A obra-prima de Yogananda

As Edições Textos para Reflexão publicam um grande clássico espiritual do séc. XX: Autobiografia de um Iogue, por Paramahansa Yogananda, na tradução de Rafael Arrais.

Este é um livro de muitas jornadas, há nesta obra muitos livros dentro de um só. Publicado logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, mas escrito ainda ao longo do terror, ele sinaliza uma nova esperança, uma nova era para a espiritualidade humana: que tenha sobrevivido ao tempo, e que seja até hoje um bestseller global, é um sopro de alívio para todos aqueles que despertaram da ilusão material.

Um ebook já disponível para o Amazon Kindle e na versão impressa (e, em breve, também na Google Play e outras lojas online):

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» Leia o Epílogo desta edição: As aventuras de Makunda

» Leia um trecho da tradução

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Cartas a um jovem poeta, de Rainer Maria Rilke

As Edições Textos para Reflexão desta vez trazem a você o livro mais conhedio de um dos maiores poetas de língua alemã, Rainer Maria Rilke .

Tudo começou com uma carta despretensiosa de um jovem poeta, “iniciante de tudo”, a um Rilke já em pleno domínio do seu mundo poético. Ao costumeiro pedido de avaliação, algo como, “Seriam bons os meus poemas?”, o poeta respondeu simplesmente que não poderia avaliar, pois que “nada está mais afastado de uma obra de arte do que as palavras de uma crítica: elas sempre terminam em desentendimentos mais ou menos desafortunados”. Foi assim que Franz Xavier Kappus, o jovem poeta, não ganhou nenhuma crítica literária exclusiva, mas sim conselhos de uma sabedoria avassaladora, tão intensos e profundos que são capazes, até hoje, de abalar nossas vidas em seus alicerces mais profundos… Assim nasceu Cartas a um jovem poeta.

Disponível em e-book na Amazon e na Saraiva:

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À seguir, trazemos a primeira carta de Rilke, na íntegra (tradução de Rafael Arrais):

Paris
17 de fevereiro de 1903

Caro Senhor,

Sua carta me encontrou apenas alguns dias atrás. Eu quero lhe agradecer pela grande confiança que depositou em mim. Isto é tudo o que eu posso fazer. Eu não posso debater acerca dos seus versos; pois que qualquer tentativa de crítica à poesia alheia seria algo estranho para mim. Nada está mais afastado de uma obra de arte do que as palavras de uma crítica: elas sempre terminam em desentendimentos mais ou menos desafortunados. As coisas não são todas tão tangíveis e exprimíveis em palavras quanto às pessoas usualmente nos fazem crer; muitas experiências estão além das descrições, elas se passam num espaço onde nenhuma palavra jamais adentrou, e não há nada que esteja mais distante das descrições do que as obras de arte, tais existências misteriosas cujas vidas perduram ao lado da nossa própria vida, pequenina e transitória.

Tendo esta nota como prefácio, devo lhe dizer que os seus versos não têm ainda um estilo próprio, ainda que possuam sementes ocultas e silenciosas de algo mais pessoal. Eu senti isso de forma mais clara no último poema, “Minha Alma”. É lá que alguma coisa de sua essência está buscando se tornar palavra e melodia. E no amável poema, “Para Leopardi”, uma espécie de parentesco com esta grande e solitária figura também parece se manifestar. Em todo caso, os poemas ainda não são nada em si mesmos, ainda não alcançaram sua independência, até mesmo estes dois que citei. Sua amável carta, essa que acompanhou seus poemas, permitiu que se tornassem mais claras para mim várias faltas que senti ao ler os seus versos, ainda que não me seja possível nomeá-las em específico.

Ora, você me pergunta se os seus versos têm alguma qualidade. Você me pergunta… Você também perguntou a outros antes de mim. Você enviou seus poemas para revistas. Você os comparou com a poesia de outros autores, e não se perturbou quanto certos editores rejeitaram seu trabalho. Agora, já que você pediu o meu conselho, eu lhe imploro que pare de fazer esse tipo de coisa. Você está olhando para fora, e isso é o que mais deveria evitar nesse momento. Ninguém pode lhe aconselhar ou lhe ajudar neste caso – absolutamente ninguém. Há apenas uma coisa que você deveria fazer: adentrar fundo em si mesmo. Descubra a razão que lhe comanda a escrever, veja se ela já espalhou suas raízes pelas profundezas do seu coração, confesse a si mesmo se você preferiria morrer caso lhe fosse proibida a escrita. E, acima de tudo, pergunte a si mesmo na hora mais escura da sua noite: eu devo escrever?

Cave em seu próprio ser por uma resposta profunda, e caso essa resposta ressoe positiva, caso você solucione tal questão solene com um vigoroso e simples “eu devo”, então construa sua vida de acordo com tal necessidade. Toda a sua vida, até mesmo em suas horas mais humildes e indiferentes, deve ser como um signo e um testemunho desse impulso.

Então vá para junto da Natureza. Daí, como se nunca ninguém houvesse tentado isso antes, tente falar sobre o que vê e sente e ama e perde. Não escreva poemas de amor; se afaste desses formatos que são muito dóceis e ordinários: eles são os mais difíceis de se trabalhar, e será preciso um grandioso poder, totalmente florescido, para que consiga criar algo individual onde boas, até mesmo gloriosas tradições já existem em abundância. Assim, salve a si mesmo de tais temas gerais e escreva sobre o que o dia a dia lhe oferece; descreva suas tristezas e desejos, os pensamentos que flutuam por sua mente e a sua crença nalguma espécie de beleza. Descreva tudo isso com o sentimento que passou de fato pelo seu coração, fale de forma silenciosa, humilde e sincera.

E, quando for se expressar, faça pleno uso das coisas a sua volta, das imagens em seus sonhos e dos objetos que estão em sua memória. Acaso o seu dia a dia lhe pareça pobre, não o culpe; culpe a si mesmo. Admita que você ainda não é um poeta hábil o suficiente para perceber suas riquezas; pois que para o criador não há nem pobreza nem lugares pobres, indiferentes. Assim, mesmo que se encontre numa prisão cujas paredes isolem todos os sons do mundo lá fora, você ainda não teria contigo toda a sua infância, essa tal joia além de qualquer preço, essa casa do tesouro de memórias? Foque a sua atenção nela. Tente trazer à tona os sentimentos submersos desse imenso passado; sua personalidade se fortalecerá; sua solidão irá se expandir e se tornar um lugar onde você poderá viver no crepúsculo, onde o barulho das demais pessoas passa bem longe, à distância.

E se deste voltar-se para dentro, desta imersão em seu próprio mundo, surgirem poemas, então você jamais pensará em perguntar a qualquer um se eles são bons ou não. Tampouco tentará fazer com que as revistas se interessem por eles: pois você os verá como uma valiosa posse pessoal, como um pedaço de sua própria vida, como se ela mesma lhe falasse por palavras.

Uma obra de arte é boa se ela surgiu de uma necessidade íntima. Esta é a única forma que alguém poderá julgá-la. Assim sendo, caro Senhor, eu não posso lhe dar qualquer outro conselho além deste: que mergulhe em si mesmo e veja quão profundo é o lugar de onde flui a sua vida; é lá na sua fonte que encontrará a resposta para o que quer que deva criar. Aceite tal resposta, do modo como lhe foi dada, sem tentar interpretá-la. Talvez você descubra que foi chamado a ser um artista. Se for este o caso, então aceite tal destino, suporte o seu fardo e a sua grandiosidade, sem jamais se questionar acerca de qual prêmio deverá aparecer lá fora. Pois que o criador deve ser um mundo para si mesmo, e deve encontrar tudo em si mesmo e na Natureza, para a qual toda a sua vida é devotada.

No entanto, após haver descido em si mesmo, e em sua solidão, talvez você deva renunciar o ofício de poeta (como já disse, se alguém sente que pode viver sem escrever, então não deveria escrever jamais). Em todo caso, ainda assim, esta busca interna que eu lhe recomendei não terá sido realizada em vão. Sua vida poderá encontrar os seus próprios caminhos desta experiência, e que eles possam ser bons, ricos e largos é o que eu lhe desejo, mais do que possa colocar em palavras.

O que mais eu poderia lhe dizer? Me parece que tudo o que havia por ser abordado já o foi. Finalmente, gostaria de adicionar mais um pequeno conselho: para que continue a crescer, de forma silenciosa e fervorosa, ao longo de todo o seu caminho de desenvolvimento. Afinal, você não poderia perturbar tal caminho de forma mais violenta do que buscar lá fora pelas respostas que só podem ser encontradas em seus sentimentos mais íntimos, nas suas horas mais silenciosas.

Foi uma alegria encontrar na sua carta o nome do professor Horacek; eu tenho grande reverência por este homem tão doce e culto, e uma gratidão que resistiu ao passar dos anos. Por favor, diga a ele como me sinto; fico muito feliz em saber que ele ainda se lembra de mim, feliz e lisonjeado.

O poema que deixou aos meus cuidados, eu estou lhe enviando de volta. E eu lhe agradeço mais uma vez por suas questões e sua confiança sincera, da qual, respondendo da forma mais honesta que me foi possível responder, eu tentei fazer de mim alguém um pouco mais digno do que realmente sou.

Atenciosamente,

Rainer Maria Rilke

#eBooks #Kindle #poesia

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A doce e bela morte

» Parte 2 da série “Todas as guerras do mundo” ver parte 1

Soldados! Não vos entregueis a esses brutais… Que vos desprezam… Que vos escravizam… Que ditam os vossos atos, as vossas ideias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como bucha de canhão! Não sois máquina! Homens é que sois!

(Chaplin, em O Grande Ditador)

A Coreia do Norte está situada na parte norte de uma península no extremo leste do continente asiático, entre a China e o mar que a separa da ilha do Japão. Como alguns devem saber, a península foi governada pelo Império Coreano até ser anexada pelo Japão, após a Guerra Russo-Japonesa de 1905. Ela foi dividida entre zonas de ocupação norte-americana (sul) e soviéticas (norte) em 1945, após o final da Segunda Guerra Mundial. A Coreia do Norte recusou-se a participar da eleição supervisionada pelas Nações Unidas, feita em 1948, que levava à criação de dois governos coreanos separados para as duas zonas de ocupação. Ambos, Coreia do Norte e Sul, reivindicavam soberania sobre a península inteira, o que levou-os à Guerra da Coreia, em 1950. Um armistício de 1953 terminou o conflito; no entanto, os dois países continuam oficialmente em guerra entre si, visto que um tratado de paz nunca foi assinado.

A Coreia do Norte se autodenomina uma república socialista, mas na prática sabemos que se trata de uma ditadura comunista que ficou presa ao passado, e tem enormes dificuldades de dialogar com um mundo cada vez mais globalizado. Em 2009, os quatro loucos aventureiros que apresentam o programa Não Conta Lá em Casa, do canal de TV a cabo Multishow, e costumam visitar áreas de conflito para nos trazer uma visão genuinamente brasileira da situação, conseguiram adentrar a Coreia do Norte valendo-se de sua “diplomacia sem noção”, como eles mesmos alegam. A despeito das cenas surreais que foram mostradas no programa, como as guardas de trânsito da capital Pyongyang fazendo sinais para um trânsito inexistente (quase não há carros lá), ou quando dedilham rock & roll no violão numa escola de música, e percebem que os adolescentes de lá nunca haviam ouvido coisa igual, a cena que nos interessa aqui é a conversa que eles têm com algum oficial de alta patente do governo ditatorial.

Devemos dizer que eles não são tão “sem noção” assim – surpreendentemente, quem inicia a conversa é o próprio militar, que parece ter uma curiosidade genuína em aproveitar aquele raro momento de contato com jovens vindos de um país tão distante, teoricamente neutro na questão das Coreias (no que também poderia ser interpretado como um perigoso interrogatório). Em todo caso, papo vai e papo vem, um de nossos heróis “sem noção” levanta a questão mais espinhosa sem papas na língua: “É sabido que a China protege os direitos da Coreia de fazer testes nucleares. É mesmo tão necessário fazer esses testes tão perto do Japão?”. O oficial então responde com sua versão dos fatos: “Você sabe que tivemos uma péssima experiência como colônia do Japão por mais de 40 anos. A Alemanha compensou todos os países que atacou, mas o Japão não compensou nada. Todas as 200 mil mulheres que eles usaram como escravas sexuais e os 8 milhões usados como força de trabalho… Eles torturaram nosso povo. Ao menos que eles compensem nosso país, nossa relação não irá melhorar. Nossos testes nucleares não visam atacar nenhum outro país, mas defender o nosso”.

Finalmente, o militar pergunta: “Qual a melhor maneira de resolver a tensão em nossa península?”. Ao que nosso sábio “sem noção” responde: “Acho difícil para um brasileiro responder essa pergunta, pois não temos tantos episódios de guerra recentes, como vocês têm. Eu poderia dizer – esqueçam o passado –, mas imagino que seja muito difícil”…

Não sei se concordam comigo sobre a importância desse tipo de diálogo, mas em todo caso ele toca na essência do que manteve tantas e tantas guerras ocorrendo pelo mundo, com breves intervalos de paz entre elas. De certa forma, todas as guerras do mundo são uma mesma guerra, e o que devemos é tratar de tornar os intervalos de paz cada vez mais duradouros.

A Guerra da Coreia não é propriamente um embate ideológico, mas uma luta por território e riquezas, como é afinal a razão de todas as guerras, mesmo as religiosas. O comunismo soviético e o capitalismo americano são apenas sistemas políticos, mas as nações não vão à guerra por achar que sua visão de mundo pode trazer benefício às nações vizinhas, seu real objetivo não é evangelizar ideologia alguma, mas pura e simplesmente conquistar mais território, e mais riquezas. Ao menos, é uma razão bastante simples de se compreender…

Mas, e qual é a melhor maneira de evitar que uma nação, necessitada ou não, invada outra em busca de riquezas? Ora, uma delas é estabelecer um claro equilíbrio de poder, onde o poderio militar de uma ou algumas nações forme uma ou mais potências muito superiores às demais, de modo que as outras nações se abstenham de arriscar invasões. O problema dessa “solução”, no entanto, é que ela não impede que as potências invadam outras nações, ou extraiam suas riquezas de forma autoritária (ou oculta, “maquiada” pela mídia). Uma solução que parece mais duradoura e, em todo caso, que é até hoje a melhor solução que os países encontraram, é estabelecer a diplomacia e um vigoroso mercado econômico entre as nações, de modo que a escassez de recursos de um país possa ser equilibrado pela venda de outros recursos que possua em excesso, e assim por diante… É claro que essa economia globalizada não é imune à manipulações, protecionismo, desequilíbrios e injustiças sociais, mas ao menos é muito melhor do que sangue, tiros de canhão e bombas nucleares.

O que um longo período de paz entre as nações pode nos permitir, entretanto, é que percebamos que, afinal, não existem nações, e que no fundo, todos nós somos bastante parecidos, quando estamos abertos para uma conversa amigável, amistosa, e quem sabe, “sem noção”. Fosse um dos quatro apresentadores do Não Conta Lá em Casa um descendente de japoneses que migraram ao Brasil após a Segunda Guerra, ele provavelmente teria enormes dificuldades em ter uma conversa tão amistosa com o oficial coreano. Mas, que impediria tal amistosidade, senão sua aparência nipônica, senão a pressuposição do coreano de que aquele brasileiro faria parte da “nação japonesa”, a mesma que estuprou suas mulheres e torturou seu povo há sabe-se lá quanto tempo? Tampouco o oficial nalgum dia refletiu sobre o fato de que, após a rendição do Japão aos EUA, eles ficaram proibidos de sequer ter um exército, e que por isso mesmo faz muitos anos que não nasce no Japão alguém que tenha qualquer coisa a ver com os estupros e torturas de quase um século atrás. O que mantém essas chagas abertas, afinal? O mito das nações!

Este é exatamente o título do livro de Patrick J. Geary [1], historiador americano, que basicamente defende a tese de que uma nação é um construto intelectual, ideológico, e não tem bases naturais nem tampouco científicas. Não é tão difícil de entender: assim como hoje vemos negros jogando em times de futebol de países europeus, pois são filhos de africanos que migraram para a Europa há décadas, e, portanto, já nasceram nos países que defendem, da mesma forma que ocorre no futebol, ocorre em tudo o mais. Se a nação fosse algo natural, deveriam haver raças no mundo, e os habitantes de um dado país europeu deveriam ser descendentes diretos dos ancestrais que colonizaram aquela dada região há milhares de anos atrás. Porém, a ciência e arqueologia modernas, juntamente com os testes de DNA, já provaram que só existe uma única raça humana, o homo sapiens, e nos deram fortes indícios de que ela provavelmente originou-se em alguma parte do continente africano, e depois migrou para toda a Terra. Se vamos falar em nação da maneira que Hitler e outros ditadores falavam, só podemos falar numa nação global, composto por todos os países e todas as regiões onde ainda caminham os homo sapiens.

Segundo Geary, “o processo específico pelo qual o nacionalismo emergiu [nos últimos séculos] como uma forte ideologia política variou de acordo com a região, tanto na Europa como em outras partes. Em regiões carentes de organização política, como na Alemanha, o nacionalismo estabeleceu uma ideologia com o fim de criar e intensificar o poder do Estado. Em Estados fortes, como França e Grã-Bretanha, governos e ideólogos suprimiram impiedosamente línguas minoritárias, tradições culturais e memórias variantes do passado em prol de uma história nacional unificada e língua e cultura homogêneas, que supostamente se estendiam a um passado longínquo”. E, não se enganem, “o ensino público de qualidade” também sempre foi à ferramenta ideal pela qual o mito das nações foi construído na era moderna… Hoje, porém, ele talvez não faça mais sentido, mas não significa que os currículos escolares estejam sendo atualizados.

Antes de encerrar, porém, devemos tomar cuidado com os termos aqui utilizados. Reflitamos… Nação, do latim natio, de natus (nascido), é a reunião de pessoas, geralmente do mesmo grupo étnico, falando o mesmo idioma e tendo os mesmos costumes, formando assim, um povo, cujos elementos componentes trazem consigo as mesmas características étnicas e se mantêm unidos pelos hábitos, tradições, religião, língua e consciência nacional.

Pois bem, esta é uma definição que pode se adequar as enciclopédias, mas não ao mundo real. Da mesma forma que um jogador negro da seleção de futebol alemã pode não ter a mesma cultura, a mesma religião, e muito menos a mesma cor de pele da maioria dos outros jogadores, ele é, não obstante, um alemão. Quando ele marca um gol, são todos os alemães do estádio que comemoram, todos os homo sapiens que decidiram torcer por aquele time de futebol. E assim é com tudo o mais: no fundo, tanto a seleção alemã quanto o Bayern de Munique são apenas times de futebol. É tão somente uma ilusão ideológica que determina que os times da Copa do Mundo precisam ter apenas jogadores nascidos ou naturalizados nesta ou naquela região do globo. Ninguém nunca viu uma fronteira na face da terra – mesmo assim, em nossas mentes, elas ainda existem.

Talvez fosse mais proveitoso usarmos outro termo… Pátria, do latim patria (terra paterna), indica a terra natal ou adotiva de um ser humano, onde se sente ligado por vínculos afetivos, culturais e históricos. O termo também pode significar somente o ambiente ou espaço geográfico em que discorre nossa vida. Em raízes ainda mais antigas, o termo liga-se ao latim pagus, que significa “aldeia”, e que também deu origem ao termo “pagão”. Ora, como muitos devem saber, toda nossa cultura e religião ancestrais nasceram de aldeias, e xamãs, e as práticas espirituais do paganismo. Além de anteceder a “nação” em milhares de anos, o termo ainda nos oferece a liberdade de considerar que nossa pátria não é somente o lugar onde nascemos, mas também todos os locais onde escolhemos um dia morar, e todos os amigos, e todos os amores que construímos pelo caminho.

Dulce et decorum est pro patria mori… Horácio [2] talvez estivesse certo: pode ser belo e doce morrer pela pátria, defendendo aqueles que realmente amamos daqueles que os querem dizimar; E não propriamente lutando em guerras supostamente ideológicas, baseadas em mitos acerca de povos que nunca foram exatamente o nosso, nos incitando a matar inimigos que, tampouco, jamais foram os nossos. Apenas para que um opressor obtenha o território e as riquezas de outro opressor.

A mais nobre função de um soldado é lutar pela paz, e pela liberdade daqueles que se encontram atrás dos muros dos castelos e das trincheiras nas fronteiras imaginárias. Até que um dia, muros e fronteiras, e balas e canhões, não tenham mais razões de ser. Esta sim, é a única beleza possível da guerra, seja na vitória, seja na morte.

» Na próxima parte, a estrela inimiga…

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[1] O mito das nações, lançado no Brasil pela Conrad Editora.

[2] Poeta e filósofo romano (65 a.C. – 8 a.C.).

Crédito das imagens: [topo] Divulgação (apresentadores do NCLC na Coréia do Norte); [ao longo] Divulgação (Cacau, jogador brasileiro naturalizado alemão, comemora seu gol na Copa do Mundo de 2010, quando defendeu a seleção da Alemanha); Google Image Search/Anônimo

O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.

Ad infinitum

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#guerra #política

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impertinências?

“Eu não vejo necessidade disso!” Diz um senhor barbudo no meio do pátio. “Pra quê dia de consciência de alguém? Isso muda alguma coisa? As pessoas preconceituosas vão continuar sendo. Não há garantia pra ninguém de que isso realmente mude a posição de alguém.“

O jovem ao lado, negro e cansado do papo, olha o senhor branco e velho e não responde. Sai dali pensativo, sem interesse em dialogar com mais ninguém. Seus antepassados não concordariam com aquilo, nunca! As lutas travadas já poderiam ter sido esquecidas e tudo ter voltado como antes se não fosse a manutenção destas datas simbólicas. Ele sabe disso, poderia até passar horas num discurso frenético com o senhor, mas de que adiantaria mesmo? Nesse ponto ele concorda. Preconceito algum muda por causa disso, mas ocorre algo que o senhor não parecia perceber. Ao determinar que tais datas tenham tanto valor e repercussão os homens tolos, estes cheios de preconceito ao que for, temerão represálias cada vez maiores. E já que eles não conseguem corrigir suas tolices sozinhos, com alguns poucos pensamentos acerca, a leia o oprimirá.

Esse pensamento o deixou cabisbaixo. Nos últimos anos, diante da balburdia da homofobia, ao se deparar com o “dia do homem hétero” ele até sentiu a vontade de rir, mas teve uma impressão ruim. Viu que estes dotados de pouca capacidade ao se tornarem minoria poderiam explodir num frenesi louco para não perderem o “jeito”. Iriam gritar por liberdade de expressão, coisa que ele concorda plenamente, mas até que ponto agredir alguém é liberdade saudável?

Continuou cabisbaixo. Foi andando e sentiu vontade de ir mais a fundo no pensamento. Lembrou-se dos seus estudos esotéricos que o levou ao ocultismo. Lembrou-se de tantos místicos de araque que ele conhecera cheios de rancor e preconceitos. Era muito curioso todo aquele papo de energia positiva e não perdiam a chance de alfinetar um cristão que fosse. Tudo muito contraditório. Quando por fim conheceu e estudou com afinco o ocultismo, sentindo que ali não mais se depararia com esse tipo de atitude viu que estava enganado. “O ser humano é preconceituoso por natureza!” Ele sentiu-se mal com tal afirmação. O que deveria dizer ao seu próprio eu? Tentou imaginar que esteve errado esse tempo ao pensar assim. “Os ocultistas são seres elevados!” E desta vez não segurou o riso. Continuou caminhando debaixo do sol. Assim pensou em tudo o que ele aprendeu nesse tempo todo. Sendo negro, interessado por magia e homossexual. Tudo o que sabia era que ele sentia-se mal todo santo dia. E não era por erro dele. Era uma culpa que não lhe pertencia. O ocultismo sanou parte disso, mas ao ver irmãos agirem de forma tão mesquinha e medíocre ele assustou-se.  Não há topo de pirâmide alguma. Estas já não são os moldes do etéreo. O mundo na verdade nunca foi feito sobre trilhos em linha reta. Por que haveria de haver um deus no trono?

Esse pensamento fora mais devastador ainda. No entanto lembrou-se de um amigo, pelo qual tinha grande sentimento, sentimento este que ele teve que provar que não se referia ao seu lado homoafetivo, de modo algum, para não perder o amigo. Acabou rindo novamente. As pessoas são medrosas demais para se desfazerem de suas certezas. Acham que tudo está determinado, que seres humanos com pensamentos distintos são perigosos. Que o toque do olhar ou da mão vai fazer alguém tornar-se de sal ou de ouro. Essas imagens não são por mero acaso. Cada um dinamiza seu mundo de acordo com suas mais profundas aspirações. Se temem, irão ressecar diante do que estão para perder e endurecerão como estátuas. Se o valor é o mais importante, até o amor terá preço e código de barras numa prateleira qualquer.  Continuou até sua casa. Morava só e não chegou a fazer parte das cotas do governo, coisa que ele não sabia se era bom de fato, mas diante das evidências era necessário um empurrão. Ele lembra o quanto sofreu pra conseguir aprender o que não lhe ensinaram no colégio. Como a falta de acesso à internet o prejudicou por só ter livros velhos e rabiscados de algum estudante branco qualquer.  Como o transporte público era defasado, curioso como público não significa livre de taxas, no hospital eu não pago nada. Ele riu novamente.  Será?!

“A vida está ressentida.” Ele pensa alto. “Ela está sem vigor para mudar.” São tantos termos e moldes para se enquadrar que não existe mais o ir e vir. Ele mesmo já declarou-se não homossexual, várias vezes. Acha o termo esdrúxulo demais. Na verdade ele já apaixonou-se por uma mulher e teve até um filho com ela. “Falta uma árvore e um livro!” pensa ele, mas rapidamente se retraiu no pensamento, sentindo a crítica literária em balbúrdia diante de uma citação tão impertinente. E rindo fechou a porta atrás de si, pensando nos paulos coelhos e nos zumbis dos palmares. Desta vez não fez nenhum banimento como de costume, sentia-se aliviado em ver que verdadeira vontade não tem bula.

Djaysel Pessôa

S.O.Q.C.

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“O homem que é escravo de suas paixões ou dos preconceitos deste mundo não poderá ser um Iniciado; ele nunca se elevará enquanto não se reformar; não poderá, pois, ser um Adepto, por que a palavra ‘Adepto’ significa aquele que se elevou por sua vontade e por suas obras.”

Eliphas Levi

#medo #Preconceito

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Uma breve advertência

» Introdução da série “Para ser um médium”

A mediunidade é a capacidade da consciência humana de trocar informações com outras consciências de forma não verbal, influenciar e ser influenciada por elas. Sejam consciências que habitam um corpo físico, sejam consciências incorpóreas.

Um homem não crê no que você diz, ele afirma que você não está vendo ninguém ao seu lado esquerdo, nem ao seu lado direito. Ele tem toda razão: você não está vendo esses dois espíritos ao lado dele, assim como você não está vendo homem algum encarnado a sua frente…

Há muito a ciência já comprovou que tudo o que percebemos através do olho humano são fótons, pequenos pacotes, ou quanta, de partículas de luz pura. Para tal usamos nosso sentido de visão, mas ele só funciona quando há luz: no caso, os fótons que viajaram desde o Sol até as frestas da janela do centro espírita em que você se encontra, “ricocheteando” em qualquer pequeno pedaço de matéria que reflita luz.

A física também já provou que ao trocarmos apertos de mão, nenhum átomo de nossa mão se choca com átomos da mão alheia: do contrário, já teríamos nos exterminado em fusões ou fissões nucleares. Cabe à força de repulsão eletrostática, gerada pelos elétrons a circular freneticamente cada um dos átomos de nossas mãos, “imprimir” uma “sensação de solidez” a um aperto de mão, através das terminações nervosas de nossos dedos e da palma da mão e, mais especificamente, através de nosso sentido de tato.

Daí você pode se questionar: “mas eu consigo ver os fótons a refletir no corpo deste homem, eu consigo encostar levemente em sua testa durante meu passe magnético, mas não consigo realmente ver os espíritos ao seu lado, muito menos os cumprimentar com um abraço, da forma que eu gostaria!” – E você, igualmente, terá toda razão.

Sabe quando você anda pela rua do centro, apinhada de gente, mas por vezes percebe quando uma – apenas uma! – garota interessante está olhando para você com aquele “olhar de interesse”? Ora, admita: você é jovem, solteiro, você faz isso tantas vezes ao dia que é algo até mesmo corriqueiro… Mas você não percebe tais olhares, tais possibilidades de um amor futuro, com a visão, nem com o tato, nem com os outros sentidos ditos físicos – audição, olftato e paladar. Você percebe tais olhares com algum sentido obscuro, talvez um sexto ou sétimo sentido, quem vai saber?

Isso pode parecer “anticientífico”, mas há cientistas renomados estudando tal fenômeno de maneira séria e genuinamente científica, como o biólogo britânico Rupert Sheldrake, que chegou a dedicar o título de um de seus livros ao assunto: A sensação de estar sendo observado (publicado no Brasil pela Cultrix). De fato, isso abre caminho para que o sentido exato que você usa para ver tais espíritos seja um dia compreendido plenamente pela ciência… Mas não se engane: até lá você terá de se contentar com o que vê, como o que intuí, com o que sente. Até lá te acusarão de ser louco, esquizofrênico, charlatão, fraude, enganador… Ou, tanto pior: bruxo, feiticeiro, maçom, necromante, “adorador de demônios” – ainda que não façam a mais vaga ideia do que alguns desses termos efetivamente signifiquem. Esteja preparado.

No entanto, você nem sequer está plenamente convencido de que tudo isso que se passa em sua mente é real, ou fruto da própria imaginação. Este é um questionamento que deve permanecer em sua alma por grande parte de seu desenvolvimento, quando passará de médium passivo (como quase todos) a um médium ativo… Guarde-o com carinho e consideração. Você sem dúvida pode estar errado, e muitas vezes está (ou estará), portanto não tenha nem um pingo de pretensão de ser dono de alguma verdade, nem jamais, jamais se coloque na posição de julgar a “evolução espiritual” ou o carma alheio.

Você sempre será apenas o juiz e o escravo de sua própria causa, muitas vezes mera ferramenta na mão de seres muito mais sábios do que você, para que auxilie na evolução alheia e, dessa forma, na sua própria. Ser médium é ter disciplina suficiente para assumir uma maior liberdade e responsabilidade perante o próprio caminho ascendente da alma, é ter conhecimento e discernimento suficientes para poder julgar melhor do que ninguém o que vem de fora e o que vem de dentro, é ter compaixão e vontade suficientes para sacrificar uma boa parcela de sua vida mundana em prol da espiritualidade.

Na sua vida desperta, muitas vezes duvidará da soberania do mundo espiritual sobre as contas a pagar, as relações amorosas instáveis, os problemas de relacionamento no trabalho, o jogo decisivo de seu time de futebol no fim de semana, etc. Mas então virão os sonhos, aqueles em que você se encontra com os espíritos da mesma forma que eles aparecem para você, e que se veem sem usar a visão, e se falam sem usar a voz, e se ouvem sem usar a audição, e flutuam e voam (até mesmo você, as vezes), e por vezes se tocam, e as ditas explosões nucleares serão o que mais se assemelha a sensação de preenchimento, de sentido, de “pertencimento” a uma outra espécie de realidade – muito maior.

Ser médium é trazer um pouco de sonho, um pouco de poesia, um pouco de amor, para esta realidade de átomos a deslizar por alguma espécie de tecido espaço-temporal, e de luz eterna a preencher tudo o que observamos a olhos vistos… Um grande médium e poeta português uma vez psicografou de si mesmo tais versos:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm. [1]

Pode-se mesmo dizer que, de certa forma, toda a essência da mediunidade se encontra em tais versos. Se não os conseguiu compreender até hoje, guarde-os com carinho, sinta-os, que um dia talvez compreenda melhor…

O caminho de mediunidade é tão árduo e recompensador quanto qualquer outro grande caminho da alma humana. Você pode ser um grande iniciado nos conhecimentos ocultos, um grande conhecedor de ramos da filosofia, um grande conhecedor da sabedoria oriental antiga, um grande entusiasta da ciência, um grande especialista em raciocínio geométrico e matemático, etc. Ou mesmo pode seguir num ou mais desses caminhos ao mesmo tempo. Mas não espere apenas vento favorável, nem recompensas garantidas, nem um céu de ócio eterno… Afinal, a Natureza tem sido muito clara com todos nós, por todos esses anos, todas essas eras, e todas essas vidas: não há almoço grátis, os grandes saltos evolutivos se dão exatamente através da “guerra da fome e da morte”, do embate com as adversidades que a vida nos coloca à frente, sempre confiante, sempre esperançosa em nossa própria capacidade divina de suplantar tais barreiras, e melhorar, passo a passo, um pensamento de cada vez.

Feita esta breve advertência, se quiser realmente prosseguir em tal caminho, tentarei lhe auxiliar com algumas das mais profundas cascas de sentimento que conseguir retirar de mim mesmo. Esta provavelmente será uma série longa de artigos, e eu no momento não faço ideia de onde exatamente irá nos levar – e esta é uma “peculiaridade” essencial da mediunidade, e da poesia: ser livre.

Médium, assim, de mim mesmo, todavia subsisto. Sou porém menos real que os outros, menos coeso, menos pessoa, eminentemente influenciável por eles todos. [2]

» Na primeira parte, na sequencia: da remota Sibéria a floresta amazônica, a odisseia da mediunidade através do tempo…

***
[1] Trecho inicial do poema Autopsicografia, de Fernando Pessoa.
[2] Trecho da Carta ao casal Monteiro, de Fernando Pessoa.

***

Crédito da imagem: Bernd Vogel/Corbis

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#Espiritismo #FernandoPessoa #Mediunidade

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/uma-breve-advert%C3%AAncia

Como perdoar um adultério

Há uma belíssima história do Novo Testamento que fala sobre a manhã em que Jesus foi apresentado a uma mulher que havia supostamente traído o seu marido. Quem a trouxe foram os judeus escribas e fariseus, isto é, que estudavam e aplicavam as leis da época. Segundo a legislação, ela deveria ser apedrejada até a morte.

No entanto, o texto diz, em João 8:6, que os fariseus o tentavam a dar o seu próprio julgamento, a fim de que o pudessem acusar… Ora, se Jesus concordasse com as leis judaicas, estaria contrariando as leis romanas, que não consentiam com punição tão severa. Se, no entanto, defendesse uma punição mais branda, estaria contrariando, supostamente, as leis estabelecidas por Moisés.

A reação do Rabi da Galileia foi, como sabemos, de uma sabedoria profunda. Após se inclinar sobre a terra e escrever algumas palavras com o dedo, sem dúvida deixando todos em sua volta confusos, mas também fazendo com que tivessem tempo de refletir, ele simplesmente respondeu:

“Aquele entre vocês que esteja sem pecado, que atire a primeira pedra”.

A análise literal deste trecho já é bela por si só, mas será possível alcançar uma compreensão mais profunda desta história?

Surpreendentemente, eu fui encontrar esta interpretação aprofundada não no cristianismo, mas no sufismo, a vertente mística do Islã, e que considera Jesus um de seus profetas. Foi da boca de um mestre sufi que eu conheci esta história:

Na doutrina sufi, há sete níveis de consciência, como que gradações que marcam o caminho da animalidade até a união mística com Deus. Quatro desses níveis são tão avançados que pertencem basicamente aqueles que já estão em seu caminho de iluminação espiritual. Os três demais, no entanto, são comuns no mundo todo, e são exatamente estes que são retratados na história de Jesus e da mulher adúltera.

“Mas, espera aí, quer dizer que essa história é só uma metáfora, que nunca ocorreu de verdade?” – você pode perguntar, e a realidade é que, para muitos sufis, assim como para muitos místicos, não faz tanta diferença se a história “ocorreu de verdade”, há cerca de dois mil anos, exatamente como descrita nos textos sagrados; o que mais importa, no final das contas, é o que esta história, assim como tantas outras narrativas esotéricas, podem nos ensinar hoje, neste momento, nesta vida. Em outras palavras, os místicos não querem provar nada a ninguém, exceto a eles mesmos…

Voltando a explicação sufi, os três níveis de consciência, ou três “eus”, que são retratados neste trecho de João são:

Nafs ammara (o eu animal, ou que induz ao mal)

Esta é a condição básica de todo ser humano ainda desconectado de sua própria essência e, dessa forma, da essência divina da própria realidade. Sem condições de controlar sua própria animalidade, é “arrastado” por ela para aqui e acolá, de modo que a satisfação dos desejos do ego se torna o principal objetivo da sua existência.

Porém, como o ego jamais pode realmente ser satisfeito, neste nível de consciência os seres passam por grandes conflitos e angústias, e raramente conhecem reais momentos de paz.

Na história bíblica, este “eu” é representado pela mulher adúltera, que “vive no pecado”. No entanto, como veremos em seguida, é exatamente este nosso aspecto mais obscuro o que tem o maior potencial de elevação, de reforma, de depuração, de melhora.

Vale lembrar, é claro, que todos os personagens da história se referem a aspectos de nós mesmos, o que significa que nós somos ao mesmo tempo tanto a mulher adúltera quanto os demais “eus” presentes na narrativa.

Nafs lawwama (o eu acusador)

Neste nível, a consciência alcança um entendimento intuitivo profundo do que é “certo” e “errado”. Porém, é preciso destacar que esta noção vai além da mera legislação humana, e se encontra arraigada no próprio coração de cada ser.

Há uma passagem belíssima da poesia de Jalal ud-Din Rumi, um grandioso poeta sufi, que diz assim:

“Além das ideias de certo e errado existe um campo, eu lhe encontrarei lá”.

Quem nos encontrará lá é o Amado, isto é, Deus, ou o alvo final de toda esta milenar caminhada espiritual. Não é da noite para o dia, obviamente, que conseguiremos nos elevar “além das ideias de certo e errado”, e viver no bem naturalmente, sem que precisemos de leis para nos colocar nos trilhos…

Até lá, corremos o risco de nos tornarmos acusadores tenazes, a focar nosso julgamento inteiramente nos outros, e não em nós mesmos. É daí que nasce o fanatismo religioso, que absolutamente nada tem a ver com o misticismo ou com a verdadeira religião; enfim, que afasta, e jamais aproxima do Amado.

Dito isso, é fácil identificar como os fariseus representam este estado de consciência. Estão inteiramente dentro da lei, é verdade, mas ainda não conseguirem ir além dela. Ainda não conseguiram chegar ao real conceito de perdão, e por isso acusam os demais, pois são incapazes de perdoar a si mesmos.

Assim, todos nós que carregamos todas essas culpas nos sótãos da consciência somos também como os fariseus, incapazes de perdoar nossos pensamentos adúlteros.

Nafs mulhima (o eu inspirado)

Aqui a consciência finalmente abre sua janela para a luz eterna que banha a tudo o que há desde o início dos tempos. E, ainda que a fresta aberta ainda seja tão pequena, e ainda que os ventos volta e meia façam a janela voltar a se fechar, fato é que a visão de tal luz é inesquecível, e não há caminhante que não se lembre deste momento, para sempre.

A resposta de Jesus, “atire a primeira pedra quem estiver sem pecado”, é ao mesmo tempo um exemplo da inspiração que chega de algum outro mundo, uma ideia genuinamente nova, e um testemunho de que o caminho de ascensão da consciência é árduo e muito, muito longo…

Nós, que trafegamos ao mesmo tempo por esses três níveis de consciência, certamente temos de levar em consideração que por muito tempo ainda viveremos no pecado. Mas isso não deveria ser motivo para cairmos no pessimismo ou na falta de ânimo.

Pois se foi o próprio Rabi quem disse que dia virá que faremos tudo o que ele mesmo fez, e ainda muito mais, isto significa que nós também poderemos um dia chegar aonde ele chegou, e assim, olhar para nossa pobre mulher adúltera e lhe dizer, conectados a luz que cintila em tudo que existe:

“Ninguém lhe condenou, e eu também não lhe condeno. Vá, e não peques mais”.

É assim que nos perdoamos, que domesticamos nossa animalidade, e que nos tornamos aptos a um dia, finalmente, encontrarmos aquele tal campo onde veremos o Amado, face a face.

***

Crédito da imagem: Cena de A última tentação de Cristo

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#Cristianismo #Jesus #Rumi #sufismo

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/como-perdoar-um-adult%C3%A9rio

Human

O cineasta Yann Arthus-Bertrand passou 3 anos coletando histórias reais de mais de 2 mil pessoas em 60 países. Estes relatos pessoais com suas emoções, suas lágrimas e sorrisos, unem a todos nós. Em Human, um documentário monumental de mais de 4 horas, tais relatos são expostos numa determinada sequência que a princípio parece aleatória, mas depois, com o tempo, percebemos que segue um certo “fio da meada”, e este fio nos conecta a todos, pelo coração…

Para além dos relatos intensos, profundos, e por vezes extremamente emocionais, tanto de anônimos quanto de famosos, ainda somos presenteados com belíssimas imagens aéreas de nosso planeta, que parecem dividir o documentário em pequenos capítulos próprios. De fato, uma boa forma de encarar essas mais de 4 horas é assistir tais trechos um por um, interrompendo a exibição após o final de uma sequência de imagens aéreas (se estiver logado, o YouTube salva o momento aproximado em que você interrompeu o vídeo):

Human, vol. 1

» Assistir a Human, vol. 2

» Assistir a Human, vol. 3

“Eu sonhei com um filme em que a força das palavras ampliasse a beleza do mundo. As pessoas me falaram de tudo; das dificuldades de crescer, do amor e da felicidade. Toda essa riqueza é o centro do filme Human. Esse filme representa todos os homens e mulheres que me confiaram suas historias. O filme se tornou um mensageiro de todos eles.”

Yann Arthus-Bertrand

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Crédito da imagem: Human/Divulgação

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#Videos

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/human

O Caibalion: uma nova tradução

As Edições Textos para Reflexão desta vez trazem a você o grande clássico do hermetismo moderno, O Caibalion.

Escrita e publicada no início do século 20 por estudantes anônimos do hermetismo, esta obra introdutória traz preceitos e axiomas do antigo hermetismo, comentados e explicados para uma nova era e um novo público. Publicado originalmente em inglês, nos EUA, este Caibalion é mesmo um fruto de nosso tempo, porém ele se refere a outro Caibalion, bem mais antigo e oculto, que se perdeu nos anais da história, mas que se encontra preservado nas mentes e nas almas de todos aqueles que não deixaram morrer a chama. Acaso deseje se tornar um jogador no jogo de tabuleiro da vida, e não mais mera peça a ser movida pelas circunstâncias e influências externas, este pequeno livro cheio de luz pode ser o seu guia nas noites mais escuras.

Disponível em e-book e versão impressa :

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À seguir, trazemos um trecho do Cap. I – A Filosofia Hermética:

Nos primeiros tempos, havia uma compilação de algumas Doutrinas Herméticas Básicas, passadas de instrutor a estudante, que ficaram conhecidas como O Caibalion, cujo exato significado do termo esteve perdido por muitos séculos. Este ensinamento, entretanto, é conhecido por muitos seres ao qual ele foi derramado ao longo dos séculos, de lábios a ouvidos, sempre escoando pelo tempo. Até onde sabemos, os seus preceitos nunca foram escritos ou impressos. Se tratava de uma mera coleção de máximas, axiomas e preceitos, que soavam incompreensíveis aos estrangeiros das ordens, mas que eram prontamente assimilados pelos estudantes assim que o seu conteúdo era explicado e exemplificado pelos Iniciados aos seus Neófitos.

Tais ensinamentos constituíam de fato os princípios básicos da Arte da Alquimia Hermética, que, ao contrário da crença popular, se baseia no domínio das Forças Mentais, e não dos Elementos Materiais – portanto, a Alquimia não fala da transmutação de um tipo de metal em outro, mas da transmutação de um tipo de Vibração Mental em outra. As lendas acerca da Pedra Filosofal, que transformava qualquer metal comum em Ouro, falavam tão somente de uma alegoria relacionada à Filosofia Hermética, facilmente compreendida por quaisquer estudantes do verdadeiro Hermetismo.

Neste pequeno livro, cuja Primeira Lição é esta, nós convidamos nosso estudante a examinar os Ensinamentos Herméticos, conforme expostos no Caibalion e explicados por nós, humildes estudantes dos Ensinamentos (e que, apesar de carregarem o título de Iniciados, são tão somente estudantes prostrados aos pés de Hermes, o Mestre). Assim, nós lhe oferecemos muitas das máximas, dos axiomas e dos preceitos do Caibalion, acompanhados de explicações e comentários que acreditamos servir de auxílio para a compreensão do estudante moderno, particularmente porque o texto original se encontra propositalmente velado em muitos termos obscuros.

As máximas, axiomas e preceitos originais do Caibalion estarão sempre destacados em negrito no restante de nossa obra, e todos eles vêm diretamente dos lábios de Hermes. O restante do texto, sem destaque, pertence a nós. Esperamos que muitos dos estudantes aos quais nós hoje oferecemos esta pequena obra possam tirar tanto proveito do seu estudo e conhecimento quanto aqueles buscadores que já a seguiram através do Caminho do Adepto, ao longo dos muitos séculos que se passaram desde o tempo de Hermes Trimegisto, o Mestre dos Mestres, o Três Vezes Grande:

“Onde se encontram as pegadas do Mestre, os ouvidos daqueles preparados para os seus Ensinamentos se abrem completamente.” – O Caibalion

“Quando os ouvidos do estudante estão preparados para ouvir, logo vêm os lábios para preenchê-los de sabedoria.” – O Caibalion

Assim, conforme indicam os Ensinamentos, a divulgação desta obra se dará na medida em que os seus futuros estudantes se encontrarem em condições de compreendê-la, pois do contrário sequer lhe darão a atenção devida, e ela lhes passará desapercebida, como deve ser. E, segundo a mesma Lei, quando o pupilo estiver devidamente preparado para receber a verdade, então esta pequena obra dará um jeito de chegar ao seu conhecimento.

O Princípio Hermético de Causa e Efeito, em seu aspecto de Lei de Atração, tratará de juntar lábios e ouvidos – e muitos pupilos ainda hão de conhecer este livro.

Que Assim Seja!

#hermetismo #Magia #Ocultismo

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/o-caibalion-uma-nova-tradu%C3%A7%C3%A3o

Jesus e a Neurologia

Uma das recentes descobertas mais importantes da neurologia é a de que nossa consciência, ou processo de consciência, opera com defasagem de cerca de meio segundo em relação ao “tempo real”. Todos nós sabemos que vemos a luz de um relâmpago alguns momentos antes de ouvir o estrondo do trovão, que vêm na seqüencia, apesar de ambos serem ondas de partículas resultantes do mesmo raio – ocorre que as ondas de luz viajam pelo ar com uma velocidade muito superior as ondas sonoras.

No caso do raio, a distância temporal entre o relâmpago e o trovão é bem superior a meio segundo, e nesse caso a consciência “separa” os dois em dois momentos distintos, como de fato o são. Já em outras situações, a consciência consegue “mesclar” som e luz, de modo a que interpretemos a ambos como ocorridos no mesmo momento.

Quando vamos a um concerto de rock, a luz que nos chega aos olhos mostrando nosso guitarrista predileto dedilhando as cordas de sua guitarra viajou muito mais rápido do que o som dos acordes tocados, mas nosso cérebro compensa esse fato iniciando o processamento do som assim que as ondas chegam, enquanto o processamento da luz fica alguns centésimos de segundo em stand by, aguardando o input sonoro para que a consciência nos entregue estes momentos como se fossem simultâneos: o dedilhar da guitarra e o som proveniente dos alto-falantes do show.

Reações emocionais, como o medo, também são desencadeadas antes de forma inconsciente – e depois de cerca de meio segundo, conscientemente. Por isso quando andamos pela rua e “sentimos a presença de alguém atrás de nós”, essa sensação nos chega primeiro de forma inconsciente, como um alerta de perigo: “algo se aproxima!”; Então, frações de segundo depois, quando identificamos do que se trata – por exemplo, virando a cabeça para ver quem se aproxima – temos uma resposta consciente… Não vivemos mais como tribos sedentárias trilhando a natureza selvagem, e felizmente na maior parte do tempo esses alertas provam ser nada mais do que pequenos sustos de nosso sistema inconsciente, sempre de prontidão. Entretanto, também é graças a ele que evitamos alguns assaltos no meio do caminho.

Em suma, estamos equipados com um elegante sistema de percepção. Através dele, não é preciso “ver” o perigo, ou seja, processá-lo visualmente de forma consciente, para que possamos iniciar nossa resposta a ele. Ainda não se sabe ao certo “com que olhos” percebemos a aproximação de alguém, pois muitas vezes nosso tato não é aguçado o suficiente para perceber um pequeno deslocamento de ar em nossa volta, mas fato é que nossas reações inconscientes ao perigo são, e foram, vitais para nossa sobrevivência enquanto homo sapiens.

A cerca de dois mil anos atrás um sábio nos trouxe esse conselho:

Ama teu irmão como tua alma, protege-o como a pupila dos teus olhos [1].

Esta frase de Jesus não é encontrada em nenhum evangelho do Novo Testamento, mas sim no evangelho “apócrifo” de Tomé. A princípio ela não traz nada de novo em relação a frases parecidas dos evangelhos “oficiais” de Constantino – porém, hoje se sabe, através dessas descobertas da neurologia, que ela nos traz um ensinamento “um pouco mais profundo”, para aqueles que têm olhos, e conhecimento, para ver…

A reação de proteger os olhos ante algum objeto arremessado em sua direção é, talvez, a mais instintiva e inconsciente de todas as reações ao perigo eminente. É impossível ficar de olhos abertos quando um objeto é arremessado em nossa direção, e caso tenhamos mãos livres, é igualmente impossível evitar o reflexo instintivo de levá-las ao resto para protegê-lo. Não se trata mais de uma escolha consciente, nosso cérebro nos “força” a nos proteger.

Ainda mais interessante do que isso, entretanto, são os resultados de pesquisas sobre reações inconscientes e conscientes de acordo com o aprendizado de certas atividades. Alguém que está aprendendo a dirigir um carro, por exemplo, precisará de ações conscientes para todas as pequenas atividades e movimentos requeridos: virar a direção, mudar a marcha, verificar o espelho, procurar um retorno na estrada. Já um motorista habilitado, com apenas alguns meses de experiência, fará quase tudo isso de forma inconsciente… Apenas em rotas em que dirige pela primeira vez, desconhecidas, irá procurar pelo retorno na estrada de forma consciente. Já em rotas que trafega todos os dias, até mesmo isso fará no modo “automático” [2].

Reagir no “automático” é também compreendido como reagir de forma natural, sem julgamentos, sem a necessidade de decisões conscientes. Como um animal que age por instinto.

Não é plausível imaginar que conseguiremos aprender a amar tão facilmente como se aprende a dirigir um carro. Porém, é perfeitamente plausível imaginar que o amor, como qualquer outra atividade consciente, também se aprende e se aprimora com a prática. Portanto, não basta desejarmos sermos mais amorosos apenas na teoria, na base da promessa para Deus ou para nós mesmos… Para se amar cada vez mais e melhor, nos basta praticar, nos basta, simplesmente, amar!

Mas, será que um dia conseguiremos seguir a este conselho de Jesus em toda a sua divina plenitude? Amar sem julgar, sem se perguntar o porque? Amar naturalmente, amar de forma instintiva, amar integralmente?

Talvez estejamos ainda muito longe disso, mas ainda nos vale a torcida para que toda a nossa ciência, e toda a nossa compreensão de nós mesmos, ainda hão de nos ajudar a chegar lá – na terra dos que amam incondicionalmente.

***
[1] Verso 25 do Evangelho de Tomé, achado em Nag Hammadi.
[2] Para maiores detalhes sobre esta e outras pesquisas da neurologia moderna, recomendo a leitura do Livro do Cérebro, publicado em 4 edições separadas pela Editora Duetto. Outra dica são os livros de Oliver Sacks, publicados no Brasil pela editora Cia. Das Letras.

***

Crédito da imagem: Arjuna Zbycho (Diz a lenda que o Sai Baba materializou esta imagem a partir de uma impressão do Sudário de Turim que um cristão devoto levou até o seu templo. Seria esta a face de Jesus ou de Jacques de Molay? Ironias e sincronicidades…)

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#amor #Ciência #Jesus #neurologia

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A Descoberta do Invisível

» Parte 1 da série “Reflexões sobre o materialismo”

A matéria (do latim: materia) é aquilo que existe, aquilo que forma as coisas e que pode ser observado como tal; é sempre constituída de partículas elementares com massa não-nula (como os átomos, e em escala menor, os prótons, nêutrons e elétrons).

Empédocles foi um filósofo pré-socrático que viveu na atual região da Sicília, entre 490 e 430 a.C.; Também foi médico, legislador e místico. Aproximadamente 2460 anos antes de Darwin e Wallace, já postulava que “os seres evoluíram da água por processos naturais” e que “sobrevive aquele que está mais bem capacitado”. Empédocles viveu em uma era onde os sábios ou filósofos eram ao mesmo tempo religiosos e cientistas.

Por exemplo, ele defendia que o universo era mantido por suas forças fundamentais: o Amor unia os elementos e o Ódio os separava. Esse tipo de nomenclatura pode afugentar os cientistas atuais (bastaria substituir o termo “amor” por “gravidade” para, quem sabe, mudarem de ideia), mas os bem informados saberão que a própria ciência deve muito aos pensadores daquela época. Ao contrário de Pitágoras, Empédocles não achava que a natureza poderia ser desvendada apenas pelo pensamento ou pelo estudo místico dos números. Ele era, portanto, um místico observador…

De fato, um dos primeiros experimentos científicos de que se tem notícia foi realizado por Empédocles com um instrumento de cozinha bastante simples – o ladrão de água. Tratava-se de uma espécie de esfera de latão com perfurações de um lado e um longo cano fino no lado inverso. É usado até os dias de hoje, mas mesmo em sua época já vinha sendo usado há muito tempo. Basta imergir a esfera em qualquer balde com água, segurando-a pelo cano e sem tapa-lo, e depois retirar da água tapando o orifício do cano com o dedão – enquanto mantemos o cano tapado, a água da esfera não sai, mas quando retiramos o dedo do cano, ela vira uma espécie de regador e respinga a água para fora por suas pequenas perfurações.

Ora, muita gente deve ter inserido a esfera na água com o cano tapado, por engano, e percebido que nenhuma água havia sido “roubada” do balde pelo ladrão de água… Para praticamente todos isso não tinha nenhum significado oculto ou profundo, mas nas mãos do cientista isso era de uma significância até mesmo aterradora – se não havia “nada” dentro do ladrão de água, se ele estava sem água alguma, como pôde a água do balde não conseguir adentrá-lo apenas porque pressionamos a ponta do cano com os dedos? A única explicação era que o próprio ar ocupava aquele espaço!

Empédocles havia descoberto o invisível. “O ar” – pensou ele – “deve ser matéria em uma forma tão divinamente dividida que não podia ser vista”. Certamente os antigos já consideravam o ar um dos elementos básicos da criação, e Empédocles partilhava dessa crença. Porém, talvez para eles o ar fosse o elemento visto nas nuvens ou sentido nas ventanias e mesmo nas brisas sutis… Mas certamente ninguém havia concebido que o ar ocupava espaço, que preenchia o aparente vazio entre nós e os móveis de nossa casa, ou a árvore do outro lado da estrada. Empédocles havia provado a existência do ar através da observação da natureza, algo que não poderia ser feito somente com a mente, ou com os números.

Toda a ciência moderna se baseia naquilo que pode ser percebido ou diretamente pelos olhos, como um utensílio de cozinha ou uma árvore, ou através de instrumentos, como ondas de rádio ou galáxias distantes. A ciência moderna não considera aquilo que é percebido apenas pela mente, dentre outras coisas porque normalmente não é uma experiência que pode ser percebida por mais de uma pessoa – ou seja, geralmente não é um experimento replicável. Por isso costuma-se pensar que todo cientista é uma materialista, mas isso faz sentido?

O termo “materialismo” só foi cunhado em torno de 1702 pelo filósofo alemão Leibiniz, mas seu conceito está diretamente relacionado ao atomismo, que nada mais é do que um desenvolvimento das ideias de Empédocles por um filósofo que, apesar de ter vivido na mesma época de Sócrates, está “historicamente agrupado” também entre os pré-socráticos: Demócrito.

Nascido em 460 a.C. na região da Trácia, Demócrito foi um discípulo de Leucipo de Mileto, e depois seu sucessor. É considerado por alguns “o pai da ciência moderna” pelo desenvolvimento do atomismo, mas há quem afirme que ele apenas continuou o trabalho de Leucipo, inspirado pelo pensamento de Empédocles. Em todo caso, nenhuma obra original de Demócrito sobreviveu até a modernidade, o que se sabe sobre ele é, sobretudo, o que outros pensadores de sua época disseram a seu respeito. Dizem que Platão o detestava, por exemplo, e que gostaria que seus livros fossem queimados, mas isso é provavelmente apenas uma anedota que procura demonstrar como o atomismo era, de certa forma, o oposto do idealismo platônico.

Outra anedota talvez seja mais realista, e conta que Demócrito dizia que “o riso torna sábio”, além de retratá-lo como alguém que costumava levar a vida com muito bom humor e gargalhadas ocasionais – “a vida sem festas ocasionais é como uma longa estrada sem estalagens pelo caminho”. Por essas e outras, ficou conhecido na Renascença como “o filósofo que ri”… Mas certamente os partidários do idealismo e particularmente do cristianismo não partilharam de seu bom humor: relegaram sua obra a um ínfimo “rodapé histórico”, uma espécie de filosofia apócrifa.

Mas com o renascimento da ciência, seu pensamento voltou à tona e, apesar de termos apenas pequenas referências de sua obra, sabemos que ele estava fundamentalmente correto quando defendia que “tudo é feito de átomos”. Apenas não pôde vislumbrar o quão profundamente sagrados eram tais átomos.

» Na continuação, como cortar uma maçã sem causar um incidente nuclear…

***

Crédito das imagens: [topo] Wikipedia (Democritus, por Hendrick ter Brugghen); [ao longo] Imagem retirada do episódio 7 da série de TV Cosmos, de Carl Sagan (eis o ladrão de água descrito no artigo).

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#Ciência #Filosofia #materialismo

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