O Alcorão e a Papisa Joana

Olá crianças,

Esta semana continuaremos a história oculta da Igreja Católica, e as origens do Islã, uma das religiões mais bombásticas do planeta, bem como os acontecimentos que dariam início à formação dos Cavaleiros Templários, Hospitalários e Teutônicos. Estamos no ano de 590 DC e São Gregório Magno acaba de ser coroado o 64º papa.
Esta é a quinta parte da série “Queima ele, jesus!”. Para quem não estava acompanhando, recomendo ler as partes anteriores deste texto AQUI, AQUI, AQUI e AQUI.

Enquanto o papa Sabiano I (604-606) organizava o número de vezes que os sinos deveriam ser tocados antes da missa ou se as velas deveriam ou não ser mantidas acesas o tempo todo nas igrejas, o papa Bonifácio III (607) decidia quantos dias seriam necessários esperar entre a morte de um papa e a eleição do próximo, Bonifácio IV (608-615) convertia os templos Vestais de Roma em Templos dedicados à Virgem Maria, Aedodato I (615-618) criava o “timbre papal” para validar documentos, Bonifácio V (619-625) instituía “imunidade de asilo” dentro das igrejas e Honório I (625-638) perseguia ingleses e restaurava igrejas em Roma, Abu al-Qasim Muhammad ibn ‘Abd Allah ibn ‘Abd al-Muttalib ibn Hashim estava ocupado batendo em hereges, destruindo ídolos antigos e convertendo guerreiros no deserto Árabe.

Allah Akhbar!
Para os muçulmanos, Maomé (Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso)(570-632) foi precedido em seu papel de profeta por Jesus, Moisés, Davi, Jacob, Isaac, Ismael e Abraão. Como figura política, ele unificou várias tribos árabes, o que permitiu as conquistas árabes daquilo que viria a ser um império islâmico que se estendeu da Pérsia até à Península Ibérica.
Não é considerado pelos muçulmanos como um ser divino, mas sim, um ser humano; contudo, entre os fiéis, ele é visto como um dos mais perfeitos seres humanos
Nascido em Meca, Maomé (louvado seja, Senhor do Universo) foi durante a primeira parte da sua vida um mercador que realizou extensas viagens no contexto do seu trabalho. Tinha por hábito retirar-se para orar e meditar nos montes perto de Meca. Os muçulmanos acreditam que em 610, quando Maomé (Clemente, o misericordioso) tinha quarenta anos, enquanto realizava um desses retiros espirituais numa das cavernas do Monte Hira, foi visitado pelo anjo Gabriel que lhe ordenou que recitasse uns versos enviados por Deus. Estes versos seriam mais tarde recolhidos e integrados no Alcorão. Gabriel comunicou-lhe que Deus tinha-o escolhido como último profeta enviado à humanidade.
Maomé (soberano do dia do Juízo) não rejeitou completamente o judaísmo e o cristianismo, duas religiões monoteístas já conhecidas pelos árabes. Em vez disso, informou que tinha sido enviado por Deus para restaurar os ensinamentos originais destas religiões, que tinham sido corrompidos e esquecidos.

Na opinião dos ocultistas, Maomé (Só a Ti adoramos e só de Ti imploramos ajuda) provavelmente conseguiu entrar em contato com o seu Sagrado Anjo Guardião durante suas meditações, escrevendo os versos do Alcorão da mesma maneira que, 1.300 anos mais tarde, Aiwass teria ditado o Livro da Lei a Aleister Crowley.

Claro que, para variar, os habitantes de Meca rejeitaram a sua mensagem e começaram a perseguí-lo, bem como aos seus seguidores (mas nós já vimos este filme antes, certo?).
Meca era nesta altura uma cidade-estado no deserto, onde se encontrava um santuário conhecido por Caaba (“Cubo”) administrado pelos Coraixitas. A Caaba era venerada por todos os árabes, sendo alvo de uma peregrinação anual. Nela se encontrava a Pedra Negra (o nome dela é Al-Hajarul Aswad para quem quiser procurar no google… é uma pedra negra com cerca de 50cm de diâmetro que segundo as lendas “foi enviada por Deus dos céus”) e uma série de ídolos, representações de deusas e de deuses, dos quais se destacava o deus nabateu Hubal. Alguns habitantes de Meca distanciavam-se quer dos cultos pagãos, quer do monoteísmo dos judeus e dos cristãos, declarando-se hunafá, isto é, crentes no Deus único de Abraão, que acreditavam ter sido o fundador da Caaba. Apesar de a cidade não possuir recursos naturais, ela funcionava como um centro comercial e religioso, visitado por muitos comerciantes e peregrinos.

Em 622 Maomé (Guia-nos à senda reta) foi obrigado a abandonar Meca, numa migração conhecida como a Hégira (Hijra), tendo se mudado para Yathrib (atual Medina). Nesta cidade, Maomé (À senda dos que agraciaste, não à dos abominados, nem à dos extraviados) tornou-se o chefe da primeira comunidade muçulmana. O seu tio Zubair fundou a ordem de cavalaria conhecida como a Hilf al-fudul, que assistia os oprimidos, habitantes locais e visitantes estrangeiros. O profeta foi um membro entusiasta; ajudou na resolução de disputas, e tornou-se conhecido como Al-Ameen (“o confiável”) devido à sua reputação sem mácula nestas intermediações.

Seguiram-se uns anos de batalhas entre os habitantes de Meca e Medina, que terminaram com a vitória do profeta e seus seguidores. A organização militar criada durante estas batalhas foi usada para derrotar as tribos da Arábia e estabelecer uma unidade cultural.
Após a Hégira, o profeta começou a estabelecer alianças com tribos nômades. À medida que a sua força e influência cresceu, insistiu que as tribos potencialmente aliadas se tornassem muçulmanas. Casou suas filhas com líderes de outras tribos e ele mesmo casou-se com filhas de líderes influentes.
Alguns viram agora Maomé como o homem mais poderoso da Arábia e a maioria das tribos enviou delegações para Medina, em busca de uma aliança. Antes da sua morte, rebeliões ocorreram em uma ou duas partes da Arábia mas o estado islâmico tinha força suficiente para lidar com elas.
Um ano antes da sua morte, o profeta dirigiu-se pela última vez aos seus seguidores naquilo que ficou conhecido como o sermão final. A sua morte em Junho de 632 em Medina, com a idade de 63 anos, deu origem a uma grande crise entre os seus seguidores. Na verdade, esta disputa acabaria por originar a divisão do islão nos ramos dos sunitas e xiitas. Os xiitas acreditam que o profeta designou Ali ibn Abu Talib como seu sucessor, num sermão público na sua última Hajj, num lugar chamado Ghadir Khom, enquanto que os sunitas discordam.

Matem o Infiel !!!
30 anos após a morte do profeta, a comunidade islâmica mergulhou numa guerra civil que deu origem a três grupos. Uma causa próxima desta guerra civil foi que os muçulmanos do Iraque e do Egito estavam muito putos da vida com os desmandos de poder do terceiro califa e dos seus governadores; outra causa foi a de rivalidades comerciais entre facções da aristocracia mercantil.
Após o assassinato do califa, a guerra eclodiu entre grupos diferentes, todos eles lutando pelo poder. A disputa sangrenta só foi terminar com a instauração de uma nova dinastia de califas que governavam desde Damasco (e esta dinastia vai continuar até as cruzadas)

Um dos grupos que surgiram desta disputa foi o dos sunitas. Eles tomam-se como os seguidores da sunna (“práctica”) do profeta tal como relatada pelos seus companheiros (a sahaba). Os Sunitas também acreditam que a comunidade islâmica (ummah) se manterá unida. Eles desejavam reconhecer a autoridade dos califas, que mantinham o governo pela lei e persuasão. Os sunitas tornaram-se o maior grupo do Islã (cerca de 84% do total).
Dois outros grupos menores surgiram também deste cisma: Os xiitas e os kharijitas, também conhecidos por “dissidentes”. Os xiitas acreditavam que a única liderança legítima era a que vinha da linhagem do primo e genro do profeta, Ali. Os xiitas acreditavam que o resto da comunidade cometera um erro grave ao eleger Abu Bakr e seus dois sucessores como líderes. Já os kharijitas inicialmente apoiaram a posição dos xiitas de que Ali era o único sucessor legítimo do profeta, e ficaram decepcionados quando Ali não declarou a guerra no momento em que Abu Bakr tomou a posição de califa, crendo que isto era uma traição ao seu legado por Deus. Ali foi mais tarde assassinado pelos kharijitas com uma espada envenenada.
Os Kharijitas consideravam que qualquer homem, até mesmo um escravo, poderia ser eleito califa, desde que reunisse um elevado carácter moral e religioso, e que era legítimo contestar um poder considerado injusto. Como os critérios de “justo” ou “injusto” são um tanto quanto subjetivos, podemos perceber uma certa tendência para a carnificina aparecendo nesta facção.
Tanto foi que em menos de 30 anos os Kharijitas se dividiram em quatro facções: os Azraquitas, os najadat, os sufris e os ibaditas.
A facção mais radical de todas eram os Azraquitas: consideravam como pecadores todos os outros grupos de muçulmanos e advogavam a luta contra o poder instituído, praticando atos de verdadeiro terrorismo político.
Distinguiam-se por duas práticas peculiares: a primeira era uma prova de sinceridade do recém-convertido ao movimento na qual se exigia que este decapitasse um prisioneiro adversário (imtihân) e a segunda constituía o assassinato religioso, que autorizava matar homens, mulheres e crianças fora do grupo (isti’râd). Entendiam que o território no qual viviam os outros muçulmanos era um território de infiéis (dar kufr), onde era permitido pilhar e matar.

O Alcorão
Entre 650 e 656, durante o califado de Otman, o Alcorão (livro cujo nome significa “a recitação”) se estruturou de uma forma mais oficial. Otman nomeou uma comissão para decidir o que deveria ser incluído ou excluído do texto final do Alcorão. Foi então constituído um “livro-referência” a partir do qual se criaram cópias que foram enviadas para Meca, Iémen, Bahrein, Bassora e Kufra. Somente mil anos mais tarde, em 1694, uma versão completa do Alcorão seria publicada no Ocidente, na cidade de Hamburgo, por Abraham Hinckelmann, um estudioso rosacruz não-muçulmano.

De 632 a 661, os muçulmanos dominaram toda a península Árabe, a Pérsia (chegando até Damasco) e partes do Egito (chegando até Trípoli). Por volta de 732, ou seja, um século após a morte de Maomé, os muçulmanos expandiram seus domínios até a Espanha.

Enquanto Isso, no Vaticano…
Severino I foi eleito em 640 e seu governo durou dois meses: como primeiro ato, desafiou o Imperador de Constantinopla criticando a Igreja Ortodoxa. Como castigo, o Imperador invadiu Roma, saqueou a cidade e matou o papa. João IV (640-642) também criticou o monotelismo e a Enciclopédia Católica diz que ele “aceitou e repatriou vários dissidentes da Igreja Copta”. Comparando os gráficos, vemos que, na realidade, estes refugiados não estavam deixando a Igreja Copta e se tornando católicos, mas sim fugindo do Egito para não terem suas cabeças cortadas pelos muçulmanos Kharijitas…
Teodoro I (642-649) conseguiu durar 7 anos criticando a heresia monofisista, até que foi envenenado por agentes do Imperador. Martinho I (649-655) convocou um concílio em Latrão para terminar de uma vez por todas com estas desavenças e acabou sendo preso e exilado para a ilha de Naxos pelo Imperador, onde acabou morrendo devido aos maus-tratos. Eugênio I (654-657) teve mais sorte. Em 655 os ataques incessantes dos muçulmanos estavam dando tanta dor de cabeça ao Imperador Constante II que ele mal tinha tempo para se preocupar com os católicos. O papa Vitaliano (657-672), vendo que os muçulmanos estavam dominando toda a Pérsia e avançando pela Espanha, tomou uma importante decisão: foi o primeiro papa a autorizar o uso de som de órgãos durante a missa.
Adeodato II, percebendo que os muçulmanos haviam tomado diversas cidades no sul da Espanha e estavam fortificando cada vez mais suas posições na Turquia, tomou uma decisão importantíssima: Foi o primeiro papa a datar os seus atos com os anos do seu pontificado e a usar nas leituras a fórmula “Salute ed apostolica benedizione“. O papa Dono (676-678) preocupou-se em resolver uma disputa entre bispos de Ravena, Agato I (678-681) preocupou-se com a Irlanda e com a Inglaterra; Leão II viajou até Constantinopla para o III Concílio de Constantinopla, para dar fim ao monotelismo, mas a seqüência de disputas filosóficas sobre a natureza divina de Jesus prosseguiu pelos governos de Bento II (684-685), João V (685-686), Conon (686-687), Sérgio I (687-701) e João VI (701-705), quando finalmente os turcos otomanos cortadores de cabeças vieram bater às portas de Roma, após terem causado por toda a Espanha durante quase 50 anos sem que o Vaticano tivesse mexido um único dado a respeito.

A expansão Omíada
Muawiya era um homem poderoso, governava a Síria, tinha o seu próprio exército e era o chefe da Casa Omíada. Com o passar do tempo, ele foi cada vez mais liderando os sentimentos de insatisfação que dominavam Medina. A autoridade de Ali foi enfraquecendo e ele acabou assassinado em 661, numa conspiração armada pelos Kharijitas (cortem-lhe a cabeça!!!). Ali foi o último dos califas a representar o verdadeiro conceito islâmico de governante, ou seja, aquele que combina as funções de chefe de estado com as de líder espiritual.

Muawiya proclamou-se califa, inaugurando a dinastia omíada, com capital em Damasco, que governou o mundo muçulmano por 90 anos, de 661 até 750. Ainda que Muawiya não possuísse as qualidades de um chefe religioso, ele foi um administrador eficiente e mesmo seus críticos são unânimes em afirmar que ele foi um grande estadista. Durante seu governo ele passou por cima de todas as cidades do Sul da espanha. Seguindo em direção à Ásia, os muçulmanos completaram a conquista de Corassã e chegaram ao território que hoje corresponde ao Afeganistão, ocupando Cabul. Muawiya construiu uma linha de fortalezas ao longo da fronteira, o que ajudava a manter os bizantinos afastados. Herdeiro dos estaleiros bizantinos da Síria, ele criou a primeira marinha do califado, e com ela chegou a atacar Constantinopla.

A Reconstrução de Roma
João VI e Sísino enfrentaram, com o auxílio das tropas de Ravena, os sarracenos que tentaram invadir Roma. Sísino passou a maior parte dos seus 3 meses de papado reconstruindo as muralhas destruídas de Roma. Constantino passou seu papado (608-615) pregando na Alemanha (curiosamente bem longe dos sarracenos), trabalho de fuga de evangelização, que foi continuado por Gregório II, que permaneceu fugindo pregando na Germânia de 715 a 731 (embora tenha mandado erguer e renovar as muralhas de Roma, por medo dos muçulmanos). Gregório II também foi o primeiro papa a enfrentar os iconoclastas.

Vamos quebrar tudo!!!
Iconoclastia (do grego eikon [ícone], klastein [quebrar]) é a doutrina que se opõe ao culto de ícones religiosos e outras obras, geralmente por motivos políticos ou religiosos. No cristianismo, a iconoclastia é geralmente motivada pela interpretação literal dos dez mandamentos, que proíbem os fiéis de adorar imagens. As pessoas envolvidas em tais práticas são conhecidas como iconoclastas, um termo que passou a ser aplicado a qualquer um que quebra dogmas ou convenções estabelecidas ou as desdenha.
As escolas iconoclastas enfatizam a compreensão e a transformação interior. São exemplos delas: o sufismo na religião islãmica, hassidismo e a cabala no judaísmo, advaita ventana no hinduísmo e o zen e o dzogchen no budismo. Esses movimentos nunca se expandiram bastante por serem considerados suspeitos pelas hierarquias religiosas estabelecidas.
O primeiro ciclo do Iconoclasmo foi constituído nas culturas judaico-cristã e islâmica e na tradição filosófica grega. O segundo durante o Império Bizantino (século VIII e IX), quando a produção, disseminação e o culto das imagens foram proibidos. A doutrina dilacerou o lado do antigo Império Romano durante mais de um século e provocou uma sangrenta guerra civil, que só terminaria em 843, com a restauração do culto aos ícones na catedral de Santa Sofia, em Constantinopla.

Gregório III (731-741) seguiu firme na batalha contra os iconoclastas e também teve uma idéia brilhante: pedir o chamado “Óbolo de São Pedro”, que eram doações de reis e governantes para a manutenção do Vaticano, uma das fontes de renda da cidade até os dias de hoje. Zacarias (741-752) foi o primeiro papa a investir e aprovar uma coroação (no caso, Pepino, o breve, rei dos Francos, em troca de fartos óbolos para a ICAR). Zacarias também enfrentou uma situação inusitada: os mercadores de Veneza estavam traficando escravos cristãos para os muçulmanos.
Os próximos sete papas (Estevão III, Paulo I, Estevão IV, Adriano I, Leão III, Estevão V e Pascoal I) passaram seu tempo bajulando ora os lombardos, ora os francos, ora os bizantinos, ora os carolígenos, dependendo de quem tinha o maior exército e desse os melhores óbolos na época. O Vaticano praticamente se prostituiu diante dos reis e imperadores europeus, alternando seu apoio para quem lhe pagasse mais.
O centésimo papa, Eugênio I (824-827), organizou a Cúria Romana e preparou novamente o conjunto de leis que regiam a escolha dos papas e as transições do bispado.

Enquanto isso, no reino dos sarracenos, Al-Khawarizmi desenvolvia a Álgebra e a Geometria entre as Escolas de Estudos Árabes, difundindo os algarismos que mais tarde ficaram conhecidos como “indo-arábicos”. Com as conquistas muçulmanas, os sábios árabes tiveram contato com as Escolas Iniciáticas Egípcias e absorveram muito do conhecimento de matemática, geometria, astronomia, astrologia, espiritualismo, kabbalah, música e alquimia (Al Kimia significa “do país dos negros”) que os antigos gregos também detinham. Hoje em dia a maior parte destes ensinamentos ainda existe, dentro da filosofia chamada Sufismo (uma corrente iniciática muçulmana que existe até os dias de hoje).

A Papisa Joana
Os muçulmanos foram avançando pelo território até que conseguiram invadir e saquear Roma em 846, no papado de Sérgio II. O papa Leão IV passou boa parte de seu governo (847-854) reconstruindo os muros da cidade. Quando faleceu, elegeram por unanimidade o papa João VIII… ou melhor, a papisa Joana.
A história da papisa Joana é bem controversa. Os católicos vão negar até o último fio de cabelo que ela tenha existido, embora haja um decreto no século IX proibindo explicitamente a sua colocação na lista de papas, a falta de um “João” na lista de papas e a existência da famosa “cadeira papal” que durou do século IX ao XVI não teria razão de existência se não fosse necessário comprovar o sexo do papa por algum motivo.
Na época, o escândalo de ter uma mulher infiltrada na Igreja que tivesse chegado à condição de papa teria sido abafado de todas as maneiras possíveis, tendo esta indiscrição perdurado até quase o século XI, quando o respeitável historiador Murdoch MacGroarty (1028-1082) estava compilando a lista de papas conhecida como “Chronicles of the Popes” e chegou a 20 papas de nome João. A lista de papas de Murdoch foi aprovada por Victor III, Urbano II, Pascoal II e Alberic de Montecassino e menciona a existência de uma papisa Joana.
Quando refizeram as contas, eliminando a papisa Joana quase 200 anos depois, o papa João XXI se recusou a mudar seu título e acabou ficando uma brecha entre os papas João VIII e João XIX. É ela quem aparece na imagem do Tarot de Marselha ocupando o arcano II, que se chama “Papisa” ao invés do tradicional “Sacerdotisa”.
A história mais confiável conta que Joana nasceu na Inglaterra, filha bastarda de um padre que, para ocultar o caso, precisou fugir para a Alemanha, onde a criou como um coroinha. Quando chegou a adolescência, Joana já sabia falar três línguas e possuía uma inteligência fora do comum. Foi enviada para estudar nas melhores escolas, sempre assumindo uma identidade masculina, pois não era permitida a presença de mulheres nos monastérios. Ela possuía um amante, também padre, que a acompanhou à Inglaterra, França e Grécia. Porém, conforme ficavam mais velhos, tiveram de mudar-se para Roma pois em todos os outros monastérios era comum os homens cultivarem barbas e a presença de Joana estava ficando difícil de ser explicada.
Joana conseguiu ser nomeada cardeal, quando teria ficado conhecida como João, o Inglês. Segundo as fontes católicas, no dia 17 de julho de 855, Leão IV faleceu.
João, em virtude de sua notável inteligência, foi eleito Papa por unanimidade. Apesar de ter sido fácil ocultar sua gravidez, devido às vestes folgadas dos Papas, terminou por sentir as dores do parto em meio a uma procissão numa rua estreita, entre o Coliseu de Roma e a Igreja de São Clemente, e deu à luz perante a multidão.
As versões também divergem sobre este ponto, mas todas coincidem em que a multidão reagiu com indignação por considerar que o trono de São Pedro havia sido profanado. Ela teria sido amarrada num cavalo e apedrejada até a morte.
O clero de Roma, ferido na sua dignidade e cheio de vergonha por aquele acontecimento singular, publicou um decreto proibindo aos pontífices atravessarem a praça pública onde tivera lugar o escândalo. Por isso, depois dessa época, no dia das Rogações, a procissão, que devia partir da basílica de São Pedro para se dirigir a Igreja de São João de Latrão, evitava aquele lugar abominável situado no meio do seu caminho, e fazia um longo roteiro.
Os ultramontanos, confundidos pelos documentos autênticos da história e não podendo negar a existência da papisa Joana, consideraram toda a duração do seu pontificado como uma vacância da santa sede e fazem suceder a Leão IV o papa Bento III, sob o pretexto de que uma mulher não pode desempenhar as funções sacerdotais, administrar os sacramentos e também conferir ordens sagradas. Mais de trinta autores eclesiásticos alegam este motivo para não incluirem Joana no número dos papas; mas um fato essencialmente notável vem dar um desmentido formal à sua opinião.

A Cadeira Furada
Para impedir que um semelhante escândalo pudesse renovar-se, imaginou para a entronização dos papas um uso singular e apropriado à circunstância, o qual leve o nome de “a prova da cadeira furada”.
O sucessor de Joana foi o primeiro a se submeter a essa prova, que passou a ser realizada na eleição do pontífice, no momento em que era conduzido ao palácio de Latrão para ser consagrado solenemente. Em primeiro lugar, o papa sentava em uma cadeira de mármore branco colocada no pórtico da igreja, entre as duas portas de honra; essa cadeira não era furada, e deram lhe esse nome porque o santo padre, ao levantar se dela entoava o seguinte versículo do salmo cento e treze: “Deus eleva do pó o humilde para o fazer assentar acima dos príncipes!”
Em seguida, os grandes dignitários da igreja davam a mão ao papa e conduziam-no á capela de São Silvestre, onde se achava uma outra cadeira de pórfiro, furada no centro, na qual faziam assentar o pontífice.
Antes da consagração, os bispos e os cardeais faziam colocar o papa sobre essa segunda cadeira, meio estendido, com as pernas separadas, e permanecia exposto nessa posição, com os hábitos pontífices entreabertos, para mostrar aos assistentes as provas da sua virilidade. Finalmente, aproximavam-se dele dois diáconos, asseguravam-se pelo tato de que os olhos não eram iludidos por aparências enganadoras e davam disso testemunho aos assistentes gritando com voz alla: “Temos um papa!”.
Este funcionário é chamado de Carmelengo e esta função era uma das mais importantes na aprovação do novo papa. Daqui originou-se o termo “Puxa-saco”.
Essa cerimônia das cadeiras furadas é mencionada na consagração de Honório III, em 1061; na de Pascoal II, em 1099; na de Urbano VI, eleito no ano de 1378. Alexandre VI, reconhecido publicamente em Roma como pai dos cinco filhos de Rosa Vanozza, sua amante, foi submetido à mesma prova. Finalmente, ela subsistiu até o décimo sexto século, e Cressus, mestre de cerimônias de Leão X, refere no jornal de Paris todas as formalidades da prova das cadeiras furadas a que o pontífice foi submetido.
Leão X foi o último papa a ter de passar pela cerimônia de Puxação de saco.

Na semana que vem:

A Reconquista, os Princípios da Cavalaria Templária
E Marosia: gente que faz!

#ICAR

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/o-alcor%C3%A3o-e-a-papisa-joana

O Sufismo

Escrito por Robert Graves, para o livro “Os Sufis”, de Idries Shah

Os sufis são uma antiga maçonaria espiritual cujas origens nunca foram traçadas nem datadas; nem eles mesmos se interessam muito por esse tipo de pesquisa, contentando-se em mostrar a ocorrência da sua maneira de pensar em diferentes regiões e períodos. Conquanto sejam, de ordinário, erroneamente tomados por uma seita muçulmana, os sufis sentem-se à vontade em todas as religiões: exatamente como os “pedreiros-livres e aceitos”, abrem diante de si, em sua loja, qualquer livro sagrado – seja a Bíblia, seja o Corão, seja a Torá – aceito pelo Estado temporal. Se chamam ao islamismo a “casca” do sufismo, é porque o sufismo, para eles, constitui o ensino secreto dentro de todas as religiões. Não obstante, segundo Ali el-Hujwiri, escritor sufista primitivo e autorizado, o próprio profeta Maomé disse: “Aquele que ouve a voz do povo sufista e não diz aamin (amém) é lembrado na presença de Deus como um dos insensatos”. Numerosas outras tradições o associam aos sufis, e foi em estilo sufista que ele ordenou a seus seguidores que respeitassem todos os “Povos do Livro”, referindo-se dessa maneira aos povos que respeitavam as próprias escrituras sagradas – expressão usada mais tarde para incluir os zoroastrianos.

Tampouco são os sufis uma seita, visto que não acatam nenhum dogma religioso, por mais insignificante que seja, nem se utilizam de nenhum local regular de culto. Não têm nenhuma cidade sagrada, nenhuma organização monástica, nenhum instrumento religioso. Não gostam sequer que lhes atribuam alguma designação genérica que possa constrangê-los à conformidade doutrinária. “Sufi” não passa de um apelido, como “quacre”, que eles aceitam com bom humor. Referem-se a si mesmos como “nós amigos” ou “gente como nós”, e reconhecem-se uns aos outros por certos talentos, hábitos ou qualidades de pensamento naturais. As escolas sufistas reuniram-se, com efeito, à volta de professores particulares, mas não há graduação, e elas existem apenas para a conveniência dos que trabalham com a intenção de aprimorar os estudos pela estreita associação com outros sufis. A assinatura sufista característica encontra-se numa literatura amplamente dispersa desde, pelo menos, o segundo milênio antes de Cristo, e se bem o impacto óbvio dos sufis sobre a civilização tenha ocorrido entre o oitavo e o décimo oitavo séculos, eles continuam ativos como sempre. O seu número chega a uns cinqüenta milhões. O que os torna um objeto tão difícil de discussão é que o seu reconhecimento mútuo não pode ser explicado em termos morais ou psicológicos comuns – quem quer que o compreenda é um sufi. Posto que se possa aguçar a percepção dessa qualidade secreta ou desse instinto pelo íntimo contato com sufis experientes, não existem graus hierárquicos entre eles, mas apenas o reconhecimento geral, tácito, da maior ou menor capacidade de um colega.

O sufismo adquiriu um sabor oriental por ter sido por tanto tempo protegido pelo islamismo, mas o sufi natural pode ser tão comum no Ocidente como no Oriente, e apresentar-se vestido de general, camponês, comerciante, advogado, mestre-escola, dona-de-casa, ou qualquer outra coisa. “Estar no mundo mas não ser dele”, livre da ambição, da cobiça, do orgulho intelectual, da cega obediência ao costume ou do respeitoso temor às pessoas de posição mais elevada – tal é o ideal do sufi.

Os sufis respeitam os rituais da religião na medida em que estes concorrem para a harmonia social, mas ampliam a base doutrinária da religião onde quer que seja possível e definem-lhe os mitos num sentido mais elevado – por exemplo, explicando os anjos como representações das faculdades superiores do homem. Oferecem ao devoto um “jardim secreto” para o cultivo da sua compreensão, mas nunca exigem dele que se torne monge, monja ou eremita, como acontece com os místicos mais convencionais; e mais tarde, afirmam-se iluminados pela experiência real – “quem prova, sabe” – e não pela discussão filosófica. A mais antiga teoria de evolução consciente que se conhece é de origem sufista, mas embora muito citada por darwinianos na grande controvérsia do século XIX, aplica-se mais ao indivíduo do que à raça. O lento progresso da criança até alcançar a virilidade ou a feminilidade figura apenas como fase do desenvolvimento de poderes mais espetaculares, cuja força dinâmica é o amor, e não o ascetismo nem o intelecto.

A iluminação chega com o amor – o amor no sentido poético da perfeita devoção a uma musa que, sejam quais forem as crueldades aparentes que possa cometer, ou por mais aparentemente irracional que seja o seu comportamento, sabe o que está fazendo. Raramente recompensa o poeta com sinais expressos do seu favor, mas confirma-lhe a devoção pelo seu efeito revivificante sobre ele. Assim, Ibn El-Arabi (1165-1240), um árabe espanhol de Múrcia, que os sufis denominam o seu poeta maior, escreveu no Tarju-man el-Ashwaq (o intérprete dos desejos):

“Se me inclino diante dela como é do meu dever E se ela nunca retribui a minha saudação Terei, acaso, um justo motivo de queixa? A mulher formosa a nada é obrigada”
Esse tema de amor foi, posteriormente, usado num culto extático da Virgem Maria, a qual, até o tempo das Cruzadas, ocupara uma posição sem importância na religião cristã. A maior veneração que ela recebe hoje vem precisamente das regiões da Europa que caíram de maneira mais acentuada sob a influência sufista.

Diz de si mesmo, Ibn El-Arabi:

“Sigo a religião do Amor.
Ora, às vezes, me chamam
Pastor de gazelas [divina sabedoria]Ora monge cristão,
Ora sábio persa.
Minha amada são três –
Três, e no entanto, apenas uma;
Muitas coisas, que parecem três,
Não são mais do que uma.
Não lhe dêem nome algum,
Como se tentassem limitar alguém
A cuja vista
Toda limitação se confunde”

Os poetas foram os principais divulgadores do pensamento sufista, ganharam a mesma reverência concedida aos ollamhs, ou poetas maiores, da primitiva Irlanda medieval, e usavam uma linguagem secreta semelhante, metafórica, constituída de criptogramas verbais. Escreve Nizami, o sufi persa: “Sob a linguagem do poeta jaz a chave do tesouro”. Essa linguagem era ao mesmo tempo uma proteção contra a vulgarização ou a institucionalização de um hábito de pensar apropriado apenas aos que o compreendiam, e contra acusações de heresia ou desobediência civil. Ibn El-Arabi, chamado às barras de um tribunal islâmico de inquisição em Alepo, para defender-se da acusação de não-conformismo, alegou que os seus poemas eram metafóricos, e sua mensagem básica consistia no aprimoramento do homem através do amor a Deus. Como precedente, indicava a incorporação, nas Escrituras judaicas, do Cântico erótico de Salomão, oficialmente interpretado pelos sábios fariseus como metáfora do amor de Deus a Israel, e pelas autoridades católicas como metáfora do amor de Deus à Igreja.

Em sua forma mais avançada, a linguagem secreta emprega raízes consonantais semíticas para ocultar e revelar certos significados; e os estudiosos ocidentais parecem não ter se dado conta de que até o conteúdo do popular “As mil e uma noites” é sufista, e que o seu título árabe, Alf layla wa layla, é uma frase codificada que lhe indica o conteúdo e a intenção principais: “Mãe de Lembranças”. Todavia, o que parece, à primeira vista, o ocultismo oriental é um antigo e familiar hábito de pensamento ocidental. A maioria dos escolares ingleses e franceses começam as lições de história com uma ilustração de seus antepassados druídicos arrancando o visco de um carvalho sagrado. Embora César tenha creditado aos druidas mistérios ancestrais e uma linguagem secreta – o arrancamento do visco parece uma cerimônia tão simples, já que o visco é também usado nas decorações de Natal -, que poucos leitores se detêm para pensar no que significa tudo aquilo. O ponto de vista atual, de que os druidas estavam, virtualmente, emasculando o carvalho, não tem sentido.

Ora, todas as outras árvores, plantas e ervas sagradas têm propriedades peculiares. A madeira do amieiro é impermeável à água, e suas folhas fornecem um corante vermelho; a bétula é o hospedeiro de cogumelos alucinógenos; o carvalho e o freixo atraem o relâmpago para um fogo sagrado; a raiz da mandrágora é antiespasmódica. A dedaleira fornece digitalina, que acelera os batimentos cardíacos; as papoulas são opiatos; a hera tem folhas tóxicas, e suas flores fornecem às abelhas o derradeiro mel do ano. Mas os frutos do visco, amplamente conhecidos pela sabedoria popular como “panacéia”, não têm propriedades medicinais, conquanto sejam vorazmente comidos pelos pombos selvagens e outros pássaros não-migrantes no inverno. As folhas são igualmente destituídas de valor; e a madeira, se bem que resistente, é pouco utilizada. Por que, então, o visco foi escolhido como a mais sagrada e curativa das plantas? A única resposta talvez seja a de que os druidas o usavam como emblema do seu modo peculiar de pensamento. Essa árvore não é uma árvore, mas se agarra igualmente a um carvalho, a uma macieira, a uma faia e até a um pinheiro, enverdece, alimenta-se dos ramos mais altos quando o resto da floresta parece adormecido, e a seu fruto se atribui o poder de curar todos os males espirituais. Amarrados à verga de uma porta, os ramos do visco são um convite a beijos súbitos e surpreendentes. O simbolismo será exato se pudermos equiparar o pensamento druídico ao pensamento sufista, que não é plantado como árvore, como se plantam as religiões, mas se auto-enxerta numa árvore já existente; permanece verde, embora a própria árvore esteja adormecida, tal como as religiões são mortas pelo formalismo; e a principal força motora do seu crescimento é o amor, não a paixão animal comum nem a afeição doméstica, mas um súbito e surpreendente reconhecimento do amor, tão raro e tão alto que do coração parecem brotar asas. Por estranho que pareça, a Sarça Ardente em que Deus apareceu a Moisés no deserto, supõem agora os estudiosos da Bíblia, era uma acácia glorificada pelas folhas vermelhas de um locanthus, o equivalente oriental do visco.

Talvez seja mais importante o fato de que toda a arte e a arquitetura islâmicas mais nobres são sufistas, e que a cura, sobretudo dos distúrbios psicossomáticos, é diariamente praticada pelos sufis hoje em dia como um dever natural de amor, conquanto só o façam depois de haverem estudado, pelo menos, doze anos. Os ollamhs, também curadores, estudavam doze anos em suas escolas das florestas. O médico sufista não pode aceitar nenhum pagamento mais valioso do que um punhado de cevada, nem impor sua própria vontade ao paciente, como faz a maioria dos psiquiatras modernos; mas, tendo-o submetido a uma hipnose profunda, ele o induz a diagnosticar o próprio mal e prescrever o tratamento. Em seguida, recomenda o que se há de fazer para impedir uma recorrência dos sintomas, visto que o pedido de cura há de provir diretamente do paciente e não da família nem dos que lhe querem bem.

Depois de conquistadas pelos sarracenos, a partir do século VIII d.C, a Espanha e a Sicília tornaram-se centros de civilização muçulmana renomados pela austeridade religiosa. Os letrados do norte, que acudiram a eles com a intenção de comprar obras árabes a fim de traduzi-las para o latim, não se interessavam, contudo, pela doutrina islâmica ortodoxa, mas apenas pela literatura sufista e por tratados científicos ocasionais. A origem dos cantos dos trovadores – a palavra não se relaciona com trobar, (encontrar), mas representa a raiz árabe TRB, que significa “tocador de alaúde” – é agora autorizadamente considerada sarracena. Apesar disso, o professor Guillaume assinala em “O legado do Islã” que a poesia, os romances, a música e a dança, todos especialidades sufistas, não eram mais bem recebidas pelas autoridades ortodoxas do Islã do que pelos bispos cristãos. Árabes, na verdade, embora fossem um veículo não só da religião muçulmana mas também do pensamento sufista, permaneceram independentes de ambos.

Em 1229 a ilha de Maiorca foi capturada pelo rei Jaime de Aragão aos sarracenos, que a haviam dominado por cinco séculos. Depois disso, ele escolheu por emblema um morcego, que ainda encima as armas de Palma, a nossa capital. Esse morcego emblemático me deixou perplexo por muito tempo, e a tradição local de que representa “vigilância” não me pareceu uma explicação suficiente, porque o morcego, no uso cristão, é uma criatura aziaga, associada à bruxaria. Lembrei-me, porém, de que Jaime I tomou Palma de assalto com a ajuda dos Templários e de dois ou três nobres mouros dissidentes, que viviam alhures na ilha; de que os Templários haviam educado Jaime em le bon saber, ou sabedoria; e de que, durante as Cruzadas, os Templários foram acusados de colaboração com os sufis sarracenos. Ocorreu-me, portanto, que “morcego” poderia ter outro significado em árabe, e ser um lembrete para os aliados mouros locais de Jaime, presumivelmente sufis, de que o rei lhes estudara as doutrinas.

Escrevi para Idries Shah Sayed, que me respondeu:
“A palavra árabe que designa o morcego é KHuFFaasH, proveniente da raiz KH-F-SH. Uma segunda acepção dessa raiz é derrubar, arruinar, calcar aos pés, provavelmente porque os morcegos freqüentam prédios em ruínas. O emblema de Jaime, desse modo, era um simples rébus que o proclamava “o Conquistador”, pois ele, na Espanha, era conhecido como “El rey Jaime, Rei Conquistador”. Mas essa não é a história toda. Na literatura sufista, sobretudo na poesia de amor de Ibn El-Arabi, de Múrcia, disseminada por toda a Espanha, “ruína” significa a mente arruinada pelo pensamento impenitente, que aguarda reedificação.
O outro único significado dessa raiz é “olhos fracos, que só enxergam à noite”. Isso pode significar muito mais do que ser cego como um morcego. Os sufis referem-se aos impenitentes dizendo-os cegos à verdadeira realidade; mas também a si mesmos dizendo-se cegos às coisas importantes para os impenitentes. Como o morcego, o sufi está cego para as “coisas do dia” – a luta familiar pela vida, que o homem comum considera importantíssima – e vela enquanto os outros dormem. Em outras palavras, ele mantém desperta a atenção espiritual, adormecida em outros. Que “a humanidade dorme num pesadelo de não-realização” é um lugar-comum da literatura sufista. Por conseguinte, a sua tradição de vigilância, corrente em Palma, como significado de morcego, não deve ser desprezada.”
A absorção no tema do amor conduz ao êxtase, sabem-no todos os sufis. Mas enquanto os místicos cristãos consideram o êxtase como a união com Deus e, portanto, o ponto culminante da consecução religiosa, os sufis, só lhe admitem o valor se ao devoto for facultado, depois do êxtase, voltar ao mundo e viver de forma que se harmonize com sua experiência.

Os sufis insistiram sempre na praticabilidade do seu ponto de vista. A metafísica, para eles, é inútil sem as ilustrações práticas do comportamento humano prudente, fornecidas pelas lendas e fábulas populares. Os cristãos se contentame em usar Jesus como o exemplar perfeito e final do comportamento humano. Os sufis, contudo, ao mesmo tempo que o reconhecem como profeta divinamente inspirado, citam o texto do quarto Evangelho: “Eu disse: Não está escrito na vossa Lei que sois deuses?” – o que significa que juizes e profetas estão autorizados a interpretar a lei de Deus – e sustenta que essa quase divindade deveria bastar a qualquer homem ou mulher, pois não há deus senão Deus. Da mesma forma, eles recusaram o lamaísmo do Tibete e as teorias indianas da divina encarnação; e posto que acusados pelos muçulmanos ortodoxos de terem sofrido a influência do cristianismo, aceitam o Natal apenas como parábola dos poderes latentes no homem, capazes de apartá-lo dos seus irmãos não-iluminados. De idêntica maneira, consideram metafóricas as tradições sobrenaturais do Corão, nas quais só acreditam literalmente os não-iluminados. O Paraíso, por exemplo, não foi, dizem eles, experimentado por nenhum homem vivo; suas huris (criaturas de luz) não oferecem analogia com nenhum ser humano e não se deviam imputar-lhes atributos físicos, como acontece na fábula vulgar.

Abundam exemplos, em toda a literatura européia, da dívida para com os sufis. A lenda de Guilherme Tell já se encontrava em “A conferência dos pássaros”, de Attar (séc. XII), muito antes do seu aparecimento na Suíça. E, embora dom Quixote pareça o mais espanhol de todos os espanhóis, o próprio Cervantes reconhece sua dívida para com uma fonte árabe. Essa imputação foi posta de lado, como quixotesca, por eruditos; mas as histórias de Cervantes seguem, não raro, as de Sidi Kishar, lendário mestre sufista às vezes equiparado a Nasrudin, incluindo o famoso incidente dos moinhos (aliás de água, e não de vento) tomados equivocadamente por gigantes. A palavra espanhola Quijada (verdadeiro nome do Quixote, de acordo com Cervantes) deriva da mesma raiz árabe KSHR de Kishar, e conserva o sentido de “caretas ameaçadoras”.

Os sufis muçulmanos tiveram a sorte de proteger-se das acusações de heresia graças aos esforços de El-Ghazali (1051-1111), conhecido na Europa por Algazel, que se tornou a mais alta autoridade doutrinária do islamismo e conciliou o mito religioso corânico com a filosofia racionalista, o que lhe valeu o título de “Prova do Islamismo”. Entretanto, eram freqüentemente vítimas de movimentos populares violentos em regiões menos esclarecidas, e viram-se obrigados a adotar senhas e apertos de mão secretos, além de outros artifícios para se defenderem.

Embora o frade franciscano Roger Bacon tenha sido encarado com respeitoso temor e suspeita por haver estudado as “artes negras”, a palavra “negra” não significa “má”. Trata-se de um jogo de duas raízes árabes, FHM e FHHM, que se pronunciam fecham e facham, uma das quais significa “negro” e a outra “sábio”. O mesmo jogo ocorre nas armas de Hugues de Payns (dos pagãos), nascido em 1070 ,que fundou a Ordem dos Cavaleiros Templários: a saber, três cabeças pretas, blasonadas como se tivessem sido cortadas em combate, mas que, na realidade, denotam cabeças de sabedoria.

“Os sufis são uma antiga maçonaria espiritual…” De fato, a própria maçonaria começou como sociedade sufista. Chegou à Inglaterra durante o reinado do rei Aethelstan (924-939) e foi introduzida na Escócia disfarçada como sendo um grupo de artesãos no princípio do século XIV, sem dúvida pelos Templários. A sua reformação, na Londres do início do século XVIII, por um grupo de sábios protestantes, que tomaram os termos sarracenos por hebraicos, obscureceu-lhes muitas tradições primitivas. Richard Burton, tradutor das “Mil e uma noites”, ao mesmo tempo maçom e sufi, foi o primeiro a indicar a estreita relação entre as duas sociedades, mas não era tão versado que compreendesse que a maçonaria começara como um grupo sufista. Idries Shah Sayed mostra-nos agora que foi uma metáfora para a “reedificação”, ou reconstrução, do homem espiritual a partir do seu estado de decadência; e que os três instrumentos de trabalho exibidos nas lojas maçônicas modernas representam três posturas de oração. “Buizz” ou “Boaz” e “Salomão, filho de Davi”, reverenciados pelos maçons como construtores do Templo de Salomão em Jerusalém, não eram súditos israelitas de Salomão nem aliados fenícios, como se supôs, senão arquitetos sufistas de Abdel-Malik, que construíram o Domo da Rocha sobre as ruínas do Templo de Salomão, e seus sucessores. Seus verdadeiros nomes incluíam Thuban abdel Faiz “Izz”, e seu “bisneto”, Maaruf, filho (discípulo) de Davi de Tay, cujo nome sufista em código era Salomão, por ser o “filho de Davi”. As medidas arquitetônicas escolhidas para esse templo, como também para o edifício da Caaba em Meca, eram equivalentes numéricos de certas raízes árabes transmissoras de mensagens sagradas, sendo que cada parte do edifício está relacionada com todas as outras, em proporções definidas.

De acordo com o princípio acadêmico inglês, o peixe não é o melhor professor de ictiologia, nem o anjo o melhor professor de angelologia. Daí que a maioria dos livros modernos e artigos mais apreciados a respeito do sufismo sejam escritos por professores de universidades européias e americanas com pendores para a história, que nunca mergulharam nas profundezas sufistas, nunca se entregaram às extáticas alturas sufistas e nem sequer compreendem o jogo poético de palavras pérseo-arábicas. Pedi a Idries Shah Sayed que remediasse a falta de informações públicas exatas, ainda que fosse apenas para tranqüilizar os sufis naturais do Ocidente, mostrando-lhes que não estão sós em seus hábitos peculiares de pensamento, e que as suas intuições podem ser depuradas pela experiência alheia. Ele consentiu, embora consciente de que teria pela frente uma tarefa muito difícil. Acontece que Idries Shah Sayed, descendente, pela linha masculina, do profeta Maomé, herdou os mistérios secretos dos califas, seus antecessores. É, de fato, um Grande Xeque da Tariqa (regra) sufista, mas como todos os sufis são iguais, por definição, e somente responsáveis perante si mesmos por suas consecuções espirituais, o título de “xeque” é enganoso. Não significa “chefe”, como também não significa o “chefe de fila”, velho termo do exército para indicar o soldado postado diante da companhia durante uma parada, como exemplo de exercitante militar.

A dificuldade que ele previu é que se deve presumir que os leitores deste livro tenham percepções fora do comum, imaginação poética, um vigoroso sentido de honra, e já ter tropeçado no segredo principal, o que é esperar muito. Tampouco deseja ele que o imaginem um missionário. Os mestres sufistas fazem o que podem para desencorajar os discípulos e não aceitam nenhum que chegue “de mãos vazias”, isto é, que careça do senso inato do mistério central. O discípulo aprende menos com o professor seguindo a tradição literária ou terapêutica do que vendo-o lidar com os problemas da vida cotidiana, e não deve aborrecê-lo com perguntas, mas aceitar, confiante, muita falta de lógica e muitos disparates aparentes que, no fim, acabarão por ter sentido. Boa parte dos principais paradoxos sufistas está em curso em forma de histórias cômicas, especialmente as que têm por objeto o Kboja (mestre-escola) Nasrudin, e ocorrem também nas fábulas de Esopo, que os sufis aceitam como um dos seus antepassados.

O bobo da corte dos reis espanhóis, com sua bengala de bexiga, suas roupas multicoloridas, sua crista de galo, seus guizos tilintantes, sua sabedoria singela e seu desrespeito total pela autoridade, é uma figura sufista. Seus gracejos eram aceitos pelos soberanos como se encerrassem uma sabedoria mais profunda do que os pareceres solenes dos conselheiros mais idosos. Quando Filipe II da Espanha estava intensificando sua perseguição aos judeus, decidiu que todo espanhol que tivesse sangue judeu deveria usar um chapéu de certo formato. Prevendo complicações, o bobo apareceu na mesma noite com três chapéus. “Para quem são eles, bobo?”, perguntou Filipe. “Um é para mim, tio, outro para ti e outro para o inquisidor-mor”. E como fosse verdade que numerosos fidalgos medievais espanhóis haviam contraído matrimônio com ricas herdeiras judias, Filipe, diante disso, desistiu do plano. De maneira muito semelhante, o bobo da corte de Carlos I, Charlie Armstrong (outrora ladrão de carneiros escocês), que o rei herdara do pai, tentou opor-se à política da Igreja arminiana do arcebispo Laud, que parecia destinada a redundar num choque armado com os puritanos. Desdenhoso, Carlos pedia a Charlie seu parecer sobre política religiosa, ao que o bobo lhe respondeu: “Entoe grandes louvores a Deus, tio, e pequenas laudes ao Diabo”. Laud, muito sensível à pequenez do seu tamanho, conseguiu que expulsassem Charlie Armstrong da corte (o que não trouxe sorte alguma ao amo).

#sufismo

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/o-sufismo

Uma Fábula Sufi

“O homem comum se arrepende dos seus pecados; o eleito se arrepende da insensatez deles”
(Dh’l-Nun Misri)

A maioria das fábulas contém pelo menos alguma verdade, e elas, não raro, facultam às pessoas a absorção de idéias que os modelos comuns do seu pensamento as impediriam de digerir. As fábulas, portanto, têm sido usadas pelos mestres sufistas a fim de apresentar uma imagem da vida mais em harmonia com os seus sentimentos do que seria possível por meio de exercícios intelectuais. Aqui está uma fábula sufista a respeito da situação humana, sumariada e adaptada adequadamente, como sempre deve acontecer, ao tempo em que é apresentada. As fábulas comuns de “entretenimento” são consideradas pelos autores sufistas uma forma de arte degenerada ou inferior.

Era uma vez uma comunidade ideal que vivia numa região muito distante. Seus membros não tinham temores como os que hoje conhecemos. Em lugar da incerteza e da vacilação, tinham determinação e meios mais completos de se expressar. Embora não houvesse nenhuma das tensões e pressões que a humanidade considera hoje essenciais ao seu progresso, suas vidas eram mais ricas, porque outros elementos, melhores, substituíam essas coisas. Seu modo de existência, por sua vez, era ligeiramente diferente. Poderíamos quase dizer que nossas percepções atuais são uma versão crua, provisória, das percepções reais que possuía a comunidade. Suas vidas eram reais, e não semi-vidas. Podemos chamar-lhes o povo de Xirtam.

Eles tinham um líder, que descobriu que o seu país se tornaria inabitável por um período, digamos, de vinte mil anos. Em vista disso, planejou-lhes a fuga, compreendendo que seus descendentes só conseguiriam voltar para casa depois de inúmeras tentativas. Encontrou para eles um lugar de refúgio, uma ilha cujas características se pareciam ligeiramente com as de sua terra natal. Por causa da diferença de clima e situação, os imigrantes tiveram de sofrer uma transformação, que os tornou, física e mentalmente, mais adaptados às novas circunstâncias; percepções grosseiras, por exemplo, substituíram as percepções mais finas, como quando as mãos do trabalhador manual se tornam mais calosas em resposta às necessidades do seu ofício. Com a intenção de reduzir a dor que traria uma comparação entre o estado antigo e o novo, eles foram induzidos a esquecer quase inteiramente o passado. Só ficou dele a lembrança mais vaga, embora suficiente para ser redespertada quando chegasse a ocasião. O sistema era muito complicado, mas bem ordenado. Os órgãos através dos quais o povo sobreviveu na ilha foram também transformados em órgãos de prazer, físico e mental. Os órgãos que eram construtivos em sua velha terra natal foram colocados numa espécie de inatividade provisória e ligados à lembrança vaga, preparados para sua posterior ativação.

Lenta e penosamente, os imigrantes se instalaram, ajustando-se às condições locais. Os recursos da ilha eram tais que, unidos ao esforço e a certa forma de orientação, permitiriam ao povo fugir para outra ilha, no caminho de volta ao lar original. Essa foi a primeira de uma sucessão de ilhas em que se verificou a gradativa aclimatação. A responsabilidade da “evolução” coube aos indivíduos capazes de arcar com ela. Eram, por força, apenas uns poucos porque, para a massa do povo, o esforço de manter as duas séries de conhecimentos em suas consciências revelava-se virtualmente impossível. Uma delas parecia conflitar com a outra. Certos especialistas guardavam a “ciência especial”. Esse “segredo”, o método de levar a efeito a transição, era nada mais nada menos do que o conhecimento das habilidades marítimas e sua aplicação. A fuga exigia um instrutor, matérias-primas, gente, esforço e compreensão. Havendo tudo isso, o povo poderia aprender a nadar e também a construir navios. A gente originalmente encarregada das operações de fuga esclareceu a todos que se fazia necessário certo preparo antes que alguém pudesse aprender a nadar ou até participar da construção de um navio.

Durante algum tempo, o processo prosseguiu satisfatoriamente. Nisso, um homem considerado, na ocasião, carecedor das qualidades necessárias rebelou-se contra essa ordem e conseguiu desenvolver uma idéia magistral: Observara que o esforço para fugir colocara um fardo pesado e, não raro, aparentemente aborrecido sobre o povo, que se mostrava, ao mesmo tempo, disposto a acreditar nas coisas que lhe contavam sobre a operação de fuga. O homem compreendeu que poderia adquirir poder e também vingar-se dos que o haviam menosprezado pela simples exploração das duas séries de fatos. Oferecer-se-ia, simplesmente, para tirar-lhes o fardo das costas, afirmando não haver fardo. E fez esta declaração: “O homem não precisa integrar a mente e treiná-la da maneira descrita a vocês. A mente humana já é uma coisa estável, contínua e consistente. Disseram-lhes que vocês precisavam tornar-se artífices para construir um navio. Pois eu lhes digo que não precisam ser artífices – não precisam de navio algum! Um ilhéu tem apenas de observar umas poucas regras simples para sobreviver e permanecer integrado na sociedade. Pelo exercício do bom senso, inato a todos, pode alcançar qualquer coisa nesta ilha, nosso lar, propriedade e herança comuns a todos!”

Tendo provocado grande interesse no seio do povo, o tagarela, em seguida, “provou” sua mensagem, dizendo: “Se houver alguma realidade em navios e em nadar, mostrem-nos navios que fizeram a viagem e nadadores que voltaram!” Era um desafio aos instrutores, que não o podiam enfrentar. Baseava-se numa suposição cujo sofisma não poderia ser detectado pelo rebanho bestificado. A verdade é que nunca tinham voltado navios da outra terra. E os nadadores, quando regressavam, eram submetidos a uma nova adaptação que os tornava invisíveis à multidão. O populacho instou para que lhe fornecessem uma prova demonstrativa. “A construção de navios”, disseram os encarregados da ruga, numa tentativa de argumentar com os revoltosos, “é uma arte e um ofício. O aprendizado e o exercício dessa ciência dependem de técnicas especiais, as quais, juntas, formam uma atividade total, que não pode ser examinada por partes, como vocês estão querendo. Essa atividade contém um elemento impalpável, chamado baraka, do qual deriva a palavra ‘barco’ – navio. A palavra significa ‘a sutileza’ e não lhes pode ser mostrada.” “Arte, ofício, total, baraka, tolices!”, berraram os revolucionários. E enforcaram quantos artífices empenhados na construção de navios puderam encontrar. O novo evangelho foi acolhido com entusiasmo por todos os lados como um evangelho de libertação. O homem descobrira que já estava maduro! Tinha a impressão, pelo menos naquele momento, de que fora desonerado da responsabilidade. A maioria das outras maneiras de pensar foi logo absorvida pela singeleza e pelo conforto do conceito revolucionário, que passou a ser considerado um fato básico, jamais contestado por nenhuma pessoa racional. Por racional, é claro, subentendia-se qualquer pessoa que se ajustasse à teoria geral em que se baseava agora a sociedade. As idéias que se opunham aos novos conceitos foram facilmente denominadas irracionais. Todo irracional era ruim. Daí por diante, ainda que tivesse dúvidas, o indivíduo tinha de suprimi-las eu afastá-las, porque precisava ser tido por racional a todo o custo. Não era muito difícil ser racional. Bastava à pessoa aderir aos valores da sociedade. Além disso, abundavam as provas da verdade da racionalidade – contanto que as pessoas não se pusessem a pensar além da vida na ilha.

A sociedade, agora, temporariamente equilibrada no interior da ilha, parecia proporcionar uma inteireza plausível, pelo menos vista através de si mesma. Fundada na razão acrescida da emoção, fazia que ambas parecessem plausíveis. Permitia-se, por exemplo, o canibalismo com base em argumentos racionais. Descobriu-se que o corpo humano é comestível. A comestibilidade é uma característica do alimento. Por conseguinte, o corpo humano era alimento. Com a intenção de compensar as deficiências desse raciocínio, foi utilizado um artifício. Controlou-se o canibalismo no interesse da sociedade. O meio-termo era a marca registrada do equilíbrio temporário. De quando em quando alguém assinalava um novo meio-termo, e a luta entre a razão, a ambição e a comunidade produzia alguma nova norma social.

Uma vez que as habilidades necessárias à construção de navios não tinham nenhuma aplicação óbvia dentro da sociedade, o esforço poderia facilmente ser considerado absurdo. Os barcos eram dispensáveis – não havia para onde ir. As conseqüências de certas suposições podem ser levadas a “provar” as ditas suposições. É a isso que se dá o nome de pseudocerteza, a substituta da certeza verdadeira. É com isso que lidamos todos os dias, ao supor que viveremos outro dia. Mas os nossos ilhéus aplicavam-na a tudo. Dois verbetes da grande Enciclopédia universal da ilha mostram-nos como funcionava o processo:

NAVIO: Desagradável. Veículo imaginário em que impostores e enganadores asseveraram ser possível “transpor a água”, o que hoje está cientificamente provado que é um absurdo. Não se conhece na ilha nenhum material impermeável à água com o qual se pudesse construir um “navio” nessas condições, sem falar na questão de saber se existe ou não uma destinação além da ilha. A MANIA DA CONSTRUÇÃO DE NAVIOS, forma extrema de escapismo mental, é um sintoma de desajuste. Todos os cidadãos se encontram na obrigação constitucional de notificar as autoridades sanitárias se acaso suspeitarem da existência dessa trágica condição em qualquer indivíduo. Veja: Natação; Aberrações mentais; Crime {Capital). Leituras: Por que os “navios” não podem ser construídos, de Smith, J., Monografia da Universidade da Ilha, número 1151.

NATAÇÃO: Repugnante. Suposto método de propelir o corpo através da água sem se afogar, geralmente com o propósito de “alcançar um lugar fora da ilha”. O “estudante” dessa arte repugnante tinha de submeter-se a um ritual grotesco. Na primeira lição, tinha de deitar-se no chão e mover os braços e as pernas em resposta às instruções do “instrutor. Todo o conceito tem por base o desejo dos pretensos “instrutores” de dominar os crédulos nas épocas bárbaras.

Usavam-se as palavras “desagradável” e “repugnante” na ilha para indicar o que quer que entrasse em conflito com o novo evangelho, conhecido pelo nome de “Agradar”. A intenção por trás disso era que as pessoas se agradassem dentro da necessidade geral de agradar ao Estado. O Estado passava a significar o povo todo. Não é de admirar que, desde os tempos mais primitivos, a idéia de deixar a ilha enchesse de pavor a maioria das pessoas. Da mesma forma, descobre-se um medo muito real nos prisioneiros condenados a penas demasiado longas quando se vêem na iminência de ser libertados. Qualquer lugar “fora” do local de cativeiro é um mundo vago, desconhecido, ameaçador. A ilha não era uma prisão, mas sim uma jaula de barras invisíveis, porém mais eficazes do que o seriam quaisquer barras óbvias.

A sociedade insulana foi se tornando cada vez mais complexa, e sua literatura muito rica. Além das composições culturais, havia também um sistema de ficção alegórica que mostrava o quão terrível poderia ter sido a vida, se a sociedade não tivesse se ajustado ao atual modelo tranqüilizador. Ainda assim, de tempos a tempos instrutores tentavam ajudar a comunidade a escapar. Capitães sacrificavam-se em prol do restabelecimento de um clima em que os ora escondidos construtores de navios pudessem prosseguir no trabalho. Todos esses esforços foram interpretados por historiadores e sociólogos com referência às condições da ilha, sem idéia de qualquer contato fora daquela sociedade fechada.

Produziam-se com facilidade relativa explicações plausíveis para quase tudo. Não estava envolvido nenhum princípio de ética, porque os doutos continuavam a estudar com dedicação genuína o que parecia ser verdade. “Que mais podemos fazer?”, perguntavam, dando a entender, com a palavra “mais”, que a alternativa poderia ser um esforço de quantidade. Ou perguntavam uns aos outros: “Que outra coisa podemos fazer?”, supondo que a resposta pudesse estar em “outra coisa” – algo diferente. O seu verdadeiro problema era que eles se julgavam capazes de formular as perguntas, e ignoravam o fato de que as perguntas tinham tanta importância, em todos os sentidos, quanto as respostas. Está visto que aos ilhéus se oferecia um campo muito grande para pensar e agir dentro de seu pequeno domínio.

As variações de idéias e diferenças de opinião davam a impressão de liberdade de pensamento. Estimulava-se o pensamento, contanto que não fosse “absurdo”. Permitia-se a liberdade de palavra, aliás de escassa utilização sem o desenvolvimento da compreensão, que não era levado a efeito. O trabalho e a ênfase dos navegadores teve de assumir aspectos diferentes de acordo com as mudanças verificadas na comunidade, o que lhes tornava a realidade ainda mais desconcertante para os estudantes que procuravam acompanhá-los do ponto de vista da ilha. No meio de toda a confusão, até a capacidade de lembrar-se da possibilidade de escapar podia, às vezes, transformar-se em obstáculo. A consciência emocionante da possibilidade de fuga não era muito discriminativa. Na maior parte das vezes, os ansiosos aspirantes a fujões se decidiam por qualquer espécie de substituto. Um conceito vago de navegação não poderia ser útil sem orientação. Até os mais ardentes construtores de navios em potencial tinham sido treinados para acreditar que já possuíam essa orientação. Já estavam maduros. Odiavam todos os que dissessem que eles talvez precisassem de preparação. Versões estranhas de natação e construção de navios freqüentemente excluíam, pela força do número, as possibilidades de progresso verdadeiro. Bastante censuráveis eram os advogados da pseudonatação ou dos navios alegóricos, meros mercenários, que ofereciam lições aos que ainda estavam fracos demais para nadar, ou passagens em navios que não podiam construir.

As necessidades da sociedade tinham exigido, originalmente, certas formas de eficiência e pensamento que redundavam no que se conhecia por ciência. Esse enfoque admirável, tão essencial nos campos em que tinha aplicação, acabou exorbitando do seu verdadeiro significado. O enfoque, denominado “científico” logo após a revolução “Agradar”, ampliou-se até cobrir todo tipo de idéias. Finalmente, as coisas que não puderam ser contidas dentro dos respectivos limites passaram a ser conhecidas como “não-científicas”, outro sinônimo conveniente de “más”. As palavras eram estranhamente aprisionadas e, a seguir, automaticamente escravizadas. Na ausência de uma atitude adequada, como as pessoas que, entregues aos próprios recursos na sala de espera de um consultório, põem-se automaticamente a ler revistas, os ilhéus se absorveram na procura de substitutos da realização, que era o propósito original (e, na verdade, final) do exílio da comunidade. Alguns foram capazes de distrair a atenção, de maneira mais ou menos bem-sucedida, com atitudes principalmente emocionais. Havia séries diferentes de emoção, mas nenhuma escala adequada para medi-las. Considerava-se toda emoção “funda” ou “profunda” – como quer que fosse, mais profunda que a não-emoção. A emoção que levava as pessoas aos atos físicos e mentais mais extremos que se conheciam era automaticamente qualificada de “profunda”. Em sua maioria, as pessoas costumavam escolher metas ou permitiam que outros as escolhessem para elas. Podiam consagrar-se a um culto depois de outro, ou ao dinheiro, ou à proeminência social. Algumas, por adorarem certas coisas, julgavam-se superiores a todo o resto. Outras, repudiando o que supunham ser o culto, cuidavam não ter ídolos e poder, por conseguinte, zombar com segurança de tudo o mais.

À medida que os séculos passavam, a ilha se viu juncada de destroços desses cultos. Pior do que destroços comuns, eles eram autoperpetuantes. Pessoas bem-intencionadas e outras combinaram e recombinaram os cultos, e estes voltaram a propagar-se. Para o amador e para o intelectual isso constituía uma mina de material acadêmico ou “inicial”, que dava uma reconfortante sensação de variedade. Proliferaram magníficas instalações para o gozo de “satisfações” limitadas. Palácios e monumentos, museus e universidades, institutos de saber, teatros e estádios esportivos abarrotaram a ilha. O povo, naturalmente, se orgulhava desses recursos, muitos dos quais considerava ligados, de um modo geral, à verdade fundamental, embora muito pouca gente soubesse exatamente como era isso. A construção de navios estava associada a algumas dimensões dessa atividade, mas de um jeito desconhecido de quase toda a gente. Clandestinamente, os navios desfraldaram suas velas, e os nadadores continuaram a ensinar natação. As condições na ilha não consternaram em demasia aquela gente dedicada. Afinal de contas, ela também se originara da mesma comunidade e tinha laços indissolúveis com ela e com o seu destino. Mas precisava, muito a miúdo, preservar-se das atenções dos seus concidadãos. Alguns ilhéus “normais” tentaram salvá-la de si mesma. Outros tentaram matá-la por uma razão igualmente sublime. Outros até buscaram ardentemente a ajuda dela, mas não conseguiram encontrá-la. Todas essas reações à existência dos nadadores resultavam da mesma causa, filtrada através de diferentes tipos de mentes, a saber, que quase toda a gente sabia agora em que consistia um nadador, o que ele estava fazendo e onde poderia ser encontrado.

À medida que a vida na ilha foi se tornando mais e mais civilizada, surgiu uma indústria estranha, mas lógica, consagrada a lançar dúvidas sobre a validade do sistema sob o qual vivia a sociedade. Ela logrou absorver as dúvidas acerca dos valores sociais ridicularizando-os ou satirizando-os. A atividade poderia apresentar um rosto triste ou feliz mas, na realidade, se tornou um ritual repetitivo. Indústria potencialmente valiosa, era, não raro, impedida de exercer suas funções realmente criativas. Achavam as pessoas que, tendo dado às suas dúvidas uma expressão temporária, conseguiriam, de certo modo, atenuá-las, exorcizá-las, quase aplacá-las. A sátira passou a ser considerada uma alegoria significativa; a alegoria foi aceita mas não digerida. Peças, livros, filmes, poemas, pasquins foram os meios usados para esse desenvolvimento, ainda que boa parte dele operasse em campos mais acadêmicos. Para muitos ilhéus, parecia mais emancipado, mais moderno ou progressivo seguir esse culto em lugar dos antigos. Aqui e ali um candidato ainda se apresentava a um instrutor de natação, para fazer sua barganha. E geralmente ocorria o que, na verdade, era uma conversação estereotipada:
– Quero aprender a nadar.
– Quer fazer uma barganha?
– Não. Só tenho de levar minha tonelada de couve.
– Que couve?
– A comida de que precisarei na outra ilha.
– Lá existe comida melhor.
– Não sei do que você está falando. Não posso ter certeza. Preciso levar minha couve!
– Em primeiro lugar, você não pode nadar com uma tonelada de couve.
– Então não posso ir. Você chama a couve de carga. Eu chamo-lhe minha nutrição essencial.
– Suponha, como alegoria, que, em lugar de couve, prefiramos dizer “suposições” ou “idéias destrutivas”.
– Levarei minha couve a algum instrutor que compreenda minhas necessidades.

Este livro fala de alguns nadadores e construtores de navios, e também de outros que tentaram acompanhá-los, com maior ou menor sucesso. A fábula não terminou, porque ainda existem pessoas na ilha. Os sufis utilizam linguagem cifrada para transmitir o que querem dizer. Mude a posição das letras do nome da comunidade original – Xirtam – e terá “Matrix”. Talvez já tenha notado que o nome adotado pelos revolucionários – “please” (Agradar) – forma, com as letras mudadas de lugar, a palavra “asleep” (Adormecido).

Fonte: Os Sufis; Idries Shah

#sufismo

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/uma-f%C3%A1bula-sufi

HermetiCAOS – Tradição, Ciência, Arte e Cultura

PARTE 1: TRADIÇÃO*

Você quer praticar Magia. Quer se tornar um Mago. Tomou a decisão e está determinado.

Ótimo, que bom pra você. Mas e agora? Qual o próximo passo?

Descobrir que diabos é “Magia” e como é que se pratica isso é, logicamente, o caminho a seguir. E daqui a pouco você vai entender por quê. O que interessa agora é que as respostas mais acessíveis — seja em livrarias, seja na internet — vão te levar, conforme aponta o mago inglês Alan Chapman, ao “quase impenetrável transcendentalismo de textos mágicos do início do século XX, o moralismo ambientalista do movimento Pagão moderno, o sentimentalismo ingênuo e popular da Nova Era e o materialismo prático e bobo de alguns autores pós-modernos”. A escolha é difícil. O que existe por detrás das cortinas da realidade que dá fundamento à Magia e se encontra na base de qualquer “Tradição”? E por que elas são tão diferentes entre si? Este é o primeiro de uma série de textos que buscarão responder a essas e outras perguntas.

Antes de mais nada, é preciso esclarecer um ponto: qualquer coisa que se diga a respeito do assunto aqui tratado é, no fim das contas, uma interpretação pessoal. Cada indivíduo vive a partir de uma perspectiva que foi construída nele/por ele/com ele durante toda a sua vida, como um conjunto de suas impressões psíquicas derivadas de experiências vividas. É aquilo que o psicólogo e romancista (e mago) discordiano Robert Anton Wilson chamou de “túnel de realidade”. As experiências com a realidade podem se dar de forma direta ou indireta: quando a porção de realidade experienciada vai além de nossa capacidade de traduzí-la, para nós mesmos, a partir de uma lógica que nos pareça coerente, estamos diante de uma experiência direta; a indireta acontece quando, por conta de paradigmas que adotamos (consciente ou inconscientemente), já experienciamos a realidade a partir de uma leitura, ou explicação, prévia do fenômeno observado, ou seja, antes de obtermos o resultado de nossa experiência, já sabíamos exatamente o que esperar dela.

Pois bem. Ocorre que, mesmo na forma direta, a experiência é interpretada com a linguagem que conhecemos. Parece-me que está além da capacidade humana viver uma experiência sem elaborar uma explicação para ela. Por que isso aconteceu? Como aconteceu? Quais são as condições de possibilidade dessa experiência? Tudo isso vai ser elaborado a posteriori, sempre a partir do jogo de linguagem da pessoa, para usar uma expressão do filósofo Ludwig Wittgenstein. Vamos analisar um exemplo qualquer.

Algo na vida de uma determinada pessoa vai muito mal. Pode ser em qualquer âmbito: financeiro/profissional, sentimental/amoroso, saúde física ou mental, ou sei lá mais o quê. Se a pessoa é cristã — e especialmente se for evangélica –, é bem provável que ela atribuirá a culpa dos seus males ao Diabo ou a alguns de seus demônios enviados à Terra para espalhar o Mal (aquele, com letra maiúscula). Se, entretanto, o indivíduo foi criado dentro da crença espírita (e concorda com ela, veja bem), então será natural que ela atribua a origem de seus males a algum espírito obsessor que se alimenta de seu sofrimento (o famoso “encosto”) e não passa de alguém que morreu, mas se encontra num estado de ignorância sobre sua condição e como melhorá-la, seja, como “evoluir espiritualmente”. Ainda existe a possibilidade, mais complexa e rara, do indivíduo em questão ser um psicólogo junguiano ou transpessoal; se for esse o caso, a chance é a de que ele compreenda as dificuldades que está passando como uma projeção externa de complexos inconscientes que se colocam como obstáculos ao processo de individuação.

Cada um deles pode ter tido a mesma experiência. Entretanto, a interpretam de forma radicalmente diferente. Por que essa volta toda? Para esclarecer que, mesmo em Magia do Caos, as diferentes explicações para os diferentes fenômenos podem variar em abordagem. Mais sobre isso será discutido em textos vindouros. O que interessa aqui é que, no tocante à palavra MAGIA, ela diz respeito, diretamente, a uma determinada tradição sagrada de ensinamentos sobre a Mente e o Universo, típica do Ocidente. Em seu famoso diagrama, Peter Carroll liga os Grandes Mistérios Antigos diretamente ao Xamanismo, supostamente o Pai de toda a Magia. A partir daí, passamos pelas Escolas de Mistérios do Egito, da Babilônia e da Grécia, como os Pitagóricos, Órficos, Elêusis e Essênios. As transformações seguem, com influência do Cristianismo Primitivo (Gnosticismo) e do Sufismo, uma doutrina derivada do Islã.

A partir daí, passa pela Idade Média, através dos Cavaleiros Templários e da Alquimia, escondendo-se nas sociedades secretas rosacruzes e maçônicas, até encontrar Aleister Crowley e Austin Osman Spare.

Essas associações procedem muito mais por uma relação temática do que propriamente com base em evidências históricas (exceto talvez nos documentos secretos das Ordens iniciáticas, acessíveis a poucos — mas isso, por óbvio, é mera especulação). Os conhecimentos do passado parecem nunca haver estado completamente à disposição de todas as pessoas; o poder estabelecido geralmente encontra uma forma de exterminar aqueles que tentem libertar o povo da ignorância, tão necessária ao exercício da dominação das massas. Na Modernidade, com o advento do Estado laico, o problema parece ter mudado: como aprendemos no filme Matrix, as pessoas carregam o Sistema dentro de si e lutarão por ele quando o perceberem ameaçado. As pessoas lutam para se manterem aprisionadas. Assim, os conhecimentos que foram ocultos em sociedades secretas e transmitidos por baixo dos panos para sobreviver aos períodos mais sombrios da civilização, agora estão mais acessíveis que nunca. Só não os alcança quem não quer.

Na essência dos ensinamentos está a compreensão de que nossa realidade é moldada pela nossa mente e, a partir daí, a utilização de fórmulas, símbolos, palavras, rituais, canto, música, meditação, dança e até mesmo substâncias psicoativas para provocar impressões na mente e obter mudanças de acordo com a Vontade. O que muda de uma Tradição para a outra é a escolha de que elementos serão utilizados e de que maneira. O que determina essa escolha? Os fatores variam e têm diferentes graus de complexidade. Os mais simples apontam para uma mera apreciação estética, ou seja, pratica-se a Tradição que se considera mais bonita; os mais complexos sugerem um comprometimento ideológico a partir da dinâmica da crença. Em textos futuros pretendo abordar a questão da crença, sua função e sua disfunção.

No fim das contas, qual a importância de se adotar uma determinada Tradição e como escolher entre elas? Esse é, afinal, o objetivo desse texto. O objetivo de uma Tradição é oferecer um conjunto de associações simbólicas coerentes, testadas ao longo do tempo por determinado grupo de pessoas e, por isso, com condições de oferecer ao praticante um método de alcançar a sabedoria. Não se comprometer com uma Tradição pode significar, em muitos casos, uma vida inteira de doloroso aprendizado no esquema tentativa-erro, sem nunca atingir um bom nível de proficiência em Magia.

Seguem minhas recomendações pessoais para uma boa decisão:

Primeiramente, escolha uma Tradição pela estética. Pode parecer um motivo superficial, mas é fundamental que você veja beleza na sua prática mágica. Isso influencia diretamente no quanto o seu ato mágico é capaz de te impressionar e provocar os efeitos desejados na sua mente. Em segundo lugar, certifique-se que sua relação com a Tradição escolhida não impossibilite que você experimente coisas que não se encaixam necessariamente no paradigma escolhido; ou seja, esteja aberto para a possibilidade de estar errado sobre o que quer que seja. Três: atente-se para a possibilidade de a Tradição te oferecer o devido amparo nos momentos de dificuldade, sem que ela precise te escravizar por isso. Busque conhecer os fundamentos da Tradição ANTES de se comprometer com ela. Se houver liderança do tipo “sacerdotal”, desconfie severamente. A enorme maioria dos sacerdotes busca um séquito de admiradores e bajuladores; preste atenção, por exemplo, à enorme quantidade deles que afirma que você vai se dar muito mal se abandonar aquela Tradição. Não se meta em nenhum grupo que tenta se promover desvalorizando outro.

E, por último, confie sempre na sua intuição e na sua experiência acima de qualquer dogma. O que significa dizer que, se a sua experiência contradiz o dogma da sua Tradição, o melhor a fazer é, geralmente, abandonar a Tradição.

Uma vez que você tenha escolhido, é necessário também fazer alguns apontamentos:

Leve a sério sua escolha; conduzí-la de forma leviana significa desrespeitá-la e desvalorizá-la. Se isso acontecer, ela não poderá fazer mais nada por você. Estude bastante; somente um conhecimento aprofundado te dará a segurança necessária para conduzir um ritual que produza os efeitos desejados. Não desconsidere nenhum requisito da sua Tradição até que entenda perfeitamente seu sentido e propósito; as consequências podem ser nefastas.

No mais, tudo o que você leu aqui eu aprendi com minhas próprias experiências e erros e acertos, com experiências de amigos e conhecidos e, também, com relatos de pessoas em quem eu aprendi a confiar. Nesse último caso, essas pessoas não sabem o quanto sou grato pela disposição que elas tiveram em compartilhar com o mundo (e comigo, por tabela) aquilo que aprenderam. Minha forma de expressar essa gratidão é passar o ensinamento adiante. Por isso, se a Tradição que você escolheu (ou vier a escolher) for a Magia do Caos ou o Hermetismo, apareça por aí toda segunda-feira que vai ter texto novo.

É minha Vontade que minhas palavras levem Luz. Assim seja!

* Essa é a Parte 1 do texto em 4 partes abordando a Magia enquanto Tradição, Ciência, Arte e Cultura. Cada conceito desse, um texto. Mas não sei se eles serão publicados em sequência, porque pode ser que segunda que vem eu escreva sobre outra coisa, se me der na telha.

Publicado originalmente no Blog HermetiCaos

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/hermeticaos-tradi%C3%A7%C3%A3o-ci%C3%AAncia-arte-e-cultura

O Tarot no Século XIV

tarot-sforza

É para a Europa, especificamente o norte da Itália, que devemos nos voltar para encontrar as primeiras manifestações do jogo do 78 cartas que hoje conhecemos pelo nome de Tarot. E, a julgar pelos mais antigos exemplares conservados, as mudanças sofridas ao longo do tempo foram muito menores do que se poderia esperar: os quatro naipes conhecidos hoje são os mesmos dos jogos italianos desde sempre: Copas, Espadas, Paus e Ouros. Além das dez cartas numéricas, as figuras são em número de quatro, para cada naipe: um rei, uma rainha (ou dama), um cavaleiro e um valete.

Restam ainda 22 cartas especiais que, de certo modo, formariam um quinto naipe e que os documentos italianos denominam de trionfi (trunfos) e, os franceses, atouts, com o mesmo sentido de trunfo, ou seja, de cartas que se sobrepõem às demais. Cada um dos vinte e dois arcanos maiores do Tarô permitem paralelos com Alquimia,

Astrologia, Sufismo, Cabala, Mística Cristã…

Restaram inúmeras cartas de tarô pintadas à mão, do século XV. São os mais antigos legados históricos, que estão sob guarda de museus ou em posse de colecionadores.

Registros concretos

Não se sabe ao certo a origem das cartas do baralho tradicional. Nem se pode afirmar, com certeza, se o conjunto dos 22 trunfos ou Arcanos Maiores – com seus desenhos emblemáticos – e as muito bem conhecidas 56 cartas dos chamados Arcanos Menores – com seus quatro naipes – foram criados separadamente e mais tarde combinados num único baralho, ou se, desde seu nascimento, tiveram a forma de um baralho de setenta e oito cartas.

Tudo indica que as 56 cartas do baralho comum foram copiadas do jogo difundido entre os guerreiros mamelucos. Os autores da adição das 22 cartas, hoje denominadas “arcanos maiores” entre os tarólogos, permanecem desconhecidos.

Existe, no entanto, um ponto de concordância entre a maior parte dos estudiosos: raros imaginam que se trataria de alguma manifestação ingênua de “cultura popular” ou de “folclore”. Ao contrário, a abstração das 40 cartas numeradas, bem como as evocações simbólicas dos trunfos, permitem associações surpreendentes com inúmeras outras linguagens simbólicas. Sugerem uma produção muito bem elaborada, um trabalho de Escola.

A maior parte dos estudiosos considera os 22 trunfos – atualmente denominados “arcanos maiores” – uma criação do norte da Itália, como atestam as cartas do Tarot Visconti Sforza.

Já as dúvidas aparecem quando se trata do conjunto das cartas numeradas – atualmente conhecidas por “arcanos menores” ou “baralho comum” –, que teriam sido levadas pelos gurreiros mamelucos à Europa durante a Idade Média. Existem menções às “cartas sarracenas” em registros do séc. 14.

Anteriores às lâminas apresentadas acima, encontramos apenas referências a um “jogo de cartas”. É bastante citado, nos estudos de Tarô, o relato de Johannes, monge alemão de Brefeld, Suíça: “um jogo chamado jogo de cartas (ludus cartarum) chegou até nós neste ano de 1377”, mas declara expressamente não saber “em que época, onde e por quem esse jogo havia sido inventado”. Sobre as cartas utilizadas, diz que os homens “pintam as cartas de maneiras diferentes, e jogam com elas de um modo ou de outro. Quanto à forma comum, e ao modo como chegaram até nós, quatro reis são pintados em quatro cartas, cada um deles sentado num trono real e segurando um símbolo em sua mão”.

Há outra menção, ainda no século XIV, embora não tenha restado exemplar algum das referidas cartas: nos livros de contabilidade de Charles Poupart, tesoureiro de Carlos IV, da França, existe uma passagem que declara que três baralhos em dourado e variegadamente ornamentados foram pintados por Jacquemin Gringonneur, em 1392, para divertimento do rei da França.

Variantes

Numa composição diferente, com 50 cartas divididas em 5 séries de 10 cartas cada, existem vários exemplares do jogo chamado Carte di Baldini (c. 1465), também conhecido como Tarocchi de Mantegna, nome de um um importante pintor do norte da Itália no séc. XV.

Alem de estruturas diferentes, exemplificada com o Tarô de Mantegna, existem inúmeros exemplos posteriores de acréscimo de cartas – como é o caso do I Tarocchi Classici – e também de cortes e supressões que acabaram por originar jogos reduzidos que se tornaram populares: Baralho Petit Lenormand, também conhecido como Baralho Cigano.

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/o-tarot-no-s%C3%A9culo-xiv

Al-Hallaj

Al-Husayn ibn Mansur al-Hallaj (857-922), foi o polêmico e precoce sufi lembrado por sua proclamação: “Eu sou a Verdade” e pelo martírio que sofreu nas mãos das autoridades muçulmanas em Bagdá.

Nascido na região dos Fars no sul do Irã, Al-Hallaj se mudou com sua família para Wasit, uma cidade no centro do Iraque.

Seu pai provavelmente trabalhou na indústria têxtil (hallaj é a palavra árabe para uma pessoa que trabalha na profissão da carda do algodão ou da lã).

Em sua juventude, Al-Hallaj memorizou o Alcorão e estudou sufismo com Sahl al-Tustari (m. 896), mas ele não foi iniciado como sufi até os vinte anos de idade.

O casamento não o influenciou na sua busca espiritual e, viajando entre o Irã, o Iraque e a Meca, ele teria ganhado um seguimento de quatrocentos discípulos.

Também foi dito que ele visitou a Índia, a Ásia Central e o túmulo de Jesus em Jerusalém.

Depois de realizar o Hajj a Meca pela terceira vez, ele voltou para sua família em Bagdá e criou um modelo da Caaba em sua casa.

As afiliações de Al-Hallaj com rebeldes, xiitas e não-muçulmanos eventualmente despertaram as suspeitas dos sunitas conservadores e das autoridades políticas.

Alguns de seus antigos associados sufi até acusaram-no de magia e bruxaria.

Além disso, enquanto estava engajado em sua busca espiritual por Deus, ele fez sermões e declarações públicas que enfureceram os seus opositores.

Em um deles, ele disse que os muçulmanos poderiam cumprir o dever do Hajj, realizando circum-ambulações em seus corações e dando caridade aos pobres em casa.

Sua afirmação mais famosa foi, “Eu sou a Verdade”, que seus inimigos interpretaram como uma afirmação de sua própria divindade.

Na visão do mundo islâmico, a Verdade (haqq) era considerada como um atributo de Deus.

Os sufis fizeram tais declarações (sha-thiyyat) enquanto estavam em estado de êxtase, implicando que eles estavam falando na voz de Deus, não na sua própria voz.

Al-Hallaj logo se envolveu nas intrigas religiosas e políticas da Bagdá do século X, e ficou preso por nove anos.

Finalmente, em 922, Al-Hallaj foi acusado de blasfêmia, espancado e crucificado.

Seus restos mortais foram queimados e jogados no rio Tigre, impedindo assim que a sua família e os seus amigos de darem a ele o devido enterro muçulmano ou de venerá-lo como santo.

Al-Hallaj tem consequentemente um legado misto, lembrado por alguns como um herege e por outros como um santo martirizado.

Seus ditos foram escritos e coletados por seus seguidores.

A ele também é atribuído ter escrito o Kitab al-Tawasin, um conjunto de meditações sobre Muhammad, a Viagem Noturna e a Ascensão do Profeta, e os diálogos de Satã com Deus e Moisés.

Leitura adicional:

– Louis Massignon, The Passion of al-Hallaj: Mystic and Martyr of Islam, 4 vols. Traduzido por Herbert Mason (Princeton, N.J.: Princeton UniversityPress, 1982);

– Michael Sells, Early Islamic Mysticism:Sufi, Quran, Miraj, Poetic and Theological Writings (NewYork: Paulist Press, 1996), 266-280.

***

Fonte:

Encyclopedia of Islam

Copyright © 2009 by Juan E. Campo

***

Texto adaptado, revisado e enviado por Ícaro Aron Soares.

Postagem original feita no https://mortesubita.net/biografias/al-hallaj/

Biografias: Carl Kellner

Sabe-se que ele nasceu na cidade de Viena, todavia, as fontes divergem até mesmo quanto ao seu ano de nascimento, ora apontando 1850 (Howe & Möller, 1979:30) ora 1851 (Koenig, 1992:93).

De origem modesta, desde bem cedo freqüentou vários laboratórios, os quais o habilitaram para exercer a profissão de químico. Já aos 22 anos de idade, graças ao seu conhecimento e brilhantismo, Kellner se mostrava um inventor de grande criatividade, galgando rápido sucesso. Uma série de experimentos o levaria a várias descobertas em sua área de atuação profissional, permitindo-lhe revolucionar a tecnologia de produção de papel e se tornar um expoente na indústria química de sua região de origem.(1)

Kellner, costumeiramente descrito como um gênio, um homem extraordinário (Koenig, 1999:13) e bem versátil, era uma pessoa inventiva e vívida, de ótima agudeza intelectual que, em paralelo à sua profissão, também cultivava interesse em alquimia e yoga.

Nas imprecisas palavras de Theodor Reuss (1855-1923), Kellner também tinha profundo interesse em assuntos relacionados seja à maçonaria seja à magia sexual.(2) Contudo, no que diz respeito à Maçonaria, apesar de ter sido iniciado nesta Ordem, na Loja Húngara Humanitas, o austríaco permaneceria por pouco tempo nela, não passando além do grau de Aprendiz Maçom.

Especificamente em relação ao yoga, tamanho era seu interesse que, ao final do século XIX, Kellner era reconhecidamente um dos únicos europeus com detalhado conhecimento sobre teoria e prática desta disciplina. Tão proeminente era seu conhecimento sobre a matéria, que isto acabou por levá-lo a elaborar um pequeno tratado, acerca das influências psicológicas e fisiológicas que a prática do yoga exercia sobre o ser humano. Este trabalho foi apresentado no Terceiro Congresso Internacional de Psicologia, sediado em Munique, em 1896 (Howe & Möller, 1979:30). Depois, o estudo sobre yoga de Kellner também foi publicado em inglês, com o título de Yoga: A Draft on the Psychophysiological Aspect of the Ancient Yoga Doutrine. Bem posteriormente a sua morte, Crowley o relacionou como uma das “instruções oficiais da O.T.O.”, onde o estudo é apresentado como sendo de autoria de um certo Irmão Renatus (Crowley, 1997:485). Renatus havia sido o mote adotado por Kellner quando Aprendiz Maçom e a partir daí, algumas ramificações da O.T.O. passaram a adotar este nome como divisa mágica de Kellner, passando a frequentemente citá-lo como Frater Renatus Xº, O.T.O. – entretanto, como já demonstrado em outro post, não há qualquer relação direta entre a O.T.O. e Kellner (ver Origens Maçônicas da O.T.O.).

Conforme alguns acreditam (Grant, 1991:121 e Scriven, 2001:212), os interesses paralelos de Kellner também acabariam por levá-lo a empreender viagens pelo Oriente. Em uma delas, ele findaria estabelecendo contato com certos mestres da tradição oriental, adeptos que viriam a se tornar seus instrutores e gurus. Ainda segundo esta perspectiva, os adeptos orientais eram dois hindus de nomes Bhima Sen Pratap e Sri Mahatma Agamya Paramahamsa, e um árabe adepto do sufismo e da magia chamado Soliman bem Aifa, todos versados nas mais diversas doutrinas místicas do oriente. Assim, estes mestres, também adeptos tântricos orientais do Vama Marga, teriam iniciado Kellner nos mistérios da magia sexual (Grant, 1992a:72).(3) Acrescente-se que absolutamente nada se sabe a respeitos de pelo menos dois destes três supostos gurus de Kellner.

Contudo, as supostas andanças de Kellner pelas terras do Oriente não encerra o assunto sobre seu conhecimento a respeito do misticismo oriental. Ocorre que seu interesse pelo oculto também o levaria a se aproximar da teosofia, onde encontra e estabelece estreita amizade com o famoso Dr. Franz Hartmann (1838-1912), eminente teósofo, amigo e confidente da notória Madame Blavatsky (1831-1891). Foi justamente por intermédio do Dr. Hartmann, que Kellner passou a freqüentar a Sociedade Teosófica. Recentemente, o interessante artigo de Joseph Dvorak sobre Kellner vem sugerir que nesta ocasião é o Dr. Hartmann quem lhe teria apresentado – na Europa – o instrutor Sri Mahatma Agamya Paramahamsa. O mesmo artigo também nos dá conta do contato direto que Kellner teve com ninguém menos do que o erudito filologista e orientalista alemão Friedrich Max Müller (1823-1900), responsável por uma das mais completas e impressionantes obras já publicadas no Ocidente sobre as doutrinas religiosas do Oriente, o monumental The Sacred Books of the East, em 50 volumes. Ao mesmo tempo, há significativos indícios de que Kellner também estaria em contato direto com alguns membros europeus de uma obscura sociedade denominada Brotherhood of Eulis (King, 2002:97) e com seguidores do afamado e brilhante Pascal Beverly Randolph (1825-1875).

Essas últimas informações a respeito de Carl Kellner, quais sejam, sua amizade com Hartmann, seu contato com Max Muller e sua possível associação com os discípulos europeus de Randolph,(4) lançam novas luzes sobre como teria sido a sua formação, permitindo que sejam traçadas as possíveis verdadeiras fontes do conhecimento místico a ele atribuído. Em outras palavras, atualmente, a alegada viagem de Kellner pelo Oriente tende mais a ser considerada mera epopeia mítica que nem de longe corresponderia à verdade.

Continuando, o mútuo interesse profissional na área médica e química faz com que ambos, Kellner e Hartmann, colaborem de forma decisiva no desenvolvimento de uma inovadora terapia de inalação, para o tratamento de tuberculose, técnica empregada com relativo sucesso no hospital dirigido por este último.

Em 1895, já com larga experiência na prática do yoga, Kellner resolve trabalhar com um pequeno, bem seleto e extremamente reservado círculo de praticantes, dando ênfase tanto ao Hatha Yoga quanto a exercícios tântricos (Koenig, 1999:13). Não há, todavia, registros que indiquem a respeito de qualquer tipo de Ordem montada a partir deste reduzido e muito discreto grupo de praticantes de yoga.

Em novembro de 1904, Reuss publica no seu Oriflamme, em nota especificamente direcionada a quem ele chama de Pupilos do Círculo Oculto, que “nosso amado líder, Frater Carl Kellner, encontra-se severamente doente”. Em seguida, Reuss convoca todos os membros daquele Círculo Oculto a dedicarem suas preces e meditações diárias à franca recuperação de Kellner.(5)

Finalmente, em março de 1905, Kellner, que estava no Egito tentando se recuperar de uma enfermidade, volta para a Áustria. Já em Viena, ele falece no dia 7 de junho deste mesmo ano. Seu atestado de óbito oficialmente declara que a causa mortis foi “envenenamento do sangue” (Howe & Möller, 1979:36). Contudo, uma curiosa questão permanece: por que havia veneno em seu sangue? O desconhecimento sobre o que realmente aconteceu a Kellner tem levado a elucubrações curiosas como, por exemplo, dizer que forças malignas foram atraídas para “frater Renatus”, graças aos exercícios ocultos praticados por ele (cit. Howe & Möller, 1979:38).(6)

Elucubrações do além à parte, certamente a vida de Carl Kellner ainda é um campo a ser explorado. Espero que o presente artigo sirva de ponto de partida para os que apostam na plausibilidade de sua biografia.

De minha parte, isso é apenas um início.

BIBLIOGRAFIA

CROWLEY, Aleister. 1997: Magick – Book 4 – Liber ABA (second revised edition). Edited by Hymenaeus Beta (i.e. William Breeze). Maine: Samuel Weiser.

DVORAK, Joseph. Carl Kellner. Versão inglesa em http://user.cyberlink.ch/~koenig/sunrise/kellner.htm

Friedrich Max Müller – Artigo biográfico: http://en.wikipedia.org/wiki/Max_Muller

GRANT, Kenneth. 1991: The Magical Revival. London: Skoob Books Publishing.

_____. 1992: Aleister Crowley and the Hidden God. London: Skoob Books Publishing.

HOWE, Ellic & MÖLLER, Helmut. 1979: “Theodor Reuss – Irregular Freemasonry in Germany, 1900-23”. In: BATHAM, Cyril N. (ed). Ars Quatuor Coronatorum – Transactions of Quatuor Coronati Lodge, Vol. 91 for the Year 1978. Oxfordshire: Burgess & Sons, pp 28-46.

KOENIG, Peter-Robert. 1992: “The OTO Phenomenon”. In: SANTUCCI, James. (ed.) Theosophical History, vol. IV, nº 3 (July, 1992) , pp. 92-98.

_____. 1994: Das OTO-Phänomen. München: AWR.

_____. 1999: “Introduction”. In: NAYLOR, Anton R (Ed.). O.T.O. Rituals and Sex Magick. Thame: I-H-O Books; pp. 13-61.

KING, Francis. 2002: Sexuality, Magic & Perversion. Los Angeles: Feral House.

SCRIVEN, David (i.e. Tau Apiryon). 2001: “Portraits of the Saints of the Gnostic Catholic Church”. In: CORNELIUS, J. Edward (Ed) e CORNELIUS, Marlene (Ed). Red Flame – A Thelemic Research Journal, nº 2. Berkely: Red Flame Productions, pp 117-224.

Texto original do meu querido irmão Carlos Raposo, publicado originalmente no blog Orobas.

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/biografias-carl-kellner

A Lei Natural de Eros

Por Nicholaj de Mattos Frisvold

Constantemente surgem debates sobre o natural e o perverso. A homossexualidade e as práticas sexuais “incomuns” de qualquer variedade são frequentemente trazidas à atenção porque aqui no mundo do sexo todos os homens e mulheres encontram suas inclinações mais puras e suas trevas mais cruas. A escala nesses debates está entre as inclinações sensuais pessoais, pois são mediadas por uma moral universalista insistindo que todos nós temos as mesmas inclinações sensuais – e aqueles que escapam da lei são pervertidos – ou pior. Esses discursos morais são quase sempre ditados por motivos religiosos, propagando uma escala muito curiosa entre a liberdade do pecado e a vergonha das próprias inclinações. Nesse clima de “uma moral serve para todos”, a resistência surge naturalmente na superfície.

Os debates que vemos hoje podem ser ancorados no século 11 e os debates eclesiásticos sobre o Direito Natural – aqui encontramos São Tomás de Aquino que realmente nos disse para olhar a natureza para ver o que era natural, pois ele não considerava o sexo ser particularmente sagrado – mas sim algo que os humanos compartilhavam com todos os outros animais.

No Livro 2 de sua Summa, Tomás discute as questões do Direito. Dada a orientação platônica e a influência muçulmana, Tomás estava sujeito, pois podemos supor que ele ao falar da Lei Divina não estava falando da shari’ah, mas da essência do próprio Islã – submeter-se à Lei Divina, como Abdullah, escravo de Deus. Essa ideia certamente envolve a doutrina do Destino e como todos nós nascemos com um condicionamento único que possibilita um caminho único (lei) para obter o bem em nossas vidas. Ser escravo de Deus implica descobrir a lei única que nos conduz à abundância como extensão da Lei Divina. Como espelhos de Deus, nós, como humanos, também refletimos todas as suas possibilidades refletidas em seus 99 belos nomes. Há, portanto, uma distinção entre a Lei escrita e a Lei natural.

A distinção entre a lei escrita e a lei natural também está incorporada no cristianismo nos evangelhos que falam da missão de Jesus Cristo. O que está claro é que Jesus se via como um profeta da lei eterna escrita no coração de cada um. É aqui que encontramos a divisão entre o Direito como um conjunto de regras de conduta desprovidas de razão. Siga a lei escrita e você não pode errar parece ser a mensagem, a lei transformada em um conjunto de regras não precisa de razão para trazer salvação. A lei eterna escrita em nossos corações segue uma dinâmica que exige que tenhamos consciência de nossas ações e motivações. Infelizmente, a consciência está gradualmente sendo substituída pela temporalidade e pelas interpretações morais que regem o momento socioespacial.

É a lei escrita nos corações dos homens que Tomás de Aquino discutiu em sua Summa. É esta Lei que ao longo do tempo foi reinterpretada à luz moral e deu origem à doutrina eclesiástica sobre o pecado e a sexualidade como a conhecemos hoje no ocidente moderno. Tomás, por outro lado, foi acusado de ser ingênuo nessas questões por teólogos posteriores. Bem, sua ingenuidade é a mesma posição ingênua que encontramos em tasawwuf (sufismo), Advaita Vedanta e várias correntes místicas de pensamento.

No artigo 3º do segundo Livro, Tomás discute o direito como uma forma de medida racional e vê o Direito eterno como algo em que temos uma participação única. Com razão, ele sugere aqui que a capacidade de tentação é consequência da própria natureza do Direito, portanto natural, – mas mais importante ele diz:

“Primeiro, na medida em que ele inclina diretamente seus súditos para algo; às vezes, de fato, sujeitos diferentes para atos diferentes; desta forma podemos dizer que existe uma lei militar e uma lei mercantil. Em segundo lugar, indiretamente; assim, pelo próprio fato de um legislador privar um súdito de alguma dignidade, este passa para outra ordem, para estar sob outra lei, por assim dizer: assim, se um soldado for expulso do exército, ele se torna um súdito de rural ou de legislação mercantil”.

Esses comentários são semelhantes ao que encontramos no Bhagavad Gita quando o texto discute a lei, ou seja, dharma e karma. A lei está sujeita ao que se deve fazer – se um trabalho, por exemplo, muda, o mesmo acontece com as regras de conduta. A Lei dá uma passagem diferente do que é lícito e bom. Simplesmente falando, um soldado tem o dever de matar – é a lei pela qual ele vive enquanto um comerciante vive de acordo com outras regras que valorizam outros atos além de matar como bons. É tudo flutuante – e estamos aqui falando de papéis sociais. Deve logicamente tornar-se ainda mais rico em nuances quando medimos o Direito como a medida da natureza de uma substância que encontramos em uma pessoa. O que Tomás tentou dizer é que existem algumas regras de conduta que são universalmente boas, pois refletem nossa Divindade. Todas essas são qualidades que marcam uma pessoa como sendo de bom caráter, decorrentes do próprio Amor.
No artigo 6, Tomás é ainda mais específico quando diz:

“várias criaturas têm várias inclinações naturais, de modo que o que é, por assim dizer, uma lei para um, é contra a lei de um cão, mas contra a lei de uma ovelha ou outro animal manso”.

O que faz uma divergência entre o animal humano e os demais animais é a presença da consciência. Mas isso é algo que é desenvolvido e não alcançado automaticamente, como nos diz o Salmo 48:21: “O homem, quando estava em honra, não entendia: foi comparado a bestas insensatas e feito semelhante a elas”.

O que ele simplesmente diz é que com o advento da razão vem uma maior capacidade de discernimento. Até que a razão seja desenvolvida, o homem é uma besta conduzida pelos impulsos da sensualidade, como um animal humano, ele é ditado pela lei natural de qualquer outro animal que atue sobre suas inclinações e impulsos. Com razão, as inclinações podem tomar forma e se tornar expressões profundas de nosso dharma, por assim dizer. Aqueles que exercem as inclinações naturais do prazer são fiéis a si mesmos – enquanto os que condenam com a tocha da condenação se revelam vítimas da propaganda da culpa. Por isso, negam-se a si mesmos…

É interessante essa distinção que Tomás faz entre os impulsos sensuais e a extensão da Lei divina conforme ela toma forma na razão. Poder-se-ia interpretar que as inclinações sensuais não são algo sujeito à Lei divina – mas sim ao desdobramento natural de sua naturalidade, quando agimos sobre nossa natureza, à maneira de uma besta, desprovida de razão – podemos dizer que a A lei tem precedência de alguma forma, exceto como sombra às inclinações sensuais mediadas pelo coração único?

A razão pode nos ajudar a compreender nossas inclinações sensuais; pode ser um rei sereno que dá sentido às nossas inclinações naturais e por isso abre os caminhos do eterno. Essa possibilidade se abre, não pela negação das inclinações – mas permite que sejam mediadas pela razão e pela sensibilidade pelas harmonias naturais.

“E assim a lei do homem, que, pela ordenança divina, lhe é atribuída, de acordo com sua própria condição natural, é que ele aja de acordo com a razão”, conclui Tomás. E com isso podemos resumir que nossas inclinações sensuais, em toda sua rica variedade, na medida em que trazem bondade – é simplesmente – uma coisa natural que aliada à razão pode trazer bondade e abundância. A questão parece ser não confundir os planos como tantos odiadores moralistas tendem a fazer quando dizem que toda a criação de Deus é uniforme e singular – uma criatura de massas…

….Nisso o sábio Eros pode brotar e revelar a grandeza criadora do Criador!

***

Fonte: The Natural Law of Eros, by Nicholaj de Mattos Frisvold.

Texto adaptado, revisado e enviado por Ícaro Aron Soares.

Postagem original feita no https://mortesubita.net/magia-sexual/a-lei-natural-de-eros/