria Iniciática das Idades, o termo “Homem” (em inglês; “man” e em alemão; “mann”) é uma derivação do termo que em sânscrito seria algo como “manas”. Manas é um termo grosseiramente traduzido para o português como “mente”. O Homem (esqueçamos as designações falsas e tardias dadas ao elemento do sexo masculino da espécie humana e vejamos o ser como um todo) é portanto “aquele cuja a consciência vibra na mente”. Ou seja, é na mente que o verdadeiro Homem cria a sua realidade.

Portanto, com essas posturas colocadas, podemos começar a discutir o que é a Liberdade.

O que é um Homem livre?

Normalmente, o conceito de Liberdade está associado ao tão famoso “direito de ir e vir”. Devemos admitir que, historicamente, o direito de ir e vir é uma conquista importante para a Evolução da Humanidade e que foi um passo significativo para a plasmação no inconsciente coletivo de que a Liberdade é possível.

Mas temos dois problemas aqui. O primeiro é que o “direito de ir e vir” segue algumas limitações básicas. Algumas muito justas para uma vivência harmônica e outras nem tanto. Todavia, este é o menor dos problemas.

O maior deles é o de que o direito de ir e vir não é sinônimo de Liberdade.

Ora, analisemos. O Homem, sendo o ser cuja consciência vibra no nível mental, somente poderá ser considerado livre se sua mente for livre! Pensemos, utilizando o direito de ir e vir como exemplo: podemos dar o direito a qualquer pessoa de ir e vir aonde desejar que, se ela se achar indigna de ir a determinado lugar ou achar tal lugar indigno de sua presença, ela não está livre de verdade.

E o que prende a mente do Homem? Este carcereiro pode ser definido em outra palavra sânscrita: Avydia. Avydia significa “sem sabedoria” e podemos traduzi-la por “ignorância” ou mesmo “obscuridade”. Mas, que ignorância? A ignorância de si mesmo; do que é e do que se é capaz.

As pessoas, em geral, estão ignorantes dos seus próprios processos. Como consequência, costumam se confundir com eles e isto as aprisiona. Elas pensam que são o que fazem, pensam que são o que falam, pensam que são o que sentem e pensam que são o que pensam.

“O Homem não é um fim em si”, “O Homem é uma ponte suspensa no abismo que liga a besta ao Super-Homem”, essas duas frases de Nietzsche demonstram bem o papel do Homem na Evolução deste planeta. Nós não devemos nos identificar com os instrumentos que recebemos para nos manifestarmos nos planos, esta identificação gera o apego e o apego nos aprisiona.

O Homem é um passo na Evolução, o passo que define a vibração de uma determinada consciência no plano mental. Por isso, é neste plano que sua Liberdade deve ser adquirida.

Como age um Livre Pensador

É importante percebermos que raramente pensamos de verdade. Geralmente, o que fazemos é repetir um processo que alguém já pensou – este sim, o verdadeiro pensador. Senão vejamos através do seguinte exemplo: a dicotomia alma-corpo é um processo que existe na cultura Ocidental desde Platão e é aceita como normal, como se simplesmente não houvesse outra forma de se encarar a formação de um Ser Humano. Esta dicotomia se tornou uma estrutura tão poderosa em nossas mentes que serve de base para religiões e nossa forma de pensar (você nunca usou o termo “minha alma”?). Uma outra dicotomia: bem absoluto x mal absoluto. É tão forte que mesmo quando nos deparamos com uma cultura que pensa diferente – como a cultura afro ou viking, para dar dois exemplos – nós inserimos essa dicotomia na hora de nos relacionarmos com ela, inconscientemente. Assim, o Exu ou Loki assumem o papel de “deus do mal” em oposição aos “deuses do bem”, quando originalmente esta estrutura de pensamento não existia nas duas culturas.

Quando verdadeiramente livre, o Homem é capaz de adquirir uma plenitude na existência. Além do mais, ele compreende o seu papel e pode realmente trabalhar pela sua plena manifestação ou Iluminação.

Ora, e como age este ser livre, que passaremos a denominar de Livre pensador? Ele já percebeu que os processos mentais e os pensamentos não são a mente assim como os movimentos e a escrita não são o braço. Ele observa os pensamentos como fluxos de energia que atravessam o seu cérebro a qual ele se apega ou não. Se, no momento em que se apegar, ele “enlaçar” este pensamento com uma emoção, o pensador acaba de criar vínculo com ele.

Criar vínculos com pensamentos ou processos mentais que surgem não é necessariamente ruim, o problema é não conseguir mais se desvincular dele ou rejeitá-lo sem a devida reflexão. Estas duas atitudes implicam em aprisionamento da mente do pensador. Este aprisionamento se mostra na identificação que se teria com o pensamento; ou seja, qualquer ataque ao pensamento se torna um ataque ao pensador. Além disso, qualquer pensamento diferente se torna uma ameaça ao próprio pensador, pois este acredita que “invalidar” o pensamento invalida sua própria estrutura de auto-reconhecimento.

Devido a isso, podemos identificar um Livre pensador pelas suas atitudes. Primeiramente, ele raramente aceita ou rejeita uma idéia automaticamente. O processo de reflexão, este sim, se torna “automático”. O Livre pensador sempre procura analisar o conteúdo de uma determinada proposição, para em cima da reflexão ou da experiência adquirir sua postura.

Ele dificilmente ofenderia o portador de alguma idéia diferente da sua. O Livre pensador debate idéias; discute sobre a mensagem sem ofender o mensageiro, tendo em vista que – assim como ele não se identifica com seus pensamentos – não identifica o seu irmão(ã) com os pensamentos deste(a).

O livre pensador sabe que não existe um “único modo” de se ver, analisar, demonstrar ou mesmo fazer algo. Cada um é uma expressão única da Divindade, manifestado para fazer valer esta expressão. Portanto, existem tantas possibilidades quanto aqueles que refletem sobre elas.

Como libertar a mente

Mas como libertar a mente? Existem dois processos – em princípio antagônicos – que, trabalhados concomitantemente, podem levar a percepção e desenvolvimento da mente livre. São processos simples, mas difíceis de serem vividos. Um ajuda e ampara ao outro e devemos ir com cuidado, paciência e sem grandes cobranças.

O primeiro é o auto conhecimento. Este processo deve ser feito sem julgamentos e sem disfarces. Não devemos nos julgar imaculados ou perdidos. Devemos perceber o que somos. E nós – nos perdoem o uso do termo, mas ele é o ideal no momento – somos o que somos. Devemos entender os processos que nos fazem agir da maneira que agimos, sentir o sentimos, falar o que falamos e pensar o que pensamos. Tranquilamente, sem esforço.

Isto significa identificar o verdadeiro pensador. Quando rejeito tal idéia ou aceito, fui eu que rejeitei e aceitei ou alguém já fez isso por mim e apenas repito o processo? O que eu penso sou eu? Aquele que questiona, sou eu? A Maya tem suas raízes na mente e na ignorância em diferenciar o pensador do que está sendo pensado, entre outras bases.

Caso percebamos que o nosso pensar tem outro pensador (o que é muito mais comum do que imaginamos…), isto é ruim? Não necessariamente. A diferença é o estar consciente do processo, o que nos torna livres para adotarmos ou não a idéia – total ou parcialmente. Estaremos também livres para verificar outros pontos-de-vista, outras formas de encarar o problema, sem conflitos e sem sofrimentos. Aquela estrutura de pensamento é uma ferramenta como qualquer outra, com a qual não nos identificamos; apenas usamos para os fins necessários. Livres, podemos ter um maior Domínio da Vida.

O segundo é o esforço de amar. Amar, sem importar a quem. Mas não no sentido de “amar é sofrer”. Um grande irmão, discípulo do Professor Henrique José de Souza, costumava citar: “Fraterno, mas não bobo.” O que devemos é entender o sofrimento do outro e entender que, às vezes, uma atitude dura pode ser a coisa mais amorosa que temos a dar para alguém que pede a sua ajuda naquele momento. Mas nunca se esqueça, não somos os donos da verdade e devemos amar – novamente – sem julgar. Pois, com julgamento não há amor.

Entendamos que um Livre Pensador é fraterno. Não é bondoso e nem malvado, caridoso e nem egoísta (lembre-se da dicotomia bem absoluto x mal absoluto), mas fraterno. Segundo HPB, “não existe caridade maior do que dar consciência aos seres” e este é um foco digno de se ter dentro da Obra do Eterno na Face da Terra. Mas com amor aos seres, pois estes sofrem e nem se apercebem de onde vem seu sofrimento.

Infelizmente, o espaço não nos permite um maior aprofundamento em tema tão complexo, mas paradoxalmente tão simples de se viver. Além do mais, fiéis ao nosso princípio, não poderíamos aqui nos arvorar de termos as respostas prontas e a solução de todos os problemas. O que esperamos, é que o texto sirva – isso sim – de reflexão e ajude ao(à) nosso(a) leitor(a) no início das buscas por respostas que melhor lhe ajudem em seu encontro com a verdadeira Liberdade.

“Manter a sempre vigilância dos sentidos.”

Allamirah

Texto do frater Danilo de Oliveira Faria, autor do RPG Maytreia

#Filosofia

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/a-real-liberdade-humana

Simbolismo Vegetal II

Dos três reinos da natureza, o vegetal é quiçá o que está mais diretamente unido ao fluir dos ritmos e ciclos do Cosmo, refletidos na renovação periódica e anual das plantas, na regeneração da potência fértil e fecunda de sua seiva, propiciando desta maneira a alimentação e o sustento necessário a homens e animais. Mas o realmente importante é que esta relação está na própria base de muitos mitos e ritos agrários, cuja estrutura simbólica reproduz as leis universais de correspondência e analogia (ou seja, de harmonia) entre a ordem terrestre e a celeste, ou entre a ordem visível e a invisível, não sendo, em suma, o mundo vegetal, ou melhor ainda a natureza em seu conjunto, senão um símbolo vivo e sempre presente do sobrenatural e do transcendente. Por isso mesmo, a germinação, desenvolvimento, florescimento e doação dos frutos das plantas não deixa de ser um fato assombroso e verdadeiramente mágico e misterioso para quem vive imerso no sagrado, como era o caso dos habitantes das sociedades tradicionais, que viam nisso a ação combinada de forças telúricas e cósmicas personificadas nas deidades lunares e solares, terrestres (e infra-terrestres) umas e celestes as outras, recebendo a planta o influxo das energias passivas e ativas, femininas e masculinas do Cosmo através dos nutrientes substanciais da terra e da água, a vivificação do ar, e o calor e a luz procedentes do fogo solar. Daqui deriva a dupla natureza do vegetal, “asúrica” por sua vertente subterrânea e “dévica” por sua parte aérea e vertical (axial), termos estes pertencentes à tradição indiana, e que designam respectivamente às energias telúricas e celestes conciliadas no ato mesmo da criação da planta. Isto cobra um relevo especial nas chamadas “plantas sagradas”, utilizadas nos ritos de iniciação aos mistérios, e cuja ingestão (bebida ou comida) põe ao ser em comunicação com seus estados inferiores e superiores, realizando a “viagem” pelos diferentes planos de manifestação, descendo e ascendendo pelo Eixo do Mundo.

Essas plantas seriam, pois, um suporte ou veículo de Conhecimento, e em muitas ocasiões a própria planta, ou seu fruto, considera-se como o objetivo a conseguir para aceder a dito Conhecimento, por isso a expressão “licor de imortalidade” ou “fruto de imortalidade” que recebem determinadas substâncias vegetais, como por exemplo o vinho ou ambrósia nas culturas greco-romana, hebraica, cristã e islâmica, semelhante ao soma ou amrita indiano, idêntico por sua vez ao haoma dos antigos iranianos, do que se diz que só podia recolher-se na “montanha sagrada” Alborj, equivalente ao Eixo do Mundo. Igualmente na Alquimia vegetal se fala do “elixir de longa vida”, que se corresponde com a “pedra filosofal” na Alquimia mineral, sendo o elixir a essência própria da planta, como o vinho é a essência da videira, outra figura do Eixo do Mundo. Neste sentido, recordaremos que o vinho simboliza precisamente a doutrina esotérica e metafísica, ou seja o Conhecimento, e seguramente a isto alude a expressão o “espírito do vinho”, ou aqua vitae (água da vida), ou “bebidas espirituosas”, que ainda se conserva na linguagem popular de diversos lugares, ainda que seu sentido profundo já passe totalmente despercebido na maioria dos casos.

Também há que se mencionar o trigo (equivalente ao milho nas tradições pré-colombianas, ou ao arroz entre as extremo-orientais), e em conseqüência ao pão, que junto ao vinho constituem as duas espécies eucarísticas do Cristianismo, ou seja do corpo e do sangue, ou a substância e a essência reunidas no Verbo ou Homem Universal, arquétipo do iniciado, o que é comparado precisamente a uma planta, tal e como indica a palavra “neófito”, que tanto significa “novo nascido” como “nova planta”. Este é, desta forma, comparado a uma semente ou germe que tem de “morrer” no interior da terra para renascer ao mundo de cima e da luz, que é sua verdadeira origem pois, ao contrário do vegetal, o homem tem suas “raízes” no Céu, tal e qual nos relata Platão no Timeu quando diz que “o homem é uma planta celeste, o que significa que é como uma árvore invertida, cujas raízes tendem para o céu, e os ramos para baixo, para a terra”.

#hermetismo

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/simbolismo-vegetal-ii

A Tradição Hermética

As verdades eternas, conhecidas unanimemente e expressadas por sábios de todos os tempos e lugares, plasmaram-se no Ocidente no pensamento de culturas estreitamente inter-relacionadas, que em distintos momentos floresceram em regiões localizadas entre o Oriente Médio e a Europa, durante esta quarta e última parte do ciclo, à qual se chamou Kali Yuga ou Idade do Ferro, e que sempre se vinculou com o Oeste.

Antiqüíssimos conhecimentos, patrimônio da Tradição Unânime, foram revelados aos sábios egípcios, persas e caldeus. Eles se valeram da mitologia e do rito, do estudo da harmonia musical, dos astros, da matemática e geometria sagradas, e de diversos veículos iniciáticos que permitem acessar os Mistérios para recriar a Filosofia Perene, desenhando e construindo um corpus de idéias, que foi o gérmen do pensamento metafísico do Ocidente, conhecido com o nome de Tradição Hermética, ramo ocidental da Tradição Primordial. Hermes Trismegisto, o Três Vezes Grande, dá nome a esta tradição. Na verdade, Hermes é o nome grego de um ser arquetípico invisível que todos os povos conheceram e que foi nomeado de distintas maneiras. Trata-se de um espírito intermediário entre os deuses e os homens, de uma deidade instrutora e educadora, de um curandeiro divino que revela suas mensagens a todo verdadeiro iniciado: o que passou pela morte e a venceu.

Os egípcios chamaram Thot a esta entidade iniciadora, que transmitiu os ensinos eternos a seus hierofantes, alquimistas, matemáticos e construtores que, com o auxílio de complexos rituais cosmogônicos, empreenderam a aventura de atravessar as águas que conduzem à pátria dos imortais.

Autores Herméticos relacionaram Hermes com Enoch e Elias, que seriam, para os hebreus, a encarnação humana desta entidade supra-humana que identificam com Rafael, o arcanjo, também guia, sanador e revelador. Esta tradição judaica, que se considerou sempre como integrante da Tradição Hermética, conviveu com a egípcia antes e durante a cativeiro (Moisés é fruto desta convivência) e em tempos dos reis David e Salomão durante a construção do Templo de Jerusalém; faz ao redor de três mil anos, estes pensamentos se consolidaram numa arquitetura revelada que permitiu, uma vez mais, a criação de um espaço vazio ou arca interior capaz de albergar em seu seio a divindade.

No século VI antes de Cristo, que é o mesmo século da destruição do Templo de Jerusalém, e contemporânea de Lao Tsé na China, de Buddha Gautama na Índia e do profeta Daniel na Babilônia, nasce a escola de Pitágoras que, também herdeira dos antigos mistérios revelados por Hermes, alumiará posteriormente à cultura grega, tanto aos pré-socráticos como a Sócrates e Platão. Este pensamento hermético exerceu sua influência notavelmente na cultura romana, nos primeiros cristãos e gnósticos alexandrinos, nos cavaleiros, construtores e alquimistas da Europa medieval e nos filósofos e artistas renascentistas, nutrindo-se ao mesmo tempo dos conhecimentos cabalísticos e do esoterismo islâmico.

Logo florescem estas idéias hermético-iniciáticas no movimento rosa-cruz, que se desenvolve na Alemanha e na Inglaterra da época Elisabetana, tendo sido depositados estes antigos ensinos, posteriormente, na Franco-Maçonaria. Esta Ordem, que em sua aparência exotérica não pôde escapar à degradação e dissolução promovidas pela humanidade atual, conserva, no entanto, em seus ritos e símbolos esse gérmen revelado e revelador, ativo no seio de umas poucas lojas que conseguiram se subtrair às modas inovadoras que ameaçam a Ocidente com sucumbir, e mantêm esse vínculo regenerador com o eixo invisível da Tradição que se dirige sempre para o verdadeiro Norte, origem e destino da humanidade, do qual esta tradição nunca se separou.

Hermes e a Tradição Hermética vivem atualmente. Sua presença é eterna.

#hermetismo

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Platão e o Conhecimento Inato

Segundo Platão, conhecer é recordar verdades que já existem em nós – teoria que pode ser atestada sempre que nos deixamos guiar pela voz do inconsciente.

Aprender é descobrir aquilo que você já sabe. Fazer é demonstrar que você o sabe. Ensinar é lembrar aos outros que eles sabem tanto quanto você

Essa máxima, extraída do livro Ilusões, de Richard Bach, sintetiza o inatismo de Platão, doutrina filosófica segundo a qual aprendemos devido a um processo natural de descobertas, capaz de desentranhar conhecimentos racionais e idéias verdadeiras que se encontram, a priori, latentes, guardados em nosso mundo interior.

Platão nasceu em 428-7 a.C., na cidade-estado de Atenas, onde viveu a época de seu apogeu político. Por volta dos 40 anos, o mais importante discípulo de Sócrates fundou sua Academia, dirigindo-a até o fim de seus dias, em 348-7 a.C. Um de seus célebres pupilos foi Aristóteles, que aos 18 anos ingressou na Academia, bebendo da fonte platônica durante as últimas duas décadas de vida de seu mestre. A Academia estenderia seu funcionamento por 900 anos, até hoje a mais longa existência registrada na história das instituições educacionais do Ocidente.

Nascido em berço abastado, numa família que detinha importantes relacionamentos políticos, Platão, após cumprir o serviço militar, pôde aventurar-se pela Magna Grécia. Além de conhecer Euclides em Megara e estudar a matemática de Teodoro em Cirene, estendeu viagem ao Egito, inspirado pelos passos esotéricos de Pitágoras. Ao retornar a Atenas, já tendo escolhido o caminho da ascese espiritual, dedicou-se à poesia, ao teatro e à leitura dos textos clássicos. Aproximou-se dos filósofos e, aos 25 anos, conheceu Sócrates. Acercou-se dele intensamente e com profunda admiração, permitindo que em seu espírito se processasse uma revolução completa ao longo dos três anos seguintes, os quais antecederam a condenação de Sócrates à morte por cicuta.

Platão recebeu notável influência dos grandes pensadores de sua época e soube sintetizar magistralmente suas doutrinas num sistema próprio de compreensão do homem e do universo. De Pitágoras herdou, por exemplo, a vocação para a pedagogia, o amor pela matemática e pela música, assim como o caráter transcendente de sua teoria das idéias e os alicerces órficos de sua filosofia, caso da crença na imortalidade da alma, na metempsicose (teoria que aceita a passagem da alma de um corpo para o outro) e na existência do outro mundo.

De Heráclito aceitou a idéia de que tudo é mudança nesta vida, ao menos neste “mundo sensível” em que vivemos, cercados de ilusões e aparências da verdade, onde nada é permanente. De Parmênides assimilou a crença numa realidade perene e atemporal. Platão situou essa realidade em seu “mundo inteligível”, distinto deste, compreendendo que, para além das realidades ilusórias, a alma (o ser) é una, imutável e permanente.

De Sócrates absorveu o costume de refletir sobre o homem e seus problemas éticos, e apreendeu uma conduta impecável. Dele ainda recebeu a maiêutica (arte de dar à luz a verdade por meio de seguidas perguntas), instrumento valioso para a tese do inatismo. Tal teoria, de que todo conhecimento é reminiscência, assumiu melhores passagens em dois de seus 29 livros: Fédon e Mênon. Neste último diálogo, Sócrates, personagem central do livro, interpela um jovem escravo sem estudos e se põe a fazer-lhe perguntas de crescente complexidade sobre geometria. Por meio de questões precisas, o filósofo extrai respostas claras do rapaz, que consegue espontaneamente resolver um cálculo de área, razoavelmente difícil para alguém ignorante. Ou seja, conforme Sócrates vai dialogando com o escravo no sentido de fazê-lo raciocinar corretamente, as verdades matemáticas vão surgindo na sua mente. Tanto no Fédon quanto no Mênon, chega-se à conclusão de que o conhecimento da alma provém de existências anteriores.

Na República (Livro X), Platão procura fundamentar a teoria da reminiscência por meio da alegoria de Er, um pastor da Panfília que, morto em batalha, após dez dias é encontrado com seu corpo intacto entre centenas de cadáveres putrefatos. Levado para casa a fim de que se cumprissem os ritos funerários, já estendido sobre a pira de cremação, no décimo segundo dia após sua morte, Er acorda, levanta-se e põe-se a narrar o que viu no além. O pastor havia estado entre os juízes que separavam as almas boas das ruins, dando-lhes as sentenças conforme haviam vivido seus dias encarnados. Er estivera entre almas de sábios, heróis, antepassados e amigos. Os juízes o haviam escolhido para que, vendo e ouvindo tudo o que ali se passava, pudesse retornar à Terra e contar aos homens o destino que nos reserva o além. Er aprende que as almas renascem indefinidamente para purificar-se de seus erros passados até que não mais precisem reencarnar, quando então passam a residir na eternidade. Compreende ainda que a morte, mero intervalo entre as existências terrenas, é o período em que as almas podem contemplar o conhecimento verdadeiro e ao menos vislumbrar o mundo perfeito das idéias, proposto pela teoria de Platão. Antes de regressarem à nova encarnação, porém, cabe às almas escolherem o que desejam experimentar entre uma infinidade de sortes ou modelos de vida, que lhes são apresentados por Látesis, uma das três deusas do destino. Há vidas de rei, de guerreiro, de artista, de escravo etc., todas à disposição para que sejam tomadas conforme as necessidades compensatórias do futuro aprendizado.

As almas devem ainda escolher seu próximo sexo e local de nascimento, e se querem retornar feito mineral, vegetal, animal ou ser humano. Em seu caminho de volta, porém, elas atravessam vasta planície desértica, sob calor abrasador, que as força beber das águas de Lethé (“esquecimento” em grego), o rio da despreocupação. Quanto mais bebem, mais esquecem suas vidas anteriores, até que sejam encaminhadas ao local escolhido para o novo nascimento.

Platão se vale dessa metáfora (que até hoje influencia o kardecismo, o rosacrucionismo e várias outras correntes religiosas) para explicar como o conhecimento pode preexistir de modo latente em nossas almas, fadados que estamos a viver esquecidos de nosso caráter divino e das verdades puras contempladas.

Concordamos, porém, com Bertrand Russel (1872-1970), que diz que o argumento platônico de nada vale se aplicado ao conhecimento empírico. O rapaz escravo não saberia “recordar” – nem mesmo com ajuda da indução de Sócrates – quando se deu, por exemplo, a construção das pirâmides, ou o cerco à Tróia. Contra a teoria da reminiscência, considere-se ainda qualquer descoberta no campo científico, como a disseminação de doenças por meio de microorganismos atestada pelas experiências de Pasteur. Um completo ignorante dificilmente chegaria a essas conclusões se levado a pensar no problema pelo método de perguntas e respostas.

Somente o conhecimento que se denomina apriorístico, inato – como as intuições lógicas e matemáticas -, é que pode existir dentro de nós sem qualquer prévia experiência. De fato, o conhecimento a priori é o único que Platão admite como verdadeiro, além das revelações místicas às quais nossas almas estão sempre sujeitas.

Independentemente da crença na reencarnação professada pelo filósofo, podemos indagar: de onde teria vindo o saber do escravo se este não tivesse nascido já dotado dos princípios da racionalidade? O inatismo de Platão aqui se atesta: conhecer é recordar a verdade que já trazemos em nós, inerente ao aparato racional e intuitivo de que somos desde o nascimento dotados. Nesse sentido, aprender é mesmo descobrir o que já sabemos.

Aos defensores do inatismo, como vimos, contrapõem-se os empiristas, que afirmam que a verdade e a razão só podem ser adquiridas por meio da experiência. O empirismo entende a razão como uma “folha em branco”, ou uma tábua rasa, sobre a qual vão sendo gravadas as experiências de vida que agregam conteúdo a nosso saber. Freud, por exemplo, enxergava dessa forma nosso mundo inconsciente. A essa visão reducionista da psicanálise contrapôs-se Jung, para quem o inconsciente não é somente dinâmico, mas dotado de autonomia própria, estando ligado à fonte original do saber inconsciente universal. Sendo assim, ele é capaz de nos antecipar verdades que em tempo oportuno se tornarão conscientes, ou de nos levar a passar por experiências significativas, necessárias à nossa evolução pessoal, que Jung chamou de “sincronicidades”. Portanto, no que se refere à sua maneira de compreender o psiquismo, poderíamos dizer que a psicologia analítica é de natureza iminentemente platônica, já que valoriza as percepções intuitivas em detrimento do saber estritamente racional.

Cumpre lembrar que a história das descobertas (mesmo as científicas) está repleta de casos assim. O químico Friedrich Kekulé, por exemplo, adormeceu em frente de sua lareira, sonhou com uma serpente que mordia o próprio rabo e despertou com a exata noção de que o anel de benzeno tinha estrutura espacial hexagonal fechada em si mesma, o que lhe resolveu um problema que o atormentava havia anos. Famosa também é a história do físico Isaac Newton, que teria derivado a equação da gravitação universal num insight que lhe ocorreu ao observar a queda de maçãs maduras no pomar de Woolsthorpe, onde ele costumava passar suas tardes orando e meditando. Mozart também contou com humor que os temas de suas peças eram-lhe antecipados em sonho, sempre mais sublimes do que ele conseguia compor depois!

Gênios iluminados à parte, nossa vida cotidiana acha-se igualmente tomada de exemplos de descobertas espontâneas pessoais. Basta conferir nossa história biográfica, ou mesmo perguntar aos amigos sobre isso. Não resta dúvida: sempre que nos deixamos levar pelas vozes do inconsciente, descobrimos coisas novas, encontramos verdades escondidas, percebemos virtudes e potenciais a serem trabalhados. Admitindo primeiramente nossa virtual ignorância, e buscando intuitivamente por nossos caminhos, estamos exercitando a nobre arte que une a filosofia ao misticismo em favor do autoconhecimento. Importa, sobretudo, abrir nossos canais às lições dos verdadeiros mestres que habitam esferas transcendentes de nossa realidade interior. Conhecermo-nos a nós mesmos é, pois, nossa humilde obrigação, só assim descobriremos os segredos dos deuses e dos homens. Ao menos é o que nos quer ensinar a grande máxima, que repercute a nos lembrar que ninguém é melhor por saber muito, senão que aprendemos descobrindo que sabemos tanto quanto os outros – um quase nada diante dos mistérios realmente imponderáveis.

#Espiritualidade

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Genesis Reload

Em alguns níveis, um sonho privado se insere em temas verdadeiramente míticos e não pode ser interpretado senão em analogia com o mito. Jung fala de duas ordens de sonho, o sonho pessoal e o sonho arquetípico, ou o sonho com dimensão mítica. Você pode interpretar um sonho pessoal por associação, deduzindo o que ele diz sobre sua própria vida, ou em relação a seus problemas pessoais. Mas a qualquer momento surge um sonho que é puro mito, que contém um tema mítico, ou, como se diz, que provém do Cristo interior.

Agora, existe um outro sentido, mais profundo, do tempo do sonho, o de um tempo que é não tempo, apenas um estado de ser que se prolonga. Existe um importante mito, da Indonésia, que fala dessa era mitológica e seu término. No início, de acordo com essa história, os ancestrais não se distinguiam, em termos de sexo. Não havia nascimentos, não havia mortes. Então uma imensa dança coletiva foi celebrada e no seu curso um dos participantes foi pisoteado até a morte, cortado em pedaços, e os pedaços foram enterrados. No momento daquela morte, os sexos se separaram, para que a morte pudesse ser, a partir de então, equilibrada pela procriação, procriação pela morte, pois das partes enterradas do corpo desmembrado nasceram plantas comestíveis. Tinha chegado o tempo de ser, morrer, nascer, e de matar e comer outros seres vivos, para a preservação da vida. O tempo sem tempo, do início, tinha terminado, por meio de um crime comunitário, um assassinato ou sacrifício deliberado.

Pois bem, um dos grandes problemas da mitologia é conciliar a mente com essa pré-condição brutal de toda vida, que sobrevive matando e comendo vidas. Você não consegue se ludibriar comendo apenas vegetais, tampouco, pois eles também são seres vivos. A essência da vida, pois, é esse comer a si mesma! A vida vive de vidas, e a conciliação da mente e da sensibilidade humanas com esse fato fundamental é uma das funções de alguns daqueles ritos brutais, cujo ritual consiste basicamente em matar por imitação daquele primeiro crime primordial, a partir do qual se gestou este mundo temporal, do qual todos participamos. A conciliação entre a mente humana e as condições da vida é fundamental em todas as histórias da criação. Quanto a isso, todas se parecem muito.

Considerando a história da Criação no Gênesis, por exemplo, vemos que ela é semelhante a outras histórias de Criação.

Gênesis: “No início Deus criou os céus e a terra. A terra era sem forma e vazia, e a escuridão vagava sobre a face do abismo”.

Canção do mundo: “No início havia apenas escuridão por toda parte escuridão e água. E a escuridão se reuniu e se tornou espessa em alguns lugares, acumulando se e então separando se, acumulando e separando…”

Gênesis: “E o espírito de Deus se moveu sobre a face das águas. E Deus disse: Faça se a luz, e a luz se fez”.

Upanixades: “No início, havia apenas o grande Uno refletido na forma de uma pessoa. Ao refletir, não encontrou nada além de si mesmo. Então, sua primeira palavra foi: Este sou eu”.

Gênesis: “Então Deus criou o homem à sua própria imagem, à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou. E Deus os abençoou e Deus lhes disse: Sede férteis e multiplicai vos”.

Lenda dos Bassari: “Unumbotte fez um ser humano. Seu nome era Homem. Em seguida, Unumbotte fez um antílope, chamado Antílope. Unumbotte fez uma serpente, chamada Serpente… E Unumbotte lhes disse: A terra ainda não foi preparada. Vocês precisam tornar macia a terra em que estão sentados. Unumbotte deu lhes sementes de todas as espécies e disse: Plantem-nas.”

Gênesis: “Então os céus e a terra ficaram prontos, e todos os seus hóspedes. E no sétimo dia Deus terminou o trabalho que tinha realizado…”

Índios Pima: “Eu faço o mundo e eis que o mundo está terminado. Então eu faço o mundo, e eis! O mundo está terminado”.

Gênesis: “E Deus viu tudo o que tinha feito e eis que tudo era bom”.

Upanixades: “Então ele se deu conta, Eu verdadeiramente, Eu sou esta criação, pois Eu a retirei de mim mesmo. Desse modo, ele se tornou a sua criação. Em verdade, aquele que conhece isso se torna, nessa criação, um criador”.

Aí está a chave. Quando você sabe isso se identifica com o princípio criativo, que é o poder de Deus no mundo, quer dizer, dentro de você. Isso é belo.

Mas o Gênesis continua: “Vós comestes da árvore da qual ordenei que não comêsseis? O homem disse: A mulher que me destes para estar comigo, essa mulher me deu o fruto da árvore e eu comi. Então o Senhor Deus disse à mulher: Que fizestes vós? E a mulher disse: A serpente me enganou e eu comi”.

Isso de transferir responsabilidades começou muito cedo.

A lenda Bassari continua no mesmo caminho: “Um dia a Serpente disse: Nós também devíamos comer desses frutos. Por que devemos ficar com fome? O Antílope disse: Mas não sabemos nada desse fruto. Então o Homem e sua mulher colheram alguns frutos e o comeram. Unumbotte desceu do céu e perguntou: Quem comeu o fruto? Eles responderam: Nós comemos. Unumbotte perguntou: Quem lhes disse que podiam comer desse fruto? Eles responderam: A Serpente disse.”

É praticamente a mesma história. Os protagonistas apontam um terceiro como o iniciador da Queda, e em ambas as histórias, a serpente é o símbolo da vida desfazendo-se do passado e continuando a viver. O poder da vida leva a serpente a se desfazer de sua pele, exatamente como a lua se desfaz da própria sombra, para renascer. São símbolos equivalentes. Às vezes a serpente é representada como um círculo, comendo a própria cauda. É uma imagem da vida. A vida se desfaz de uma geração após outra, para renascer. A serpente representa a energia e a consciência imortais, engajadas na esfera do tempo, constantemente atirando fora a morte e renascendo. Existe algo extremamente horrível na vida, quando você a encara desse modo. Com isso, a serpente carrega em si o sentido da fascinação e do terror da vida, simultaneamente.

Além disso, a serpente representa a função primária da vida, sobretudo comer. A vida consiste em comer outras criaturas. Você não pensa muito a respeito quando faz uma boa refeição, mas o que está fazendo é comer algo que há pouco estava vivo. E quando você olha para a bela natureza e vê os passarinhos saltitando daqui para ali… eles estão comendo coisas. Você vê as vacas pastando, elas estão comendo coisas. A serpente é um canal alimentar que se move, isso é tudo. Ela lhe dá aquela sensação primária de espanto, da vida em sua condição mais primitiva. Este é um dos mistérios que aquelas formas simbólicas, paradoxais, tentam representar. Agora, em muitas culturas é dada uma interpretação positiva à serpente. Na Índia, mesmo a mais venenosa das serpentes, a naja, é um animal sagrado, e a mitológica Serpente Rei é quem está ao lado do Buda. A serpente representa o poder da vida, engajado na esfera do tempo, e o da morte, não obstante eternamente viva. O mundo não é senão a sua sombra – a pele rejeitada.

A serpente também era reverenciada nas tradições dos índios americanos. Era concebida como um meio muito importante de se fazer amigos. Vá aos pueblos, por exemplo, e observe a dança da serpente, dos hopi, em que eles tomam as serpentes na boca, usam-nas para fazer amigos e depois as mandam de volta para as colinas. Elas são mandadas de volta para levar a mensagem humana às colinas, assim como tinham trazido a mensagem das colinas aos homens. A interação do homem com a natureza está representada nessa relação com a serpente. A serpente flui como a água e por isso é aquática, mas sua língua continuamente dispara fogo. Assim você tem aí o par de opostos, reunidos na serpente.

Já na história cristã a serpente é o sedutor. Isso representa a recusa em afirmar a vida. Na tradição bíblica que herdamos, a vida é corrupta e todo impulso natural é pecaminoso, a menos que tenha havido circuncisão ou batismo. A serpente é aquele ser que trouxe o pecado ao mundo. E a mulher é quem ofereceu a maçã ao homem. Essa identificação da mulher com o pecado, da serpente com o pecado, e portanto da vida com o pecado, é um desvio imposto à história da criação, no mito e na doutrina da Queda, segundo a Bíblia. A idéia é que a natureza, como a conhecemos, é corrupta, o sexo em si é corrupto, e a fêmea, como epítome do sexo, é um ser corruptor.

Por que o conhecimento do bem e do mal foi proibido a Adão e Eva? Sem esse conhecimento, seríamos todos um bando de bebês, ainda no Éden, sem nenhuma participação na vida. A mulher traz a vida ao mundo. Eva é a mãe deste mundo temporal. Anteriormente, você tinha um paraíso de sonho, ali no jardim do Éden – sem tempo, sem nascimento, sem morte, sem vida. A serpente, que morre e ressuscita, largando a pele para renovar a vida, é o senhor da árvore primordial, onde tempo e eternidade se reúnem. A serpente, na verdade, é o primeiro deus do jardim do Éden. Jeová, o que caminha por ali no frescor da tarde, é apenas um visitante. O Jardim é o lugar da serpente. Esta é uma velha, velha história. Existem sinetes sumerianos, que remontam a 3500 a.C., mostrando a serpente, a árvore e a deusa, e esta oferecendo o fruto da vida ao visitante masculino. A velha mitologia da deusa está toda aí.

Existe, na realidade, uma explicação histórica para essa imagem negativa da serpente na Bíblia, baseada na chegada dos hebreus a Canaã e na subjugação do povo de Canaã. A principal divindade desse povo era a Deusa, e, associada à Deusa, estava a serpente. Este é o símbolo do mistério da vida. Os hebreus, orientados na direção do deus masculino, rejeitaram isso. Em outras palavras, existe uma rejeição histórica da Deusa Mãe, implícita na história do jardim do Éden.

MOYERS: Que é que o mito de Adão e Eva nos diz sobre os pares de opostos? Que é que significa?

CAMPBELL: A coisa começou com o pecado – em outras palavras, com o abandono do mundo mitológico de sonhos do jardim do Paraíso, onde não há tempo e onde o homem e a mulher sequer sabem que são diferentes um do outro. Ambos são apenas criaturas. Deus e homem são praticamente o mesmo. Deus caminha no frescor da tarde no jardim onde eles estão. Aí eles comem a maçã, o conhecimento dos opostos. E quando descobrem que são diferentes, homem e mulher cobrem suas vergonhas. Como você vê, eles não pensaram em si mesmos como opostos. Macho e fêmea constituem uma oposição. Outra oposição é entre o homem e Deus. Deus e o mal é uma terceira oposição. As oposições primárias são a sexual e aquela entre seres humanos e Deus. Então surge a idéia de bem e mal no mundo. Assim, Adão e Eva se expulsaram a si mesmos do jardim da Unidade Atemporal, você pode dizer assim, pelo simples fato de haverem reconhecido a dualidade. Saindo para o mundo, você tem de agir em termos de pares de opostos. Existe uma imagem hindu (Yantra) que mostra um triângulo, que é a Deusa Mãe, e um ponto no centro do triângulo, que é a energia do transcendente ingressando na esfera do tempo. Então, a partir desse triângulo, formam se pares de triângulos em todas as direções. Do um provêm dois. Todas as coisas, na esfera do tempo, são pares de opostos. Assim, essa é a mudança de consciência, da consciência da identidade para a consciência de participação na dualidade. E então você se encontra na esfera do tempo.

MOYERS: Estará a história tentando dizer que, antes do que aconteceu nesse Jardim para nos destruir, havia a unidade da vida?

CAMPBELL: É uma questão de planos de consciência. Não tem nada a ver com o que tenha acontecido. Existe o plano de consciência em que você pode se identificar com o que transcende os pares de opostos.

MOYERS: Que vem a ser…?

CAMPBELL: Inominável. Inominável. Transcende todos os nomes.

MOYERS: Deus?

CAMPBELL: “Deus” é uma palavra ambígua, em nossa língua, pois parece referir alguma coisa conhecida. Mas o transcendente é desconhecido e incognoscível. Deus, em suma, transcende qualquer coisa, mesmo o nome “Deus”. Deus está além de nomes e formas. Mestre Eckhart disse que a suprema e mais alta renúncia é abandonar Deus por Deus, abandonar a noção de Deus por uma experiência daquilo que transcende a todas as noções. O mistério da vida está além de toda concepção humana. Tudo o que conhecemos é limitado pela terminologia dos conceitos de ser e não ser, plural e singular, verdadeiro e falso. Sempre pensamos em termos de opostos. Mas Deus, o supremo, está além dos pares de opostos, já contém em si tudo.

MOYERS: Por que pensamos em termos de opostos?

CAMPBELL: Porque não podemos pensar de outro modo. Essa é a natureza de nossa experiência da realidade. Homem/mulher, vida/morte, bem/mal, eu/você, verdadeiro/falso – tudo tem o seu oposto. Mas a mitologia sugere que sob essa dualidade existe uma singularidade em relação à qual a dualidade desempenha um papel de jogo de sombras. “A eternidade está apaixonada pela produção do tempo”, diz o poeta Blake. A fonte da vida temporal é a eternidade. A eternidade se derrama a si mesma no mundo. É a idéia mítica, básica, do deus que se torna múltiplo em nós. Na Índia, o deus que repousa em mim é chamado o “habitante” do corpo. Identificar se com esse aspecto divino, imortal, de você mesmo é identificar se com a divindade.

A suprema palavra, em nossa língua, para o transcendente é Deus. Mas aí você tem um conceito, percebe? Você pensa em Deus como o pai. Agora, nas religiões em que o deus ou o criador é a mãe, o mundo inteiro é o corpo dela. Fora daí não há nada. O deus masculino geralmente está em alguma outra parte. Mas masculino e feminino são dois aspectos de um só princípio. A divisão da vida em sexos foi uma divisão tardia. Biologicamente, a ameba não é macho nem fêmea. As células primitivas são apenas células. Elas se dividem e se tornam duas por reprodução assexual. Não sei em que estágio a sexualidade aparece, mas é um estágio tardio. Eis por que é absurdo falar em Deus como deste ou daquele sexo. O poder divino é anterior à separação sexual.

A polaridade (O “ele”, ou “ela”) é um trampolim para lançar você na direção do transcendente, e transcender é ir além da dualidade. Tudo na esfera de tempo e espaço é dual. A encarnação aparece ou como macho ou como fêmea, e cada um de nós é a encarnação de Deus. Você nasce com apenas um aspecto da sua verdadeira dualidade metafísica, pode se dizer.

MOYERS: O que diz o mito a respeito de termos tantas coisas em comum, muitas dessas histórias contendo elementos semelhantes – o fruto proibido, a mulher? Por exemplo, esses mitos, essas histórias da criação, contêm um “não farás”.

CAMPBELL: Há um motivo padrão do conto folclórico chamado “A coisa proibida”. Lembra se do Barba Azul, que diz à mulher: “Não abra aquele armário”? E aí sempre há alguém que desobedece. Na história do Velho Testamento, Deus aponta para a coisa proibida. Ora, Deus com certeza sabia muito bem que o homem ia comer o fruto proibido. Mas só procedendo assim é que o homem poderia se tornar o iniciador de sua própria vida. A vida, na realidade, começou com aquele ato de desobediência.

MOYERS: Como você explica essas similaridades?

CAMPBELL: Há duas explicações. Uma é que a psique humana é essencialmente a mesma, em todo o mundo. A psique é a experiência interior do corpo humano, que é essencialmente o mesmo para todos os seres humanos, com os mesmos órgãos, os mesmos instintos, os mesmos impulsos, os mesmos conflitos, os mesmos medos. A partir desse solo comum, constitui se o que Jung chama de arquétipos, que são as idéias em comum dos mitos.

Agora, existe também a contrateoria da difusão, que pretende dar conta da similaridade dos mitos. Por exemplo, a arte de lavrar o solo avança a partir da área em que se desenvolve primeiro, levando consigo uma mitologia que tem a ver com a fertilização da terra, com plantar e cultivar plantas alimentícias – mitos como aquele antes descrito, de matar uma divindade, cortá-la em pedaços, enterrar as partes, e daí o crescimento das plantas alimentícias. Um mito desse tipo acompanhará uma tradição agrária ou lavradora. Mas você não o encontrará numa cultura voltada para a caça. Assim, há aspectos tanto históricos como psicológicos nessa questão da similaridade dos mitos.

Quando você se dá conta de que Deus é a criação, e que você é uma criatura, percebe que Deus está dentro de você, assim como dentro do homem ou mulher com quem você conversa. Assim se dá a conscientização de dois aspectos de uma divindade. Existe o motivo mitológico básico de que, na origem, tudo era um, e então houve a separação – céu e terra, macho e fêmea, e assim por diante. Como foi que perdemos contato com a unidade? Você pode dizer que a separação foi culpa de alguém – eles comeram o fruto errado ou dirigiram a Deus as palavras erradas, que o deixaram furioso e ele se afastou. Por isso, agora, o eterno de algum modo está longe de nós e temos de encontrar um meio de restabelecer contato com ele.

Há duas ordens de mitos. Os grandes mitos, como o da Bíblia, por exemplo, são os mitos do templo ou dos grandes rituais sagrados. São explicativos dos ritos por meio dos quais as pessoas vivem em harmonia entre si e com o universo. É normal o entendimento dessas histórias como alegóricas.

Em quase todas as culturas, há duas ou três histórias da criação, e não apenas uma. Há duas na Bíblia, embora as pessoas as considerem somente uma. Você se lembra, no jardim do Éden, da história do capítulo 2: Deus pensa numa forma de entreter Adão, que ele tinha criado para ser seu jardineiro, para tomar conta do seu jardim. Esta é uma velha, velha história, tomada de empréstimo aos antigos Sumérios. Mas o jardineiro de Jeová está entediado. Então Deus tenta inventar brinquedos para ele. Cria os animais, mas tudo o que o homem pode fazer é nomeá-los. Aí Deus concebe essa magnífica idéia de extrair do próprio corpo do homem a alma da mulher – que é uma história de criação muito diferente daquela do capítulo 1 do Gênesis, em que Deus criou Adão e Eva, juntos, à sua imagem, como macho e fêmea. Ali, Deus, ele próprio, é o andrógino primordial. A história do capítulo 2 é, de longe, mais antiga, tendo se originado, talvez, por volta do século VIII a.C., enquanto a do capítulo 1 provém de um assim chamado texto sacerdotal, de cerca do século IV a.C., ou mais tarde.

Na história hindu da Identidade que sentiu medo, depois desejo e então dividiu se em dois, temos a contraparte do Gênesis 2. No Gênesis, é o homem, e não Deus, que se divide em dois.

A lenda grega, contada por Aristófanes no Banquete de Platão, é outra história dessa espécie. Aristófanes diz que, no início, havia criaturas compostas de partes que correspondem, agora, a dois seres humanos. Essas criaturas eram de três tipos: macho/fêmea, macho/macho e fêmea/fêmea. Os deuses, então, dividiram a todos em dois. Uma vez separados, tudo o que pensaram fazer foi abraçar se uns aos outros, de novo, a fim de reconstituir as unidades originais. Por isso passamos nossas vidas tentando encontrar, para tornar a abraçar, nossas metades.

MOYERS: Você está sugerindo que a mitologia é o estudo de uma única grande história da espécie humana? Qual é essa grande história única?

CAMPBELL: Que nós procedemos de um só fundamento de ser, como manifestações na esfera do tempo. A esfera do tempo é uma espécie de jogo de sombras sobre um fundamento atemporal. Jogando o jogo na esfera da sombra, você empenha o seu lado da polaridade, com todo o vigor. Mas você sabe que o seu inimigo, por exemplo, é apenas o outro lado do que você poderia ver, enquanto você mesmo, caso pudesse situar se numa posição medial.

MOYERS: Então a grande história única é nosso esforço para encontrar nosso lugar em cena?

CAMPBELL: Para entrar em acordo com a grande sinfonia que é o mundo, para colocar a harmonia do nosso corpo em acordo com essa harmonia.

#espiritualismo #Mitologia

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Ars Memorativa: introdução à arte hermética da memória

John Michael Greer (Caduceus Vol. 1, No. 1 e 2)

I. Os Usos da Memória

No atual renascimento oculto, a Arte da Memória é talvez o mais completamente negligenciado de todos os métodos técnicos do esoterismo renascentista. Enquanto as pesquisas da falecida Frances Yates(1) e, mais recentemente, o ressurgimento do interesse pelo mestre mnemonista Giordano Bruno(2) tornaram a Arte da Memória algo conhecido nos círculos acadêmicos, o mesmo não acontece na comunidade esotérica mais ampla; mencionar a Arte da Memória na maioria dos círculos ocultistas hoje em dia, para não falar do público em geral, é fazer um convite a olhares vazios.

Em sua época, porém, os métodos mnemônicos da Arte ocupavam um lugar especial entre os conteúdos do kit de ferramentas mentais do mago praticante. A filosofia neoplatônica que subjaz a toda a estrutura da magia renascentista deu à memória e, portanto, às técnicas mnemônicas, um lugar crucial no trabalho de transformação interior. Por sua vez, esta interpretação da memória deu origem a uma nova compreensão da Arte, transformando o que antes era uma forma puramente prática de armazenar informações úteis em uma disciplina meditativa que apela a todos os poderes da vontade e da imaginação.

Este artigo busca reintroduzir a Arte da Memória na tradição esotérica ocidental moderna como uma técnica praticável. Esta primeira parte, “Os Usos da Memória”, dará uma visão geral da natureza e do desenvolvimento dos métodos da Arte e explorará algumas das razões pelas quais a Arte tem valor para o esoterista moderno. A segunda parte, “O Jardim da Memória”, apresentará um sistema básico de memória hermética, desenhado segundo as linhas tradicionais e valendo-se do simbolismo mágico renascentista, como base para experimentação e uso prático.

O método e seu desenvolvimento (3)

Já foi quase obrigatório começar um tratado sobre a Arte da Memória com a lenda clássica de sua invenção. Esse hábito tem algo a recomendá-lo, pois a história de Simônides é mais do que uma anedota colorida; também oferece uma boa introdução aos fundamentos da técnica.

O poeta Simônides de Ceos, segundo a lenda, foi contratado para recitar uma ode no banquete de um nobre. À moda da época, o poeta começava com alguns versos em louvor às divindades — neste caso, Castor e Pólux — antes de passar ao sério assunto de falar de seu anfitrião. O anfitrião, no entanto, se opôs a esse desvio da lisonja, deduziu metade dos honorários de Simônides e disse ao poeta que ele poderia buscar o resto dos deuses que havia elogiado. Pouco depois, foi trazido ao poeta um recado de que dois jovens haviam chegado à porta da casa e desejavam falar com ele. Quando Simônides foi vê-los, não havia ninguém lá – mas na sua ausência o salão de banquetes desabou atrás dele, matando o nobre ímpio e todos os convidados do jantar também. Castor e Pollux, tradicionalmente representados como dois jovens, de fato pagaram sua metade da taxa.

Contos desse tipo eram um lugar-comum na literatura grega, mas este tem uma moral inesperada. Quando os escombros foram removidos, as vítimas foram encontradas tão mutiladas que suas próprias famílias não puderam identificá-las. Simônides, porém, evocou na memória uma imagem do salão de banquetes tal como a vira pela última vez, e a partir dela pôde recordar a ordem dos convidados à mesa. Ponderando isso, segundo a lenda, ele começou a inventar a primeira Arte clássica da Memória. A história é certamente apócrifa, mas os elementos-chave da técnica que descreve – o uso de imagens mentais colocadas em configurações ordenadas, muitas vezes arquitetônicas – permaneceram centrais para toda a tradição da Arte da Memória ao longo de sua história e forneceram a estrutura sobre a qual foi construída a adaptação hermética da Arte.

Nas escolas romanas de retórica, essa abordagem da memória foi refinada em um sistema preciso e prático. Os alunos foram ensinados a memorizar o interior de grandes edifícios de acordo com certas regras, dividindo o espaço em loci ou “lugares” específicos e marcando cada quinto e décimo locus com sinais especiais. Os fatos a serem lembrados foram convertidos em imagens visuais marcantes e colocados, um após o outro, nesses loci; quando necessário, o retórico precisava apenas passear em sua imaginação pelo mesmo prédio, observando as imagens em ordem e relembrando seus significados. Em um nível mais avançado, imagens podem ser criadas para palavras ou frases individuais, de modo que grandes passagens de texto possam ser armazenadas na memória da mesma maneira. Os retóricos romanos que usavam esses métodos atingiram níveis vertiginosos de habilidade mnemônica; um famoso praticante da Arte foi registrado por ter participado de um leilão de um dia inteiro e, no final, repetido de memória o item, o comprador e o preço para cada venda do dia.

Com a desintegração do mundo romano, essas mesmas técnicas passaram a fazer parte da herança clássica do cristianismo. A Arte da Memória assumiu um caráter moral, pois a própria memória foi definida como parte da virtude da prudência, e assim a Arte passou a ser cultivada pela Ordem Dominicana. Foi desta fonte que o ex-Dominicano Giordano Bruno (1548-1600), provavelmente o maior expoente da Arte, traçou as bases de suas próprias técnicas.(4)

Os métodos medievais da Arte diferiam muito pouco daqueles do mundo clássico, mas certas mudanças no final da Idade Média ajudaram a lançar as bases para a Arte Hermética da Memória do Renascimento. Uma das mais importantes foi uma mudança nas estruturas usadas para loci de memória. Junto com as configurações arquitetônicas mais utilizadas na tradição clássica, os mnemonistas medievais também passaram a fazer uso de todo o cosmos ptolomaico de esferas aninhadas como cenário para imagens de memória. Cada esfera de Deus na periferia através dos níveis angélico, celestial e elemental até o Inferno no centro, portanto, continha um ou mais loci para imagens de memória.

Entre este sistema e o dos hermetistas renascentistas há apenas uma diferença significativa, e esta é uma questão de interpretação, não de técnica. Imersos no pensamento neoplatônico, os magos herméticos da Renascença viam o universo como uma imagem das Idéias divinas, e o ser humano individual como uma imagem do universo; eles também conheciam a afirmação de Platão de que todo “aprendizado” é simplesmente a lembrança de coisas conhecidas antes do nascimento no reino da matéria. Em conjunto, essas ideias elevaram a Arte da Memória a uma nova dignidade. Se a memória humana pode ser reorganizada à imagem do universo, nessa visão, ela se torna um reflexo de todo o reino das Idéias em sua plenitude – e, portanto, a chave para o conhecimento universal. Este conceito foi a força motriz por trás dos complexos sistemas de memória criados por vários hermetistas renascentistas e, sobretudo, por Giordano Bruno.

Os sistemas mnemônicos de Bruno formam, em grande medida, o ápice da Arte Hermética da Memória. Seus métodos eram vertiginosamente complexos e envolvem uma combinação de imagens, idéias e alfabetos que exigem uma grande habilidade mnemônica para aprender em primeiro lugar! A filosofia hermética e as imagens tradicionais da magia astrológica aparecem constantemente em sua obra, ligando o quadro de sua Arte ao quadro mais amplo do cosmos mágico. A dificuldade da técnica de Bruno, no entanto, foi ampliada desnecessariamente por autores cuja falta de experiência pessoal com a Arte os levou a confundir métodos mnemônicos bastante diretos com obscuridades filosóficas.

Um exemplo central disso é a confusão causada pela prática de Bruno de vincular imagens a combinações de duas letras. A interpretação de Yates da memória brunoniana baseou-se em grande parte em uma identificação desta com as combinações de letras do lullismo, o sistema filosófico semi-cabalístico de Raimundo Lúlio) (1235-1316) que exclusivamente em termos luliolistas perde o uso prático das combinações: elas permitem que o mesmo conjunto de imagens seja usado para lembrar ideias, palavras ou ambas ao mesmo tempo.

Um exemplo pode ajudar a esclarecer este ponto. No sistema do De Umbris Idearum de Bruno (1582), a imagem tradicional do primeiro decanato de Gêmeos, um servo segurando um bastão, poderia representar a combinação de letras Be; a de Suah, o lendário inventor da quiromancia ou quiromancia, para Ne. Os decanos-símbolos fazem parte de um conjunto de imagens anteriores aos inventores, estabelecendo a ordem das sílabas. Colocado em um locus, o todo formaria a palavra bene.(6)

O método tem muito mais sutileza do que este exemplo mostra. O alfabeto de Bruno incluía trinta letras, o alfabeto latino mais as letras gregas e hebraicas que não têm equivalentes latinos; seu sistema permitia assim que textos escritos em qualquer um desses alfabetos fossem memorizados. Ele as combinou com cinco vogais e forneceu imagens adicionais para letras únicas para permitir combinações mais complexas. Além das imagens astrológicas e dos inventores, há também listas de objetos e adjetivos correspondentes a esse conjunto de combinações de letras, e tudo isso pode ser combinado em uma única imagem-memória para representar palavras de várias sílabas. Ao mesmo tempo, muitas das imagens representam tanto ideias quanto sons; assim, a figura de Suah mencionada acima também pode representar a arte da quiromancia se esse assunto precisasse ser lembrado.

A influência de Bruno pode ser rastreada em quase todos os tratados de memória hermética subsequentes, mas seus próprios métodos parecem ter se mostrado muito exigentes para a maioria dos magos. Registros maçônicos sugerem que seus mnemônicos, transmitidos por seu aluno Alexander Dicson, podem ter sido ensinados em lojas maçônicas escocesas no século XVI;(7) mais comuns, porém, eram métodos como o diagramado pelo enciclopedista hermético Robert Fludd em sua História da o Macrocosmo e o Microcosmo. Esta foi uma adaptação bastante direta do método medieval tardio, usando as esferas dos céus como loci, embora Fludd mesmo assim o classificasse junto com profecia, geomancia e astrologia como uma “arte microcósmica” de autoconhecimento humano. a Arte e esta classificação permaneceu padrão nos círculos esotéricos até que o triunfo do mecanismo cartesiano no final do século XVII enviou a tradição hermética para o subsolo e a Arte da Memória no esquecimento.

O método e seu valor

Essa profusão de técnicas levanta duas questões, que precisam ser respondidas para que a Arte da Memória seja restaurada a um lugar na tradição esotérica ocidental. Em primeiro lugar, os métodos da Arte são realmente superiores à memorização mecânica como forma de armazenar informações na memória humana? Colocando mais claramente, a Arte da Memória funciona?

É justo salientar que este tem sido um assunto de disputa desde os tempos antigos. Ainda assim, então como agora, aqueles que contestam a eficácia da Arte são geralmente aqueles que nunca a experimentaram. Na verdade, a Arte funciona; ele permite que as informações sejam memorizadas e lembradas de forma mais confiável e em quantidade muito maior do que os métodos de memorização. Há boas razões, fundadas na natureza da memória, para que assim seja. A mente humana evoca imagens com mais facilidade do que idéias, e imagens carregadas de emoção ainda mais facilmente; as memórias mais intensas de alguém, por exemplo, raramente são ideias abstratas. Ele usa cadeias de associação, em vez de ordem lógica, para conectar uma memória a outra; truques mnemônicos simples, como o laço de corda amarrado em um dedo, dependem disso. Segue habitualmente ritmos e fórmulas repetitivas; é por essa razão que a poesia costuma ser muito mais fácil de lembrar do que a prosa. A Arte da Memória usa todos esses três fatores sistematicamente. Ele constrói imagens vívidas e atraentes como âncoras para cadeias de associação e as coloca no contexto ordenado e repetitivo de um edifício imaginado ou estrutura simbólica em que cada imagem e cada locus conduzem automaticamente ao próximo. O resultado, com treinamento e prática, é uma memória que trabalha em harmonia com suas próprias forças inatas para aproveitar ao máximo seu potencial.

O fato de que algo pode ser feito, no entanto, não prova por si só que deva ser feito. Em uma época em que o armazenamento digital de dados é justo para tornar a mídia impressa obsoleta, em particular, questões sobre a melhor forma de memorizar informações podem parecer tão relevantes quanto a escolha entre diferentes maneiras de fazer tabletes de argila para escrever. Certamente alguns métodos de fazer essa tarefa vital são melhores do que outros; E daí? Essa maneira de pensar leva à segunda questão que um renascimento da Arte da Memória deve enfrentar: qual é o valor desse tipo de técnica?

Essa questão é particularmente forte em nossa cultura atual porque essa cultura e sua tecnologia têm consistentemente tendido a negligenciar as capacidades humanas inatas e substituí-las sempre que possível por equivalentes mecânicos. Não seria ir longe demais ver todo o corpo da moderna tecnologia ocidental como um sistema de próteses. Nesse sistema, a mídia impressa e digital serve como uma memória protética, fazendo muito do trabalho antes feito nas sociedades mais antigas pelas mentes treinadas dos mnemonistas. É preciso reconhecer, também, que esses meios podem lidar com volumes de informação que diminuem a capacidade da mente humana; nenhuma Arte da Memória concebível pode conter tanta informação quanto uma biblioteca pública de tamanho médio.

O valor prático dessas formas de armazenamento de conhecimento, como o de grande parte de nossa tecnologia protética, é real. Ao mesmo tempo, há um outro lado da questão, um lado especialmente relevante para a tradição hermética. Qualquer técnica tem efeitos sobre quem a usa, e esses efeitos não precisam ser positivos. A dependência de próteses tende a enfraquecer as habilidades naturais; quem usa um carro para viajar para qualquer lugar a mais de dois quarteirões de distância encontrará dificuldades até mesmo para caminhadas modestas. O mesmo é igualmente verdadeiro para as capacidades da mente. Nos países islâmicos, por exemplo, não é incomum encontrar pessoas que memorizaram todo o Alcorão para fins devocionais. Deixe de lado, por enquanto, questões de valor; quantas pessoas no Ocidente moderno seriam capazes de fazer o equivalente?

Um objetivo da tradição hermética, ao contrário, é maximizar as capacidades humanas, como ferramentas para as transformações internas buscadas pelo hermetista. Muitas das práticas elementares dessa tradição – e o mesmo vale para os sistemas esotéricos em todo o mundo – podem ser melhor vistas como uma espécie de calistenia mental, destinada a alongar as mentes enrijecidas pelo desuso. Essa busca para expandir os poderes do eu se opõe à cultura protética do Ocidente moderno, que sempre tendeu a transferir o poder do eu para o mundo exterior. A diferença entre esses dois pontos de vista tem uma ampla gama de implicações – filosóficas, religiosas e (não menos) políticas – mas o lugar da Arte da Memória pode ser encontrado entre eles.

Do ponto de vista protético, a Arte é obsoleta porque é menos eficiente do que os métodos externos de armazenamento de dados, como livros, e desagradável porque requer o desenvolvimento lento de habilidades internas, em vez da compra de uma máquina ou dispositivo. Do ponto de vista hermético, por outro lado, a Arte é valiosa em primeiro lugar como meio de desenvolver uma das capacidades do eu, a memória, e em segundo lugar porque usa outras capacidades – atenção, imaginação, imagens – que têm um grande papel em outros aspectos da prática hermética.

Como outros métodos de autodesenvolvimento, a Arte da Memória também traz mudanças na natureza da capacidade que molda, não apenas na eficiência ou volume dessa capacidade; seus efeitos são tanto qualitativos quanto quantitativos — outra questão não bem abordada pela estratégia protética. Normalmente, a memória tende a ser mais ou menos opaca à consciência. Uma memória perdida desaparece de vista, e qualquer quantidade de pesca aleatória ao redor pode ser necessária antes que uma cadeia associativa que leve a ela possa ser trazida das profundezas. Em uma memória treinada pelos métodos da Arte, ao contrário, as cadeias de associação estão sempre no lugar, e qualquer coisa memorizada pela Arte pode ser encontrada assim que necessário. Da mesma forma, é muito mais fácil para o mnemonista determinar o que exatamente ele ou ela sabe e não sabe, fazer conexões entre diferentes pontos de conhecimento ou generalizar a partir de um conjunto de memórias específicas; o que é armazenado através da Arte da Memória pode ser revisto à vontade.

Apesar do desgosto de nossa cultura pela memorização e pelo desenvolvimento da mente em geral, a Arte da Memória tem, portanto, algum valor prático, mesmo além de seus usos como método de treinamento esotérico. Na segunda parte deste artigo, “O Jardim da Memória”, algumas dessas potencialidades serão exploradas através da exposição de um sistema de memória introdutório baseado nos princípios tradicionais da Arte.

Parte II. O Jardim da Memória

Durante o Renascimento, a época em que atingiu seu auge de desenvolvimento, a Arte Hermética da Memória assumiu uma ampla gama de formas diferentes. Os princípios centrais da Arte, desenvolvidos nos tempos antigos através da experiência prática do modo como a memória humana funciona melhor, são comuns a toda a gama de tratados de memória renascentistas; as estruturas construídas sobre essa base, porém, diferem enormemente. Como veremos, mesmo alguns pontos básicos da teoria e da prática eram objeto de constante disputa, e seria impossível e inútil apresentar um único sistema de memória, por mais genérico que fosse, como algo “representativo” de todo o campo da Hermética. mnemônicos.

Esse não é o meu propósito aqui. Como a primeira parte deste ensaio apontou, a Arte da Memória tem valor potencial como técnica prática mesmo no mundo atual de sobrecarga de informações e armazenamento de dados digitais. O sistema de memória que será apresentado aqui é projetado para ser usado, não meramente estudado; as técnicas nele contidas, embora quase inteiramente derivadas de fontes renascentistas, são incluídas apenas pelo simples fato de funcionarem.

Escritos tradicionais sobre mnemônicos geralmente dividem os princípios da Arte em duas categorias. A primeira consiste em regras para lugares – isto é, o desenho ou seleção dos cenários visualizados nos quais as imagens mmonicas estão localizadas; a segunda consiste em regras para imagens — isto é, a construção das formas imaginadas usadas para codificar e armazenar memórias específicas. Essa divisão é bastante sensata e será seguida neste ensaio, com o acréscimo de uma terceira categoria: regras para a prática, os princípios que permitem que a Arte seja efetivamente aprendida e colocada em uso.

Regras para lugares

Um debate que perdurou grande parte da história da Arte da Memória foi uma discussão sobre se o mnemonista deveria visualizar lugares reais ou imaginários como cenário para as imagens mnemônicas da Arte. Se os relatos clássicos meio lendários (10) das fases iniciais da Arte puderem ser confiáveis, os primeiros lugares usados ​​dessa maneira foram os reais; certamente os retóricos da Roma antiga, que desenvolveram a Arte com alto grau de eficácia, usaram a arquitetura física ao seu redor como estrutura para seus sistemas mnemônicos. Entre os escritores herméticos da Arte, Robert Fludd insistiu que os edifícios reais deveriam sempre ser usados ​​para o trabalho de memória, alegando que o uso de estruturas totalmente imaginárias leva à imprecisão e, portanto, a um sistema menos eficaz.(9) Por outro lado, muitos antigos e renascentistas escritores da memória, entre eles Giordano Bruno, deram o conselho oposto. A questão toda pode, no final, ser uma questão de necessidades pessoais e temperamento.

Seja como for, o sistema aqui apresentado utiliza um conjunto de lugares resolutamente imaginário, baseado no simbolismo numérico do ocultismo renascentista. Tomando emprestada uma imagem muito utilizada pelos herméticos do Renascimento, apresento a chave de um jardim: Hortus Memoriae, o Jardim da Memória.

Diagrama 1

O Jardim da Memória está disposto em uma série de caminhos circulares concêntricos separados por sebes; os primeiros quatro desses círculos estão mapeados no Diagrama 1. Cada círculo corresponde a um número e tem o mesmo número de pequenos gazebos nele. Esses gazebos – um exemplo, o do círculo mais interno, é mostrado no Diagrama 2 – ostentam símbolos que são derivados da tradição dos números pitagóricos da Renascença e das tradições mágicas posteriores, e servem como lugares neste jardim de memória. todos os lugares de memória, estes devem ser imaginados como bem iluminados e convenientemente grandes; em particular, cada gazebo é visualizado como grande o suficiente para conter um ser humano comum, embora não precise ser muito maior.

Diagrama 2

Os primeiros quatro círculos do jardim são construídos na imaginação da seguinte forma:

O Primeiro Círculo

Este círculo corresponde à Mônada, o número Um; sua cor é branca e sua figura geométrica é o círculo. Uma fileira de flores brancas cresce na borda da cerca viva. O gazebo é branco, com guarnição de ouro, e é encimado por um círculo dourado com o número 1. Pintada na cúpula está a imagem de um único olho aberto, enquanto os lados trazem a imagem da Fênix em chamas.

O Segundo Círculo

O próximo círculo corresponde à Díade, o número Dois e ao conceito de polaridade; sua cor é cinza, seus símbolos primários são o Sol e a Lua, e sua figura geométrica é a vesica piscis, formada a partir da área comum de dois círculos sobrepostos. As flores que cercam as sebes neste círculo são cinza-prateadas; de acordo com a regra dos trocadilhos, que abordaremos um pouco mais tarde, podem ser tulipas. Ambos os dois gazebos neste círculo são cinza. Um, encimado com o número 2 em uma vesica branca, tem guarnição branca e dourada, e traz a imagem do Sol na cúpula e a de Adão, com a mão no coração, na lateral. O outro, encimado com o número 3 em uma vesica preta, tem guarnição preta e prata, e traz a imagem da Lua na cúpula e a de Eva, sua mão tocando sua cabeça, de lado.

O Terceiro Círculo

Este círculo corresponde à Tríade, o número Três; sua cor é preta, seus símbolos primários são os três princípios alquímicos de Enxofre, Mercúrio e Sal, e sua figura geométrica é o triângulo. As flores que cercam as sebes são pretas, assim como os três gazebos. O primeiro dos gazebos tem guarnição vermelha e é encimado com o número 4 em um triângulo vermelho; traz, na cúpula, a imagem de um homem vermelho tocando a cabeça com as duas mãos, e nas laterais as imagens de vários animais. O segundo gazebo tem acabamento branco e é encimado pelo número 5 em um triângulo branco; traz, na cúpula, a imagem de um hermafrodita branco tocando seus seios com ambas as mãos, e nas laterais as imagens de várias plantas. O terceiro gazebo é preto sem relevo e é encimado com o número 6 em um triângulo preto; traz, na cúpula, a imagem de uma mulher negra tocando a barriga com as duas mãos, e nas laterais as imagens de vários minerais.

O Quarto Círculo

Este círculo corresponde à Tétrade, o número Quatro. Sua cor é azul, seus símbolos primários são os Quatro Elementos e sua figura geométrica é o quadrado. As flores que cercam as sebes são azuis e de quatro pétalas, e os quatro gazebos são azuis. O primeiro deles tem guarnição vermelha e é encimado pelo número 7 em um quadrado vermelho; tem a imagem de chamas na cúpula e a de um leão rugindo nas laterais. O segundo tem guarnição amarela e é encimado com o número 8 em um quadrado amarelo; traz as imagens dos quatro ventos soprando na cúpula, e a de um homem derramando água de um vaso nas laterais. O terceiro é azul sem relevo e é encimado com o número 9 em um quadrado azul; tem a imagem de ondas na cúpula e as de um escorpião, uma serpente e uma águia nas laterais. O quarto tem guarnição verde e é encimado pelo número 10 em um quadrado verde; traz, na cúpula, a imagem da Terra, e a de um boi puxando um arado nas laterais.

Para começar, esses quatro círculos e dez lugares de memória serão suficientes, fornecendo espaço suficiente para ser útil na prática, mas ainda pequenos o suficiente para que o sistema possa ser aprendido e colocado em funcionamento em um tempo bastante curto. Círculos adicionais podem ser adicionados à medida que a familiaridade facilita o trabalho com o sistema. É possível, dentro dos limites do simbolismo numérico tradicional usado aqui, chegar a um total de onze círculos contendo 67 lugares de memória.(11) É igualmente possível desenvolver diferentes tipos de estruturas de memória nas quais as imagens podem ser colocadas. Desde que os lugares sejam distintos e organizados em alguma seqüência facilmente memorável, quase tudo servirá.

O Jardim da Memória, conforme descrito aqui, precisará ser comprometido com a memória para ser usado na prática. A melhor maneira de fazer isso é simplesmente visualizar a si mesmo andando pelo jardim, parando nos mirantes para examiná-los e depois seguir adiante. Imagine o perfume das flores, o calor do sol; como acontece com todas as formas de trabalho de visualização, a chave para o sucesso está nas imagens concretas de todos os cinco sentidos. É uma boa ideia começar sempre no mesmo lugar — o primeiro círculo é melhor, por razões práticas e filosóficas — e, durante o processo de aprendizagem, o aluno deve percorrer todo o jardim a cada vez, passando cada um dos gazebos em Ordem numérica. Ambos os hábitos ajudarão as imagens do jardim a se enraizarem no solo da memória.

Regras para Imagens

As imagens do jardim descritas acima compõe metade da estrutura desse sistema de memória – a metade estável, pode-se dizer, permanecendo inalterada enquanto o próprio sistema for mantido em uso. A outra metade, que muda, consiste nas imagens que são usadas para armazenar memórias dentro do jardim. Estes dependem muito mais da equação pessoal do que das imagens de enquadramento do jardim; o que permanece em uma memória pode evaporar rapidamente de outra, e uma certa quantidade de experimentação pode ser necessária para encontrar uma abordagem para imagens de memória que funcione melhor para qualquer aluno.

Na clássica Arte da Memória, a única regra constante para essas imagens era que elas fossem impressionantes – hilárias, atraentes, horríveis, trágicas ou simplesmente bizarras, isso não fazia (e faz) diferença, desde que cada imagem capturasse a mente e despertasse alguma resposta além do simples reconhecimento. Esta é uma abordagem útil. Para o praticante iniciante, no entanto, pensar em uma imagem apropriadamente impactante para cada informação a ser registrada pode ser uma questão difícil.

Muitas vezes é mais útil, portanto, usar familiaridade e ordem em vez de pura estranheza em um sistema de memória introdutório, e o método dado aqui fará exatamente isso.

É necessário para esse método, antes de tudo, criar uma lista de pessoas cujos nomes comecem com cada letra do alfabeto, exceto K e X (que muito raramente começam palavras em inglês). Estas podem ser pessoas conhecidas do aluno, figuras da mídia, personagens de um livro favorito – meu próprio sistema dervia extensivamente da trilogia do Anel de Tolkien, de modo que Aragorn, Boromir, Cirdan e assim por diante tendem a povoar meus palácios de memória. Pode ser útil ter mais de um algarismo para letras que geralmente vêm no início de palavras (por exemplo, Saruman e Sam Gamgee para S), ou algarismos para certas combinações comuns de duas letras (por exemplo, Theoden para Th , onde T é Treebeard), mas estes são desenvolvimentos que podem ser adicionados posteriormente. O ponto importante é que a lista precisa ser aprendida o suficiente para que qualquer letra evoque sua imagem adequada imediatamente, sem hesitação, e que as imagens sejam claras e instantaneamente reconhecíveis.

Uma vez que isso seja gerenciado, o aluno precisará criar um segundo conjunto de imagens para os números de 0 a 9. Há uma longa e ornamentada tradição de tais imagens, principalmente baseada na simples semelhança física entre número e imagem – um dardo ou mastro para 1, um par de óculos ou de nádegas para 8, e assim por diante. No entanto, qualquer conjunto de imagens pode ser usado, desde que sejam simples e distintos. Estes também devem ser aprendidos de cor, para que possam ser lembrados sem esforço ou hesitação. Um teste útil é visualizar uma fila de homens marchando, carregando as imagens que correspondem ao número de telefone de alguém; quando isso pode ser feito rapidamente, sem confusão mental, as imagens estão prontas para uso.

Esse uso envolve duas maneiras diferentes de colocar as mesmas imagens para funcionar. Um dos lugares-comuns mais antigos em toda a tradição da Arte da Memória divide a mnemônica em “memória para coisas” e “memória para palavras”. No sistema dado aqui, entretanto, a linha é traçada em um lugar ligeiramente diferente; memória para coisas concretas – por exemplo, itens em uma lista de compras – requer uma abordagem ligeiramente diferente da memória para coisas abstratas, sejam conceitos ou pedaços de texto. As coisas concretas são, em geral, mais fáceis, mas ambas podem ser feitas usando o mesmo conjunto de imagens já selecionado.

Vamos examinar a memória para coisas concretas primeiro. Se uma lista de compras precisa ser memorizada – essa, como veremos, é uma excelente maneira de praticar a Arte – os itens da lista podem ser colocados em qualquer ordem conveniente. Supondo que dois sacos de farinha estejam no topo da lista, a figura correspondente à letra F é colocada no primeiro gazebo, segurando o símbolo de 2 em uma mão e um saco de farinha na outra, e carregando ou vestindo pelo menos uma outra coisa que sugira farinha: por exemplo, um terço de trigo trançado na cabeça da figura. As roupas e acessórios da figura também podem ser usados ​​para registrar detalhes: por exemplo, se a farinha desejada for integral, a figura pode usar roupas marrons. Esse mesmo processo é feito para cada item da lista, e as imagens resultantes são visualizadas, uma após a outra, nos mirantes do Jardim da Memória. Quando o Jardim for visitado novamente na imaginação – na loja, neste caso – as mesmas imagens estarão no lugar, prontas para comunicar seu significado.

Isso pode parecer uma maneira extraordinariamente complicada de se lembrar das compras, mas a complexidade da descrição é enganosa. Uma vez praticada a Arte, mesmo que por pouco tempo, a criação e colocação das imagens leva literalmente menos tempo do que escrever uma lista de compras, e sua recuperação é um processo ainda mais rápido. Rapidamente também se torna possível ir aos lugares do Jardim fora de sua ordem numérica e ainda recordar as imagens com todos os detalhes. O resultado é uma maneira rápida e flexível de armazenar informações – e que dificilmente será deixada de fora acidentalmente no carro!

A memória para coisas abstratas, como mencionado anteriormente, usa esses mesmos elementos da prática de uma maneira ligeiramente diferente. Uma palavra ou um conceito muitas vezes não pode ser retratado na imaginação da mesma forma que um saco de farinha pode, e a gama de abstrações que podem precisar ser lembradas e discriminadas com precisão é muito maior do que a gama possível de itens em uma lista de mercado (quantas coisas existem em uma mercearia que são marrom-claras e começam com a letra F?). Por esse motivo, muitas vezes é necessário compactar mais detalhes na imagem de memória de uma abstração.

Nesse contexto, uma das ferramentas mais tradicionais, bem como uma das mais eficazes, é um princípio que chamaremos de regra dos trocadilhos. Grande parte da literatura de memória ao longo da história da Arte pode ser vista como um extenso exercício de trocadilhos visuais e verbais, como quando um par de nádegas aparece no lugar do número 8, ou quando um homem chamado Domiciano é usado como imagem para as palavras latinas domum itionem. Uma abstração geralmente pode ser memorizada com mais facilidade e eficácia fazendo um trocadilho concreto com ela e lembrando-se do trocadilho, e parece ser lamentavelmente verdade que quanto pior o trocadilho, melhores os resultados em termos mnemônicos.

Por exemplo, se – para escolher um exemplo totalmente ao acaso – for necessário memorizar o fato de que a bactéria estreptococo causa dor de garganta e febre escarlatina, a primeira tarefa seria a invenção de uma imagem para a palavra “estreptococo”. Uma abordagem pode ser transformar essa palavra em “extrato de coco” e visualizar a figura que representa a letra D bebendo água de um coco enorme. A escarlatina poderia ser vista como o personagem Scar, do Rei Leão vestino de mulher latina com vestido e flor na cabeça e aninhad ao pé de D. D ainda pode estar com o pescoço vermelho e inflamado para reforçar a imagem. Novamente, isso leva muito mais tempo para explicar, ou mesmo para descrever, do que para realizar na prática.

A mesma abordagem pode ser usada para memorizar uma série encadeada de palavras, frases ou ideias, colocando uma figura para cada um em um dos gazebos do Jardim da Memória (ou nos lugares de algum sistema mais extenso). Diferentes séries vinculadas podem ser mantidas separadas na memória marcando cada figura em uma determinada sequência com o mesmo símbolo – por exemplo, se a imagem do estreptococo descrita acima for um de um conjunto de itens médicos, ela e todas as outras figuras do conjunto pode usar estetoscópios. Ainda assim, essas são técnicas mais avançadas e podem ser exploradas uma vez que o método básico seja dominado.

Regras para prática

Como qualquer outro método de trabalho hermético, a Arte da Memória requer exatamente isso – trabalho – para que seus potenciais sejam abertos. Embora bastante fácil de aprender e usar, não é um método sem esforço, e suas recompensas são medidas exatamente pela quantidade de tempo e prática investidos nele. Cada aluno precisará fazer seu próprio julgamento aqui; ainda assim, os antigos manuais da Arte concordam que a prática diária, mesmo que apenas alguns minutos por dia, é essencial para que qualquer habilidade real seja desenvolvida.

O trabalho que precisa ser feito se divide em duas partes. A primeira parte é preparatória e consiste em aprender os lugares e imagens necessários para colocar o sistema em uso; isso pode ser feito conforme descrito nas seções acima. Aprender o caminho do Jardim da Memória e memorizar as imagens alfabéticas e numéricas básicas geralmente pode ser feito em algumas horas de trabalho real, ou talvez uma semana de momentos livres.

A segunda parte é prática e consiste em utilizar o sistema de fato para registrar e lembrar as informações. Isso deve ser feito incansavelmente, diariamente, para que o método se torne eficaz o suficiente para valer a pena ser feito. É muito melhor trabalhar com assuntos úteis e cotidianos, como listas de compras, agendas de reuniões, agendas diárias e assim por diante. Ao contrário do material irrelevante às vezes escolhido para o trabalho de memória, estes não podem ser simplesmente ignorados, e cada vez que se memoriza ou recupera tal lista, os hábitos de pensamento vitais para a Arte são reforçados.

Um desses hábitos – o hábito do sucesso – é particularmente importante para cultivar aqui. Em uma sociedade que tende a denegrir as habilidades humanas em favor das tecnológicas, muitas vezes é preciso se convencer de que um mero ser humano, sem a ajuda de máquinas, pode fazer qualquer coisa que valha a pena! Como acontece com qualquer nova habilidade, portanto, tarefas simples devem ser testadas e dominadas antes das complexas, e os níveis mais avançados da Arte devem ser dominados um estágio de cada vez.

Notas
1. Yates, Frances A., The Art Of Memory (Chicago: U. Chicago Press, 1966) continua sendo o trabalho padrão em língua inglesa sobre a tradição.

2. Bruno, Giordano, On the Composition of Images, Signs and Ideas (NY: Willis, Locker & Owens, 1991), e Culianu, Ioan, Eros and Magic in the Renaissance (Chicago: U. Chicago Press, 1987) são exemplos .

3. A breve história da Arte aqui apresentada é extraída de Yates, op. cit.

4. Para Bruno, ver Yates, op. cit., cap. 9, 11, 13-14, bem como seu Giordano Bruno and the Hermetic Tradition (Chicago: U. Chicago Press, 1964).

5. Ver Yates, Art of Memory, cap. 8.

6. Ibid., pp. 208-222.

7. Stevenson, David, The Origins of Freemasonry: Scotland’s Century (Cambridge: Cambridge U.P., 1988), p. 95.

8. Ver Yates, Art of Memory, cap. 15.

9. Ver Yates, Frances, Theatre of the World (Chicago: U. of Chicago P., 1969), pp. 147-9 e 207-9.

10. O simbolismo usado aqui é retirado de várias fontes, particularmente McLean, Adam, ed., The Magical Calendar (Edimburgo: Magnum Opus, 1979) e Agrippa, H.C., Three Books of Occult Philosophy, Donald Tyson rev. & ed. (St. Paul: Llewellyn, 1993), pp. 241-298. No entanto, peguei emprestado as escalas de cores padrão da Golden Dawn para as cores dos círculos.

11. Os números dos círculos adicionais são 5-10 e 12; o simbolismo apropriado pode ser encontrado em McLean e Agripa, e as cores em qualquer livro sobre a versão da Cabala da Golden Dawn. A numerologia pitagórica da Renascença definiu o número 11 como “o número de pecado e punição, sem mérito” (ver McLean, p. 69) e, portanto, não lhe deu nenhuma imagem significativa. Aqueles que desejam incluir um décimo primeiro círculo podem, no entanto, emprestar as onze maldições do Monte Ebal e os Qlippoth associados ou poderes primitivos demoníacos de fontes cabalísticas.

~ Tradução Tamosauskas

Postagem original feita no https://mortesubita.net/psico/ars-memorativa/

Mudança de Paradigmas na Ciência

Desde seus primórdios a Magia do Caos utiliza largamente o termo “mudança de paradigma”. Peter Carroll abrange sua teoria da magia dentro de três paradigmas maiores chamados Transcendental, Materialista e Mágico, mostrando como podemos transitar entre eles. Em seu livro “Liber Kaos” o autor afirma o seguinte:

“Esse universo possui a peculiaridade de tender a prover evidências e confirmações de qualquer paradigma que alguém escolha acreditar”.

“Cada uma dessas três visões do Eu [Transcendental, Materialista e Mágica] tem algo depreciativo a dizer sobre as outras duas […] Em última análise, é uma questão de fé e bom gosto. Naturalmente, todas essas formas de fé estão sujeitas a períodos de dúvida”

Carroll, como cientista, pegou emprestado o termo “paradigma” de Thomas Kuhn, que também era físico como ele. Por sua vez, Kuhn popularizou um termo antes pouco utilizado, atribuindo-lhe uma nova gama de significados. Dentre outras definições do termo, uma bem simples apontada pelo autor poderia ser “aquilo que os membros de uma comunidade partilham”. Ele possui métodos e valores compartilhados por um grupo que o aceita.

Não é difícil nos acostumarmos com a ideia de que um paradigma na filosofia não é necessariamente melhor que outro. Por isso, podemos estudar um pensador grego da Antiguidade Clássica como Platão e comparar as ideias dele com um filósofo moderno como Descartes, mesmo existindo uma diferença de cerca de dois mil anos entre o período em que cada um viveu. Não achamos que as ideias de um filósofo contemporâneo como Jürgen Habermas são necessariamente mais relevantes. Mesmo que algumas pessoas defendam que os filósofos de nosso tempo nos apresentam ideias e conceitos mais condizentes com o período em que vivemos, dificilmente ignoramos o estudo da história da filosofia. Ela é importantíssima para compreender como chegamos até aqui.

Algo semelhante ocorre em outras áreas, como a arte. Leonardo da Vinci viveu na época do Renascimento. Mesmo assim, creio que dificilmente alguém irá defender  que suas obras são necessariamente inferiores ao trabalho de nossos artistas contemporâneos, por ele ter vivido alguns séculos atrás e aquele período ser mais “atrasado” em relação ao nosso. Inclusive, há aqueles que defendem exatamente o oposto, o que também pode ser uma opção perigosa: existe uma tendência a desprezar a arte moderna ou pós-moderna, considerando-a “aleatória” ou desprovida de método. Curiosamente, essas mesmas pessoas podem acabar por apreciar a obra de artistas como Pablo Picasso, que morreu há poucas décadas.

Ocorre um preconceito semelhante no ocultismo hoje, cuja tendência é supervalorizar religiões, grimórios ou sistemas mágicos mais antigos, enquanto a Magia do Caos é tida por alguns como “bagunça”. Porém, muitas dessas pessoas que julgam o caoísmo sem estudá-lo não estão a par das ideias apresentadas na Teoria do Caos, sobretudo na área científica, e muito provavelmente não estão completamente inteiradas a respeito de filosofia da ciência, tal qual apresentada por pensadores como Thomas Kuhn e Karl Popper.

Aqui irei me centrar numa análise sobre filosofia da ciência e colocar a seguinte questão: por que será que temos a tendência a acreditar que as teorias científicas atuais são mais certas, melhores, mais avançadas e mais “evoluídas” do que as teorias científicas antigas, a ponto de acreditarmos que o conhecimento ocorre de forma linear, construindo uma noção de “progresso” como numa escada em que a ciência nos gera cada vez mais conhecimento, rumo à “verdade”? De onde será que veio essa crença, atualmente tão difundida?

Há uma resposta curta para essa pergunta: ela difundiu-se particularmente na Idade Moderna, em especial no Iluminismo, que ressaltou o triunfo da razão e da ciência para iluminar a “Idade das Trevas” considerada atrasada e um retrocesso. Mas será que foi assim mesmo? Preferimos a resposta mais longa a essa tão intrigante questão.

Primeiramente, vamos analisar alguns trechos do livro “A Lógica da Pesquisa Científica” de Karl Popper:

“A ciência não é um sistema de certezas, ou afirmações bem estabelecidas; nem é um sistema que constantemente avança para um estado de finalidade. Nossa ciência não é conhecimento (episteme): ela nunca pode clamar ter atingido a verdade, e nem mesmo um substituto para isso, como probabilidade”.
“Ainda assim, a ciência tem mais do que mero valor biológico de sobrevivência. Não é apenas um instrumento útil. Embora ela não possa atingir nem verdade e nem probabilidade, a aspiração ao conhecimento e a busca da verdade ainda são os mais fortes motivos da descoberta científica”
“Nós não sabemos: só podemos adivinhar. E nossas adivinhações são guiadas pela não científica, pela metafísica (embora biologicamente explicável) fé em leis, em regularidades que nós podemos revelar – descobrir. Como Bacon, nós podemos descobrir a nossa própria ciência contemporânea”  

Karl Popper foi um filósofo particularmente interessado em lógica, já tendo sido professor de matemática e física. Inicialmente alguns podem pensar que a ciência é um conhecimento bastante seguro, já que a biologia se baseia na química, que por sua vez se fundamenta na física e esta na matemática. Há um antigo debate sobre a questão se a matemática foi “descoberta”, como se os números fossem entidades reais no mundo das ideias de Platão e Pitágoras, ou se ela foi simplesmente inventada pelo ser humano.

Geralmente se diz que os axiomas de Euclides são autoevidentes, assim como as tais “verdades a priori” de Kant. Porém, Karl Popper deixa claro que não compartilha dessa visão.

No livro “Em Busca do Infinito” de Ian Stewart temos a seguinte passagem, como introdução ao teorema de Cauchy:

“O que realmente soltou a raposa no galinheiro foi a descoberta de que se podia fazer cálculo – análise – com funções complexas, e que a teoria resultante era elegante e útil. Na verdade, tão útil que a base lógica da ideia deixou de ser um assunto importante. Quando algo funciona, e você sente que precisa daquilo, geralmente para de se perguntar se aquilo faz sentido”

Essa ideia parece bastante semelhante à perspectiva pragmática da Magia do Caos: “use o que funciona”. Em seu livro “A History of God” Karen Armstrong enfatiza que na história das religiões é observado que antigos conceitos sobre o que é Deus (o Deus dos Filósofos, o Deus dos Místicos, etc) são constantemente substituídos por outros quando a definição antiga não funciona mais para atender as circunstâncias históricas da época. Por isso, a tendência é que os conceitos das religiões se transformem para atender às necessidades práticas da sociedade.

No mesmo livro de matemática de Ian Stewart há uma menção sobre a afirmação de Kant (que era professor de matemática) de que uma geometria deve ser necessariamente euclidiana (refutada por Klugel). Assim como sua insistência na quase infalibilidade de argumentos a priori (ou pelo menos a superioridade destes em relação a argumentos a posteriori), que lembra um pouco o ponto de vista de David Hilbert sobre a matemática como verdade, quando depois Kurt Gödel iria mostrar que a lógica matemática não está isenta de falhas e que, contrário ao senso comum, nem mesmo ela pode mostrar a “verdade”.

Vamos a outras passagens da obra:

“Graças a formas de pensar criativas e não ortodoxas, muitas vezes automaticamente contestadas por uma maioria menos criativa, agora entendemos – pelo menos os matemáticos e os físicos – que existem muitas alternativas à geometria euclidiana e que a natureza do espaço físico é uma questão de observação, não só de pensamento. Nos dias de hoje podemos fazer uma distinção clara entre modelos matemáticos da realidade e a própria realidade. Sob esse aspecto, grande parte da matemática não tem relação nenhuma com a realidade – mas mesmo assim é útil”

“Os matemáticos se perguntaram quantos sistemas numéricos hipercomplexos poderia haver. A questão não era ‘eles servem para alguma coisa?’ e sim ‘eles são interessantes?’”

O autor conta que na verdade não há uma prova realmente definitiva de que números naturais existam. Um, dois, três… essas coisas são só abstrações, pois se pode encontrar três vacas na natureza, mas não apenas o número três flutuando no ar. E provar que 2+2=4 também é meio complicado. O autor admite que pode haver passos lógicos consistentes que provem que 2+2=5. Porém, isso geraria contradições que trariam outros problemas. Por fim, ele diz:

“Uma vez que tudo é verdadeiro – e também falso – não se pode dizer nada significativo. Toda a matemática seria um jogo idiota, sem conteúdo”

Ian Stewart detalha esse pensamento em seu livro “Uma história da simetria na matemática”, no qual afirma:

“As provas não podem se apoiar no ar e não podem retroceder aos antecedentes lógicos para sempre. Elas precisam começar em algum lugar, e o ponto em que começam será por definição coisas que não foram – nem sempre – provadas. Hoje chamamos essas suposições iniciais não comprovadas de axiomas. Para um jogo matemático, os axiomas são as regras do jogo”.

“Qualquer pessoa que tiver objeções relativas aos axiomas pode mudá-los, se quiser, mas o resultado será um jogo diferente. Os matemáticos não afirmam que um enunciado é a verdade: eles dizem que, se considerarmos inúmeras suposições, a consequência lógica delas será o enunciado em questão. Isso não quer dizer que o axioma não possa ser contestado. Os matemáticos podem debater se um dado sistema axiomático é melhor que outro para algum propósito, ou se o sistema tem algum mérito ou interesse intrínsecos. Mas essas disputas não dizem respeito à lógica interna de qualquer jogo axiomático específico. Elas se referem aos jogos que valem mais a pena, são mais interessantes ou divertidos”

Agora estamos esquentando. Com isso chegamos ao cerne da Magia do Caos, cuja proposta é desenvolver diferentes jogos axiomáticos e testá-los. Às vezes escolhemos o que funciona. Outras vezes optamos pelo que é divertido. Mas há muitas outras possibilidades. Afinal, um pesquisador de matemática pura não irá necessariamente pesquisar uma área porque possui aplicações diretas na engenharia. Muitas vezes o que o move é a curiosidade ou a sede do conhecimento.

Uma última passagem desse livro:

“Antes do Renascimento, os matemáticos de Bolonha começaram a cogitar se o número -1 (menos um) poderia ter uma raiz quadrada plausível, já que todos os números que apareciam na matemática pertenciam a um só sistema. Até hoje, como um legado da confusão histórica envolvendo a relação entre matemática e realidade, esse sistema é conhecido como dos números reais. É um nome infeliz, pois sugere que esses números de alguma forma pertencem ao tecido do Universo, e não que tenham sido gerados por tentativas humanas de entendê-los. Não é verdade. Esses números não são mais reais que outros ‘sistemas numéricos’ inventados pela imaginação humana ao longo dos últimos 150 anos. Mas apresentam, na verdade, uma relação mais direta com a realidade que a maioria dos novos sistemas. Correspondem bem de perto a uma forma idealizada de mensuração”

E agora que as regras do jogo foram reveladas, voltemos a Popper:

“Como e por que nós aceitamos uma teoria em detrimento de outras? A preferência certamente não é devido a uma justificação experimental das afirmações que compõem a teoria; não é devido a uma redução lógica da teoria à experiência. Nós escolhemos a teoria que melhor se mantenha em competição com outras teorias; aquela que, por seleção natural, se mostra a mais adaptada a sobreviver. […] De um ponto de vista lógico, testar uma teoria depende de afirmações básicas cuja aceitação ou rejeição, por sua vez, depende das nossas decisões. Então são decisões que definem o destino de teorias. […] A escolha [de uma teoria] é em parte determinada por considerações de utilidade”.

Esse é um argumento semelhante ao de Thomas Kuhn no livro “A Estrutura das Revoluções Científicas”. Vamos a ele:

“Por certo os cientistas não são o único grupo que tende a ver o passado de sua disciplina como um desenvolvimento linear em direção ao ponto de vista privilegiado do presente. A tentação de escrever a história passada a partir do presente é generalizada e perene. Mas os cientistas são mais afetados pela tentação de reescrever a história, em parte porque os resultados da pesquisa científica não revelam nenhuma dependência óbvia com relação ao contexto histórico da pesquisa e em parte porque, exceto durante as crises e as revoluções, a posição contemporânea do cientista parece muito segura. Multiplicar os detalhes históricos sobre o presente ou o passado da ciência, ou aumentar a importância dos detalhes históricos apresentados, não conseguiria mais do que conceder um status artificial à idiossincrasia, ao erro e a confusão humanos. Por que honrar o que os melhores e mais persistentes esforços da ciência tornaram possível descartar? A depreciação dos fatos históricos está profundamente, e talvez funcionalmente, enraizada na ideologia da profissão científica, a mesma profissão que atribui o mais alto valor possível a detalhes fatuais de outras espécies. Whitehead captou o espírito a-histórico da comunidade científica ao escrever ‘A ciência que hesita esquecer seus fundadores está perdida”   

“Se, como já argumentamos, não pode haver nenhum sistema de linguagem ou de conceitos que seja científica ou empiricamente neutro, então a construção de testes e teorias alternativas deverá derivar-se de alguma tradição baseada em um paradigma. Com tal limitação, ela não terá acesso a todas as experiências ou teorias possíveis. Consequentemente, as teorias probabilísticas dissimulam a situação de verificação tanto quanto a iluminam. Embora essa situação dependa efetivamente, conforme insistem, da comparação entre teorias e evidências muito difundidas, as teorias e observações em questão estão sempre estreitamente relacionadas a outras já existentes. A verificação é como a seleção natural: escolhe a mais viável entre as alternativas existentes em uma situação histórica determinada. Essa escolha é a melhor possível, quando há alternativas ou dados de outra espécie? Tal questão não pode ser apresentada de maneira produtiva, pois não dispomos de instrumentos que possam ser empregados na procura de respostas”

O que isso tudo significa? Uma teoria científica contemporânea não é necessariamente melhor ou mais certa do que uma teoria antiga. Nós a usamos hoje não porque ela seja mais sofisticada, inteligente ou com maior verificação empírica. Inicialmente podemos pensar em adotar uma teoria porque ela parece funcionar, independente de estar certa ou errada (ou seja, condizer com a realidade). Mas um dos maiores motivos de ela ser escolhida é porque ela confirma as visões da época em que vivemos, em nosso contexto histórico. Provavelmente os cientistas devem dar mais atenção ao estudo das ciências humanas, em vez de apenas se fechar em si mesmos.

Ou, como os autores colocam: a teoria científica que temos hoje em determinado campo não é a “verdade” e nem a “melhor” dentre as diferentes teorias apresentadas. Elas simplesmente entram numa luta pela sobrevivência, e a que continua viva para triunfar é aquela que é “mais apta” não de forma absoluta, mas mais apta a responder as questões que a sociedade hoje considera relevantes (por exemplo: se o paradigma adotado hoje é que a saúde do corpo é mais importante que a saúde mental e a mente é mera projeção do corpo, vamos nos medicar com antidepressivos para resolver o problema físico e deixar a psicoterapia em segundo plano. Subitamente surgem muitos artigos científicos cujo objetivo é apenas reforçar esse paradigma sem questioná-lo, como uma profecia autorrealizável).

Se na Idade Média a prioridade era, digamos, o desenvolvimento espiritual e na época em que vivemos é o desenvolvimento material (não estou afirmando que seja simples assim, mas vamos considerar dessa forma) hoje serão imediatamente descartadas todas as teorias antigas que falavam em espírito ou alma como falsas, atrasadas e supersticiosas. Antigamente, quando não havia essa separação violenta entre corpo e espírito, entre filosofia, ciência e religião, e pessoas como Newton eram ao mesmo tempo astrônomos, alquimistas e teólogos, tinha-se uma visão muito mais generalista ou holística da existência. Hoje vivemos num mundo fragmentado e criamos diferentes teorias para forçar os pedaços quebrados a se unirem a qualquer custo.

 Retomemos Thomas Kuhn:

“Os leigos que zombavam da Teoria Geral da Relatividade de Einstein porque o espaço não poderia ser ‘curvo’ não estavam completamente errados ou enganados. Tampouco estavam errados os matemáticos, físicos e filósofos que tentaram desenvolver uma versão euclidiana da teoria de Einstein. O que anteriormente se entendia por espaço era algo necessariamente plano, homogêneo, isotrópico e não afetado pela presença da matéria […]. Consideremos, por exemplo, aqueles que chamaram Copérnico de louco porque este proclamou que a Terra se movia. Não estavam nem pouco, nem completamente errados […]. Tanto Descartes como Huygens puderam compreender que a questão do movimento da Terra não possuía conteúdo científico“

 “Max Planck, ao passar em revista a sua carreira no seu Scientific Autobiography, observou tristemente que ‘uma nova verdade científica não triunfa convencendo seus oponentes e fazendo com que vejam a luz, mas porque seus oponentes finalmente morreram e uma nova geração cresce familiarizada com ela”

“Contudo, a alegação de ter resolvido os problemas que provocam crises raras vezes é suficiente por si mesma. Além disso, nem sempre pode ser legitimamente apresentada. Na verdade, a teoria de Copérnico não era mais precisa que a de Ptolomeu e não conduziu imediatamente a nenhum aperfeiçoamento no calendário”

Se ao menos não houvesse esse dogma na ciência de que uma teoria deve estar mais certa que outra e deve substituí-la, poderíamos observar as vantagens e desvantagens obtidas com o sistema geocêntrico e com o sistema heliocêntrico de forma mais imparcial (embora nunca seja possível a imparcialidade completa que se almeja atingir). Nenhuma teoria é a verdade absoluta e explica tudo em todos os pontos. Alguns argumentam que o sistema heliocêntrico é melhor que o geocêntrico porque “simplifica os cálculos” e com isso os planetas não precisam fazer movimentos “estranhos”, mas será que devemos seguir mesmo à risca a navalha de Ockham, usar sempre o sistema mais simples e descartar uma solução complexa que pode porventura permitir ver coisas que o outro sistema não permite?

Como dizem os matemáticos, a melhor solução nem sempre é a mais simples. Às vezes podemos optar pela mais elegante. E por que não tentar ver a realidade por mais de um ponto de vista do que reduzi-la a apenas um? Isso abre a mente.

Kuhn tem mais a nos dizer sobre isso:

“Resolver os grandes problemas com que se defronta, sabendo apenas que o paradigma anterior fracassou em alguns deles. Uma decisão desse tipo só pode ser feita com base na fé”

“Muitos cientistas serão convertidos e a exploração do paradigma prosseguirá. […] Quando muito ele poderá dizer que o homem que continua a resistir após a conversão de toda a sua profissão deixou ipso facto de ser um cientista”

“O teólogo que articula o dogma ou o filósofo que aperfeiçoa os imperativos kantianos contribuem para o progresso, ainda que apenas para o grupo que compartilha de suas premissas”

“Tais considerações sugerirão, inevitavelmente, que o membro de uma comunidade científica amadurecida é, como o personagem típico de 1984 de Orwell, a vítima de uma história reescrita pelos poderes constituídos. Um balanço das revoluções científicas revela a existência tanto de perdas como de ganhos e os cientistas tendem a ser particularmente cegos para as primeiras”.

“Os historiadores da ciência encontram seguidamente esse gênero de cegueira sob uma forma particularmente surpreendente. Entre os diversos grupos de estudantes, o composto por aqueles dotados de formação científica é o que mais gratifica o professor. Mas é também o mais frustrante no início do trabalho. Já que os estudantes de ciência ‘sabem quais são as respostas certas’ torna-se particularmente difícil fazê-los analisar uma ciência mais antiga a partir dos pressupostos desta”

“Por que a comunidade científica haveria de ser capaz de alcançar um consenso estável, inatingível em outros domínios? Por que tais consensos hão de resistir a uma mudança de paradigma após outra? E por que uma mudança de paradigma haveria de produzir invariavelmente um instrumento mais perfeito do que aqueles anteriormente conhecidos?”

Essa é a grande questão, hã?

Hoje em dia temos um tipo de “fé” que a ciência pode nos levar à verdade e frequentemente nos “convertemos” aos novos paradigmas que a ciência aponta como corretos porque eles foram largamente verificados e testados por uma equipe de especialistas, os “papas” e “sacerdotes” da ciência.

Sem querer desmerecer as atuais descobertas científicas, acho lamentável que a antiga sabedoria popular seja deixada de lado (legada por diferentes épocas e comunidades, indígenas, etc) em nome do que a ciência determina como certo e errado. Frequentemente consideramos os paradigmas anteriores como errados e o atual como certo, mas o próprio Kuhn afirma que muitos aspectos das teorias de Einstein são mais parecidos com os de Aristóteles do que com os de Newton. Sem contar que o próprio Leibniz já falava da relatividade do tempo, mas só as ideias de Newton foram levadas em consideração devido ao status que ele possuía. De qualquer forma, muitas das ideias de Newton continuam corretas até hoje, ele não foi “derrubado”.

Com isso chegamos a algumas conclusões:

1-  Os cientistas precisam estudar não somente filosofia da ciência, mas também história da ciência. Os médicos atuais muito provavelmente ignoram o que disseram Hipócrates e Galeno. É verdade que acreditar no que eles diziam como se fosse um dogma incontestável também trouxe limitações para a medicina. Mas partir para o extremo oposto e considerá-los como completamente errados certamente não é a melhor escolha. Por exemplo, por algum tempo se considerou que a sangria, especialmente feita com sanguessugas, era um método ultrapassado para tratar doenças. Hoje em dia tem se descoberto que ela pode ser utilizada com sucesso para tratar enfermidades específicas.

2- Será que a ciência está mesmo progredindo ou só andamos em círculos? Segundo Thomas Kuhn, na maior parte do tempo o que os cientistas fazem é apenas montar quebra-cabeças com os paradigmas vigentes. Isso leva a um desenvolvimento lento. A ciência só avança de forma mais rápida nas épocas de revolução científica, quando um paradigma é substituído por outro. Mas o progresso não ocorre porque o novo paradigma é melhor, mas simplesmente porque nessas épocas compara-se as vantagens e desvantagens de dois ou mais paradigmas, o que leva a um exercício de pensamento mais profundo e a experimentos mais ousados, que geralmente resultam no surgimento de muitas novas ideias e teorias criativas.

A proposta da Magia do Caos é exatamente essa: manter-se num estado constante de revolução, testando e comparando variados paradigmas para que assim se expandam nossos pontos de vista e possamos apresentar ideias novas. Nenhum paradigma é considerado o “melhor” de forma absoluta. Mas isso tampouco significa cair no relativismo. Não se diz que tudo está certo, mas somente que cada teoria deve ser analisada no contexto do paradigma em que foi criada, reconhecendo que cada um pode ser útil para resolver problemas específicos. Mas mesmo os que não são imediatamente úteis não são descartados. Eles ainda podem provar seu valor no futuro, como já aconteceu incontáveis vezes na história da ciência, quando teorias antigas foram deixadas de lado e somente muito tempo depois foram redescobertas e aclamadas.

No entanto, vale ressaltar: o caoísta não clama ser melhor do que aquele que resolve pesquisar a fundo um paradigma específico. Como de costume, há vantagens e desvantagens nas duas abordagens e precisamos de desbravadores que se dediquem a cada uma delas.

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/mudan%C3%A7a-de-paradigmas-na-ci%C3%AAncia

Apoteose Humana

(clique para ampliar)

Langdon se virou de costas para Katherine, encarou a parede curva e sussurrou bem baixinho:

– Katherine, aqui é sua consciência falando. Por que você abandonou Robert?

Katherine parecia já conhecer as espantosas propriedades acústicas da cúpula… pois a parede sussurrou de volta.

– Porque Robert está sendo um medroso. Ele deveria vir até aqui comigo. Ainda temos muito tempo (…)

Langdon sabia que ela estava certa e, com relutância, foi contornando a galeria, mantendo-se grudado à parede o tempo todo.

– Este teto é absolutamente incrível – comentou Katherine maravilhada, com o pescoço esticado para abarcar o imenso esplendor da Apoteose acima dela. – Deuses míticos misturados com inventores e suas criações? E pensar que esta é a imagem no centro do nosso Capitólio.

Langdon voltou os olhos para cima na direção das gigantescas formas de Franklin, Fulton e Morse ao lado de seus inventos tecnológicos.

Um arco-íris brilhante se projetava a partir desses personagens, guiando o olhar de Langdon para George Washington, que subia aos céus em cima de uma nuvem. A grande promessa do homem que se torna Deus.

– É como se toda a essência dos Antigos Mistérios estivesse pairando sobre a Rotunda – disse Katherine.

Langdon tinha de admitir que não havia muitos afrescos no mundo que fundiam invenções científicas com deuses míticos e apoteose humana. A espetacular coleção de imagens do teto era de fato uma mensagem dos Antigos Mistérios e estava ali por um motivo. Os pais fundadores tinham imaginado os Estados Unidos como uma tela em branco, um campo fértil sobre o qual poderiam lançar as sementes dos mistérios. Hoje, aquele ícone sublime – o pai da nação subindo as céus – pairava silenciosamente sobre os legisladores, líderes e presidentes do país… um lembrete arrojado, um mapa para o futuro, a promessa de um tempo em que o homem iria evoluir rumo à maturidade espiritual completa.

– Robert – sussurrou Katherine com os olhos ainda fixos nas enormes figuras dos grandes inventores norte-americanos acompanhados por Minerva -, esse afresco é profético. Hoje em dia, as invenções mais avançadas estão sendo usadas para estudar as idéias mais antigas. A noética pode ser uma disciplina nova, mas é a ciência mais antiga do mundo: o estudo da mente humana. – Ela se virou para Langdon, maravilhada. – E estamos aprendendo que os antigos compreendiam o pensamento de modo mais profundo do que compreendemos hoje.

– Faz sentido – retrucou o professor. – A mente humana era a única tecnologia à disposição dos antigos. Os primeiros filósofos a estudaram de forma incansável.

– Isso mesmo! Os textos antigos são obcecados pelo poder da mente humana. Os Vedas descrevem o fluxo da energia mental. A Pistis Sophia fala sobre a consciência universal. O Zohar explora a natureza da mente-espírito. Os textos xamanísticos predizem a “influência remota” de Einstein em termos de cura a distância. Está tudo lá! E olhe que eu nem comecei a falar da Bíblia.

– Você também? – brincou Langdon. – Seu irmão tentou me convencer de que a Bíblia está cheia de informações científicas cifradas.

– Mas está mesmo – disse ela. – E, se você não acredita em Peter, leia alguns dos textos esotéricos de Newton sobre as Escrituras. Quando começar a entender as parábolas crípticas, Robert, você vai perceber que a Bíblia é um estudo da mente humana.

Langdon encolheu os ombros.

– Acho que vou ter que ler tudo de novo.

– Deixe-me fazer uma pergunta – disse ela, obviamente sem apreciar seu ceticismo. – Quando a Bíblia nos diz que devemos “construir nosso templo” e fazer isso “sem ferramentas e sem ruído”, de que templo você acha que ela está falando?

– Bem, o texto diz que o nosso corpo é um templo.

– Sim, em Coríntios 3:16. Vós sois o templo de Deus. – Ela sorriu. – E o Evangelho segundo João diz exatamente a mesma coisa. Robert, as Escrituras sabem muito bem o poder que existe latente em nós, e nos incentivam a dominar esse poder… a construir os templos de nossas mentes.

– Infelizmente, acho que grande parte do mundo religioso está esperando que um templo de verdade seja reconstruído. Isso faz parte da Profecia Messiânica.

– Sim, mas deixa de lado um ponto importante. O Segundo Advento é o do homem, o instante em que a humanidade finalmente constrói o templo de sua mente.

– Não sei – disse Langdon, esfregando o queixo. – Não sou nenhum estudioso da Bíblia, mas tenho quase certeza de que as Escrituras descrevem em detalhes um templo físico que precisa ser construído. Segundo a descrição, a estrutura seria dividida em duas partes: um templo externo chamado Santo e um santuário interno chamado Santo dos Santos. As duas partes estão separadas uma da outra por um fino véu.

Katherine sorriu novamente.

– Bela memória bíblica para um cético. Aliás, você já viu um cérebro humano de verdade? Ele é constituído por duas partes: uma externa, chamada dura-máter, e outra interna, chamada pia-máter. Essas duas partes são separadas pela membrana aracnóide, um véu de tecido que parece uma teia de aranha.

Langdon inclinou a cabeça, surpreso.

Com delicadeza, ela ergueu a mão e tocou a têmpora de Langdon.

– Existe um motivo para temple, em inglês, significar tanto “têmpora” quanto “templo”, Robert.

Enquanto Langdon tentava processar o que Katherine acabara de dizer, lembrou-se inesperadamente do Evangelho gnóstico segundo Maria: Onde a mente está, lá está o tesouro.

– Talvez você tenha ouvido falar – disse Katherine, baixando o tom de voz – nos exames de ressonância magnética feitos em iogues meditando. Quando em estado avançado de concentração, o cérebro humano produz, por meio da glândula pineal, uma substância parecida com cera. Essa secreção cerebral não se parece com nenhuma outra substância do corpo. Ela tem um efeito incrivelmente curativo, é capaz de regenerar células e talvez seja um dos motivos por trás da longevidade dos iogues. Isso é ciência, Robert. Essa substância tem propriedades inconcebíveis e só pode ser criada por uma mente em estado de profunda concentração.

– Eu me lembro de ter lido sobre isso alguns anos atrás.

– E, falando nisso, você conhece o relato da Bíblia sobre o “maná dos céus”? Langdon não via ligação alguma entre os dois assuntos.

– Está se referindo à substância mágica que caiu do céu para alimentar os famintos?

– Exatamente. Dizia-se que essa substância curava os doentes, dava a vida eterna e, estranhamente, não produzia dejetos depois de consumida. – Katherine fez uma pausa, como se estivesse esperando que ele entendesse. – Robert – insistiu ela -, um alimento que caiu do céu? – Ela cutucou a própria têmpora. – Que cura o corpo por magia? Que não gera dejetos? Ainda não entendeu? São palavras em código, Robert! Templo é um código para “corpo”. Céu é um código para “mente”. A Escada de Jacó é a sua coluna vertebral. E o maná é essa rara secreção produzida pelo cérebro. Quando você vir essas palavras cifradas nas Escrituras, preste atenção. Elas muitas vezes são sinais de um significado mais profundo escondido sob a superfície.

Katherine passou a falar rápido, explicando como a mesma substância mágica aparecia em todos os Antigos Mistérios: néctar dos deuses, elixir da vida, fonte da juventude, pedra filosofal, ambrosia, orvalho, ojas, soma. Depois começou a dar uma longa explicação sobre como a glândula pineal representava o olho de Deus que tudo vê.

– Segundo Mateus 6:22 – disse ela com animação -, “Quando o teu olho for bom, todo o teu corpo terá luz”. Esse conceito também é representado pelo chacra ajna e pelo pontinho na testa dos hindus que…

Katherine se deteve abruptamente, parecendo encabulada.

– Desculpe… sei que estou falando sem parar. Mas é que acho tudo isso tão emocionante! Passei anos estudando as afirmações dos antigos sobre o incrível poder mental do homem, e agora a ciência está nos mostrando que o acesso a esse poder se dá, na verdade, por meio de um processo físico. Se usado corretamente, nosso cérebro pode invocar poderes literalmente sobre-humanos. A Bíblia, como muitos textos antigos, é uma exposição detalhada da máquina mais sofisticada de todos os tempos… a mente humana. – Ela deu um suspiro. – Por incrível que pareça, a ciência ainda não alcançou todo o potencial da mente.

– Parece que seu trabalho com a noética vai representar um salto à frente nessa área.

– Talvez seja um salto para trás – disse ela. – Os antigos já conheciam muitas das verdades científicas que estamos redescobrindo atualmente. Em questão de anos, o homem moderno será forçado a aceitar algo hoje impensável: nossas mentes podem gerar energia capaz de transformar a matéria física. – Ela fez uma pausa. – As partículas reagem aos pensamentos… o que significa que nossos pensamentos têm o poder de mudar o mundo.

Langdon abriu um leve sorriso.

– Minha pesquisa me fez acreditar nisto: Deus é muito real… uma energia mental que permeia tudo – disse Katherine. – E nós, seres humanos, fomos criados a essa imagem…

– Como assim? – interrompeu Langdon. – Criados à imagem de… uma energia mental?

– Exatamente. Nossos corpos físicos evoluíram com o tempo, mas nossas mentes é que foram criadas à semelhança de Deus. Nós estamos levando a Bíblia muito ao pé da letra. Aprendemos que Deus nos criou à sua imagem, mas não são nossos corpos físicos que se assemelham a Deus, são nossas mentes.

Langdon se calara, totalmente fascinado.

– É esse o verdadeiro presente, Robert, e Deus está esperando que entendamos isso. Pelo mundo todo ficamos olhando para o céu à procura de Deus… sem nunca perceber que Ele está esperando por nós. – Katherine fez uma pausa, dando tempo para aquelas palavras serem absorvidas. – Nós somos criadores, mas ainda assim ficamos ingenuamente fazendo o papel de criaturas. Vemos a nós mesmos como ovelhas indefesas, manipuladas pelo Deus que nos criou. Mas, quando percebermos que somos realmente feitos à imagem do Criador, vamos começar a entender que nós também devemos ser criadores. Assim que entendermos esse fato, as portas do potencial humano irão se escancarar.

Langdon se lembrou de um trecho da obra do filósofo Manly P. Hall: Se o infinito não quisesse que o homem fosse sábio, não teria lhe dado a faculdade de saber. Langdon tornou a erguer os olhos para A Apoteose de Washington – a ascensão simbólica do homem à divindade. A criatura… se transformando em Criador.

– O mais incrível de tudo – disse Katherine – é que, assim que nós, humanos, começarmos a dominar nosso verdadeiro poder, teremos enorme controle sobre o mundo. Seremos capazes de projetar a realidade em vez de simplesmente reagir a ela.

Langdon baixou os olhos.

– Parece… perigoso.

Katherine ficou surpresa… e impressionada.

– Isso, exatamente! Se os pensamentos afetam o mundo, então precisamos tomar muito cuidado com a maneira como pensamos. Pensamentos destruitivos também têm influência, e todos sabemos que é muito mais fácil destruir do que criar.

Langdon pensou em todas as histórias sobre a necessidade de proteger o antigo saber dos não merecedores e de compartilhá-lo apenas com os iluminados. Pensou no Colégio Invisível e no pedido do grande cientista Isaac Newton a Robert Boyle para que guardasse “total silêncio” sobre seu estudo secreto. Ele não pode ser divulgado, escreveu Newton em 1676, sem imensos danos para o mundo.

– Houve, no entanto, uma reviravolta interessante – disse Katherine. – A grande ironia é que, durante séculos, todas as religiões do mundo incentivaram seus seguidores a abraçar os conceitos de fé e crença. Agora a ciência, que passou muitos séculos desprezando a religião ao considerá-la mera superstição, está sendo obrigada a admitir que sua próxima grande fronteira é literalmente a ciência da fé e da crença… o poder da convicção e da intenção. A mesma ciência que erodiu nossa fé nos milagres está agora construindo uma ponte para atravessar o abismo que criou.

Langdon passou um bom tempo pensando nas palavras dela. Bem devagar, tornou a erguer os olhos para a Apoteose.

– Quero fazer uma pergunta – falou, olhando de volta para Katherine. – Mesmo que eu conseguisse aceitar, apenas por um instante, que tenho o poder de modificar matéria física com a mente e de criar tudo aquilo que desejo… como poderia acreditar nisso se, infelizmente, não vejo nenhum indício desse poder na minha vida?

Ela deu de ombros.

– Então você não está procurando direito.

– Calma lá, quero uma resposta de verdade. Isso está parecendo uma resposta de padre. Quero uma de cientista.

– Você quer uma resposta de verdade? Aqui está. Se eu lhe der um violino e disser que você tem a capacidade de usá-lo para tocar músicas lindas, não estarei mentindo. Você tem essa capacidade, mas vai precisar treinar muito para que ela se manifeste. Aprender a usar a mente é a mesma coisa, Robert. O pensamento bem direcionado é uma habilidade que se adquire. Manifestar uma intenção requer um foco digno de um raio laser, uma visualização sensorial completa e uma crença profunda. Nós demonstramos isso no laboratório. E, como no caso do violino, existem pessoas que demonstram uma aptidão natural maior que outras. Olhe para a história. Veja os relatos de mentes iluminadas que realizaram feitos milagrosos.

– Katherine, por favor, não me diga que você realmente acredita nesses milagres. Quer dizer, francamente… transformar água em vinho, curar os doentes com um toque da mão?

Katherine inspirou fundo e soltou o ar lentamente.

– Eu já vi pessoas transformarem células cancerosas em células saudáveis apenas pensando nelas. Vi mentes humanas afetando o mundo físico de inúmeras formas. E quando você testemunha isso, Robert, quando essas coisas se tornam parte da sua realidade, a única diferença entre elas e alguns dos milagres sobre os quais já lemos passa a ser a intensidade.

Langdon estava pensativo.

– É um jeito inspirador de ver o mundo, Katherine, mas fico com a sensação de que isso é um salto de fé impossível. E, como você sabe, a fé nunca foi uma coisa fácil para mim.

– Então não pense nisso como fé. Pense que é apenas uma mudança de perspectiva: aceitar que o mundo não é exatamente como você imagina. Historicamente, todos os grande avanços científicos começaram com uma idéia simples que ameaçou virar todas as crenças de cabeça para baixo. A simples afirmação “A Terra é redonda” foi desprezada e taxada de impossível porque a maioria das pessoas acreditava que, se fosse assim, os oceanos se derramariam do planeta. O heliocentrismo foi chamado de heresia. As mentes medíocres sempre atacaram aquilo que não entendem. Há aqueles que criam… e aqueles que destroem. Essa dinâmica existe desde que o mundo é mundo. Mas os criadores sempre acabam encontrando quem acredite neles. Então a quantidade de seguidores cresce até que alcança um número crítico e, de repente, o mundo se torna redondo, ou o sistema solar passa a ser heliocêntrico. A percepção se transforma e uma nova realidade nasce.

Langdon aquiesceu, agora com o pensamento longe.

– Você está com uma cara engraçada – disse ela.

– É, sei lá. Por algum motivo, estava me lembrando de como eu costumava pegar um pequeno barco e ir até o meio do lago à noite, só para ficar deitado debaixo das estrelas pensando nesse tipo de coisa.

Ela assentiu, compreendendo.

– Acho que todos nós temos uma lembrança parecida. Ficar deitado olhando para o céu… isso de alguma forma abre a mente. – Ela ergueu os olhos para o teto e então falou: – Me dê seu paletó.

– O quê? – Ele tirou o paletó e o entregou a ela.

Katherine o dobrou duas vezes, estendendo-o no chão da galeria como um travesseiro comprido.

– Deite-se.

Langdon se deitou de costas e Katherine ajeitou a cabeça dele sobre metade do paletó dobrado. Então ela se deitou ao lado dele – duas crianças, com os ombros colados sobre aquela passarela estreita, olhando para o enorme afresco de Brumidi.

– Muito bem – sussurou Katherine. – Procure entrar naquele mesmo estado de espírito… uma criança deitada em um barco… observando as estrelas… com a mente aberta e cheia de assombro.

Langdon tentou obedecer, embora, naquele instante, deitado e à vontade, uma súbita onda de exaustão tomasse conta de seu corpo. À medida que sua visão se embaçava, ele percebeu uma forma difusa lá em cima que o despertou na mesma hora. Será possível? Não conseguia acreditar que não tivesse percebido isso antes, mas os personagens de A Apoteose de Washington estavam obviamente posicionados em dois círculos concêntricos – um círculo dentro de um círculo. Será que a Apoteose também é um circumponto? Langdon se perguntou que outro detalhe deixara passar naquela noite.

– Tenho uma coisa importante para dizer a você, Robert. Existe outra peça que considero o aspecto mais espantoso da minha pesquisa.
Ainda tem mais?

Katherine se apoiou no cotovelo.

– E juro… se nós, seres humanos, formos capazes de apreender de forma honesta essa única verdade simples… o mundo vai mudar da noite para o dia.

Ela passou a ter toda a sua atenção.

– Para começar – disse ela – , eu deveria lembrá-lo dos mantras maçônicos que nos incitam a “reunir o que está disperso”, “criar ordem a partir do caos” e encontrar a “união”.

– Continue. – Langdon estava intrigado.

Katherine sorriu para ele.

– Nós provamos cientificamente que o poder do pensamento humano cresce exponencialmente em proporção à quantidade de mentes que compartilham um mesmo pensamento.

Langdon continuou em silêncio, perguntando-se aonde ela queria chegar com essa idéia.

– O que estou dizendo é o seguinte: duas cabeças pensam melhor do que uma, mas não são duas vezes melhor, e sim muitas vezes melhor. Várias mentes trabalhando em uníssono ampliam o efeito de um pensamento… de forma exponencial. É esse o poder inerente aos grupos de oração, aos círculos de cura, aos cantos coletivos e às devoções em massa. A idéia de uma consciência universal não é um conceito etéreo da Nova Era. É uma realidade científica palpável… e dominar essa consciência tem o potencial de transformar o mundo. Essa é a descoberta fundamental da ciência noética. E o que é mais importante: isso está acontecendo agora. É possível sentir essa mudança à nossa volta. A tecnologia está nos conectando de formas que jamais imaginamos: veja o Twitter, o Google, a Wikipédia e tantas outras coisas… tudo isso se une para criar uma rede de mentes interconectadas. – Ela riu. – E garanto a você: assim que eu publicar meu livro, todo mundo vai começar a postar no Twitter coisas do tipo “aprendendo sobre ciência noética”, e o interesse por essa disciplina vai explodir de forma exponencial.

As pálpebras de Langdon estavam incrivelmente pesadas.

– Sabe que até hoje eu não aprendi a mandar um twitter?

– Um tweet – corrigiu ela, rindo.

– Como?

– Deixe para lá. Feche os olhos. Eu acordo você quando chegar a hora.

(…)Engolido por uma nova onda de exaustão, fechou os olhos. Na escuridão de sua mente, se surpreendeu pensando na consciência universal… nos escritos de Platão sobre “a mente do mundo” e o “deus da união”… no “inconsciente coletivo” de Jung. O conceito era ao mesmo tempo simples e espantoso.
Deus está na união de Muitos… e não em Um só.

– Elohim – falou Langdon de repente, reabrindo os olhos ao perceber um vínculo inesperado.

– Como? – Katherine ainda o olhava de cima.

– Elohim – repetiu ele. – A palavra hebraica usada no Antigo Testamento para se referir a Deus! Ela sempre me intrigou.

Katherine abriu um sorriso de cumplicidade.

– Sim. A palavra está no plural.
Exatamente! Langdon nunca tinha entendido por que os primeiros trechos da Bíblia se referiam a Deus como um ser plural. Elohim. O Deus Todo-Poderoso do Gênesis era descrito não como Um… mas como Muitos.

– Deus é plural – sussurrou Katherine – porque as mentes dos homens são plurais.

Os pensamentos de Langdon estavam a mil… sonhos, lembranças, esperanças, medos, revelações… tudo rodopiava acima dele no domo da Rotunda. À medida que seus olhos começavam a se fechar novamente, ele se viu encarando três palavras em latim que faziam parte da Apoteose.

E PLURIBUS UNUM.
De muitos, um só, pensou, pegando no sono.

***

Trecho retirado do livro “O Símbolo Perdido”, de Dan Brown (Rio de Janeiro: Sextante, 2009).

#Maçonaria #mente #pensamento

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/apoteose-humana

O Legado Mágico de John Dee

por Julie Stern.

Na época da ascensão dos fundamentalismos e outros versos satânicos não é inútil viajar ao século XVI para descobrir um ponto central de respostas e questões relacionadas com a ética da felicidade e a tecnologia ocidental. Nove séculos após a revelação islâmica, 200 ocidentais de toda a Europa se viram carregando o espírito do Renascimento com a tocha de suas certezas. Eram místicos, engenheiros, matemáticos, técnicos, corteses, evangelistas do céu na terra. Eles criaram o humanismo de que todos falam em nossos tempos de reflexões morais, mas que poucos conhecem. A democracia tira disso uma dimensão transcendental e bíblica. John Dee é quem recebeu a revelação mais imponente – várias centenas de páginas, incluindo um monólogo de Deus tão amargo e profundo quanto o Livro de Jó, onde ele até se arrepende de ter criado o ser humano…  famoso livro dos Diálogos com o Anjo – uma revelação espiritual de alcance universal oculto que se inscreve implicitamente no coração da relação atual do homem com sua identidade, da sociedade e da natureza, da mulher e do homem, dos povos e suas histórias, das religiões e política, liberdade e amor. E da Arte. A grande aventura da evolução do espírito humano.

Os Mistérios de John Dee

Até recentemente, John Dee era considerado um maníaco isolado e marginal da história britânica da dinastia Tudor, não tendo se beneficiado de nenhum estudo aprofundado, acadêmico e sério, um homem digno de interesse apenas aos olhos de uma pequena minoria de antiquários e ocultistas . Ainda hoje, a Enciclopédia Britânica nos oferece apenas um pequeno e acanhado parágrafo sem informações exaustivas – um destino nada invejável para um homem que foi reverenciado em seu tempo – o grande Renascimento – como o homem mais erudito de toda a história.

Inspiração para o personagem Próspero na Tempestade de Shakespeare, John Dee está na raiz da revolução técnica anglo-saxônica moderna e das contradições éticas do sistema herdado e transformado pelo exercício do poder. Escrever uma biografia significa trabalhar na história da ciência e da tecnologia (astronomia, astrologia, matemática, mecânica), das sociedades (da antiguidade ao século XVI) e das espiritualidades (em todo o mundo).

John Dee deu à Inglaterra o conceito político de “Império Britânico” e abriu os fluxos marítimos da Grã-Bretanha com a Rússia e a América. Ele alegou ter se comunicado com os anjos como se reis, imperadores e os grandes não fossem suficientes para ele. Uma vida que se desenrola como um filme de aventura místico-política, um épico ao ritmo de um thriller mítico porque Shakespeare não está muito longe e a Tempestade realmente aconteceria….

Biografia

John Dee nasceu em Londres em 13 de julho de 1527. Ele era filho de Rowland Dee, um cortesão a serviço privado do rei Henrique VIII. As duas famílias de origem galesa se uniram durante a guerra das duas rosas, onde a púrpura dos Tudors derrotou a brancura da rosa de York. De 1542 a 1545, John Dee estudou no St John’s College em Cambridge, do qual ele conta; “Eu estava tão profundamente imerso no estudo que durante esses anos aderi inviolavelmente ao meu horário; apenas quatro horas de sono por noite; duas horas por dia para comida e bebida (e alguns refrescos depois); e o resto das dezoito horas (exceto o tempo para ir e realizar o serviço divino) foi gasto em meus estudos e aprendizado).” Em seguida, Trinity College. Recebeu o título de Bacharel em Artes em 1546, tornou-se membro da Sociedade dos Amigos do Trinity College, ainda em Cambridge.

Nesse mesmo ano, construiu uma máquina voadora para a representação teatral de Zeus em Paz, peça de Aristófanes. Infelizmente, essa proeza técnica para a época forjou a base para uma acusação de prática de artes mágicas malignas (pense em Zeus voando em uma carruagem dentro do Olimpo no final da Idade Média religiosa!) e um evocador de espíritos malignos. Ordinário. A dura vida do século XVI. Como Bertrand Gilles indicou em seu famoso livro Les Ingénieurs de la Renaissance, apenas os místicos estudavam matemática, o que levou ao projeto de máquinas que permitiram fazer desaparecer trabalhos difíceis para a humanidade. Mas a Igreja havia proibido essa prática de “artes mecânicas” consideradas diabólicas. Só os reis e a alta nobreza militar protegiam parte do saber técnico herdado da antiguidade para fabricar armas, pontes, veículos, fatos de mergulho, moinhos, protomáquinas voadoras ou de mergulho… E os 200 do renascimento europeu…

Mas Dee foge com isso. Corremos por toda a Europa e as cidades estão cheias de vegetação florida. E fugiu. Bélgica. Flandres. De 1548 a 1551, John Dee estudou em Louvain, uma universidade financiada pelo papado e pelo imperador Carlos V, renomada em toda a Europa pelo estudo de leis civis e matemática. John Dee também visita Antuérpia antes de chegar a Paris e realizar ali a notável performance para um jovem de 33 leituras sucessivas sobre Euclides. “Uma coisa que nunca havia sido feita publicamente em nenhuma universidade da cristandade”, como ele mesmo observou antes de prefaciar a primeira obra britânica de Euclides que ainda seria usada para o ensino de matemática nas faculdades inglesas de 1914. Mas, acima de tudo, a obra de John Dee a visita a Louvain, que não foi para completar o doutorado, foi a do encontro e da longa amizade com Gérard Mercator, o primeiro geógrafo do globo terrestre real, fundador da geografia moderna. John Dee retorna à Inglaterra de posse do segredo da bússola orientada no pólo magnético, cujo lugar e papel são descobertos por Gérard Mercator, os países da América e as supostas passagens para o Mar Báltico e a Rússia. Foi a amizade de John Dee que abriu a dimensão do “império marítimo” ao mundo anglo-saxão. Rússia. E Virgínia…

Na Inglaterra, ele passou os anos de 1551 a 1553 como tutor de Robert Dudley, filho do Lord Protector Northumberland, e mais tarde Conde de Leicester. Em 1553, Eduardo VI concedeu-lhe duas igrejas em funcionamento, com suas pensões, as reitorias de Upton-on-Seven, Worcestershire e Long Leadenham, Lincolnshire. No entanto, a ascensão da rainha Maria Tudor (casada com o ultracatólico rei da Espanha Filipe II que reprime o protestantismo puritano) causou uma desagradável reversão da sorte, especialmente como estudantes de magia e artes matemáticas (na época ele é a mesma disciplina, proibidos ao mesmo tempo que o estudo de qualquer arte “mecânica”) são perseguidos pelas apostas. John Dee foi preso em 1555 sob a acusação de ser “suspeito de lançar feitiços contra a rainha”. Ele é libertado, mas seu mordomo, Barthlet Grene, é queimado vivo.

Para recuperar seu crédito, John Dee dirige uma petição à rainha Maria para a pesquisa e preservação de escritos antigos (queimados pelos tribunais) e monumentos. 1556. É contratado como assistente de um inquisidor. Ele recupera todos os manuscritos de alquimia (que estuda) apreendidos nas casas dos réus da justiça eclesiástica e acumula um enorme fundo de manuscritos que serão usados ​​para o desenvolvimento científico posterior da Grã-Bretanha. “Se o fator essencial de uma universidade é uma excelente biblioteca, FR Johnson apontou que a casa de Dee pode realmente ser considerada a academia científica da Inglaterra durante a primeira metade do reinado de Elizabeth 1ª da Inglaterra.” como apontam os biógrafos modernos de John Dee, Frances Yates e Peter French. Sua biblioteca inclui as obras completas de Platão e Aristóteles, os dramas de Ésquilo, Eurípides, Sófocles, as sentenças de Sêneca, Terêncio e Plauto, os escritos de Tucídides, Heródoto, Homero, Ovídio, Lívio, Plutarco.

Mas a rainha Maria Tudor acaba de morrer.

Ele teve muitas obras sobre religião e teologia: a Bíblia, o Alcorão, São Tomás de Aquino, Lutero, Calvino. Todas as principais obras para antiquários britânicos contemporâneos estavam presentes, incluindo todas as obras de ciência e matemática. Geografia. Obviamente, para um homem renascentista, o misticismo e a magia eram importantes no esquema de arranjo, junto com Plotino, Roger Bacon, Raimundo Lúllio, Alberto Magno, Marsílio Ficino, Pico de la Mirandola, Paracelso, Tritemius e Agripa, e outros. Todo o Renascimento em um único estudioso. Escrever sua biografia é dar conhecimento científico e técnico desde a antiguidade até o século XVI. Uma aula de arte da memória (a base da educação tradicional) como bônus.

O Mago da Rainha Elizabeth I da Inglaterra

O astrólogo da data escolhida para a coroação solene da rainha Elizabeth 1ª da Inglaterra chama-se John Dee. Ele a servirá com devoção incomum durante todos os anos de seu reinado. Dee era conhecido na corte com seu ar de bardo merlinesco e se reuniu com o conde de Leicester, seu primeiro aluno, bem como o círculo de Sir Philip Sydney, a profunda amizade de Sir William Cecil e muitos outros parentes da Coroa, incluindo o chefe do serviço secreto, Sir Gresham, incluindo – especialmente – a própria rainha. O número de agente secreto de Dee com a Rainha era o número 7. É uma época muito boa. Anos “estudiosos, produtivos e cheios de sucesso”. Ele via a rainha várias vezes por semana em conversas privadas. Ela muitas vezes vinha à sua casa sem avisar. Ele parece ter cumprido o papel de conselheiro político, espiritual, militar, cultural e técnico ao mesmo tempo. Segredos de estado britânicos. John Dee vê a Inglaterra salva se ela decidir adquirir o domínio das águas. A criação da frota inglesa com madeira russa. Ivan, o Terrível, logo se tornou conhecido pelos cortesãos como o “czar inglês”. Ele ficou tão impressionado com a fama de John Dee que o convidou para Moscou, oferecendo-lhe comida e uma grande casa, além de £ 2.000 por ano. John Dee se recusa como um bom patriota. Em 1580, John Dee presenteou a rainha Elizabeth com um mapa do hemisfério norte, permitindo que ela estabelecesse sua legitimidade dos direitos ingleses na América do Norte. E promover três anos depois as viagens de seu amigo Sir Walter Raleigh com o batismo de “Virginia” e a expedição ao Orinoco, inspirando também as de Francis Drake. O Império Britânico nasceu enquanto a França lutava em suas Guerras Religiosas, distanciadas à vontade pelas obras do francês Rabelais…

Para ler as obras criptografadas e avaliar o papel de seu país no nível físico e metafísico, John Dee está especialmente interessado nas criptografias da alquimia, da cabala e das possibilidades de comunicação direta com as forças divinas da vida que emanam dos textos. Ele tem todas as obras de Roger Bacon, este monge franciscano do século XIII que descreve as etapas da revolução científica que não se completará até o século XVII, e fará a ponte com Francis Bacon, que encontra duas vezes, revelando-lhe o essencial papel do método experimental para o desenvolvimento de ciências e técnicas úteis à humanidade, bem como sua responsabilidade perante Roger Bacon, que leva o mesmo nome que ele. Francisco não foi tão profundo, mas apresentará ao mundo científico uma visão do método experimental que, embora carente de sal, não permanece menos real.

Como todos os grandes renascentistas, John Dee descobre na Árvore da Vida um diagrama de síntese ecumênica de todas as religiões e mitologias, um diagrama funcional onde cores, minerais, plantas, árvores, letras, números, partes do corpo, porções do céu e nomes divinos correspondem. A alquimia o obriga a fazer uma viagem à Hungria para comprar um famoso antimônio, mas os experimentos que ele realiza há muitos anos não são conclusivos. São sobretudo os manuscritos mágicos que abrirão as portas para experiências estranhas, as da filosofia oculta.

O ano é 1582. Ele conhece o homem com quem seu nome será tantas vezes associado, Sir Edward Kelley. Muitas pessoas meditaram em vão para entender como era possível que um homem inteligente como Dee, formado em estudos clássicos, aficionado em navegação, matemática, lógica, literatura e filosofia, tivesse cuidado de alquimia, magia e conjuração de espíritos com a habilidade de Kelley. ajuda. Vamos examinar esta questão.

A filosofia oculta teve uma influência muito grande no Renascimento. Descreveu o universo em três dimensões: o mundo elementar da Natureza Terrestre que era a província das ciências físicas, o Mundo Celestial das estrelas que poderia ser entendido e apreendido pelo estudo e prática da Alquimia e Astrologia, incluindo astronomia e matemática, e o Mundo Supercelestial que poderia ser estudado por operações numéricas e pela evocação dos próprios anjos. Dee tenta explorar o Mundo Supercelestial em busca de respostas vivas que não encontrou mais nos livros que leu. Sua tentativa de obter esse contato angélico é do ponto de vista de seu tempo e do método experimental puramente lógico. As motivações profundas de Dee são científicas e religiosas. Religioso nisso o próprio Dee acreditava sinceramente que estava conversando com os emissários de Deus e mostrava uma atitude constante marcada pela sabedoria cristã. Científico em que Dee colocou a questão: existe vida inteligente em outras dimensões? Ele acreditava que assim era e que o Homem poderia conseguir estabelecer uma comunicação permanente com os anjos. Ele tentou. Encontrando-se pobre vidente, John Dee procura um médium para ver e ouvir os anjos convocados. Saul Barnabé foi substituído por Edward Kelley, de quem pouco se sabe.

Nascido em Worcester em 1º de agosto de 1555, ele entrou em Oxford sob o nome de Edward Talbot e depois desapareceu da universidade. Alguns historiadores acreditam que ele abriu a tumba de São Dunstão na esperança de encontrar ali um pó de projeção alquímica mencionado nas lendas. Seja como for, ele se tornou por um tempo o secretário do matemático e estudante hermético Thomas Allen, antes de apresentar seus próprios serviços na casa de Dee em Mortlake.

A Língua Enoquiana

10 de março de 1582. De acordo com o doutor Thomas Head: “O retrato do relato das sessões com Dee é o de uma personalidade ambígua no mais alto grau, má e mentirosa, instável e ácida, rápida de um lado a terríveis explosões de raiva acompanhada de violência física e, por outro, a súbitas explosões espirituais das quais ele se separa rapidamente”. A maioria dos biógrafos concorda que o contraste entre a vida e o caráter de Dee e os de Kelley é a fonte do fascínio dos dois homens. O santo e o debochado. Nossa própria tradução das atas das sessões nos fornece outras pistas. Dee foi atraído por Kelley quando ele se apresentou como um “alquimista operativo”. Dee não teria conseguido experimentar sua “magia angelical” sem o excepcional apoio mediúnico de Kelley e levando, após resultados iniciais extraordinários em relação ao objetivo pretendido, a emergência de um enigma ainda não resolvido: a língua enoquiana . Dee ainda não sabia o que pensar disso na noite de sua vida, trinta anos depois…

Os preparativos iniciais foram simples. Como observa o Dr. Head: “Simplesmente colocando uma pedra de visão ou cristal de rocha na mesa de prática e uma breve oração dita pelo Dr. Dee”. O resultado foi que Kelley recebeu uma visão do Anjo Uriel no primeiro dia que revelou sua assinatura secreta e deu instruções preliminares para a construção de “dois talismãs mágicos”:

1 – O “Sigillum Dei Aemeth (O “Selo da Verdade Divina”), um pantáculo de cera purificada de 9 polegadas de diâmetro, atualmente guardado no Museu Britânico.

2 – A “Tabula Sancta” (A “Mesa Sagrada”), uma mesa feita de madeira preciosa, com 1,60 metros de altura por 0,8 de largura, sobre a qual um grande selo retangular contendo 12 letras de um alfabeto desconhecido (o Enoquiano…) 7 selos circulares atribuídos aos poderes planetários.

Os dois talismãs que eram de fato os dois primeiros documentos enoquianos deveriam ser usados ​​juntos, o pantáculo sendo colocado sobre a Mesa Sagrada durante seu uso. Dee e Kelley estavam convencidos de que essa língua era a dos próprios anjos e correspondia a uma espécie de língua de origem, da qual viriam as línguas mais antigas. A complexidade dos eventos aumenta. Em 14 de março, um espírito posando como o anjo Miguel dá instruções para fazer um anel mágico de ouro, com um selo que ele disse ser o mesmo que “possibilitou todos os milagres e obras divinas e maravilhas realizadas por Salomão”. Em 20 de março o Anjo Uriel dita um quadrado de 49 caracteres, contendo 7 nomes angélicos identificados por Dee e Kelley. Um dia depois, um segundo quadrado é ditado. Kelley estava prestes a começar a ditar a Dee as visões na linguagem angelical ou “enoquiana”. Como escreve Head: “O alfabeto enoquiano apareceu primeiro: 21 caracteres semelhantes ao etíope em forma de letras, embora não em estrutura semelhante à grega, escritos da direita para a esquerda, como todas as línguas semíticas. Isso continuou com um livro também contendo cem quadrados, a maioria preenchido com 2401 quadrados (49 vezes 49), cujo ditado se tornou o principal trabalho de todas as sessões diárias por 14 meses. E o material continuou a se acumular página após página, livro após livro, até a separação final entre Dee e Kelley em 1589.”

Dee e Kelley vão para a Polônia a convite de um aristocrata, ficam em Cracóvia onde os Anjos conversam com eles sobre alquimia, antes de serem recebidos em Praga pelo imperador Rudolf II de Habsburgo, imperador dos alquimistas, protetor de Dürer, Arcimboldo, Tycho Brahe , Kepler e muitos outros. O anti-Philip II da Espanha. Ele leva Dee (que lhe dá um manuscrito original de Roger Bacon contando sobre seus contatos angelicais) e Kelley sob sua proteção. Pura sincronicidade da presença da palavra “Aemeth” colocada no selo de cera de Dee e o “Aemeth” colocado no Golem do famoso rabino Loew que viveu em Praga na mesma época? O diário de Dee não menciona um encontro com o rabino, mas ele conhece o médico alquimista do imperador, Michael Maïer, o primeiro que escreverá para atestar a existência de uma fraternidade com o emblema da Rosa e da Cruz, presente curar a humanidade de seus males. Irmandade invisível. Mas qualquer que seja o encontro fictício ou real narrado pelo romancista Gustav Meyrink em seu famoso “Anjo na Janela Ocidental”, qualquer que seja a desgraça social que recai sobre os dois homens (Dee retornou à Inglaterra com sua esposa em 1589, Edward Kelley foi preso por Rudolf II de Habsburgo e morreu em 1595), a verdadeira questão colocada por Dee é a da Rosa. Etno-história. Crônicas da transmissão xamânica européia.

John Dee na Origem da Rosa-Cruz?

A lenda Rosacruz – a história da fundação de uma irmandade mística por um certo Christian Rosenkreuz, sua morte em 1484 e a abertura de seu túmulo 120 anos depois – foi contada pela primeira vez em vários panfletos publicados nos anos de 1614 e 1615. Dee morreu em 1608. O mais influente dos textos foi o Fama Fraternitatis rapidamente traduzido para todas as línguas dos estudiosos do século XVII. René Descartes procurou febrilmente os Rosacruzes na Europa e manteve sua marca em sua filosofia pessoal. Este livreto influenciou não apenas os cabalistas e mágicos da época, aqueles humanos que tendiam a pensar mais em símbolos do que em palavras, mas também as irmandades maçônicas do século XVIII e os ocultistas do período posterior a 1850. em todos os tempos e em todos os lugares o emblema da beleza da vida e do amor expressa o pensamento secreto de todos os protestos manifestados durante o Renascimento. É como escreveu Eliphas Lévi: “A carne se revoltou contra a opressão do espírito; era a natureza se declarando Filha de Deus, como a Graça; era a Vida que não queria mais ser estéril; era a humanidade aspirando a uma religião natural, toda de razão e amor, fundada na revelação da harmonia do ser, da qual a rosa era para os iniciados o símbolo vivo e florido.”

A rosa é uma arma mágica. Um pantáculo natural universal. A rosa vinda da gnose de Alexandria, das tradições monásticas e das ordens religiosas de cavalaria, é o Amor invencível que une a carne ao espírito, é o Amor do Rosto feminino da Divindade. É claro que se pensa em Guillaume de Lorris, que iniciou o Roman de la Rose (O Romance da Rosa), sem esquecer o Cântico dos Cânticos do Antigo Testamento. A Rosa de Saron e o Lírio do Vale. A Rosa é a Natureza, a Mulher. E o cabalista cristão Agripa publica seu livro Sobre a Superioridade das Mulheres. A Inquisição e as Guerras Religiosas atingiram duramente as mulheres sob a cobertura de julgamentos de feitiçaria, como muitos estudiosos anglo-saxões apontam. Pensa-se na Ordem do Templo e na construção de catedrais na Europa. As cidades. Jehan de Meung retoma o Roman de la Rose (O Romance da Rosa) depois de ter lido, é o mínimo, os textos taoístas transmitidos a Felipe VI, o Belo pelos mongóis em 1265. Esta é a data de nascimento de Dante que será um dos líderes da Fede Santa, terceira ordem de filiação templária. Ele descreverá em seu oitavo céu do paraíso o Céu Estrelado, o da Rosa-Cruz, perfeito vestido de branco que ali professa o universalismo da doutrina evangélica, oposta à doutrina católica romana, evitando a ruptura. Dee era pela reconciliação do cristianismo de todos os matizes. Mas os abusos do papado os acharam impiedosos. Ali se juntaram às correntes ocultas do Hermetismo, do Catarismo, das teses abertamente gnósticas defendidas por Alberto Magno, São Tomás de Aquino, Pedro Lombardo, Ricardo de São Vitor, São Francisco de Assis, Santa Clara e toda a Ordem Terceira. A Ordem Terceira que derrotará o feudalismo deixando o Terceiro Estado brotar dele. Porque para John Dee a coisa fica clara na carta de 1563 que ele dirige a Sir William Cecil:

  1. Tudo é Uma Unidade, criada e sustentada pelo Uno através de suas Leis.
  2. Essas leis são ensinadas pelos Números-Filhos.
  3. Há uma arte combinatória das letras hebraicas que as torna válidas com o Número, de tal forma que se revelam verdades profundas sobre a natureza do Único e sua relação com o Ser humano.
  4. O ser humano é de origem divina. Longe de ter sido criado do pó como narrado no Gênesis, ele é, em essência, um gênio estelar.” Ou como dirá O Livro da Lei, transmitido a Aleister Crowley que estudou Dee no início do século XX: “Todo homem e toda mulher é uma estrela”.
  5. É essencial regenerar a essência divina dentro do ser humano, e isso pode ser alcançado pelos poderes do intelecto divino.
  6. Segundo a sagrada Cabala, Deus se manifesta através das intenções de 10 emanações progressivamente densas: e o ser humano, dedicando sua mente ao estudo da sabedoria divina e refinando todo o seu ser, e pela possível comunhão dos próprios anjos, acabará por poder entrar na presença de Deus.
  7. Uma compreensão cuidadosa dos processos naturais, visíveis e invisíveis, permite ao ser humano jogar com esses processos através dos poderes de sua vontade, sua inteligência e sua imaginação.
  8. O Universo é um padrão ordenado de correspondências. Qualquer coisa no Universo tem ordem, simpatia e força estelar com muitas outras coisas.

Para John Dee, isso não é uma metáfora. Todo ser humano é verdadeiramente uma reprodução terrena de uma das estrelas visíveis no céu, conforme Paracelso. A astrologia astronômica esboça uma síntese das ciências que leva a uma astrosofia e uma geosofia. As revelações angélicas lhe fornecerão importante material relacionando os diferentes povos conhecidos, com suas qualidades específicas e suas singularidades, segundo um esquema relativamente próximo da história real das civilizações. O primeiro raio é formado pelo Egito, França no dia 8, Alemanha no dia 10… Diplomacia psicológica, histórica e metafísica para relaxar.

O Romance da Rosa do século XVI:

História de amor. 1578. John Dee tem 51 anos. Seu cabelo e barba ficam brancos e ele parece cada vez mais um Merlin sóbrio. Sua reputação como mágico discreto não é discutida na corte da rainha. Mas a verdadeira magia da vida vem quando a jovem mais bonita da comitiva de Elizabeth I, a atendente de Lady Howard, então Jane Fromont, então com 25 anos, se apaixona perdidamente por ele. Eles se casaram. Ela lhe dará 5 filhos e a ideia certa da verdadeira dimensão do amor de uma mulher em um tempo muito patriarcal e muito puritano/debochado. Jane e John Dee casaram com rosas brancas, rosas e vermelhas, sem esquecer as rosas negras da arte ocidental do amor, tantrismo natural onde o espírito revisita toda a história das divindades femininas, a Rosa da Suméria, do Egito, Babilônia, Grécia, Roma, Gália, País de Gales, Celta, Idade Média e século XVI com a descoberta da Face Feminina da Vida reivindicando seus direitos ao longo da história humana, paridade em um mundo dominado pelo poder masculino.

Pétalas de Rosas. O Romance Escarlate.

Mas ninguém é profeta em seu país e o retorno de Praga a Londres, em 1589, é difícil. Certamente, Jane está com John e a Invencível Armada das frotas espanholas lançadas para conquistar a Inglaterra pereceu em 1588 na Grande Tempestade cuja lenda atribui o milagre ainda no povo à fabricação por John Dee de um pentagrama consagrado aos elementos das águas para proteger a Grã-Bretanha da dominação marítima. Mas, ao mesmo tempo, a mesma fama de mago destruiu pelas chamas a casa de Dee em Mortlake, tendo a vizinhança percebido a presença de espíritos e espectros ao redor antes de queimá-la.

Não houve recepção suntuosa para recebê-los. Seus pedidos de assistência e proteção falharam sucessivamente, e Dee foi intensamente atormentada por problemas financeiros e escândalos. Finalmente, foi a rainha Elizabeth quem o nomeou para o College of Christ, em Manchester, em 1596. Mas os estudantes deram as costas às reformas de John Dee, que lhes deram mais trabalho. Em 1605, eles o forçaram a desistir de seu posto. Ele voltou para Mortlake, viúvo, Jane tendo morrido pouco antes. Seus últimos anos foram filosóficos. Ele morreu em 1608.

A história da descoberta do trabalho “mágico” de John Dee é bastante surpreendente. Sua propriedade foi vendida e passada como herança. Um século depois, um amigo de Elias Ashmole o apresenta à jovem que os possuía. Sir Elias Ashmole já estava fundando o que viria a se tornar a Maçonaria Inglesa quando recebeu os escritos completos e o Sigillum Dei Aemeth de John Dee.

Não conhecemos nenhum comentário particular sobre a chance objetiva que permitiu que ele se tornasse seu possuidor, sem que ninguém interferisse em uma transmissão que faria o “depósito ou o legado enoquiano” passar ao médico legista do século XIX, Dr. Wynn Westcott, que as oferece para leitura a um jovem e brilhante estudante maçônico, que se tornará cunhado do filósofo francês Henri Bergson: Samuel Liddell MacGregor Mathers. Um dos homens por trás da Ordem Hermética da Golden Dawn (Aurora Dourada).

***

Fontes: Sobre John Dee, Lucie Stern, fevereiro de 1995 e.v.

Ilustração: Retrato de John Dee. Século XVI, artista desconhecido. Museu Ashmolean, Oxford, Inglaterra.Consulte a página do autor/domínio público.

Texto adaptado, revisado e enviado por Ícaro Aron Soares.


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