Capítulo 1: Jesus estuda na minha classe!
Meu nome é João. Meu sobrenome é Ninguém. Sou João Ninguém no nome e na vida. Moro numa favela, sou feio, vou mal nos estudos e não tenho nenhuma habilidade especial. Como se isso não bastasse, tenho outros três colegas que se chamam João e todos eles são muito populares. Então toda vez que alguém chama:
– Ô, João!
Eu já nem me viro. Nas primeiras três vezes eu me virei, só para ouvir essa adorável resposta:
– Não é com você não, seu idiota!
Por isso, tento ficar na minha. Na boa, eu realmente detesto os outros três Joões. Não sei o que o pessoal enxerga nesses caras. São uns esquisitões.
Tem o João Batista. O sujeito é totalmente antissocial. Ele se veste com pelos de camelo e cinto de couro, mesmo no calorão de quarenta graus. Só come mel e gafanhotos. Tá certo que a gente aqui na favela é pobre, mas também não é pra tanto.
Ele só fica lá paradão do lado do esgoto, batizando todo mundo que passa, e a galera acha o máximo. Sorte dele que o esgoto passa bem no meio do nosso colégio. Assim ele pode continuar os batismos nos intervalos.
– Eu batizo com água! Mas depois vai vir um cara mais forte do que eu que vai batizar com fogo a rapaziada, e eu não vou ser digno nem de desamarrar os tênis dele.
O Batista não para de falar esse negócio e tira notas muito baixas. Ele sempre pega recuperação em biologia, mas o prof Mendel é bonzinho e arredonda a nota. Os dois gostam de conversar sobre mel e abelhas, sabe-se lá o porquê.
Já o João da Cruz tira notas melhores, mas também não é muito sociável. Só quer saber de rezar, ou “contemplar” seja lá o que for isso. Ele não para de falar sobre a “noite escura” mesmo quando está dia.
Ele e um tal de João Clímaco (sim, outro João! Ainda bem que é de outra turma, para não gerar ainda mais confusão) são muito amigos e vivem subindo e descendo juntos os dez degraus da escada da entrada principal do colégio. Não param de filosofar sobre a subida da escada, que chamam de “escada de Jacó”. O Jacó era um aluno antigo que uma vez pegou no sono e dormiu nessa escada. Não vi nada de mais nisso, mas nesse colégio o pessoal cria caso com as menores coisas.
Dizem que o Cruz gosta da Teresa de Ávila, que é outra colega nossa, mas eu acho que eles são apenas amigos. Também está cheio de “Teresas” na nossa classe. Tem a Teresa de Lisieux, que todo mundo chama de “Teresinha”, porque ela é pequena, delicada e não para de falar de flores. E tem a Teresa de Calcutá, que é muito boazinha e sempre quer ajudar todo mundo.
Nenhuma das três se destaca em termos de notas, mas a Calcutá sempre faz uns estudos extras. Não porque quer aumentar as próprias notas, mas para ajudar quem precisa.
O sobrenome do terceiro João é Evangelista. Ele é um aluno modelo: tira ótimas notas e é extremamente educado com todos. Seus hobbies são pescar e escrever. Todos gostam dele, porque é simplesmente impossível não simpatizar com o sujeito. Eu digo que o detesto apenas para manter a minha reputação, já que considero uma questão de princípio desprezar os três Joões.
A estranheza do Evangelista é ao menos respeitável: ele não sai gritando por aí como o Batista e nem fica subindo degraus como o Cruz. Ele anuncia o Juízo Final, mas faz isso de maneira discreta. Ele escreve histórias sobre anjos com trombetas, jogando fogo e sangue na Terra e matando todo mundo.
As histórias dele são muito populares na sala. Todos estão sempre aguardando o próximo capítulo.
– Quando é que sai o próximo capítulo, João?
– O quê? – perguntei.
– Não tô falando contigo, ô abobado! – retrucou Judas, com aspereza – por que é que você acha que todo mundo sempre quer falar com você, hein?
Resolvi deixar quieto. Eu às vezes respondia por reflexo. Uma falha minha.
Não era uma boa ideia bater boca com o Judas Iscariotes. Ele era o bad boy da turma e comprava briga com qualquer um. Se bobear, até com o Evangelista ele brigava. Havia boatos de que ele já havia metido uns socos no Simão e no Francisco, outros colegas nossos, por um motivo banal: eles eram felizes. Judas não.
– Também quero ler a continuação! – exclamou Francisco de Assis, com alegria – adorei os quatro animais cheios de olhos! O que eles significam?
– Somos eu, Mateus, Marcos e Lucas – respondeu João Evangelista, com um sorriso amigável.
Esses três eram grandes amigos de João, mas eram da outra turma. Também gostavam de escrever. Lucas não andava escrevendo muito ultimamente, já que estava estudando que nem um condenado para o vestibular. Ele queria fazer medicina. Era um dos poucos no nosso colégio que pretendia fazer curso superior.
Mas os melhores amigos do Evangelista eram Simão e Tiago. Os três gostavam de pescar juntos.
– O meu primo vai se transferir para nosso colégio na semana que vem – comentou Tiago.
– Qual o motivo da transferência? – perguntou Simão.
– Jesus disse que não pode realizar milagres em sua própria terra, porque lá as pessoas não têm fé, devido à dureza de seus corações – respondeu Tiago.
– Pensei que Jesus fosse seu irmão e não seu primo – observou Martinho Lutero.
– Você sempre adora uma boa polêmica, hein, Martinho! – exclamou Tiago, aborrecido – eu já cansei de dizer que ele é meu primo e não meu irmão. Quantas vezes terei que repetir isso?
– Está bem, está bem! – disse Martinho, com urgência – não precisa ficar zangado. E não é verdade que eu adoro uma boa polêmica. Erros devem ser apontados quando são encontrados.
– Eu concordo plenamente com sua afirmação, meu caro – disse Jerônimo Savonarola – nesse momento, por exemplo, vocês estão conversando em aula, o que é proibido. É melhor que sigam as regras. Não veem que estão sendo rudes com o professor Tomás?
– Estou mais preocupado com outra coisa – comentou o professor Tomás de Aquino.
– Deixe-me adivinhar – disse Jerônimo – o senhor está preocupado que o seu colega, o professor Giordano Bruno, está nos ensinando um monte de heresias nas aulas de física! Eu acho que chegou a hora de conversarmos sobre fogueiras. Ou será que devo denunciar o romance imoral do professor Abelardo com a professora Heloísa?
Jerônimo adorava acender fogueiras nos intervalos, que ele chamava de “Fogueiras da Vaidade”. Mas ele nunca queimava pessoas, apenas objetos que ele considerava ilícitos. As garotas da sala o odiavam, porque ele mandava que elas jogassem os brincos, pulseiras e maquiagem lá dentro, porque aquelas coisas eram do demônio.
– Eu só estou me perguntando o que são essas… criaturas que Francisco está segurando – disse Tomás.
– São apenas nossos irmãos vermes, professor – explicou Francisco – eles estavam num local perigoso do pátio do colégio e poderiam ser pisados a qualquer momento. Então eu os protegi.
Hildegarda de Bingen, a aluna mais inteligente da classe, deu um grito.
– Professor, há hora e lugar para isso – argumentou Hildegarda – não questiono as boas intenções de Francisco, mas isso já é um exagero. Sabemos que os animais devem ser respeitados, mas as Escrituras nos dizem com clareza que eles não estão em primeiro lugar na hierarquia da criação.
– Minha querida irmã Hildegarda – sorriu Franscisco – em respeito à senhorita e ao professor Aquino, irei encontrar uma morada adequada aos nossos irmãos e devolvê-los à natureza. Tenho a sua autorização, mestre?
– Pode ir – disse o professor Aquino, com um aceno de mão.
E Francisco saiu da sala aos pulos e com imensa alegria, cantando.
– Espere! – exclamou Rosa de Lima – deixe alguns deles aqui para usarmos em nossa penitência. Prometo que não irei machucá-los.
– A senhorita pode usar o meu cilício em vez disso – disse Francisco lá da porta, amavelmente – tenho um para você e outro para a sua amiga Catarina. Podem pegar na minha mochila.
– Agradeço imensamente – disse Catarina de Siena.
Rosa e Catarina gostavam muito de fazer penitências rigorosas, a ponto de sangrar. Sinceramente, eu tinha um pouco de medo delas e preferia ficar bem longe. Não entendia como, apesar de tanto sangue, parecia emanar uma grande paz e amor daquelas duas.
A próxima aula foi com o professor Agostinho. Simão sussurrou para Tiago:
– Quando o seu primo chega mesmo?
– Ele acabou de me mandar uma mensagem pelo celular – sussurrou Tiago em resposta – ele chega amanhã.
– Seu primo tem celular? – perguntou Simão, surpreso – pensei que ele havia feito um voto de pobreza.
– Ah, mas o celular dele é um modelo muito antigo – disse Tiago – então não conta. O único jogo que tem nele é o da cobrinha.
Tiago e Simão foram atingidos na cabeça por duas pêras.
– Vocês estão muito barulhentos! – exclamou o professor Agostinho – e estão usando celular no meio da aula?
– Professor, estamos falando sobre algo muito importante – argumentou Simão – é sobre a vinda de Jesus!
– Eu não já avisei a vocês que quem usa celular em aula vai para o inferno? – perguntou Agostinho.
– Nunca li nada disso em seus livros – observou Hildegarda.
– Bem, isso somente porque na época em que eu os escrevi ainda não havia celular – justificou-se o professor – ou de outra forma esse artigo de fé certamente estaria lá.
No dia seguinte, estávamos muito empolgados aguardando a vinda do primo de Tiago. João Batista não se continha de felicidade e batizou muita gente no esgoto naquele dia.
Até que ele adentrou pelos portões do colégio.
Usava calça jeans e tênis. Tinha uma barba respeitável e invejável, rara de se encontrar em adolescentes como nós. Ele vinha acompanhado de outros três rapazes de roupas brancas.
Ele cumprimentou Tiago e cada um apresentou os amigos para o outro.
– Esses são Miguel, Gabriel e Rafael – disse Jesus – eles ficarão um tempo conosco.
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Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/jesus-adolescente-no-s%C3%A9culo-xxi