A Grande Conspiração Universal

Entrevista efetuada por Daniel Rebisso e publicada na Revista Realismo Fantástico número 6 de Curitiba. Ernesto Bono, autor de A Grande Conspiração Universal, faz incríveis revelações em entrevista concedida a Realismo Fantástico. Pesquisador italo-brasileiro, naturalizado, radicado no Rio Grande do Sul, o ufólogo Ernesto Bono é um dos pioneiros na abordagem filosófica do fenômeno OVNI. Nesta entrevista concedida ao também famoso ufólogo Daniel Rebisso, Bono fala de suas últimas descobertas sobre a grande conspiração dos extraterrestres que estariam dominando planeta.

Realismo Fantástico — Primeira curiosidade: como a Ufologia entrou em sua vida?

Ernesto Bono — Muitos anos antes de me tornar médico e psiquiatra. Foi por volta dos meus 14 anos que comecei a interessar-me profundamente pelo tema e, desde então, nunca mais abandonei essa temática fantástica ou essa manifestação do insólito.

RF – Como conferencista e escritor, observamos que a sua principal preocupação em relação aos OVNIs tem-se voltado para as questões filosóficas ou, como poderíamos dizer, para o aspecto epistemológico e que envolve o conhecimento das coisas. A seu entender, o que a realidade ufológica freqüentemente impõe aos homens?

EB – Eu suspeito que a presença dos UFOs, entre outras coisas, visa modificar nosso modo de sentir, perceber e entender a Vida e o mundo. Eles estariam aí para que, de algum modo, o homem abandone seus velhos esquemas de mal conhecer, esquemas instituídos no Ocidente pela filosofia e epistemologia de Aristóteles e fortalecida por Tomás de Aquino.

Tanto esses velhos filósofos como René Descartes, também filósofo e precursor da Ciência Moderna estabeleceram a primazia da dualidade perceptual. Para eles, sem qualquer dúvida – e para nós também, condicionados pelas idéias deles – existe uma realidade material que se estende e que dura, a qual pode ser encarada por outra realidade que pensa, o corpo-ego-homem, no caso. Esse dualismo ou multiplicidade perceptual acredita, por exemplo, que o homem é um ser à parte, separado, criado por alguém – Deus bíblico ou Acaso científico –, dotado de sentidos e capaz de sentir, pensar e perceber. O homem confrontar-se-ia então com um mundo que estaria à sua frente, mundo que precisa ser bem enfocado, bem percebido, decifrado. Ou melhor, teríamos que raciocinar em cima do que se enxerga e se percebe. Malgrado a impecabilidade dessa postura, ela infelizmente é um modo de conscientizar ou perceber totalmente errôneo e que vem prevalecendo há milhares de anos. Sem qualquer dúvida é prático e cômodo ao Status Quo, mas não passa de uma safadeza e desonestidade da lógica-razão em nós. Tal gnoseologia ou epistemologia é ótima para que os donos do poder alcancem seus fins, e é ótima principalmente para subjugar e dominar os inocentes e desavisados. Os orientais há milênios deram-se conta das mentiras do pensamento comum e da lógica-razão. Esse é o motivo profundo de os sábios orientais nunca se terem permitido criar uma ciência moderna, por exemplo, com seu modo de mal conhecer e de atuar pior. Embora os UFOs nada tenham a ver com a Sabedoria Oriental, talvez estejam tentando romper com nosso esquema enganador de mal conhecer, perceber, senão todos os UFOs, pelo menos boa parte. A presença anômala e escorregadia dos UFOs quiçá esteja sugerindo que conhecer corretamente não é exatamente aquilo que Aristóteles, Ciência e todos os demais filósofos do Ocidente estabeleceram, porque lhes convinha.

RF – Seria então necessário ver ou interpretar o fenômeno OVNI por um outro ângulo que não o científico?

EB – Aprofundando-me no tema, descobri que as humanas possibilidades de conhecer são somente duas: ou prevalece a Direta ou Sentir (do Sábio Autêntico), ou prevalece a Indireta ou pensar (do homem comum, do ignorante, do cientista confuso e conformado). Explico-me melhor: Conhecimento Direto é quando a Mente em SI – ou a Mente num Homem livre do mal pensar – não se separa do dado, ou daquilo que está à sua frente, isto é, a objetividade, que não precisa ser só e sempre material. Tal Mente Pura (ou SENTIR Primevo) comunga com a Objetividade Primordial – ou com o “ISTO” ou também com o Cosmo Verdadeiro. Em tal Saber-e-Sentir há uma interfusão, interpenetração, intercâmbio constante entre o Ser e a Coisa e que em verdade não são dois, mas sim são uma não-dualidade perfeita… No Conhecimento Direto se Sente, se Sabe e se Intui, se Comunga, mas não se rumina a respeito (raciocínio) ou não se discorre propositadamente sobre o percebido, sobre o que se conscientiza. Não existe um ego, ladrão, salteador e mentiroso para tal, e que se meta a distorcer tudo, a ocultar ou a acrescentar lorotas e enganos perceptuais. No conhecimento indireto se pretende que haja um ego-pensante aqui, que se confronta com determinada coisa, lá e que independeria dele, mas que em verdade é só e totalmente pensada. O ego-pensamento em todos nós sempre acha que sente, que sabe, que intuí, que compreende, que atua etc, quando em verdade só pensar em sentir, pensa em agir, pensa em compreender, mas mais mal conhece do que sabe de fato, mais mal lucubra do que intui; tudo raciocina e nada compreende; só pensa em agir, sem conseguir atuar e contento, livremente e alcançar fins verdadeiros. O que o ego-pensamento alcança é exatamente o fruto pensado ou aquilo que se propôs fazer. Longe porém está de usufruir daquele Saber-Sentir Puro, ou de alcançar aquele Isto Primordial, os quais não são tão transcendentes assim nem tão metafísicos. Os discos voadores autênticos são um ISTO Primordial que só o Saber-e-Sentir no Homem vivencia ou senão surpreende e com eles comunga. Há momentos, porém, que certos OVNIs, como uma concessão deles mesmos, transformam-se em objetos vulgares, fugazes, em aparelhos e que qualquer reconhecimento humano ou mal conhecer discursivo pode captar. Só que as experiências que a testemunha-ego tiver sempre serão precárias, confusas, enganadoras, traumatizantes ou até mesmo sofridas. E toda conclusão que de tal experiência o ego quiser retirar sempre será aparências, enganos ou mentiras.

RF – Mas esse tipo de apreensão ufológica nos parece quase um estado de Iluminação Interior. Será preciso tanto?

EB – E por que não poderia ser assim? Aristóteles, Descartes, Kant, Hegel e a ciência moderna inventaram estórias a respeito da objetividade, do viver cotidiano, do Cosmo, onde os UFOs parecem caber. E quem pode nos garantir que o mundo ou a objetividade tem que ser exatamente como eles disseram? E além de ser assim, quem pode nos garantir que uma objetividade tipo UFO tem que se acomodar às leis e dogmas que a ciência inventou, estabeleceu para resultar em PODER. Ou um UFO tem que se comportar conforme a previsibilidade dos preconceitos humanos?

RF – Mas e o conhecimento indireto de que o amigo fala seria só um fornecedor de aparências e ilusões?

EB – Ele é o pai da própria ilusão e tem como base a própria lógica-razão, mãe de todas as aparências e contradições bipolares e polivalentes! A lógica-razão sempre polariza o que nós acreditamos conhecer por meio dela, ou seja sempre resulta num certo e errado, num longe e perto, num alto e baixo, num longo e curto, num duro e mole etc. –, ou senão oculta a Verdade-Isto, ou ainda distorce o Sentir Primevo e Puro, esconde o Real e em seu lugar engendra substitutos enganadores tipo falso mundo, falso universo, falso objeto. O REAL em si, por sua vez, não é nem material nem anímico, não é nada acrescentado nem dependente, nem é algo que o pensamento comum possa decifrar. Na verdadeira VIDA, em cujo seio os OVNIs também pode caber, e com eles outros Cosmos – e não só o modelo de universo científico – não existe “um homem aqui” e “um mundo lá”. O que nessa Vida talvez prevaleça é exatamente uma não-dualidade vivenciável, indescritível para a lógica pura, mas descritível para os sentidos e emoções. Digamos, é um todo em que homem-e-meio são algo completo. Sol-e-Raios, Raios-e-Sol. Aí, portanto, não haveria nenhuma necessidade de o homem na condição calhorda de ego-pensante separar-se desse meio e depois tentar conhecê-lo para dele tirar ou não proveito e implantar o PODER institucionalizado. Bastaria a esse homem comungar com seu meio, reconquistando aquela unidade ou aquela não-dualidade sensorial e que sempre é uma união afetiva e inteligente.

RF – A idéia é interessante, mas como se aplicaria esse Conhecimento Direto à pesquisa ufológica, ou senão ao seu correto entendimento?

EB – Para se aplicar o Conhecimento Direto não existe nem como nem porquê. O fato é que, sempre que se levantam os “como” e os “por quê?” em seguida passa a prevalecer o conhecimento indireto, o grande enganador e distorcedor de verdades simples e imediatas, como certos UFOs, às vezes podem ser. A presença UFO não oferece um “o quê” ou um “como” pensar. De algum modo, apenas sugere que o teu modo de conhecer é precário ou está errado e que tens que te modificar. Sua realidade, quando presentes se fazem, em termos aparentemente objetivos e materiais, é sempre um desafio para um ufólogo honesto e livre de escolas. Parece que eles vivem a nos dizer: Pára de pensar tanto e tão mal e começa a sentir-e-saber de outro modo! Esse teu outro modo de sentir-e-saber pode perfeitamente transformar-se num caminho que te conduzirá até nós”. E aí voltaremos a ser aquela não-dualidade, Isto-Sentir e Sentir-Isto, em que tanto os homens de boa vontade como os homens cósmicos, seus irmãos mais velhos, acabarão se confundindo e se abraçando no seio de um mesmo PAI-MÃE, de onde tudo surge, mas nada se cria.

RF – Acreditas que todos os UFOs ou melhor, os ufonautas seriam capazes de tal gesto?

EB – É claro que todos não, mas boa parte sim. E é exatamente contra esta boa parte que o Governo Invisível humano e os ETs nefastos do além estão lutando. Boa parte dos ETs devem ser positivamente neutros ou benevolentes; e quem sabe estejam inseridos nesse modo de conhecer direto ou não-dualista. Estes talvez estejam tentando atrair alguns homens inteligentes para levá-los de volta às suas origens, o centro de tudo, onde tudo converge e também desde onde tudo diverge, sem que nada nem ninguém perca aquela condição primordial de Consciência-EU.

RF – E dos demais extraterrestres, dos ETs nefastos, o que poderias no dizer?

EB – Que são velhos aliados de humanos também nefastos daqui mesmo. Tanto a esses ETs velhacos como os seus compadres terrestres do Governo Invisível interessa e convém que prevaleça o famoso conhecimento indireto e indiretíssimo, ou seja, o conhecimento tipo comum ou tipo científico, a moral gananciosa e mesquinha do materialismo niilista, a falsa religiosidade. Esses ETs bandidos ou até mesmo neutros negativos visam o PODER, no além e no próprio mundo, como também o Governo Invisível visa este PODER ou a hegemonia mundial. Ambos não têm qualquer emoção, amor e sentimentos. São máquinas trituradoras e destruidoras sem o emocional-cardíaco, e que é exatamente a alma humana. Eles são os famosos emissários da morte!

RF – Em seu livro A Grande Conspiração há um capítulo inteiro dedicado às revelações de John Lehar e Milton William Cooper a respeito do Majestic-12 e do governo secreto do mundo. O que te levou a crer na validade dessas denúncias?

EB – Exatamente os pormenores das denúncias que ambos fizeram. Como diz William Moore, que os contra-ataca, ambos podem ser apenas simples paranóides, fascistas, farsantes ou quem sabe agentes da CIA disfarçados. Suspeito que William Moore é muito mais do que eles. Para não ter amor à verdade e ao próximo sofrido, Milton William Cooper estaria se expondo demais, pode até correr risco de vida. Nem ele mesmo se dá conta da incrível e espantosa gravidade de suas denúncias. Põe a nu as manobras de um Governo Invisível que efetivamente existe, encabeçado por uma CIA, MJ-12, CFR, TC, Bilderburger, Sociedade Jason, Alternativas l, 2 e 3 etc. como nunca ninguém o fez. John Lear é muito mais prudente e comedido. Mostra o crime, sim, mas acha que ninguém é criminoso. Só os ETs safados é que seriam. M.W.Cooper prova que a maior culpa cabe não aos ETs, mas ao Governo Invisível, que tem atormentado o mundo inteiro, visando o Poder Máximo… O que mais me deixou pasmo foi saber que desde 1947, atrás de um Truman ou de um Eisenhower, já existiam assessores presidenciais humanos, manipulando o governo norte-americano e soviético, constituindo inclusive e com toda felicidade organizações ocultas e prejudiciais aos homens e aos ETs, digamos bem intencionados, como o MJ-12 (ou melhor, projeto Grudge, Sign, Projeto Grudge, Projeto Bluebook, Projeto Yellowbook, Sociedade Jason etc. etc). O que me deixou abismado foi ver como esses humanos em absoluto nada honestos – alguns dos quais representam exatamente a anti-raça humana – se levantaram em bloco, tentando de todas as maneiras possíveis ocultar e bloquear toda e qualquer difusão de verdades ufológicas que não conviessem aos interesses deles. Eles não podiam deixar transparecer que sociedades secretas ou eles próprios, o Governo Invisível, já lidavam com ETs nefastos há milhares de anos. Também não podiam deixar transparecer que sempre houve uma Grande Conspiração Universal, e que, após a Segunda Guerra Mundial, ou após a Segunda Grande Derrota Mundial – pois não foi o homem quem ganhou tal guerra – outros tipos de UFOs e ETs haviam irrompido no mundo, numa tentativa desesperada de alertar os homens ou de ajeitar o que ainda podia ser ajeitado.

RF – Mas então o que tens a dizer da falsa alegação de que os governos mundiais manteriam o fenômeno UFO em sigilo a fim de manter a ordem social e perpetuar o bem estar de todos?

EB — Essa tese de manter a ordem social, malgrado as histerias que o programa radiofônico de Orson Welles em 1938 causou, é completamente falsa. Os poderosos que Milton William Cooper denuncia, e que eu julgo extremamente prejudiciais para o gênero humano, foram os que se levantaram após o segundo conflito mundial (ou derrota mundial), tentando esconder e sufocar uma coisa que havia resolvido intervir desde fora, desde o Insólito, e com o qual eles não contavam. Ou seja, as aparições em massa de OVNIs neutros e quem sabe benevolentes, não aliados de certos humanos safados e não ligados à Conspiração Universal. Esta última talvez atinja seu ápice neste fim, de século ou no novo.

RF – Acreditas realmente que seres extraterrestres tenham firmado algum pacto ultra-secreto com as grandes Potências da Terra?

EB – Não que assinaram, mas foram induzidos a firmar pelo Governo Invisível, e que manda em todas essas grandes potências aparentes. Por conseguinte, foram enganados tanto pelos ETs nefastos como por certos humanos safados daqui mesmo. Ao assim me exprimir, estou me baseando em dados históricos, filosóficos, religiosos, espirituais e ocultistas. A Grande Conspiração não abrange somente a área política e econômica, mas abrange tudo, principalmente o pretenso lado religioso, espiritual, ocultista e paranormal da humanidade.

RF – Independentemente de Cooper e Lear, de onde tiraste a tua convicção do pacto entre ETs e humanos safados?

EB – Conhecendo bastante bem um plano geral que está em andamento há milhares de anos. Tenho me apercebido dos interesses em jogo e que são da ordem econômica, militar, política, religiosa, filosófica, científica, mágica, ocultista, sociológica etc. A partir da manipulação disso tudo, pode-se conhecer o que o Governo Invisível pretende e sempre pretendeu: a hegemonia mundial absoluta. E para tal, nada melhor do que os alienígenas aliados deles! Sempre confundimos esse Governo Invisível ou clandestino com uma Fraternidade Branca com uma Shamballa, com Agartha, mas essas não tem nada a ver com isso. Forças ocultas nefastas do além e do aquém movem o mundo há centenas, senão há milhares de anos. E essas forças tanto pertencem aos falsos deuses, a Golem, Moloch, Molokron, a ETs tenebrosos, como pertencem a humanos, em momentos senhores e em outros servos daqueles. É a velha luta entre Deuses inseridos na Lei e Demiurgos fora da Lei, ambicionando o Poder. O homem comum infelizmente, fica no meio, como nas duas últimas guerras mundiais, e sempre leva a pior. Não poucos humanos gananciosos são aliados dos demiurgos há já muito tempo.

RF – Mas esse acordo secreto justificaria toda uma série de fatos aterradores, supostamente causados por determinados extraterrestres, como as desaparições misteriosas de seres humanos, mutilações inexplicáveis de animais, abduções de mulheres e homens por OVNIs e que depois são devolvidos totalmente perturbados.

EB – Que o acordo propriamente dito tenha a culpa do que vem acontecendo na Ufologia, duvido; mas que ele entreabriu a porta, entreabriu. Só que os poderosos dos governos não suspeitavam – e quem sabe sequer os líderes do governo invisível suspeitavam – que com essa abertura de leve, as portas iriam se escancarar, favorecendo as patifarias de certos notórios ETs vampiros, de certas larvas, de certas “máquinas” ávidas de sangue. Muitos estudiosos do assunto sabem que esses acordos não somente permitiram que alguns ETs, e que depois se revelaram insidiosos, se instalassem no nosso meio, como inclusive lhes foi concedida certa liberdade para fazer as experiências que lhes conviessem, em troca de favores e avanços técnicos. Esses mesmos ETs, aliás, velhos aliados do Governo Invisível ou clandestino, sempre estiveram aí. O que faz pensar então que tais coisas já vinham acontecendo há muito tempo, só que de modo mais brando e bem disfarçado. As velhas bruxarias e os diabos teológicos levavam a culpa. Tais ETs nos tempos que correm, infelizmente, estão exagerando na medida. Ninguém mais os segura. Entrementes, o que o Governo Invisível está fazendo com suas Alternativas l, 2 e 3, com sua franca difusão das drogas, com o contrabando de armas sofisticadas, com corrupções generalizadas, com desgovernos provocados no terceiro mundo, com inflações totalmente camufladas, com recessões, com misérias agudas, com fome generalizada como as da África, com futuras leis marciais etc. etc. isso meu amigo é muito pior.

RF – Duas raças supostamente extraterrestres, os reticulianos e os rigelianos (além dos reptilianos) estariam atrás dessas operações e acordos secretos. Quem te garante que sejam elas mesmas as que estão fazendo tudo isso?

EB – As palavras reticulianos, rigelianos, reptilianos, e até mesmo procionianos (ou tipo humano, nórdicos) foram inventadas pelos homens, por certos estudiosos de Ufologia. Não sei quantas raças de ETs nefastos existem, mas um tipo cinzento, e que o homem chamou de reticuliano, é o que geralmente prevalece quando se trata de descrever horrores e circunstâncias desagradáveis na Ufologia. Suspeito que dentre as centenas de tipos de ETs já vistos – (vistos pelo conhecimento indireto e enganador do homem e, portanto, ETs mal descritos; ou quem sabe, alienígenas que nos enganam por causa de nossa precariedade perceptual) – possível seria formar três grupos, sem cair no maniqueísmo do bem e do mal, ou seja: os benevolentes, tolerantes e que talvez tentem nos ajudar (os procionianos, quem sabe!), Os neutros e que às vezes se confundem com máquinas, robôs, andróides, clones, e os nefastos que precisam nos vampirizar e sugar tudo o que fortaleça e garanta a sobrevivência deles… Temo que estes últimos sejam a maioria… O relatório Matrix aponta os reticulianos, os rigelianos e os procionianos como sendo os extraterrestres que mais nos visitam e atuam no nosso meio. Suspeita-se também que as potências mundiais do primeiro mundo foram levadas a fazer acordos com reticulianos e rigelianos,. Os procionianos ou os tipo venusino de George Adamski sempre foram rechaçados pelos governos em geral, não se sabe porque e sempre foram vistos como seres criados pela imaginação humana. (É que esses tais se confundem com os alemães, e por conseguinte com os nazistas que fugiram após a WW2). Adamski, no caso, era o pai dessa imaginação, com propensões místicas. É claro que atrás desse rechaço forçado e imposto estava o próprio Governo Invisível… Por outro lado, levando em consideração os diversos relatos  e raptos acontecidos, as vítimas geralmente ou descrevem extraterrestres tipo reticuliano, ou senão tipo rigeliano, mas estes bem menos, reforçando sobremaneira a tese das experiências terríveis que tais alienígenas estariam levando a cabo com homens e animais. Por outro lado, não se tem notícias de encontros com procianianos (ou tipo venusino) e que para o contatado tenha resultado em violências e traumas… Posso estar enganado, pois não é possível memorizar todos os contatos de terceiro, quarto e quinto grau que já aconteceram com ETs, no mundo inteiro.

RF – Esses reticulianos e rigelianos teriam eles entrado no cenário terrestres somente após a Segunda Guerra Mundial? Ou melhor dito, somente depois de 1947?

EB – Ai amigo, indiretamente estás me obrigando a tocar num assento delicado. Bem, lá vai, paciência! De fato, certas coisas precisam ser ditas! Como antes sugeri, muito antes de 1947, digamos milhares de anos atrás, certos membros ativos do que hoje mal se suspeita existir como governo invisível já eram aliados de certos extraterrestres. Quero crer que eram aliados de ETs nefastos. Só que estes dificilmente se faziam presentes na superfície do globo. A modo de dizer, viviam invisíveis ou semi-invisíveis em planos imediatos ao plano-Terra. Eles, tranqüilamente sempre efetuaram o comércio do troca-troca… Ou seja, certos bruxos, certos religiosos de mau caráter, sempre estiveram fazendo sacrifícios, geralmente sanguinários, sempre praticavam rituais a favor de tais ETs e que eram vistos como pretensos santos, deuses, guias, líderes de falanges, de egrégoras etc. E estes, em troca, obsequiavam favores e poderes para os seus eleitos, escolhidos ou ritualistas. Talvez alguns do Governo Invisível atuassem assim e tirassem proveito disso. Assim que os pactos ou acordos entre ETs nefastos, necessitando de sangue, hormônios, órgãos, humores, sentimentos, emoções dos seres vivos já são bem antigos. Eles sugam tudo.

RF – Por que razão esse acordo entre ETs cinzentos e grandes Potências, direcionadas por um pretenso governo invisível só foi posto em prática mais intensamente nos últimos anos, digamos, após a Segunda Guerra Mundial.

EB – Vou contar uma piada que parece verdade ou uma verdade que parece uma piada. Conforme ensina a tradição milenar e o próprio Apocalipse, milhares de anos atrás houve um terrível confronto de ETs no céu, confronto que se refletiu na superfície terrestre, de modo catastrófico. Um grupo de ETs benevolentes ou da Luz, capitaneados por alguém, e obedecendo ordens do Centro da Vida, vieram dispostos a eliminar (ou a expulsar) dos céus e da superfície da Terra o Demiurgo usurpador,  e seu 1/3 de estrelas (ou ETs nefastos, asseclas, seguidores ou até mesmo outros demiurgos mais). Este Demiurgo usurpador, tomando o lugar do Absoluto, do Ser Primevo, do Deus Pai-Mãe, muito antes fez-se passar pelo deus único, criador do céu e da terra, e que todos deviam obedecer e temer. Em verdade sempre foi e é um farsante, um Titã inimigo dos homens. E tal como conta o Gênesis, em que Abel é atraído para fora por Caim e depois é traído e morto, esse mesmo líder e seus ETs de boa vontade, de algum modo, foram enganados pelo Demiurgo. Tiveram que parar de guerrear contra as hordas do Demiurgo, porque quem estava sendo prejudicado, como de hábito era o homem da superfície terrestre. E, bloqueados,  não puderam voltar às suas origens. Para evitar o pior, “esses ETs benevolentes tombaram na superfície terrestre”, em pontos especiais e se esconderam por um tempo ou Era. Esses mesmos que se esconderam em algum lugar da terra, como os tempos haviam chegado, por amor ao homem, resolveram reaparecer na superfície. Determinados extraterrestres não derrotados, mas que por força das circunstâncias se ocultaram em mundos subterrâneos e plataformas submarinas, simplesmente resolveram voltar. Juntamente com o retorno à superfície desses, também voltaram a aparecer outros ETs cósmicos, Filhos da Luz, que se situavam muito além do escudo isolador que o Demiurgo havia levantado ao redor da Terra. Com esse aparecimento repentino de ETs positivos do muito além, e os aqui escondidos, o Governo Invisível ou clandestino se apavorou, pois estes, mais, digamos os reticulianos do além, aliados destes, eram inimigos milenares de todos esses outros ETs provavelmente positivos e inclusive inimigos da própria humanidade, que por eles todos sempre foi considerada um pasto aprazível.

RF – Na semana passada, saiu uma grande entrevista na Revista Veja, com Peter Ward, famoso astrônomo, astrofísico norte-americano, o qual afirma, após profundos estudos e pesquisas científicas, que fora do Planeta Terra não existe vida. Sendo ele um renomado cientista que fala assim, num quase coro com os demais colegas de astronomia, o que sobra então para os leigos, para quem não é especialista de astronomia, para os que pretendem ser exobiologistas etc? Por um mero acaso, só a Terra teria vida? E se não existe vida em parte alguma, para que a ciência astronômica, astrofísica vem gastando tanto dinheiro com pretensas conquistas do espaço, viagens para a Marte, para a Lua, com radiotelescópios tipo Arecipo e outros mais?

EB –  Sinceramente, malgrado a pretensa seriedade, certos astrônomos deveriam se aposentar ou deveriam ser aposentados. Que nessa visão científica de Marte ou nesse modelo de universo científico não existe vida até dá para acreditar. No caso contudo também se deveria dizer que o que de fato não existe é exatamente esse universo científico, malgrado o falso universo sempre aparece, e que no seu lugar desse universo há Algo mais, o Desconhecido, por exemplo. Conheço bem a pretensa seriedade científica, conheço bem as aludidas provas, a metodologia utilizada para arrancar verdades de um perfeito faz-de-conta.

Por exemplo, eu, feito um cientista ou feito um astrônomo não posso afirmar categoricamente que na minha versão de um Marte científico, ou seja qual for o planeta, não exista vida, e sequer restos de vida que talvez possa ter se existido milhares ou senão milhões de anos atrás. Feito um ufólogo também não posso afirmar categoricamente que no planeta Marte, sinceramente descrito por um pressuposto alienígena autêntico,  existe vida por que ele mo disse. Tampouco posso afirmar que num hipotético Marte astralino há vida só porque um pretenso espírito do além, tipo Ramatis, descreveu tal vida, por meio de um médium ou sensitivo. Mas então, se nem o cientista, nem o ufólogo e nem o místico têm razão quem a tem? Digo eu, como a nossa percepção comum e científica está distorcida, como a nossa possibilidade de conhecer não leva a coisa alguma, e quando muito forja ficções e inventa estórias, então ninguém tem razão de coisa nenhuma. Só terá razão aquele que vivenciar o fato e se Aqui e Agora nesse fato couber um planeta Marte, nessa vivência estará a razão.

Os radiotelescópios foram forjados para que a ciência moderna provasse aos contribuintes otários, aos pagadores de impostos, que ela faz alguma coisa de útil, ou senão para pretensamente provar que existem planetas com vida inteligente, planetas que emitem sinais de vida, que existe atividade inteligente perfeitamente captável por meios luminosos e sonoros. Para os UFOs que rolam aos milhares, por aí e inclusive se comunicam, tais astrônomos não dão a mínima importância, mas para captarem falsos sinais de vida a bilhões ou trilhões quilômetros de distância, esses gênios da ciência moderna tudo gastam, em tudo se aplicam. Eles acham que tais radiotelescópios lá pelas tanta inclusive poderiam permitir um intercâmbio de inteligência e informações, pois sim. Custaram uma fortuna, e no entanto, qualquer gaiato em ciência, num paradoxo completo, vem e afirma que não há vida igual a da Terra em nenhum outro planeta. Face a esse paradoxo, as opiniões dos ufólogos são bem menos dispendiosas.

RF –  Existe uma imensa presença diante de nossos olhos extasiados que chamamos céu estrelado. Até quinhentos anos atrás, de todo  este céu a Terra era o ponto central. Todo o resto girava ao redor. Depois vieram os precursores da ciência, Copérnico, Kepler, Galileu, Newton, e a Terra de central passou à condição periférica. Transformou-se num insignificante terceiro planeta de um banal sistema solar qualquer. O Sol ficou central. De lá para cá, o universo foi-se complicando até o infinito. Bem, mas o Atual modelo científico de universo é de absoluta confiança? Pode-se crer absolutamente nele, ou alguma coisa aí nos estaria enganando, como no tempo do geocentrismo?

EB – Para escândalo de alguns, o atual modelo científico de universo não é algo absolutamente verdadeiro, no qual se possa confiar. Meus amigos, o universo científico nunca falou de por si, nunca provou nada por si mesmo, quem fala por ele é sempre o homem mal pensante, seja este uma pessoa comum, seja este um cientista, seja um contatado, seja um místico, seja um sensitivo. E mesmo que se tente provar que o universo científico é verdadeiro, em realidade aí apenas estão se armando causas e condições que resultam numa ilusão perceptual. Tudo obedece à Lei da Geração Condicionada. (Isto sendo, em pensamento, aquilo aparecem, aquilo se objetiva, aquilo se concretiza se para tal eu executar o ato intencional… E mais) Sou eu que te vejo, ó universo de araque, e vendo-te, me vejo, e vendo-me te faço! Por outro lado, no nosso íntimo existe uma poderosa ferramenta pretensamente perceptora chamada avidya (ou ignorância-ego-pensamento primordial) mas que em verdade distorce tudo o que se coloca na frente dela. Por sua vez, fora de nós existe uma Realidade Desconhecida e que Aqui e Agora só se revela àquele que consegue Vivenciá-la, num Saber-Sentir-Intuir autêntico. E se não for assim, quando a ignorância em nós encara Realidade Cósmica a transforma em mentira, num faz-de-conta, em aparência, ilusão ou em Maya, como dizem os orientais. É por isso que o universo objetivado não é uma realidade lá adiante, em sejam quais forem as versões, não importa se geocentristas, heliocentristas, materialistas, idealistas, animistas etc. etc. Tal máquina universal é um embuste total, é  uma completa  interdependência entre pessoa pensante e objeto pensado.

RF –  A Astronáutica moderna mandou foguetes e sondas para todo o sistema solar, e conforme informam os donos do poder e, por conseguinte os donos da verdade científica, da “verdade conveniente” não há vida nos demais planetas do sistema solar. Parece não haver vida também no tal sistema solar próximo da terra, chamado Alfa Centauro e que estaria a uma distância de 4,3 ou 4,5 anos luz.. Mas e aí de onde vem os tais de discos voadores? Ou será que tais discos não existem e nunca existiram?

EB – Pergunta inteligente mas capciosa. Por causa dela serei obrigado a fazer afirmações diferentes, terei que apresentar teses a respeito da eventual origem dos UFOs. No fundo porém abomino teses, antíteses e sínteses. Mas apesar disso, os discos voadores têm que provir de algum lugar ou senão teriam que provir.

Amigos, um lugar nos dá uma idéia quase clara de espaço e, por conseguinte de tempo. Com isso esses dois embustes universais chamados espaço e tempo físicos se assentariam em termos absolutos, como vêm fazendo a milhares ou milhões de anos. Nós seres humanos vivemos na Terra que seria um pequeno lugar do universo científico. Eles, ETs morariam em outro lugar, em outro planeta desse mesmo universo científico. Segundo a ciência, o Universo científico é constituído e trilhões de trilhões de lugares geométricos-espaciais. Mas será mesmo? Paradoxalmente, porém a ciência, para desgraça nossa, prova que não há planetas habitados. Tal “maravilhosa” conclusão, evidentemente é alcançada por um modo de pensar vergonhosamente deturpador, ou seja, pela inferência, pela elucubração adoidada e por conclusões estapafúrdias. Mas e se os UFOs não viessem  de nenhum lugar do universo científico? Digamos que eles não conhecessem os lugares geométrico-espaciais do conhecimento humano!? E se eles simplesmente vêm de outros planos de vida, que não planetas, que não lugares falsamente físicos? Se tais UFOs vierem de outras dimensões que nada tem a ver com a nossa pobre e miserável prisão tridimensional? E se eles são um ponto-instante, ou seja, moram num ponto-instante luminoso, num Aqui e Agora suis generis, que de repente vira um plano existencial, um planeta, um palco de vida etc, a partir do qual eles saem e conseguem se intrometer no nosso meio, manipulando para tal a nossa triste e porca tridimensionalidade, adaptando-se a ela? Tudo isso é delírio minha gente? Delírio absoluto e total, porém, é o modelo científico de universo vigente por meio do qual cientistas e astrônomos arrotam à vontade. Não estou impondo nenhuma tese, e nem quero que tomem defesa do que sugiro ou digo, pois não vale a pena. Minhas palavras, como as de qualquer um “são fantasmagóricas rainhas que criam e matam a outros fantasmas” Amigos, face à evidência gritante dos UFOs e suas intromissões ininterruptas no nosso meio, há já milhares ou milhões de anos, só se pode sugerir, sem nada impor, que eles são extra-situacionais e não extraterrestres. Ou seja, quem sabe, quem sabe, o Cosmo verdadeiro, ao invés de ser constituído de planetas, satélites, sistemas solares, galáxias, nebulosas, buracos negros, quasars, anos luz a serem suplantados e o escambau, pode ser constituído de situações existenciais especiais e que chegam até nós sob a forma de ponto luminoso. Este ponto contudo dilata, encolhe, se aproxima, se afasta, se funde com o nosso meio, simplesmente desaparece etc.etc. Nenhuma certeza amigos, nenhum dogma, apenas conversa bem temperada ou papo de maluco, como diria um senhor Renato Azevedo

RF – Newton, com sua pretensa descoberta da Lei da Gravidade e seu implante, já no seu tempo, transformou o Universo numa verdadeira máquina. E preocupado com isso, arremedou que o Deus, ele a  pessoa bíblica, o criador de tudo, estava fora dessa máquina astronômica, daí ele ou os companheiros dele terem dito que Deus é um Deus ex-máchina. Isto é, que Deus estava  fora da máquina, estava  fora da engrenagem que o pensamento de Newton & Cia forjou. A objetividade universal atualmente se complicou de tal maneira e ficou tão imensa que as idéias, as concepções humanas de Deus criando universos de fato não cabem mais. Quem criou esse universo, deus ou o pensamento humano, pretencioso e delirante?

EB – Escândalo dos escândalos! “Prendam esse homem pois ele está maluco e quer prejudicar nossas instituições tão sagradas e tão proveitosas, pois nos propiciam tanta riqueza e fama!” Qualquer falso puritano, falso cientista, verdadeiro cientificista, cientificóide poderia pensar assim ou poderia gritar assim. Amigos, nunca houve uma criação do mundo, do universo, no espaço e no tempo, primeiro porque estes dois últimos não existem como a astronomia e a física humanas acreditam que sejam. Não existindo espaço, tempo, matéria, energia, plasma, nunca houve também um recipiente prévio, no qual um deus pessoa, barbudo e decorador de bíblias, por meio de taumaturgias começasse a criar o mundo, o sol, a lua, a vida e o homem. Tampouco houve um muito mais ridículo deus acaso da ciência que por meio de uma brutal mentira tipo Big-Bang tenha dado origem à vida, graças ao funcionar de leis físico-químicas-matemáticas que ninguém sabe como vieram a ser,  a existir,   nem como conseguem criar e conseguem fazer funcionar alguma coisa. Sem impor tese nenhuma, nem conceitos, nem proposições, sugira-se apenas sugira-se, sussurrando, que o Absoluto, que Deus Vivo, Aqui e Agora, livre de espaço, tempo, livre de falsa matéria, falsa energia e falso plasma, Manifesta-se feito Vida, feito Cosmo, e que Aqui e Agora toda essa Manifestação Divina e Extraordinária, também escondida no Coração do Homem, se renova de momento a momento. Por conseguinte nessa Manifestação em constante renovação nada há que uma ciência possa descobrir a nível físico, a nível astronômico, químico, bioquímico, biológico, existencial. E o que a ciência diz descobrir em verdade ela apenas forja, engendra. Tudo o que é descoberto e provado, isso sempre é inventado pelo pensamento humano, o que já é um grande mérito, mormente se determinada forjação manifestar algo positivo e construtivo.

RF – A cada dois minutos ou segundos na superfície da Terra são vistas ou constatadas as mais diferentes presenças celestes, entre as quais os Objetos Voadores não Identificados. Digamos que só 10% disso sejam discos voadores. Se a Terra é o único planeta habitado e está isolado do resto do cosmo, de onde vem tantas presenças anômalas que longe estão de se igualarem a aviões de carreiras?

EB – Essas presenças vêm das infinitas possibilidades do Cosmo Verdadeiro e não necessariamente do universo científico e respectivo modelo. Copérnico-Kepler-Galileu, no século XVII apenas forjaram seu próprio universo quantitativo, Newton o sacramentou por meio de fórmulas físico-matemáticos, e depois disso tal modelo de universo se complicou e entrou em inflação galopante. O universo proposto por esses gênios do pensamento humano é apenas um universo quantitativo e este tinha que entrar em inflação. Brevemente entrará em colapso. A Ciência Moderna se implantou no século XVII graças a essa pretensa revolução astronômica, e eu acho que haverá de modificar-se ou tornar-se uma Ciência científica-filosófica-espiritual graças a outra modificação da concepção astronômica. Certamente quando Jesus, o Mestre da Galiléia disse: “Na casa de meu Pai há muitas moradas ou muitos quartos”  estava-se referindo a um Cosmo Autêntico, a um universo qualitativo e não quantitativo, malgrado a frase de Jesus também sugira o lado quantitativo. Sucede porém que “casa e quartos” é algo muito íntimo, muito emocional, muito qualitativo e não quantitativo. Não há nada mais sagrado do que o próprio lar. Só uma casa paterna com muitas moradas encerra infinitas possibilidades cósmicas e existenciais. E desta devem provir os UFOs benevolentes, neutros e até mesmo prejudiciais. E a propósito, os monstros que há milhões de anos tomaram conta da Terra vieram de um anti-universo, vieram da sombra da vida, de um horroroso poço sem fundo, e esses dominam o mundo, e para desgraça nossa, inclusive se intrometem e nos insuflam arremedos de sabedoria, para que essa coisa notável chamada ciência, que derrotou em definitivo as proposições da teologia católica e de alguma maneira eliminou a inquisição, acabe se deturpando até o extremo por simples exageros, falsas certezas absolutas e distorções..

RF –  Dr. Bono, em seu livro A Grande Conspiração Universal, o senhor escreve: Eles estão aqui há muito tempo e brigam entre si. O ser humano desavisado está inserido entre dois fogos. Precisamos surpreender quem são os extraterrestres realmente favoráveis ao homem, quais são os neutros e quais os alienígenas nefastos, sem nos comprometer e sem sairmos prejudicados nessa investigação. E principalmente, para que melhor se entenda a temática ufológica, ela tem que se divorciar das idéias científicas de espaço, tempo, matéria, energia, plasma, evolução, porque os paradigmas ou os modos de conhecimento de que os alienígenas se valem são completamente outros. Os ETs não abusam do pensamento como nós. Sentem-e-Sabem que podem fazer determinadas coisas e simplesmente as fazem. Talvez de modo mais mágico do que lógico. Todos esses aspectos têm que ser levados em conta na Ufologia para que alguma luz vingue numa temática tão ambígua. A Ufologia não pode fundamentar-se nos erros da astronomia.

EB -Está muito bem dito, nada a acrescentar.

RF – Os grandes inimigos das viagens espaciais ou astronáuticas são o espaço e o tempo. A matéria, a energia e o plasma até que não são tanto. As distâncias entre os planetas do sistema solar são enormes. Contam-se em bilhões ou trilhões de quilômetros e até em quatrilhões. Entre sistemas solares, então as distâncias são um horror. São medidas em anos luz. A distância que permeia o sistema solar e outro sistema solar mais próximo, e que é o Alfa-Centauro é de 4,3 a 4,5 anos luz.

Um ano luz tem aproximadamente 39 trilhões de quilômetros. Os sistemas solares de nossa galáxia via láctea, digamos as plêiades, ou zeta retículo estão a mais de 100 anos luz de distância. De que maneira ETs ou até mesmo terrestres superariam essas distâncias impossíveis de suplantar?

EB – Quando a ciência astronômica se depara com essas fantásticas distâncias em trilhões de quilômetros tem toda a razão em dizer que os UFOs não existem. Só que eles não se deram conta de que o espaço é uma mentira, o tempo físico também, de que a velocidade da luz em 300.000 km por segundo é um engodo, de que tais distâncias são um absurdo, de que o universo que eles enfocam é apenas uma recriação de suas próprias cabeças. Eles utilizam uma cabeça, um cérebro (tudo mentiras reinventadas), quando em verdade eles utilizam uma mente não material e um pensamento calhorda para perceber e conhecer o que no fundo e em última instância nunca souberam o que era isso. Confiaram em tal enigma perceptor e conhecedor e nunca quiseram ouvir os avisos de outras maneiras antigas de conhecer que já alertavam: “Homem, homem cuidado com o pensamento, porquanto ele é um ótimo servo, um ótimo criado, mas é um péssimo senhor. Se fizeres de teu pensamento (raciocínio, intelecto, falsa percepção) um senhor, ele virará um tirano e te esmagará sempre.” Sim, pois o homem não é só mal pensar, mas é principalmente Saber-Sentir-Intuir. “Homem, homem, antes de forjar lorotas e extrojetá-las diante de ti feito um cientista, conhece-te a ti mesmo! Porquanto se te autoconheceres em profundidades, Saberás quem és, de onde vieste e para onde vais. Surpreenderás o trapalhão e salteador ou o ego-pensamento, no teu próprio íntimo forjando mentiras e ilusões com a finalidade de subjugar e dominar o Verdadeiro Homem em ti. Autoconhecendo-te saberás quem é Deus e o que a Vida ou o Universo dentro e fora de ti!”

RF -Enrico Fermi, um dos pais da bomba atômica, pois foi o primeiro a fissionar o átomo em laboratório, como bom cientista descrente que era e em relação aos discos voadores, na década de 1950-1960 declarou: “Não existem seres inteligentes extraterrestres na Terra, agora. Se houvesse outras civilizações inteligentes na via láctea, mais cedo ou mais tarde, elas teriam dominado as viagens interestelares, tendo explorado e colonizado a Galáxia. Como eles não estão aqui e agora, eles não existem!” Este é chamado o paradoxo de Fermi, por meio do qual cientistas e astrônomos acreditam silenciar os argumentos dos ufólogos.

EB – Enrico Fermi não suspeitou o horror que ia desencadear com a sua maneira de pensar e de agir, e que dizem ter sido uma maneira científica de atuar.Ou seja, ele, grosso modo, teria conseguido fissionar o átomo de plutônio, urânio, ou sei lá qual, para que daí aparecesse  a explosão atômica. Em verdade ele apenas pôs a Lei da Geração Condicionada em funcionamento como nunca, e incidiu num campo virgem de forjações e manipulações mentais. Daí então saltou fora o seu átomo, as suas pretensas fissões, as suas explosões e tudo o mais, pois sou eu que te vejo, ó átomo de merda, e vendo-me, te vejo, e vendo-me, te faço!” Isto é, sou eu que te vejo, ó átomo de merda, pois eu e tu, em verdade somos não dualidade, não separação, somos unidade. Somos um imã, eu, a  parte pensante, sou o pólo A e tu, a  parte pensada,  és o pólo B. E vendo-me objetivado feito um tu, feito um falso átomo pensado, em realidade me vejo, e vendo-me diferenciado feito um tu, feito um falso átomo, vejo-me obrigado a agir por meio do método científico de experimentação e com isso te faço, te engendro, ó desgraceira, ó poluição máxima, ó imbecilidade atroz!

Enrico Fermi, estimulado pelas pretensas descobertas de Einstein e pela sua fórmula E = mC2 apenas pós a Lei da Geração Condicionada em funcionamento e alcançou um assombro de fruto. “Isto sendo, em pensamento, aquilo aparece, aquilo se sobrepõe, aquilo se objetiva, se concretiza, se para tal eu executar o ato intencional da metodologia científica experimental. Isto não sendo pensado, aquilo não aparece, não se objetiva, não se concretiza porque para tal não somente não penso como inclusive não faço absolutamente nada.”   “O Paradoxo Verbal de Enrico Fermi”,  por meio do qual não poucos astrônomos desavisados tanto se ufanam, é puro verbalismo fútil, conversa fiada extremamente requintada e intelectual. Minhas colocações também podem ser pura conversa fiada, por que não? Seres inteligentes em outros planetas, na via láctea, dominando o espaço e o tempo e superando distâncias impossíveis, para finalmente nos dominar é um absurdo total, é contradição completa,  é pura conversa fiada, malgrado haja alguns ETs safados, sim, ou extra-situacionais que nos dominam. Só que estes provêm de outras condições existenciais, e estão saturados por um espírito de porco incomparavelmente maldoso ou são verdadeiros demônio, sui generis.

RF – Se a presença dos UFOs na Terra é uma aberração, porque então os poderosos do mundo, o governo norte-americano, principalmente já em 1947, 1948 criaram o projeto Sign (projeto sinal), que evoluiu para o Projeto Grudge (projeto ressentimento), no qual foi elaborado o famoso livro Yellow Book onde se registraram as conversas dos ETs. Porque foi criado o Projeto Blue-book, com suas equipes idiotas, outrora tão conhecidas na televisão brasileira? Por que e para que foram criadas a antiga CIA e a atualíssima NSA (National Security Agency). Por que foram criados o Conselho de Segurança Nacional, o MJ-12, o projeto Red-Light, Snowbird etc.

EB – A hipocrisia das autoridades constituídas mais a do Governo Invisível é tamanha que preenche completamente o universo científico ou o seu pressuposto espaço físico. Por exemplo, a turma governamental do presidente Truman de 1947, quando o acontecimento de Rooswell escorregou e quase se tornou de público conhecimento, correram apressados para tapar o sol com a peneira e aí criaram o Projeto Sign, o Projeto Grude, que iam estudar o vôo das borboletas (ou UFO), igual à expedição da Antártida em que o almirante Bird foi caçar pingüins na Nova Suábia do Pólo Sul. Foi criada nada menos do que a CIA, existente na ocasião só para estudar o escândalo dos UFOs e capturar qualquer objeto voador caído e respectivo tripulante. Depois, a CIA evidentemente evoluiu e se transformou na atual agência de espionagem safada e criminosa. Foi criada essa coisa incrível que praticamente quase suga todas as verbas do mundo ocidental, (Verbas do terceiro mundo, de preferência), ou seja a SNA que lida com os mais incríveis aparelhos eletrônicos só para espionar as mensagens excepcionais saídas de UFOs, ou senão dos meios de comunicação antigos ou também de todos os meios eletrônicos atuais. Tal Security National Agency, via Mossad, pretende inclusive dominar completamente o mundo. E já falam em holocaustos psicotrônicos.

RF – Afinal, existe ou não existe vida fora deste nosso planeta de dor e sofrimento? Houve ou não houve um criador para o milagre chamado Vida? O Universo tem que ser realmente a gigantesca e absurda máquina apontada pela ciência, ou quem sabe ele é algo bem diferente. Ao invés de estar saturado de mundos-bola, opacos ou incandescentes, girando de lá para cá, ou de cá para lá não poderia estar saturado apenas de ilhas-situações existenciais? E se este outro universo não científico não dependesse nem do espaço nem do tempo, aí a impossibilidade de viajar pelo cosmo persistiria? Os ETs ao invés de extraterrestres não poderiam ser extra-situacionais?

EB – Bem,  mas esta última pergunta praticamente constitui um resumo de todas as respostas que eu dei. Não se diga porém que outra vida tem que existir fora deste nosso planeta de dor e sofrimento. Esse fora só pode traduzir o universo científico, e este último já ficou mais ou menos evidente que quem sabe não passe de um engano, de uma distorção e talvez sequer exista. Grosso modo, por nossa própria culpa e devido à nossa maneira de mal pensar e pior agir, é que parece estar lá fora, quando o Universo Real deveria estar centrado a Algo mais Verdadeiro. Assim que este nosso mundo supostamente situado nas trevas exteriores, de modo positivo e excepcional só poderia receber visitantes não de trevas mais exteriorizadas ainda (ou espaço científico) e sim de planos existenciais mais equilibrados, de situações cósmicas mais harmônicas e mais centralizadas ao Coração da Vida

Entrevista ufológica com Ernesto Bono, feita por Daniel Rebisso

[…] Postagem original feita no https://mortesubita.net/sociedades-secretas-conspiracoes/a-grande-conspiracao-universal/ […]

Postagem original feita no https://mortesubita.net/sociedades-secretas-conspiracoes/a-grande-conspiracao-universal/

A Exposição Valentiana

[…] entrar na abundância […] aqueles que […] falarei meu mistério para aqueles que são meus e para aqueles que serão meus. Além disso, são estes que conheceram aquele que é o Pai, isto é, a Raiz do Todo, o Inefável que habita na Mônada. Ele mora sozinho em silêncio, e o silêncio é tranqüilidade, pois, afinal, ele era uma Mônada e ninguém antes dele. Ele mora na Díade e no Par, e seu Par é o Silêncio. E ele possuía o Todo habitando dentro dele. E quanto à Intenção e Persistência, Amor e Permanência, eles são de fato não gerados.

Deus saiu: o Filho, Mente do Todo, isto é, é da Raiz do Todo que também brota seu Pensamento, pois ele tinha este (o Filho) em Mente. Pois em nome do Todo, ele recebeu um Pensamento estranho, pois não havia nada diante dele. Daquele lugar é ele quem moveu […] uma fonte jorrando. Agora esta é a Raiz do Todo e da Mônada sem ninguém antes dele. Agora a segunda fonte existe em silêncio e fala com ele a sós. E o quarto, portanto, é aquele que se restringiu no quarto: enquanto morava no trecentésimo sexto, ele primeiro se apresentou, e no segundo ele revelou sua vontade, e no quarto ele se espalhou.

Enquanto essas coisas são devidas à Raiz do Todo, vamos entrar, de nossa parte, em sua revelação e sua bondade e sua descendência e o Todo, isto é, o Filho, o Pai do Todo, e a Mente do Espírito; pois ele estava possuindo este antes […]. Ele é uma mola. Ele é aquele que aparece no Silêncio, e ele é a Mente do Todo morando secundariamente com a Vida. Pois ele é o projetor do Todo e a própria hipóstase do Pai, ou seja, ele é o Pensamento e sua descida abaixo.

Quando quis, o Primeiro Pai se revelou nele. Já que, afinal, por causa dele a revelação está disponível para o Todo, eu, de minha parte, chamo o Todo de ‘o desejo do Todo’. E ele teve tal pensamento sobre o Todo – eu, de minha parte, chamo o pensamento de ‘Monogenes’. Pois agora Deus trouxe a Verdade, aquela que glorifica a Raiz do Todo. Assim foi ele quem se revelou em Monogenes, e nele revelou o Inefável […] a Verdade. Eles o viram morando na Mônada e na Díade e na Tétrade. Ele primeiro trouxe Monogenes e Limit. E o Limite é o separador do Todo e a confirmação do Todo, pois são […] as cem […]. Ele é a Mente […] o Filho. Ele é completamente inefável para o Todo, e ele é a confirmação e a hipóstase do Todo, o véu silencioso, o verdadeiro Sumo Sacerdote, aquele que tem autoridade para entrar nos Santos dos Santos, revelando a glória dos Aeons e trazendo adiante a abundância para <fragrance>. O Oriente […] que está Nele. Ele é aquele que se revelou como o santuário primordial e o tesouro do Todo. E ele abrangeu o Todo, aquele que é superior ao Todo. Estes, por sua vez, enviaram Cristo para estabelecê-la, assim como foram estabelecidos antes de sua descida. E dizem a respeito dele: […] Ele não é manifesto, mas invisível para aqueles que permanecem no Limite. E ele possui quatro poderes: um separador e um confirmador, um provedor de forma e um produtor de substância. Certamente só nós discerniríamos suas presenças e o tempo e os lugares que as semelhanças confirmaram porque eles têm […] desses lugares […] o Amor […] é emanado […] todo o Pleroma […]. A persistência perdura sempre, e também […] pelo tempo […] mais […] ou seja, a prova do seu grande amor.

Então, por que um separador, um confirmador, um produtor de substâncias e um provedor de formulários, como outros disseram? Pois dizem a respeito do Limite que ele tem dois poderes, um separador e um confirmador, pois separa a Profundidade dos Aeons, para que […]. Estes, então […] de Profundidade […]. Pois […] é a forma […] o Pai da Verdade […] dizer que Cristo […] o Espírito […] Monogenes […] tem [… ].

É algo grande e necessário que busquemos com mais diligência e perseverança as escrituras e aqueles que proclamam os conceitos. Pois sobre isso os antigos dizem, “eles foram proclamados por Deus”. Então, deixe-nos conhecer sua riqueza insondável! Ele queria […] servidão. Ele não se tornou […] da vida deles […]. Eles olham firmemente para seu livro de conhecimento e consideram a aparência um do outro.

Essa Tétrade projetou a Tétrade que é aquela que consiste em Palavra e Vida e Homem e Igreja. Agora o Incriado projetou a Palavra e a Vida. A Palavra é para a glória do Inefável, enquanto a Vida é para a glória do Silêncio, e o Homem é para a sua própria glória, enquanto a Igreja é para a glória da Verdade. Esta, então, é a Tétrade gerada de acordo com a semelhança do Incriado (Tétrade). E a Tétrade é gerada […] a Década da Palavra e da Vida, e a Dodecádia do Homem, e a Igreja tornou-se uma Triacontada. Além disso, é aquele da Triacontad dos Aeons que dá frutos da Triacontrad. Eles entram juntos, mas o

Vocês saem sozinhos, fugindo dos Aeons e dos Incontáveis. E os Incontáveis, uma vez que olharam para ele, glorificaram a Mente, pois ele é um Incontentável que existe no Pleroma.

Mas a Década da Palavra e da Vida gerou décadas para fazer o Pleroma se tornar cem, e o Dodecad do Homem e da Igreja gerou e fez a Triacontad para fazer com que os trezentos e sessenta se tornassem o Pleroma do ano. E o ano do Senhor […perfeito…] perfeito […] segundo […] Limite e […] Limite […] a grandeza que […] meu bem […] ele. A vida […] sofre […] pela cara […] na presença do Pleroma […] que ele queria […]. E ele queria sair do Trigésimo – sendo um szygy do Homem e da Igreja, ou seja, Sophia – para superar a Triacontad e trazer o Pleroma […] seu […] mas […] e ela [. ..] o Todos […] mas […] quem […] o Todo […]. Ele fez […] os pensamentos e […] o Pleroma através da Palavra […] sua carne. Estes, então, são os Aeons que são como eles. Depois que a Palavra entrou nela, exatamente como eu disse antes, também aquele que vem para estar com o Incontido trouxe à luz […] antes que eles […] saíssem […] escondê-lo de [… ] a sizígia e […] o movimento e o […] projeto do Cristo […] e as sementes […] da cruz desde […] as marcas da ferida do prego [. ..] perfeição. Como é uma forma perfeita que deveria ascender ao Pleroma, ele não quis consentir com o sofrimento, mas foi detido […] por Limite, isto é, pela sizígia, pois a correção dela não ocorrer por meio de qualquer um, exceto seu próprio Filho, cujo único é a plenitude da divindade. Ele desejou dentro de si mesmo corporalmente deixar os poderes e desceu. E essas coisas (paixões) Sophia sofreu depois que seu filho ascendeu dela, pois ela sabia que ela morava em uma […] unidade e restauração. Eles foram parados […] os irmãos […] estes. Um […] não fez […]. Eu me tornei […]. Quem são eles de fato? O […], por um lado, parou ela […], por outro lado, […]. com a […] ela. Estes, aliás, são aqueles que me olhavam, estes que, […] estes que consideraram […] a morte. Eles foram impedidos […] e ela se arrependeu e implorou ao Pai da verdade, dizendo: “Concedido que eu renunciei a minha consorte. Portanto, estou além da confirmação também. Eu mereço as coisas (paixões) que sofro. Eu morava no Pleroma produzindo os Aeons e dando frutos com meu consorte” E ela sabia o que ela era e o que havia acontecido com ela.

Então ambos sofreram; disseram que ela ri porque ficou sozinha e imitou o Incontido, enquanto ele disse que ela ri porque se separou do consorte. […] De fato, Jesus e Sofia revelaram a criatura. Como, afinal, as sementes de Sofia são incompletas e sem forma, Jesus inventou uma criatura desse tipo e a fez das sementes enquanto Sofia trabalhava com ele. Pois uma vez que são sementes e sem forma, ele desceu e produziu aquele pleroma de éons que estão naquele lugar, já que mesmo os incriados daqueles Aeons são do padrão do Pleroma e do Pai incontido. O Incriado produziu o padrão do incriado, pois é do incriado que o Pai traz à forma. Mas a criatura é uma sombra de coisas pré-existentes. Além disso, esse Jesus criou a criatura, e trabalhou a partir das paixões que cercavam as sementes. E ele os separou uns dos outros, e as melhores paixões ele introduziu no espírito e as piores no carnal.

Agora, primeiro entre todas essas paixões […] nem ele, pois, afinal, Pronoia fez com que a correção projetasse sombras e imagens daqueles que existem desde o início e daqueles que são e daqueles que serão . Esta, então, é a dispensação de crer em Jesus por causa daquele que inscreveu o Todo com semelhanças, imagens e sombras.

Depois que Jesus deu à luz, ele gerou para todos aqueles do Pleroma e da sizígia, isto é, os anjos. Pois simultaneamente com o acordo do Pleroma seu consorte projetou os anjos, pois ele permanece na vontade do Pai. Pois esta é a vontade do Pai: não permitir que nada aconteça no Pleroma além de uma sizígia. Novamente, a vontade do Pai é: sempre produzir e dar frutos. Que ela sofresse, então, não era a vontade do Pai, pois ela mora em si mesma sozinha, sem seu consorte. Deixe-nos […] outro […] o Segundo […] o filho de outro […] é a Tétrade do mundo. E essa Tétrade deu frutos como se o Pleroma do mundo fosse uma Hebdomad. E entrou imagens e semelhanças e anjos e arcanjos, divindades e ministros.

Quando todas essas coisas aconteceram por Pronoia […] de Jesus que […] as sementes de Monogenes […]. Na verdade, eles são espirituais e carnais, os celestiais e os terrenos. Ele os fez um lugar desse tipo e uma escola deste tipo para a doutrina e para a forma.

Além disso, o Demiurgo começou a criar o homem à sua imagem, por um lado, e, por outro, à semelhança daqueles que existem desde o início. Era esse tipo de morada que ela usava para as sementes, a saber […separar…] Deus. Quando eles […] em favor do homem, pois de fato o Diabo é um dos seres divinos. Ele se retirou e apoderou-se de toda a praça dos portões e expulsou sua própria raiz daquele lugar no corpo e carcaças de carne, pois está envolvido pelo homem de Deus. E Adão o semeou. Portanto, ele adquiriu filhos que irritavam uns aos outros. E Caim matou seu irmão Abel, pois o Demiurgo soprou neles seu espírito. E ali ocorreu a luta com a apostasia dos anjos e da humanidade, os da direita com os da esquerda, os do céu com os da terra, os espíritos com os carnais e o diabo contra Deus. Por isso os anjos cobiçaram as filhas dos homens e desceram à carne para que Deus causasse um dilúvio. E ele quase lamentou ter criado o mundo […] a consorte e Sophia e seu Filho e os anjos e as sementes. Mas a sizígia é a completa, e Sofia e Jesus e os anjos e as sementes são imagens do Pleroma. Além disso, o Demiurgo lançou uma sombra sobre a sizígia e o Pleroma e Jesus e Sophia e os anjos e as sementes. O completo glorifica Sophia; a imagem glorifica a Verdade. E a glória das sementes e de Jesus são as de Silêncio e Monogenes. E os anjos dos machos e os seminais das fêmeas são todos Pleromas. Além disso, sempre que Sophia recebe seu consorte e Jesus recebe o Cristo e as sementes e os anjos, então o Pleroma receberá Sophia com alegria, e o Todo virá a estar em unidade e reconciliação. Pois por isso os Aeons foram aumentados; pois eles sabiam que se mudassem, eles não mudariam.

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Postagem original feita no https://mortesubita.net/jesus-freaks/a-exposicao-valentiana/

Brahma, Vishnu, Shiva, os Muçulmanos e o Zero

Retornando aos nossos posts históricos, estamos chegando às vésperas da Primeira Cruzada e das origens secretas dos Templários, Hospitalários e Teutônicos (e também das histórias do Rei Arthur, com suas dezenas de versões e adaptações, e a chegada do Tarot na Europa… sim, todos estes assuntos estão interligados e veremos isso em breve).
Hoje falaremos dos hindus, muçulmanos e da origem espiritual do número Zero.

Seja no oriente ou no ocidente, a imagem circular de uma mandala (ou diagrama sagrado) é uma das mais intensas e utilizadas formas presente na história da arte.
A Índia, o Tibete, o Islã e a Europa Medieval produziram círculos em abundância, assim como todas as culturas mais antigas, seja através da pintura, seja através das danças circulares.
A imensa maioria destes diagramas está baseado na divisão dos quatro quadrantes, com todas as partes internas inter relacionadas de uma maneira ou de outra. Estas obras de arte são de alguma maneira cosmológicas; representam um símbolo que é a própria estrutura do universo: o zero.
Para os antigos, a própria arte de edificar estava intimamente ligada com o ser humano e com sua percepção do macrocosmos e do microcosmos; os quatro elementos, as quatro estações, os doze signos atravessados pelo sol em seu percurso nos céus, os círculos de divindades que representam o próprio homem e seus múltiplos aspectos… mas o que mais impressiona nestes diagramas é a expressão da noção do Cosmos, ou seja, da realidade como algo organizado e completo dentro de si mesmo.
A geometria antiga dependia de alguns axiomas; ao contrário da geometria euclidiana e outras mais recentes, o ponto de partida do pensamento geométrico antigo não é uma rede de abstrações intelectuais, mas uma meditação dentro de uma unidade metafísica, seguida de uma tentativa de simbolizar através do visual a ordem pura que brotava através destas experiências divinas e incompreensíveis.

É esta aproximação com o divino que separa a geometria antiga (ou sagrada) da moderna (ou mundana). A geometria antiga começa pelo número um, enquanto a matemática moderna começa pelo número zero.
Antes de avançar até os muçulmanos, eu gostaria de falar mais um pouco sobre estes dois começos simbólicos: Um e Zero, porque eles proporcionam um exemplo fantástico de como os conceitos matemáticos nada mais são do que dinâmicas de pensamento, de estruturas e de ações.

Primeiramente, vamos considerar o zero, que é uma idéia relativamente recente na história do pensamento, apesar de estar tão integrado a nossos pensamentos que mal podemos conceber um mundo sem zero. As origens deste símbolo datam aproximadamente do século VIII depois de Cristo, quando aparecem os primeiros registros em textos matemáticos na Índia. É interessante notar que, paralelamente a estas anotações, florescia na Índia neste mesmo período uma Escola de Pensamento decorrente do hinduísmo (através de Shankhara) e do budismo (através do Navarana). Esta Escola tinha ênfase no objetivo de obter a transcendência através da meditação e escapar do Karma através da renúncia ao mundo material, até mesmo através da mortificação dos corpos físicos através do auto-flagelamento.
Este estado de Nirvana era atingido através do “nada”, um cancelamento total dos movimentos e dos pensamentos dentro da consciência concreta, um estado “zen”. Este aspecto de meditação era o objetivo máximo do desenvolvimento espiritual, a fusão com o “todo” e com o “nada” ao mesmo tempo.
Muitos consideram este período da historia indiana como um retrocesso, um declínio das tradições tântricas que pregavam a união e a harmonização do material e do espiritual.

Foi neste período da devoção ao “vazio” que o conceito do zero apareceu. O resultado disto foi uma manifestação tanto através de um nome específico quanto de um símbolo, tanto na matemática quanto na metafísica. Na matemática, ele acabou se tornando um número, com implicações que falarei mais adiante. Seu nome em sânscrito é “Sunya”, que significa “vazio”.

Até então, como as pessoas se viravam sem o zero?
Na Antiga babilônia, Egito, Grécia e Roma, eram utilizados símbolos que representavam quantidades, como por exemplo, I, V, X, L, C, D e M. Em valores como 1005 (MV) ou 203 (CCIII), não havia a necessidade de um zero pois os numerais eram formados por “caixinhas” que representavam uma determinada quantidade de elementos. V melancias eram 5 melancias… XII camelos eram 12 camelos e ninguém questionava os números. O conceito de “zero” camelos era marcado com um símbolo parecido com duas barras paralelas [ // ] mas existia apenas como resultado de contas, por exemplo XII – XII = // representando “todos os camelos foram vendidos”.
Mas anotar um carregamento vazio é muito diferente de tratar o zero como uma entidade tangível.
Aristóteles e outros matemáticos discutiram o conceito do zero filosoficamente, mas a matemática grega, fortificada pelas influências pitagóricas vindas do Egito, recusavam-se a incorporar o zero em seu sistema.

E chegamos aos muçulmanos…
Os árabes, que do século VI ao XIV funcionaram como os grandes transmissores do conhecimento do oriente para o ocidente, trouxeram com eles o conceito do zero, além de nove outros números que também haviam sido desenvolvidos na Índia. Os números, como os conhecemos, são baseados nos ângulos formados entre os traços, como na figura abaixo:

O responsável pela transformação dos números indianos em arábicos foi o matemático e alquimista Al-Khwrizmi, cujas obras serviram de base para os trabalhos do ocultista, astrólogo, alquimista e matemático chamado Al-Gorisma (da onde vem a palavra Algoritmo), que trouxe estes numerais para os acampamentos árabes na Espanha. Seus trabalhos foram traduzidos para o latim por volta do século XII. Gradualmente, este sistema “árabe” foi introduzido na Europa e começou a alavancar progressos na ciência e no pensamento filosófico. A mente menos mística e mais prática dos comerciantes árabes transformou o conceito espiritual do zero em algo que poderia ter aplicações práticas para facilitar os cálculos, especialmente envolvendo números grandes ou cheios de colunas vazias, como 155.521.972 ou 4.815.162.342 ou 2012, por exemplo.

Silvestre II (que foi papa de 999 a 1003), inventor do relógio mecânico, bem que tentou introduzir os algarismos na Europa, mas foi severamente reprimido e, após sua morte, seus sucessores papais consideravam o zero como sendo o “número do diabo” e mantiveram os números romanos como oficiais até meados do século XII. Apenas com a força dos comerciantes, que achavam o zero muito prático para fazer contas, é que seu uso foi definitivamente implementado na Europa.
As conseqüências para a ciência foram enormes, especialmente na aritmética. Até aquele momento, as adições de números necessariamente resultavam em números maiores que os originais. A partir do zero, chegava-se a operações como

3 + 0 = 3
3 – 0 = 3
30 = 3 x 10

Até que alguém chegou a 0 – 3 = -3… MENOS TRÊS ?!?!?
O que poderia significar aquilo? A lógica começava a quebrar. Matemáticos, rosacruzes e alquimistas se reuniram ao redor desta incrível curiosidade. Apesar de não fazer sentido no mundo real, estes “números negativos” tinham toda uma coerência dentro do sistema e despertaram uma nova gama de artifícios. Estes números eram chamados originalmente de “números espirituais”, pois não poderiam ser verificados materialmente, apesar de seus efeitos serem sentidos dentro da aritmética.
A matemática, que até então estava associada à forma e à geometria, passava a se tornar algo abstrato, mental. Originalmente, o impulso espiritual dos hindus não permitiu que o zero ficasse no início das contagens, então nos textos antigos, o zero é sempre colocado após o nove.

Somente no século XVI, quase na Era da Razão, é que o zero foi finalmente colocado antes do um.
A partir destes conceitos, foram desenvolvidos os números irracionais (como a raiz de dois, que até então era considerado um número mágico usado na geometria sagrada), logaritmos e finalmente os números imaginários (a raiz quadrada de um número negativo), números complexos (um número real adicionado a um número imaginário) e finalmente números literais (substituir números por letras).

Não apenas o zero se tornou indispensável para nossas vidas como seu uso transformou a maneira como vemos a natureza e nossas atitudes a respeito de nós mesmo. Originalmente, o zero representava o vazio (Sunya) mas foi traduzido para o latim como Chiffra (que significava “nada”), mas os conceitos intrínsecos do “vazio” hindu/zen é muito diferente do conceito materialista de “nada”. Naquele período, a palavra “Maya” em sânscrito passou de seu conceito original “véu que divide a realidade” para “ilusão” ou o aspecto ilusório do Plano Material. Durante o materialismo da matemática na Revolução Industrial, o zero tornou-se um objeto material e o Plano Espiritual tornou-se “ilusório”.
A mente racionalista começou a negar o conceito espiritual da unidade. A unidade perdeu sua posição para o zero e o advento do zero permitiu a extrapolação para as bases do ateísmo, ou “zero Deus”, a negação do espiritual.

A noção do zero também teve um efeito em nossos conceitos. Idéias como a finalidade da morte ou o medo da morte, e todas as filosofias baseadas na não-existência após a morte devem sua origem ao zero.

Al Mamum, Al-Hakim
Quando o assunto é história da arte, eu acabo me empolgando e sempre escrevo mais do que pensei a princípio… e acabei desviando do assunto…
Bem… a relação entre o início das cruzadas e a expansão dos conceitos matemáticos estão interligadas na figura dos estudiosos muçulmanos. Esta integração começa em 830 quando o califa Al-Mamum tem um sonho na qual Aristóteles conversa com ele e a partir disso, decide traduzir do grego para o árabe todos os livros de matemática e ciência que conseguissem pilhar na guerra contra os bizantinos.
Desta mistura de textos gregos, árabes e hindus, somado ao uso mais prático possível destas descobertas, que eram controle de estoques dos próprios exércitos muçulmanos… armas, comidas, saques, divisões, etc, etc, etc… sem contar a geometria, afinal de contas, os muçulmanos precisam rezar voltados para Meca, e alguém tem de calcular o ângulo correto durante as marchas dos soldados todos os dias… já parou para pensar nisso? E sem calculadoras…
Todos estes fatores fizeram com que os escribas e sábios acompanhassem a expansão do islã, chegando até a Espanha e até Jerusalém.

Como vimos nos posts anteriores, os muçulmanos tomam Jerusalém em 638, oito anos após a morte do profeta Maomé, com os exércitos do califa Omar. Jerusalém, naquele período, tornou-se um centro de estudos, pois era um ponto intermediário entre Alexandria e o oriente, servindo de passagem dos conhecimentos entre o oriente e o ocidente. Durante mais de 300 anos, a cidade tornou-se um movimentado centro de comércio e estudos.

Jerusalém é considerada a terceira cidade mais sagrada do Islamismo (atrás apenas de Meca e Medina) e neste período chegou a ter mais de 70.000 habitantes. Jerusalém estava atrás apenas de Alexandria e Bagdá em termos de estudos de matemática, astronomia, astrologia e geometria.

O começo do fim ocorre quando o califa Al-Hakim ordena a destruição dos templos e sinagogas não muçulmanos, a partir de 1009, quando ordena a destruição do Santo Sepulcro. A destruição dos outros templos cristãos acabou adiada por conta das revoltas sunitas e, ironicamente, das revoltas xiitas posteriores, que acabaram fazendo com que sua atenção ficasse voltada para as próprias mesquitas destas duas facções. Mas isto foi suficiente para acender uma “luz vermelha” nas Ordens protetoras da Arca da Aliança (ou assim diz a lenda).
Uma noite, em 1021, Al-Hakim saiu para passear nos jardins de seu palácio e desapareceu. No dia seguinte, foram encontrados apenas sua montaria e seu manto, com manchas de sangue. Seu desaparecimento nunca foi solucionado…

Curiosamente, a primeira decisão de seu sucessor, Al-Zahir, foi permitir aos monges que viviam próximos ao Santo sepulcro a reconstrução do que havia sido destruído em 1009. Seu governo durou até 1036, quando faleceu vítima de uma praga. Al-Mustansir, seu filho, tornou-se califa com a idade de 6 anos, sendo assessorado por 40 vizires até atingir a idade adulta. Al-Mustansir teve altos e baixos… no começo de seu reinado, os árabes tiveram um período de prosperidade e expansão, até 1065, quando uma seca terrível, seguida de pestes e fome assolou o Egito de 1065 a 1072, somada à guerra com os turcos e a derrota e perda de diversas cidades na região.
Com a morte de Mustansir e a tomada do poder por Al-Mustali (que muitos consideravam apenas um usurpador do verdadeiro califa, que seria Na-Nizar). Com os turcos ameaçando invadir Jerusalém a qualquer momento e a ameaça de destruição total dos templos, a guerra civil prestes a explodir e a expansão dos fatimidas pelos territórios bizantinos, a região da palestina tornou-se um problema.
A qualquer momento, algum habibs maluco iria tomar o poder e provavelmente mandar destruir todas as relíquias cristãs da cidade.
Estava na hora de fazer alguma coisa…

Semana que vem

Nove homens e um segredo…

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Para quem prefere ler textos mais esotéricos e menos históricos:
– O Bode na Maçonaria
– Biografias: Theodore Reuss, o verdadeiro fundador da OTO
– Inventário da Normalidade, um texto do Paulo Coelho.
– Paganalia
– Faça sua própria pirâmide dos Illuminati
– The Mindscape of Alan Moore
– Arcano 12 – O Enforcado
– Consagrando objetos Mágicos
– A Noite Negra da Alma (alquimia)
– Biografia: Karl Kellner, o fundador da OTO

#Hinduismo #Matemática

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/brahma-vishnu-shiva-os-mu%C3%A7ulmanos-e-o-zero

Os Nove Desconhecidos e o livros do saber universal

A tradição dos Nove Desconhecidos remonta à época do imperador Ashoka, que governou as Índias a partir do ano 273 a.C. Era neto do Chandragunta, primeiro unificador da Índia. Cheio de ambição como o seu antepassado, cuja tarefa quis completar, empreendeu a conquista de Kalinga, que se estendia desde a actual Calcutá até Madras. Os “kalinganeses” resistiram e perderam cem mil homens na batalha. O espectáculo dessa multidão massacrada transtornou Ashoka. Ficou, para todo o sempre, com horror à guerra. Renunciou a prosseguir na integração dos países insubmissos, declarando que a verdadeira conquista consiste em captar a estima dos homens pela lei do dever e da piedade, pois a Majestade Sagrada deseja que todos os seres animados usufruam de segurança, liberdade, paz e felicidade. Convertido ao budismo e devido à sua maneira de agir, Ashoka espalhou esta religião através das Índias e do seu império, que ia até à Malásia, Ceilão e Indonésia. Depois o budismo chegou ao Nepal, Tibete, China e Mongólia. No entanto, Ashoka respeitava todas as seitas religiosas. Aconselhava os homens a serem vegetarianos, aboliu o álcool e o sacrifício de animais. H. G. Wells, no seu sumário da história universal, escreve: “Entre as dezenas de milhares de nomes de monarcas que se amontoam nos pilares da história, o de Asoka brilha quase isolado, como uma estrela”.

Diz-se que, consciente dos horrores da guerra, o imperador Ashoka quis proibir para sempre aos homens que utilizassem a inteligência de uma forma prejudicial. Sob o seu reinado, a ciência da natureza passou a ser secreta, tanto passada como futura.

As pesquisas, indo da estrutura da matéria às técnicas de psicologia coletiva, esconder-se-ão, dali em diante e durante vinte e dois séculos, atrás do rosto místico de um povo que o mundo julga apenas preocupado com o êxtase e o sobrenatural. Ashoka fundou a mais poderosa sociedade secreta do Universo: a dos Nove Desconhecidos. Nove Homens, Nove livros, todo o conhecimento do universo. Possuir um dos livros tornaria um dos nove seres mais fortes do mundo. Os nove, o mais forte da Terra. Todos os segredos residem nos Nove Livros que Ashoka fez questão de ocultar. Entretanto, como o portador de um livro teria um profundo respeito por outro portador, sendo que jamais tentariam roubá-los um do outro. Assim eles eram repassados de geração em geração, exceto pelo portador do livro que possuía a chave da imortalidade, que segundo a lenda continua a ser o mesmo desde o inicio da sociedade secreta.

Continua a dizer-se que os grandes responsáveis pelo atual destino da Índia – e sábios como Bose e Ram acreditam na existência dos Nove Desconhecidos – deles recebiam conselhos e mensagens. Com alguma imaginação, é possível avaliar-se a importância dos segredos que poderiam guardar nove homens beneficiando diretamente das experiências, dos trabalhos, dos documentos acumulados durante mais de duas dezenas de séculos. Quais os objetivos que esses homens têm em vista? Não deixar cair em mãos profanas os meios de destruição. Prosseguir as investigações benéficas para a humanidade. Esses homens seriam renovados por cooptação a fim de defender os segredos técnicos de um passado longínquo.

São raras as manifestações exteriores dos Nove Desconhecidos. Uma delas está ligada ao prodigioso destino de um dos homens mais misteriosos do Ocidente: o papa Silvestre II, conhecido sob o nome de Gerbert d’Aurillac. Nascido em Auvergne no ano 920, falecido em 1003, Gerbert foi monge beneditino, professor da universidade de Reims, arcebispo de Ravena e papa por mercê do imperador Otão III. Teria passado algum tempo em Espanha, depois, uma misteriosa viagem tê-lo-ia levado até às Índias, onde captara diversos conhecimentos que causaram assombro no seu séquito. Também possuía, no seu palácio, uma cabeça de bronze que respondia SIM ou NÃO às perguntas que ele lhe fazia sobre a política e a situação geral da cristandade.

Na opinião de Silvestre II (volume CXXXIX da Patrologia Latina, de Migne), esse processo era muito simples e correspondia ao cálculo feito com dois números. Tratar-se-ia de um autómato análogo às nossas modernas máquinas binárias. Essa cabeça “mágica” foi destruída quando da sua morte, e os conhecimentos trazidos por ele cuidadosamente escondidos. A biblioteca do Vaticano proporcionaria sem dúvida algumas surpresas ao investigador autorizado. O número de Outubro de 1954 de Computers and Automation, revista de cibernética, declara: “Temos de imaginar um homem de um saber extraordinário, de uma destreza e de uma habilidade mecânica fora do comum. Essa cabeça falante teria sido feita “sob determinada conjunção das estrelas que se dá exatamente no momento em que todos os planetas estão prestes a iniciar o seu percurso”. Não se tratava nem de passado, nem de presente, nem de futuro, pois aparentemente essa invenção ultrapassava de longe a importância da sua rival: o perverso “espelho sobre a parede” da rainha, precursor dos nossos modernos cérebros automáticos. Houve quem dissesse, evidentemente, que Gerbert apenas foi capaz de construir semelhante máquina porque mantinha relações com o Diabo e lhe jurara eterna fidelidade”.

Teriam outros europeus estado em contato com essa sociedade dos Nove Desconhecidos? Foi preciso esperar pelo século XIX para que reaparecesse este mistério, através dos livros do escritor francês Jacolliot.

Jacolliot era cônsul de França em Calcutá na época de Napoleão III. Escreveu uma obra de antecipação considerável, comparável, se não superior, à de Jules Verne. Deixou, além disso, várias obras consagradas aos grandes segredos da humanidade. Essa obra extraordinária foi roubada pela maior parte dos ocultistas, profetas e taumaturgos. Completamente esquecida em França, é célebre na Rússia. Jacolliot é formal: a Sociedade dos Nove Desconhecidos é uma realidade. E o mais estranho é que cita a este respeito técnicas absolutamente inimagináveis em 1860, como seja, por exemplo, a libertação da energia, a esterilização por meio de radiações e a guerra psicológica.

Yersin, um dos mais próximos colaboradores de Pasteur e de Roux, teria sido informado de segredos biológicos por ocasião da sua viagem a Madras, em 1890, e, segundo as indicações que lhe teriam sido dadas, preparou o soro contra a peste e a cólera.

A primeira divulgação da história dos Nove Desconhecidos deu-se em 1927, com a publicação do livro de Talbot Mundy, que pertenceu, durante vinte e cinco anos, à polícia inglesa das Índias. Esse livro está a meio caminho entre o romance e a investigação.

Os Nove Desconhecidos utilizariam uma linguagem sintética. Cada um deles estaria de posse de um livro constantemente renovado e contendo o relatório pormenorizado de uma ciência. O primeiro destes livros seria consagrado às técnicas da propaganda e da guerra psicológica. “De todas as ciências, diz Mundy, a mais perigosa seria a do controle do pensamento dos povos, pois permitiria governar o mundo inteiro”.

É de notar que a Semântica Geral, de Korjybski, apenas data de 1937 e que foi necessário aguardar a experiência da última guerra mundial para que principiassem a cristalizar-se no Ocidente as técnicas da psicologia da linguagem, quer dizer, da propaganda.

O primeiro colégio de semântica americano só foi criado em 1950. Em França, apenas conhecemos A Violação das Multidões, de Serge Tchokhotine, cuja influência nos meios intelectuais e políticos foi importante, apesar de só ao de leve tocar no assunto.

O segundo livro seria consagrado à psicologia. Falaria especialmente na maneira de matar um homem ao tocar-lhe, provocando a morte pela inversão do influxo nervoso. Diz-se que o judô deriva de certos trechos dessa obra.

O terceiro estudaria a microbiologia e especialmente os colóides de protecção. O quarto trataria da transmutação dos metais. Diz uma lenda que nas épocas de fome, os templos e os organizações religiosas de proteção recebem de uma fonte secreta enormes quantidades de ouro muito fino.

O quinto incluía o estudo de todos os meios de comunicação, terrenos e extraterrenos.

O sexto continha os segredos da gravitação.

O sétimo seria a mais vasta cosmogonia concebida pela nossa humanidade.

O oitavo trataria da luz, do eletromagnetismo e do magnetismo.

O nono seria consagrado à sociologia, indicaria as leis da evolução das sociedades e permitiria a previsão da queda.

À lenda dos Nove Desconhecidos está ligado o mistério das águas do Ganges. Multidões de peregrinos, portadores das mais pavorosas e diversas doenças, ali se banham sem prejuízo para os de boa saúde. Dizem que as águas sagradas purificam tudo. Pretenderam atribuir essa estranha propriedade do rio à formação de bacteriófagos.

Mas por que motivo não se formariam eles igualmente no Bramaputra, no Amazonas ou no Sena? A hipótese de uma esterilização por meio de radiações aparece na obra de Jacolliot, cem anos antes de se saber possível um tal fenómeno. Essas radiações, segundo Jacolliot, seriam originárias de um templo secreto cavado sob o leito do Ganges. Técnicas conhecidas hoje pela nossa Ciência para profileração e oxidação de microorganismos

Afastados das agitações religiosas, sociais e políticas, resoluta e perfeitamente dissimulados, os Nove Desconhecidos encarnam a imagem da ciência calma, da ciência com consciência. Senhora dos destinos da humanidade, mas abstendo-se de utilizar o seu próprio poder, essa sociedade secreta é a mais bela homenagem possível à liberdade em plena elevação. Vigilantes no âmago da sua glória escondida, esses nove homens vêem fazer-se, desfazer-se e tornar a fazer-se as civilizações, menos indiferentes que tolerantes, prontos a auxiliar, mas sempre sob essa imposição de silêncio que é a base da grandeza humana. Mito ou realidade?

Há aqueles que arriscam uma teoria, uma das mais interessantes é essa:

“O Vedas possui diversos trechos que supostamente demonstram a interferência de um povo alienígena convivendo com os indianos há muito tempo. Eram vistos como deuses por possuir uma tecnologia avançadissima. Esse povo passou para os indianos o seu conhecimento. Porém despreparados, os humanos começaram a utilizar de modo errado, como é o caso dos Vimanas ceifando milhares no campo de batalha com um único ataque. O povo extraterreno (ou intraterreno) cansado dessa destruição, retornou para casa. A matança continuou até o dia que Ashoka decidiu por um fim. Dividiu o conhecimento entre os membros da sociedade e estes foram ocultados para sempre e utilizados apenas quando necessário.”

Texto retirado do livro “O despertar dos Mágicos”, de Louis Pauwels e Jacques Bergier.

#Hinduismo

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/os-nove-desconhecidos-e-o-livros-do-saber-universal

A Conexão entre o rock e o vodu

Steve Lawhead, em seu livro Rock Reconsidered, cita Tony Palmer: “Que Rock e sua ‘má e nociva batida’ originaram-se com os escravos africanos é uma noção racista e sem nenhum fundamento na verdade” (Rock Reconsidered, pp. 55-60). Dan e Steve Peters expressam a mesma insana cegueira na página 187 do livro deles What About Christian Rock?

Tais negações são absoluta e completa cegueira espiritual. Leonard Seidel, famoso pianista de concertos e professor que também dá palestras sobre música, tem pesquisado este tópico e desmascara a mentira do dizer que não há conexão entre Vodu, paganismo africano, e música Rock(* e Música Popular Afro-LatinoAmericana):

“Os incessantes poli-rítmos batidos nos tambores cilíndricos [pelos nativos nas tribos africanas] são o catalisador do Rhythms-and-Blues, do Rock-and-Roll(* e Música Popular Afro-LatinoAmericana) , e do Metal-Pesado de hoje. É assombroso como as reações que contemporaneamente vemos em concertos de Rock(* e Música Popular Afro-LatinoAmericana) são uma exata cópia do que acontecia nas celebrações de Pinkster [festivais dos negros em New York] ou em Place Congo [escravos negros dançando em New Orleans] durante o Período Antebellum[1]. Qualquer análise que negue este fato rouba das igrejas a percepção da [evidente] conexão do [paganismo] africano com o movimento do Rock(* e da Música Popular Afro-LatinoAmericana) do século 20.

“Em Stairway to Heaven [Escadaria para o Céu], Davin Seay cita Robert Palmer em Rolling Stone Illustrated History of Rock ‘N’ Roll [A História do Rock ‘N’ Roll Ilustrada nos Rolling Stones]:‘Em um sentido muito real, Rock(* e Música Popular Afro-LatinoAmericana) estava implícito na música dos primeiros africanos trazidos para aAmérica do Norte (e América do Sul e Central). E, implícito na música deles, estavam séculos de acumulação de ritos, de rituais, e de inflamado [e grotesco] paganismo [culto a ídolos, a animais, e a demônios]. A música destes primeiros escravos brutalizados e animalizados, arrancados de culturas tão antigas quanto as pirâmides, aquelas antiqüíssimas cantigas e fortes pisadas [das danças] tribais, não meramente evocavam os espíritos dos deuses-demônios da floresta: deram-lhes vida e imortalidade (Davin Seay, Stairway to Heaven, New York: Ballantine Books, 1986, p. 11).

“Implicações tais como esta levam a uma investigação mais profunda e a focalizarmos nos escravos que foram trazidos para as Ilhas do Caribe. Um dos mais significativos livros publicados até hoje, sobre este assunto, é o estudo feito por Maya Deren, para a Fundação Guggenheim, em 1953, concernente à história das origens que os deuses-demônios do Haiti e os seus cultos têm nas tribos africanas. O livro Divine Horseman — The Living Gods of Haiti [Cavaleiros Divinos — Os Deuses-Demônios do Haiti, Vivos e Atuantes], lida com a importação dos escravos para as Ilhas Caribenhas ([eles eram vendidos por tribos caçadoras, geralmente muçulmanas, e eram oriundos] da costa Oeste da África). Estes escravos foram tomados das mesmas tribos das quais os escravos das Colônias [precursoras dos Estados Unidos] foram tomados: Senegaleses, Bambaras, Arades, Congos, Kangas, Fons e Fulas. O primeiro carregamento de escravos para o Haiti foi em 1510.

“Os escravos das Colônias TROUXERAM CONSIGO A ADORAÇÃO AOS SEUS DEUSES-DEMÔNIOS, TROUXERAM AS SUAS DANÇAS E SUAS BATIDAS DE TAMBORES [ênfase adicionada]. Eileen Southern declara: ‘Não há dúvidas que Haiti foi o local central onde as tradições religiosas africanas… sincretizaram com as crenças e práticas Católicas para dar a luz o Vaudau (Vodu)2] … as cerimônias se centralizavam na adoração do deus-serpente Damballa através do cantar, do dançar, e da possessão por espíritos’ (Eileen Southern, The Music of Black Americans, New York: W.W. Horton, 1983, p. 139).

“A ADORAÇÃO DELES ERA BASEADA EM TAMBORES E DANÇAS, e, enquanto adoravam um deus (isto é, um demônio), a suprema experiência [que buscavam] era ter seus corpos possuídos por aquele demônio. Os rituais eram grotescamente sensualistas e sádicos. Uma vez firmemente estabelecida nas Ilhas Caribenhas, a prática abriu caminho para a costa dos Estados Unidos, principalmente através da cidade de New Orleans. Historicamente, escravos oriundos de São Domingos foram trazidos aos Estados Unidos durante a revolução haitiana em 1804, mas Vodu provavelmente existiu [nos USA] antes disto, porque o estado da Louisiana tinha importado escravos das Índias Ocidentais em 1716, e a prática foi também relatada em Missouri, Geórgia e Flórida.

“As danças de New Orleans tinham nomes honrando aos deuses-demônios Vodus dos rituais de adoração. O SAMBA [ênfase adicionada] tem seu nome homenageando o deus-demônio ‘Simbi,’ deus da sedução e da fertilidade [nós chamaríamos de fornicação]. O CONGADO homenageia, com seu nome, o demônio africano ‘Congo.’ O nome MAMBO homenageia as sacerdotisas Vodu que ofereciam sacrifícios aos demônios, durante os rituais.

Sheldon Rodman, autor de Haiti, the Black Republic, descreve estas danças e as relaciona com as danças de hoje. É interessante notar que, no álbum de Rock de 1981, My Life in the Bush of Ghosts [Minha Vida na Mata dos Espíritos], por Brian Eno e David Byrne, estes enaltecem-invocamos próprios espíritos africanos do tenebroso passado do Rock). [D.W. Cloud — Este álbum incorporou tambores africanos com Rock eletrônico]

“A MAIS PENETRANTE OBSERVAÇÃO FEITA NO LIVRO DE MAYA DEREN REFERE-SE AOS BATEDORES DE TAMBORES, AOS RITMOS, E À BATIDA. ‘De todos os indivíduos relacionados à atividade ritual, é o batedor de tambores aquele cujo papel pareceria quase análogo ao de um virtuoso [o excepcional solista, atração de uma banda] … tocar os tambores nos rituais haitianos exige mais treinamento explícito [aulas] de destreza e requer mais o praticar do que qualquer outra atividade ritual.'(Maya Deren, Divine Horseman–The Living Gods of Haiti, New Paltz: McPherson & Co., 1953, p. 233).

“Ela observa que os dançarinos são forçados a saudar ou encurvar-se aos batedores de tambores, antes que qualquer outra parte do ritual seja iniciada. É óbvio que, sem os tambores, o ritual não pode se consubstanciar. Que chocante paralelo com a moderna banda de Rock(* e Música Popular Afro-LatinoAmericana) ! O conjunto de baterias está sempre no centro do palco, usualmente elevado por detrás do cantor líder. Sem o baterista (ou, em muitos casos, sem o ritmista da guitarra elétrica tipo baixo ou contrabaixo), a banda de Rock(* e Música Popular Afro-LatinoAmericana) cessaria de existir.

“Ademais, a Senhorita Deren escreve que ‘é sobre os batedores de tambores que recai a responsabilidade de integrar os participantes em um coletivo homogêneo. É a batida dos tambores que funde os cinqüenta ou mais participantes em um único corpo, fazendo que se movam como um [um só ser], como se todos estes corpos individuais tivessem se acorrentado ao fluir de um único pulsar – um pulso que bate … levando o corpo em uma [pulsante e alucinante ou] lenta [e sensualíssima] ondulação (como a de uma serpente) e que começa nos ombros, depois [desce] pela espinha dorsal, sobe pelas pernas e [explode] nos quadris’ (Deren, Divine Horseman, p. 235).

“Esta descrição é assombrosamente paralela ao que tem lugar em um moderno concerto de Rock(* e Música Popular Afro-LatinoAmericana) . Basta que observemos um vídeo dos participantes para sermos convencidos. As ações dariam a um observador a impressão de que algum tipo de possessão [demoníaca] ocorreu. No seu livro, a Senhorita Deren desce a alguns detalhes para descrever o objeto inanimado do tambor como sendo sagrado, até mesmo ao ponto de sertratada como vital à sobrevivência e assim vigiada e guardada por uma guarnição dos participantes[3] . ‘São os tambores e a batida dos tambores que são, em si, o som sagrado’ (Deren, Divine Horseman, pp. 244-246).

“Pearl Primus, há muito tempo aclamada como uma das maiores experts em dança Vodu, disse: ‘Os batedores dos tambores mantêm terríveis pulsar e batida, os quais muito facilmente tomam posse das sensibilidades dos adoradores. Observadores dizem que estes tambores são (por si só)capazes de trazer uma pessoa ao ponto onde é fácil para a deidade-demoníaca (Loa) ter possessão dos seus corpos – a pessoa indefesa é açoitada por cada golpe do conjunto de tambores, à medida que o batedor de tambores começa a ‘bater a Loa (deusa-demônio) para dentro de sua cabeça’: a pessoa encolhe-se com cada uma das batidas acentuadas[4] como se o cassetete do tambor descesse sobre sua própria cabeça; a pessoa ricocheteia ao redor do local, cegamente se agarrando aos braços estendidos para apoiá-la'(aula-palestra, Mount Holyoke College, Holyoke, Massachusetts, Mary E. Wooley Hall, 1953).

“Não pode ser negado que há um forte relacionamento entre o que temos descoberto no Vodu haitiano (Candomblé brasileiro)e a sua contraparte na cidade de New Orleans e outras cidades do sul. TAMBÉM NÃO PODE SER NEGADO QUE O MODERNO MOVIMENTO DE ROCK AND ROLL(* e Música Popular Afro-LatinoAmericana) EVOLVEU PARCIALMENTE DE ALGUMAS DAS DANÇAS ACIMA DESCRITAS, PROGREDINDO ATRAVÉS DE UM NÚMERO DE ESTÁGIOS: RUMBA DANÇANTE, RHYTHMS-AND-BLUES, ROCK-AND-ROLL, DISCO, METAL-PESADO E PUNK-ROCK.É óbvio que há outros elementos que compõem a evolução da música Rock; no entanto, eles não são nosso tema aqui. Concernente a Disco, a Senhorita Southern diz: ‘Os insistentes ritmos pulsantes da música Disco empurraram as convencionais melodia e harmonia para posições subalternas … de uma maneira que lembra descrições da recitação de Juba[5] para acompanhar as danças das plantações do século dezenove’ (Eileen Southern, The Music of Black Americans, New York: Norton and Co., 1983, p. 507). …

“Ruth Tooze e Beatrice Krone, no livro que escreveram, relatam que ‘o mesmo instinto por ritmos pulsantes que é encontrado nas canções dos negros é levado para como [escolheram e] passaram a usar instrumentos musicais … banjos nas plantações e depois na cidade, onde adicionaram o pistão, o clarinete e o trombone. Com seu inato talento para improvisar, um novo tipo de música instrumental foi criada – nós o chamamos de Jazz’ (Ruth Tooze, Beatrice Krone, Literature and Music, Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1955, p. 105).

“É irrefutável que música Rock and Roll(* e Música Popular Afro-LatinoAmericana) deve algumas [nós diríamos, a maioria] de suas raízes às tribos da África. Cada análise escrita sobre o assunto reconhece que as raízes do Rock vêm das profundezas do ‘Jazz’ e do ‘Rhythms-and-Blues.’Por causa do relacionamento entre a música Negro-Americana e a música Africana, criaram um termo que é consideravelmente usado hoje, ‘Música AfroAmericana’ (Literature and Music, p. 102). Joseph Machlis diz (em seu volumoso trabalho, The Enjoyment of Music [O Prazer da Música]:): ‘Jazz, numa definição sem teoria e sem refinamentos, mas que funciona muitíssimo bem, é um idioma musical Afro-Americano cheio de improvisações. Faz uso de elementos de ritmo + melodia + harmonia oriundos da África, e de elementos de melodia + harmonia da tradição musical européia. A influência do Jazz(e dos idiomas [musicais] Afro-Americanos que lhe são intimamente associados) tem sido tão insidiosa e onipresente, que agora a maior parte da nossa música popular é no idioma musical Afro-Americano, e elementos de Jazz também têm permeado um bocadão da nossa música de concerto’ (Joseph Machlis, The Enjoyment of Music, New York: W. W. Norton, 1963, p. 597).

“Declarar que os paganismo e feitiçaria da África, através do Haiti, são as únicas raízes da música Rock, seria enganar e ser menos que honesto. Um cuidadoso estudo da música Rock revela-a ser mais complexa que isto; no entanto, NEGAR QUE EXISTE UMA CONEXÃO AFRICANA COM OS RITMOS DE ROCK(* e Música Popular Afro-LatinoAmericana) DE NOSSOS DIAS É SER IGUALMENTE ENGANADOR E DESONESTO. Declarar que um certo ritmo ou batida é ‘mau e nocivo’ não pode ser completamente provado. Mas o que é muitíssimo mais importante é a revelação histórica de que atividade demoníaca tem sido observada em conexão com rituais onde tambores e batidas rítmicas têm sido o catalisador. Que esta possibilidade exista já deveria bastar como uma advertência, às igrejas, de que Satanás pode e irá usar tudo que estiver em seu poder para fazer com que todos adorem não a Deus mas a ele, para que, no devido tempo, o Diabo consuma seu mau propósito e receba a glória” (Leonard J. Seidel, Face the Music: Contemporary Church Music on Trial [Encare a Música: A Música Cristã Contemporânea no Banco de Réus , 1988, p. 34-42).

A conexão entre Rock & Roll(* e Música Popular Afro-LatinoAmericana) e Vodu (Candomblé brasileiro) tem sido notada mesmo por músicos de Rock, descrentes. O baterista inglês de sessões de Rock, Rocki (Kwasi Dzidzornu), que tem gravado com muitos grupos famosos e para músicos tais quais os Rolling Stones, Spooky Tooth, e Ginger Baker, percebeu que a música de Jimi Hendrix era similar à música Vodu. Note as seguintes assombrosas declarações da biografia de Hendrix:

“Ele [Hendrix] tinha tido uma chance de ver Rocki e alguns outros músicos africanos no cenário de Londres. Achou um prazer tocar ritmos contra seus poli-rítmos. Eles gostavam de totalmente saírem [fora de si mesmos] para [entrarem] dentro de outro tipo de espaço em que [nunca ou] raramente tivessem antes estado … O pai de Rocki era um sacerdote de Vodu e era, também, o principal batedor de tambores em uma aldeia de Gana, África Ocidental. O nome real de Rocki era Kwasi Dzidzornu. Uma das primeiras coisas que Rocki perguntou a Jimi foi de onde ele tinha recebido aquele ritmo Vodu. Quando Jimi objetou, Rocki foi em frente, explicando (em seu inglês tropeçante) que muitas das ‘assinaturas rítmicas’ que Jimi tocava na guitarra eram, muito freqüentemente, os mesmos ritmos que seu pai tocava em cerimônias Vodu. A maneira com que Jimi dançava aos ritmos que tocava faziam Rocki rememorar os ritmos que seu pai tocava para OXUM [ênfase adicionada], o deus do trovão e dos raios. A cerimônia é chamada de Vodushi. Quando criança na aldeia, Rocki entalhava em madeira representantes dos seus deuses-demônios. Eles também representavam seus ancestrais. Estes eram os deuses-demônios que eles adoravam. Eles vieram a tomar um bocadão de espaço na casa de Jimi. Uma vez eles estavam congestionando e Jimi parou e, à queima-roupa, perguntou a Rocki: ‘Você se comunica com este deus-demônio, não é?” Rocki disse: ‘Sim, eu me comunico com este deus-demônio’ ” (David Henderson, ‘Scuse Me While I Kiss the Sky [Desculpe-me, Enquanto Beijo Este Firmamento], pp. 250,251).

Como temos chamado sua atenção, há proponentes de música “Rock Cristão” que etiquetam de “racista” o que expusemos [acima]. No entanto, na biografia de Hendrix (a qual NÃO foi escrita por um crente), vemos que o filho (descrente) de um real sacerdote do Vodu vê uma conexão entre a música do estrela do Rock, Jimi Hendrix, e Vodu idólatra. O baterista Rocki, um negro, seria um racista por fazer tais observações? Estas suas observações não podem ser convenientemente postas de lado como furioso delírio de um fundamentalista bíblico!

O bem-conhecido artista do Rock, Peter Gabriel, não tem dúvidas de que há uma conexão africana direta, com o Rock & Roll(* e Música Popular Afro-LatinoAmericana) :

“Há coisas, como o ritmo de Bo Diddley, que, batida-por-batida, tenho ouvido em padrões Congoleses. Parte do que nós [americanos] consideramos ser a herança do Rock and Roll que criamos, originou-se na África. Ponto final”(Peter Gabriel, citado por Timothy White, em Rock Lives, p. 720).

Little Richard, um dos pais da música Rock, também tem testificado desta conexão:

“Minha verdadeira crença a respeito de Rock ‘n’ Roll(* e Música Popular Afro-LatinoAmericana) – e tem havido um bocado de frases atribuídas a mim ao longo dos anos – é esta: CREIO HOJE QUE ESTE TIPO DE MUSICA É DEMONÍACA. … UMA PORÇÃO DE TIPOS DE BATIDAS NA MÚSICA TÊM SIDO TOMADAS DO VODU(Candomblé brasileiro), ISTO É, DOS TAMBORES DO VODU. Se você estudar música em ritmos, como eu o tenho feito, verá que isto é verdade … CREIO QUE ESTE TIPO DE MÚSICA ESTÁ EMPURRANDO AS PESSOAS PARA LONGE DE CRISTO.É CONTAGIOSO[6]” (Little Richard, citado por Charles White, The Life and Times of Little Richard, p. 197).

Suponho que seria fácil um proponente de música Rock Cristão desconsiderar o testemunho de Little Richard, talvez por causa da sua estranha personalidade e do seu relacionamento com o cristianismo parecer ser do tipo “hoje aceso, amanhã apagado”. Mas responda-me isto: os defensores do Rock Cristão sabem mais do caráter do Rock and Roll do que um homem como Little Richard, que foi um dos seus criadores?

Os Rolling Stones e outros grupos de Rock & Roll têm gravado cerimônias de tambores ocultistas (tribais e do Vodu) e incorporaram [elementos das mesmas] dentro das suas músicas Rock. Em 1981, por exemplo, Brian Eno e David Byrne gravaram My Life in the Bush of Ghosts [Minha Vida na Mata dos Espíritos].

Música não é neutra. Há música que encoraja a atividade demoníaca, e há música que encoraja a atividade do Espírito Santo. Há música que ministra ao lado carnal do homem, e há música que ministra ao lado espiritual do homem. Música Rock(* e Música Popular Afro-LatinoAmericana) sempre tem sido associada com o carnal e o demoníaco. Rock(* e Música Popular Afro-LatinoAmericana) não tem nenhum lugar legítimo na vida e ministérios cristãos.

“Não podeis beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios; não podeis ser participantes da mesa do Senhor e da mesa dos demônios.Ou provocaremos o Senhor? Somos nós mais fortes do que ele? (1Cor 10:21-22).

[…] Postagem original feita no https://mortesubita.net/musica-e-ocultismo/a-conexao-entre-o-rock-e-o-vodu/ […]

Postagem original feita no https://mortesubita.net/musica-e-ocultismo/a-conexao-entre-o-rock-e-o-vodu/

A Mansão Winchester – Parte 1

Rev. Obito

Quando era criança meu pai gostava de brincar de quebra-cabeças e fazer contas. Às vezes ele dizia: se você ficar entre 1 e 2 minutos sem respirar você desmaia. 10 minutos sem oxigênio e seu cérebro desliga, sem volta. Então, se eu prender você e te jogar nessa piscina, quanto tempo você tem para se soltar do cadeado e das correntes para conseguir nadar até a superfície e sair vivo da água?

Talvez hoje esse tipo de brincadeira seja questionado, mas aos 11 anos eu conseguia abrir quase todos os cadeados que via. Eu também conseguia resolver um cubo mágico em menos de 2 minutos, para outras crianças isso significava um nerd chato e sem vida ou futuro, para mim significava sobremesa e poder assistir os filmes que começavam depois da meia noite na tv.

Outra coisa que adorava era ler, quadrinhos especialmente. Claro que na época se os garotos mais velhos te pegassem com uma revistinha você virava saco de pancada, hoje elas viram filmes e se você não é #teamstark as pessoas olham com nojo para sua alma.

Assim, lá pelo fim da década de 1980, encontrei em uma banca a nova edição do Monstro do Pântano, escrita por Alan Moore. Aquilo era arte pura, uma obra de suspense sofisticado, era algo que eu precisava ler. A história no caso era sobre dois casais que se embrenhavam no meio do mato e chegavam a uma mansão assombrada.

A mansão, Alan Moore contava, ficava na cidade de São Miguel, na Califórnia, e havia sido construída pela viúva Amy Cambridge, com a fortuna que herdou de seu marido, o dono da companhia de armas de fogo Cambridge. Cambridge construíu a mansão sem plantas ou mapas, dizia que recebia dos fantasmas as instruções de como deveria construir, o que resultou em uma casa que era um labirinto bizarro, salas com treze lareiras, portas que se abriam para abismos ou para paredes de tijolos. Quartos construídos dentro de quartos, cômodos com alguns poucos metros quadrados de área com armários do tamanho de salões.

Lendo os quadrinhos o resumo do que havia acontecido era: o Sr. Cambridge, depois de fazer fortuna vendendo armas de fogo havia morrido e deixado tudo para a esposa. Ela passou a ser assombrada pelos fantasmas das pessoas mortas pelas armas, cowboys, índios, mexicanos, mendigos, suicidas, etc… Os fantasmas foram claros quando ela perguntou o que queriam:

“The sound of the hammers must never stop”

“O som dos martelos não deve nunca parar!”

Então ela contratou marceneiros que começaram a expandir a casa, trabalhando em turnos, 24 horas por dia, 7 dias por semanas, sem parar nunca. BANG! BANG! BANG!

Eventualmente a viuva morreu e só então as obras da casa pararam. Por causa de sua bizarrice arquitetônica a casa foi abandonada e estava caindo aos pedaços, mas cheia de fantasmas. E o som dos martelos havia parado.

Em inglês a coisa fica mais genial porque hammer significa tanto ‘martelo’, a ferramenta, quanto ‘cão’ aquela peça de metal que as pessoas puxavam para trás para engatilhar a arma. O som de um cão batendo também faz BANG, mas um tipo diferente de BANG.

Os casais se embrenham na casa, o horror acontece e não vou dar mais spoilers, ao invés disso você pode baixar aqui a edição original (em inglês) e se divertir.

Bom, como acontecia com quase tudo que lia de Moore aquilo grudou na minha mente. Uma mansão labirinto construída com instruções dadas pelos fantasmas que morreram como resultado da fortuna que era usada para construir a casa. Uma ode à morte e à loucura.

Muito tempo depois em uma conversa sobre lugares assombrados contei da casa para um grupo de amigos, não me lembrava dos detalhes “a mansão da viuva das armas de fogo”. Uma das amigas presentes respondeu arregalando os olhos: você já ouviu falar da Mansão Winchester? Eu não me lembrava do nome exato e concordei, o que eu puxava da memória ela completava com os próprios detalhes. “Uma boa história!” Eu terminei.

– História? Como assim? Ela existe de verdade!

E foi assim que aquele labirinto me puxou de volta para dentro de seus corredores. Voltei para casa depois de um tempo, cacei a revista e a reli, prestando atenção. Vi que claramente era chamada de mansão Cambridge, mas Moore avia deixado duas pistas:

1ª Um diálogo onde uma das personagens diz: Look, really, it’s not a joke. The Cambridge Repeater was a sort of a second-rate copy of the winchester.

Ou

Olhem, é verdade, isso não é uma piada. O rifle Cambridge foi tipo uma imitação barata do Winchester.

2ª Nunca existiu uma marca Cambridge de rifles, mas o escritor e artistas eram ingleses e Cambridge é uma cidade universitária muito popular do Reino Unido que fica a uma boa distância de Winchester.

Eventualmente, depois dos anos 1990 e início no admirável milênio novo a Mansão Winchester se tornou popular de novo. Aparece em uma série de programas de caçadores de fantasmas, desbancados de mitos e gurus psíquicos. Haviam liberdades poéticas entre a mansão de verdade e a dos quadrinhos. Ambas estavam localizadas na Califórnia, a de Moore em São Miguel a real em São José. Todas as bizarrices do quadrinho existiam na casa real, salas com inúmeras lareiras, portas que levavam a lugar nenhum, os corredores labirínticos e claro, a história da assombração.

Durante anos a fascinação que aquela casa exerceu em mim me levou a estudá-la, sua história, suas lendas e principalmente seu propósito. O que levaria alguém a construir uma casa do tamanho de uma vila com detalhes tão bizarros? A resposta simples “loucura e/ou fantasmas” não me satisfazia, a lógica, mesmo que insana, não fazia sentido. Nessa matemática a conta tinha variáveis demais ou de menos.

(Para entender como funciona a matemática aplicada a essas loucuras você pode ler este textinho)

Então não tive outra opção a não ser arregaçar as mangas, vestir as calças, colocar a cueca e ir atrás de resolver esse problema. Este texto é o resultado do constrangimento de sair correndo pelas ruas, bibliotecas e até mesmo outro país com a cueca por cima das calças.

OS FATOS

A Mansão Winchester, ou Winchester Mystery House, se tornou uma atração turística. Ela se encontra no número 525 South,em Winchester Blvd. in San José, Califórnia. A construção é impressionante.

Quando você entra para fazer a tour – paga, é claro – pode pegar uma pequena brochura que traz alguns fatos sobre a casa, o mesmo texto hoje se encontra disponível no site deles <https://winchestermysteryhouse.com/>, no site também é possível fazer um tour virtual – pago, é claro. A brochura nos diz:

É UMA MARAVILHA

A Winchester Mystery House® é uma maravilha arquitetônica e um marco histórico em San José, Califórnia, que já foi a residência pessoal de Sarah Lockwood Pardee Winchester, a viúva de William Wirt Winchester e herdeira de grande parte da fortuna da Winchester® Repeating Arms.

A tragédia se abateu sobre Sarah – sua filha morreu de uma doença infantil e, alguns anos depois, seu marido foi tirado dela por tuberculose.

A MUDANÇA PARA O OESTE

Pouco depois da morte de seu marido, Sarah deixou sua casa em New Haven, CT e mudou-se para o oeste para San José, CA. Lá, ela comprou uma casa de fazenda com oito quartos e começou o que só poderia ser descrito como a mais longa reforma doméstica do mundo, parando apenas quando Sarah faleceu em 5 de setembro de 1922.

ESTES SÃO OS FATOS

De 1886 a 1922, a construção aparentemente nunca cessou, já que a casa da fazenda original de oito quartos se transformou na mansão mais incomum e ampla do mundo, apresentando:

2.230m2 de área construída
10.000 janelas
2.000 portas
160 quartos
52 claraboias
47 escadas e lareiras
17 chaminés
13 banheiros
6 cozinhas

O custo da construção foi de U$5 milhões de dólares em 1923 ou U$71 milhões hoje.

É UM MISTÉRIO

Mas o que restou é realmente um mistério. Mesmo antes de sua morte, rumores de uma “casa misteriosa” sendo construída por uma mulher rica e excêntrica circulavam. Ela foi instruída a construir esta casa por um médium? Ela foi assombrada pelos fantasmas daqueles abatidos pela “Arma que Venceu o Oeste”? A construção realmente nunca parou? O que motivou uma socialite bem-educada a se isolar do resto do mundo e se concentrar quase exclusivamente na construção da mansão mais bonita e bizarra do mundo?

À FRENTE DE SEU TEMPO

Sarah Winchester foi uma mulher independente, energética e corajosa que até hoje vive em lendas. E a mansão que ela construiu é mundialmente conhecida tanto pelas muitas curiosidades e inovações de design (muitas à frente de seu tempo) quanto pelas atividades paranormais relatadas que ocorrem dentro dessas paredes.

Esses mistérios e muito mais já atraíram mais de 12 milhões de visitantes a visitar a Winchester Mystery House® desde que as portas foram abertas em 30 de junho de 1923. Você será capaz de desvendar o mistério?

Isso resume o mistério a cerca da casa – se bem que vendo as fotos, chamar aquilo de casa é como chamar um elefante de piolho. Ele foi criado com base em lendas e mitos gerados pela excentricidade do projeto.

AS LENDAS

Alan Moore resumiu todas as lendas de maneira bem rápida e poética na história do Monstro do Pântano, depois em 2018 a Lions Gate lançou o filme A Maldição da Casa Winchester (você pode ver o trailer aqui) que além de dar uma mão de tinta moderna nas superstições foi filmado na mansão verdadeira! As cenas que mostram os cômodos e corredores são muito mais belos do que as feitas pelas dezenas de programas sobrenaturais [1], vale a pena ser visto nem que seja para se sentir o tamanho da casa.

Seria impossível tentar reunir em um único texto com menos de 10 volumes tudo o que já disseram sobre a mansão, mas em linhas gerais isso é o que popularmente se acredita:

Hoje a mansão é conhecida como a Winchester Mystery House, mas nas décadas em que estava sendo construído ela era simplesmente a casa de Sarah Winchester.

Sarah era a viuva de William Wirt Winchester, herdeiro da Companhia de Armas Winchester.

Ela nasceu em 1840 – aproximadamente – e cresceu em um mundo de privilégios. Ela falava quatro línguas, frequentava as melhores escolas, se casou bem e chegou a ter uma filha, Annie, aparentemente a vida que todos pedem a Deus. O problema é que Deus tem um senso de humor bizarro e sua filha morreu, logo em seguida foi a vez de seu marido.

Com a morte do marido Sarah herdou aproximadamente U$20 milhões de dólares (mais ou menos U$500 milhões hoje em dia), 50% das ações da empresa que lhe rendia uns U$1000 dólares por dia (ou U$26.000 dólares hoje em dia). Credo, que delícia!

Mas além de mais dinheiro do que poderia queimar, Sarah herdou uma tristeza profunda, depressão e tudo mais que acompanhava o luto de uma mulher do fim do século XIX que perde o único pilar de sua vida: a companhia e o controle de um homem!

Assim ela fez a única coisa que uma mulher como ela poderia fazer, se envolveu com o espiritismo. Começou a realizar sessões espíritas se consultava com médiuns (todos homens, é claro) e buscava entre os mortos a resposta para os problemas de sua vida, não é de se admirar que tenha obtido sucesso.

Contratando os serviços do melhor Médium Psíquico que uma fortuna descomunal poderia pagar Sarah chegou a Adam Coons. Adam conseguiu entrar em contato com William (obviamente Sarah não pediu para falar com filha, provavelmente porque ela também havia sido uma mulher do século XIX) e as notícias não eram boas. Sarah estava sendo amaldiçoada por cada ser vivo que já havia sido morto por uma arma Winchester.

Durante o século XIX houve uma corrida nos Estados Unidos para a criação de uma arma foda. Vários concorrentes desenvolviam seus projetos. Na época os rifles e revólveres disparavam uma bala por vez. Muitos ainda precisavam de pais para queimar a pólvora e disparar o projétil. Pensando em formas mais eficientes e rápidas para matar cada vez mais pessoas, H̶i̶t̶l̶e̶r̶ os americanos começaram a desenvolver novas munições que já traziam a pólvora e o projétil numa única peça e armas que disparassem essa munição cada vez mais rápido. E quem conseguisse isso estava com o futuro feito: o oeste americano estava sendo desbravado. Milhares de índios e mexicanos e búfalos malvados teimavam em não sair de lá e em atacar os pobres patriotas que queriam explorar o ouro e as terras que Deus havia lhes dado. Além desses inconvenientes o pais estava promovendo uma guerra civil que já durava meia década. O mercado precisava de armas melhores.

Oliver Winchester, um empresário e político – é claro – entrou em cena em 1866 e começou a produzir suas armas. O Modelo e, eventualmente o modelo 1873 foram campeões de venda, ficaram conhecidos como A Arma que Conquistou o Oeste. Isso tornou Oliver estupidamente rico até o dia de sua morte em dezembro de 1880. Seu filho William herdou a empresa e morreu quatro meses depois. E ai entra Sarah, que pegou o equivalente a uma Apple depois da volta de Steve Jobs.

Assim, na época da morte de William as armas Winchester já estavam matando, ferindo, aleijando e intimidando pessoas há mais de 24 anos, durante a conquista do oeste bravio e durante o final da guerra civil americana. Muita, muita gente mesmo já havia testemunhado a eficiência das armas que deram a Sarah sua fortuna. E todas essas pessoas queriam atormentá-la.

Coons então disse a Sarah que William pedia para que ela saísse sua casa em New Heaven, Connecticut, e fossa para a Califórnia. Então ela deveria usar sua fortuna para construir uma casa para os espíritos das vítimas da Winchester ou seria atormentada por eles a vida toda.

Em 1884 Sarah comprou uma casa de fazenda e o terreno ao redor, contratou carpinteiros e trabalhou para construir sua cidadela de 7 andares de altura. Ela não tinha plantas, planos ou arquitetos, ela ia instruindo os carpinteiros conforme os fantasmas a iam instruindo, assim cômodos eram construídos do lado de fora da casa, fazendo com que a janela de um quarto desse para dentro de outro quarto. Escadas eram erguidas, cada uma com degraus de tamanhos diferentes, e então interrompidas sem motivo, terminando no teto, levando a lugar algum. Portas eram colocadas e o próximo cômodo não era construído, elas davam para o lado de fora alguns andares acima do chão.

Um corredor começava a ser construído e então pediam mudanças no tamanho, e de novo, e de novo, até que se afunilavam e terminavam quando as paredes se encontravam. Cômodos eram ligados por passagens, cômodos prontos eram desmontados e paredes erguidas ali, muitas portas acabam se abrindo para revelar um muro de tijolos.

Mas a arquitetura não era a única excentricidade. Os fantasmas queriam que tudo fosse construído com madeira de sequoias gigantes mas Sarah não gostava da cor da madeira então ela mandou que pintassem todas as paredes – mais de 90.000 litros de tinta foram gastos – SÔÔÔÔ RIKAAAAAAA!

Além dos números já citados ela tinha dois porões, três elevadores, iluminação automática a gás, chuveiros e toda a tecnologia de ponta da época.

Candelabros de ouro e prata pendiam dos tetos, dúzias de painéis de cristal feitos pela Tiffany & Co. – todos desenhados por Sarah atendendo as ordem precisas dos fantasmas – preenchiam portas, janelas e painéis pela casa. Uma delas, colocada em uma das janelas, foi feita com o propósito de projetar um arco-íris no chão quando a luz do dia batesse no painel… claro que isso seria lindo se a janela não tivesse uma parede do outro lado.

Em 1904 um terremoto sacudiu San Jose, mas a Mansão Winchester havia sido erguida sobre uma base flutuante – uma fundação que distribui e equilibra o peso do solo ao redor, nada mal para uma mulher não arquiteta do século XIX – a casa ficou inteira… ou quase. Os três andares superiores sofreram algum s danos e acabaram sendo desmontados, deixando a mansão com os 4 andares que tem hoje (sem contar os porões).

A “sala Principal” era a sala onde Sarah continuava realizando sessões espíritas da meia noite às 2 da madrugada. Era enorme, tinha treze lareiras e uma mesa de carvalho redondo gigante no centro.

O cenário estava bem desenvolvido, preparado para começar a receber histórias.

Sarah nunca admitiu abertamente que estava construindo uma casa para fantasmas de pessoas assassinadas, mas alguns rumores começavam a nascer.

Os trabalhadores falavam das sessões diárias na sala dos espíritos, realizadas com médiuns locais, numa tentativa de atrair espíritos bons. Esses “espíritos bons” eram consultados para que ela se informasse sobre maneiras de melhor agradar aos espíritos para os quais ela estava construindo a casa, eram esses guias que diziam para Sarah fazer tantas adições aparentemente ilógicas ao seu projeto.

Dos 13 banheiros da casa, apenas um funcionava. Era uma tentativa de confundir espíritos que tentassem assombrar os encanamentos. Ela dormia cada noite em um quarto diferente, e usava suas passagens secretas para ir de um cômodo para outro, evitando os corredores principais.

Enquanto ela estava viva as histórias eram criativas, depois que ela morreu elas ficaram insanas. Os trabalhadores simplesmente largaram suas ferramentas, vários pregos ficando para fora das paredes, madeiras serradas pela metade.

Relatos de pessoas que invadiam a casa, tanto para roubá-la quanto para explorá-la e fugiam apavoradas, se tivessem a sorte de conseguir fugir, é claro, se tornaram lugar comum.

Gritos, choros, sons de marteladas (ou tiros) na casa vazia eram ouvidos por quem passasse por perto.

Sarah divide seus bens em seu testamento, menos um: a casa.

Apesar de seu tamanho e conteúdo ninguém queria comprá-la. Era bizarra demais. Sua sobrinha então retirou toda a mobília e a leiloou. Dizem que foram necessárias 6 semanas para esvaziar a casa. Depois de vazia um investidor local comprou a casa pela bagatela de US135.000 dólares. Apenas cinco meses depois da morte de Sarah a casa estava aberta para o público – embora não em sua totalidade. Muitas alas e cômodos permaneceram fechados, nunca ofereceram uma explicação. Com os anos as surpresas continuavam surgindo, de quando em quando um cômodo secreto era descoberto, cheio de surpresas como um órgão hidráulico, um sofá vitoriano, um armário de vestidos, uma máquina de costura e várias pinturas.

Muitos visitantes relatam sentir a presença dos espíritos dos mortos que moram lá e os guias estão cheios de histórias de acontecimentos e acidentes suspeitos. Como Sarah nunca deu entrevistas, nenhum diário jamais foi encontrado e nenhum parente quis comentar nada sobre ela o mistério persiste.

A PESQUISA

A história toda é fabulosa, um prato cheio para qualquer MindFreak, logo é óbvio que eu não teria como resistir a mergulhar de cabeça.

Se você leu os quadrinhos, assistiu ao trailer e leu tudo até aqui tem basicamente tudo o que eu tinha na época. Isso e uma dúvida que eu batizei em homenagem a outra casa incrível: a Dúvida Amityville!

O que é a Dúvida Amityville?

No dia 13 de novembro de 1974 Ronald DeFeo Jr. matou a tiros seis membros de sua família na casa em que viviam no número 112 da Ocean Avenue em Nova Iorque. Em novembro de 1975 ele foi declarado culpado e condenado. Em dezembro de 1975 George e Kathy Lutz compraram e se mudaram para a casa no estilo colonial holandês onde o crime aconteceu. Eles levaram o cachorro e os 3 filhos. 28 dias depois, os Lutz abandonaram a casa dizendo ser vítimas de atividades paranormais no local.

A história virou um livro escrito por Jay Anson que deu início a uma série de filmes sobre o assunto.

Claro que com o sucesso vieram as dúvidas, o livro, os filmes a família e o escritor passaram a ser alvos de críticas e processos dizendo que a história não era real. Até o padre que aparece na história deu depoimentos dizendo que o conteúdo do livro havia sido distorcido.

Em 1977 os Lutz começaram a processar de volta as pessoas e os meios de comunicação que desacreditavam a história. Mas ano a ano parecia que cada parágrafo do livro era desmentido. As marcas de arrombamento nas fechaduras e maçanetas, o quarto vermelho secreto que não parecia ser nada além de uma despensa, pegadas de bode na neve, marcas de fogo na parede ao redor da lareira, a casa sendo construída sobre um terreno onde originalmente os índios enviavam seus doentes mentais para morrerem, etc., etc., etc.

Com o tempo os Lutz se divorciaram, surgiram mais pessoas que afirmaram terem ajudado a criar a história que os Lutz contaram e que viraram o livro e a vida seguiu. Mas George se manteve firme a vida toda. Em um documentário do History Channel do ano 2000 entitulado Amityville: The Haunting and Amityville: Horror or Hoax? Ele afirmou “Acredito que isso permaneceu vivo por 25 anos porque é uma história verdadeira. Não significa que tudo o que já foi dito sobre isso seja verdade. Certamente não é uma farsa. É muito fácil chamar algo de embuste. Eu gostaria que fosse. Não é.”

Mas qualquer pessoa com acesso à internet e com um conhecimento mediano de inglês acha dezenas e dezenas de matérias que mostram que o casa todo foi inventado pelos Lutz, e isso deveria ser o ponto final para o assunto. Deveria… mas uma dúvida permanece, a Dúvida Amityville:

O livro escrito por Anson foi publicado em setembro de 1977. O primeiro filme sobre o caso estreiou em 1979.

Eu fico imaginando: o que levaria uma família e investir uma bela grana em uma casa e um mês depois sairem correndo feito loucos de lá?

Vamos imaginar que eles pensaram: podemos inventar que a casa é assombrada, vamos colocar cemitérios indígenas, um quarto secreto de sacrifícios satânicos (podemos falar que é na despensa) quartos com infestações de moscas, banheiros vazando ectoplasma, fantasmas nos atacando e tentando nos violentar, um demônio que nosso filho mais novo vê com cabeça de porco e acha que é um anjo, uma lareira assombrada por satã, experiências fora do corpo, cachorro agitado e louco, pegadas do diabo na neve, vizinhos que não chegam perto da casa, todo mundo ficando apático, as pessoas me confundindo fisicamente com DeFeo, portas que não se trancam, meio inferno marchando pela casa… ai nós saímos correndo e colhemos os frutos de nossa imaginação!

Mas que frutos seriam esses? Eles só conheceram Anson DEPOIS de sair da casa. Qualquer acordo financeiro de royalties só começariam a chegar de 2 a 4 anos depois deles saírem. Imagine quem iria querer pagar por uma casa onde um assassinato famoso aconteceu e depois foi possuída por Satã? Quem pagaria perto do que os Lutz tinham pago por um lugar maldito?
Como eles iam saber que a história que eles estavam inventando seria um sucesso?

Eles não permaneceram na casa enquanto o livro e filme aconteciam, eles fugiram anos antes. Por que? Se fossem uma casa herdada, ou um presente, talvez a piada fosse boa o suficiente para valer a pena (sem contar o bulling que as crianças sofreriam na escola, na família, etc…) mas eles pagaram pela casa, venderam o que tinham e se mudaram… e menos de um mês depois tinham fugido de lá. Por quê?

A Dúvida Amityville pode ser resumida assim: num caso de maluquice e birutice e enganação, geralmente o picareta não tem muito à perder e muito a ganhar com a história, mas em alguns casos acontece algo que, por mais pilantragem que aconteça depois, não justifica um dos atos da pessoa.

Os Lutz não tinham como saber que iriam encontrar um escritor, que o que ele fosse escrever iria se tornar um sucesso e que o livro viraria um filme. Então porque saíram da casa e a pintaram como o pior investimento do mundo se todo o dinheiro e crédito que tinham estava investido lá?

(Se quiser saber como qual nossa resposta para a Dúvida Amityville, além de um estudo bem minucioso sobre o caso, escreve ai nos comentários. Diabos… se tiver bastante gente curiosa de repente a gente até procura a editora que publicou o livro por aqui e podemos pensar em algum sorteio!)

E o que a Dúvida Amityville tem a ver com a Mansão Winchester?

Da mesma forma que algo não se encaixa na história de Amityville se ela for 100% invenção e pilantragem, algo não se encaixa na história da Mansão Winchester se ela for 100% loucura e paranóia.

Vamos imaginar que ela estivesse fazendo aquilo para chamar a atenção. Que fosse 100% sã e quisesse criar uma Disney paranormal. Então ela fez um trabalho porco. Construiu a casa até morrer, mas não fez nada além disso, deixou algumas pessoas inventarem lendas e depois ela virou uma atração turística.

Se ela queria criar uma atração turística… bem… na época dela ainda não havia uma Las Vegas para servir de exemplo, mas ela também fez um trabalho porco. Não deixou nada no testamento, apenas largou a casa quando morreu.

Se ela fosse louca e estivesse construindo uma casa aleatoriamente projetada por fantasmas do bem que estavam ensinando ela a construir uma armadilha para capturar fantasmas maus… por que tanto capricho em detalhes que passariam batidos? Os painéis de vidro que ela projetava, os lustres feitos de ouro e prata, os adereços da casa. Aquilo não era para fantasmas.

Algo, eu ainda não sabia o que, não se encaixava.

…continua na parte II

 

 

[…] Postagem original feita no https://mortesubita.net/realismo-fantastico/a-mansao-winchester/ […]

Postagem original feita no https://mortesubita.net/realismo-fantastico/a-mansao-winchester/

A Evolução da Bíblia: da boca de Deus até as cabeceiras dos motéis

Nota desta segunda edição, corrigida e ampliada.

O objetivo desta revisão foi o de deixar o texto mais completo. Corrigir erros. Deixar a leitura mais fluída. O texto que você tem em mãos nasceu de um projeto desenvolvido pela Morte Súbita Inc. em parceria com o Jesus Freak para se criar um texto que desenvolvesse não apenas a história da Bíblia de sua origem aos dias de hoje, mas uma pesquisa com bases em achados arqueológicos e estudos modernos sobre como ela se desenvolveu através da história.

Para dar corpo a este texto resolvemos criar uma forma diferente de organizar os tópicos a serem pesquisados e desenvolvidos. No ano de 2008 pegamos crianças de escolas religiosas e deixamos que elas fizessem perguntas sobre a Bíblia, que pudessem matar a curiosidade que tivessem sobre determinados assuntos. Então organizamos as perguntas e fomos respondendo.

O texto acabou ficando longo e foi colocado no ar assim que as perguntas haviam sido respondidas, mas algumas informações acabaram ficando de fora, então o organizador deste texto resolveu acrescentar alguns dados. Além disso por ter sido originado de perguntas feitas por pessoas diferentes, num processo aleatório o texto acabou ficando meio “truncado” quando se passava de um tópico para o outro, surgiu então a idéia de tentar, mudando a ordem de algumas perguntas e rearrumando a informação das respostas, dar um pouco mais de ritmo para sua leitura.

Depois de algumas reuniões os membros do projeto acharam interessante também expor a forma como o texto foi formado nem que fosse apenas como um adendo divertido, mas com o tempo perceberam que as curiosidades das crianças eram interessantes pois mostravam que muitas questões que pessoas podem ter já em idade adulta são as mesmas que surgem em suas mentes quando ainda são crianças e seja por falta de material de pesquisa, de liberdade em casa, na escola ou no templo/igreja que frequenta, seja por pura preguiça de ir atrás de uma resposta permanecem por anos. É engraçado notar como a “inocência” da infância vira a “ignorância” adulta. Assim as perguntas, que no dia em que foram sendo feitas já eram respondidas, foram aqui reorganizadas e o texto adaptado a elas de forma a não ficar repetitivo ou com assuntos parecendo apenas soltos. Assim a entrevista original foi, com alguma liberdade, refeita aqui mas mantendo o espírito das questões originais.

E por fim, o texto foi montado em blocos separados e reunidos alguns foram revisados, outros não, então aproveitamos para revisar e corrigir vários dos erros que passaram desapercebidos na primeira edição deste texto. Se você já o leu e desejar relê-lo encontrará novas informações e um formato um pouco diferente das que já existiam. Se está lendo a primeira vez então tem a sorte de já ter em mãos um texto melhorado e mais amplo em suas respostas.

Introdução

Por séculos, a Bíblia tem sido, no ocidente, a autoridade máxima sobre diversos assuntos. A Palavra Divina capturada em papel, a vontade de Deus nua e crua. Argumente com algum religioso abrahâmico[1] que a Bíblia pode ter sido um bom livro, mas que mexeram tanto nela que do original só resta o nome e você consegue presenciar uma experiência em miniatura da formação de tornados bem na sua frente.

De fato, argumentar qualquer coisa sobre o que foi feito ou não com a Bíblia acaba se tornando um exercício de especulação ou simplesmente do bom e velho cinismo. De um lado uns a defendem com unhas e dentes, de outro atiram paus e pedras sem mirar nem ver onde acertam. Para ambos os lados a conversa se torna um simples ato de gritar e se fazer ouvir e ambos saem tão convencidos de suas certezas quanto quando começaram.

Então ao invés de assumir qualquer um dos lados – “sim, é possível uma entidade supra humana inspirar outros de forma que registrem suas impressões em papel” ou “grande parte do que existe na Bíblia não passava de folclore, poesia e leis de uma época, que foram divinizadas como forma de se controlar um povo” – vamos simplesmente fazer uma listagem de fatos sobre ela para nos entreter e nos ajudar a tirar nossas conclusões.

Antes de mais nada é importante deixar claro que a própria Bíblia, historicamente, teve um propósito muito diferente do que tem hoje em dia. Quando foi criada, seu objetivo era o de garantir que o povo fosse fiel a Deus e a si mesmo. Nos primórdios das formações de nações ou sociedades era muito dificil que um mesmo povo tivesse um mesmo consenso sobre um único assunto e a inexistência de “universidades” ou centros de estudo oficiais sobre um determinado assunto acabava criando muito disse que disse e visões pessoais sobre este assunto. E dai surge a vontade desse povo espalhado de ter a certeza não apenas de estar adorando ou sendo gratos a Deus da maneira correta, mas de também terem a mesma visão sobre Deus. Deus teria sido o responsável por tudo o que existia? Havia algo antes de Deus? Deus era Pai, Mãe ou ambos ou nenhum? Se aquele era o povo escolhido porque tanta perseguição e miséria? Deus era o responsável pelas coisas boas e más? O que esperar d’Ele? Para responder a isso começaram a ser reunidos pedaços de textos, tradições orais, histórias sobre o povo e então foram organizados e colocados em pergaminhos e tábuas, não como forma de instituir uma palavra de Deus, mas apenas como uma tentativa individual de estarem sendo fiéis à própria crença. E assim ocorre o nascimento deste livro que até hoje tem grande influência sobre o mundo, seja positivo ou negativo, não como uma rótulo mas como uma preocupação de que essa fidelidade fosse transmitida a outros e a futuras gerações. Apenas eras após seu surgimento o povo encontrou nela a expressão da vontade e a presença real de uma Palavra Santa.

Não podemos negar a influência que esse poder descoberto com o tempo deu para aqueles que foram proclamados ou se proclamaram a si mesmos os herdeiros do direito de interpretar o seu conteúdo. Mas o objetivo deste texto não é apontar dedos ou simplesmente mostrar como um registro de uma vontade se tornou uma ferramenta e sim acompanhar o desenvolvimento do livro baseado em fatos concretos que temos à disposição hoje em mãos.

Como este texto foi organizado? Foram reunidas 17 crianças com idades entre 8 e 14 anos, frequentadoras de colégios religiosos, católicos e protestantes, e a cada uma foi dada a oportunidade de escrever em uma folha de papel 3 perguntas que teriam sobre a Bíblia. Estas perguntas então foram organizadas de forma cronológica, algumas foram mudadas levemente de forma a terem uma resposta mais ampla e outras ainda foram fundidas pois eram perguntas semelhantes feitas apenas utilizandon-se palavras diferentes. O resultado desta entrevista é o texto que se segue.

1- O que é a Bíblia

Bíblia (do grego βίβλια, plural de βίβλιον, transl. bíblion, “rolo” ou “livro”) é o texto religioso central do judaísmo e do cristianismo.

2- A Bíblia sempre foi a Bíblia? Ela é o livro mais antigo do mundo?

Respondendo a primeira questão:

Na verdade não. No início era conhecida como Tanakh ou Tanach (em hebraico תנ״ך), pelos Judeus. O seu conteúdo é equivalente ao do Antigo Testamento, mas seus textos estão organizados de forma diferente e são apresentados em outra ordem.

O nome Tanakh é formado pelas sílabas iniciais dos três livros que a formam:

– A Torá (תורה), também chamado חומש (Chumash, isto é “Os cinco”) refere-se aos cinco livros conhecidos como Pentateuco, o mais importante dos livros do judaísmo.

– Neviim (נביאים) “Profetas”

– Kethuvim (כתובים) “os Escritos”

O Tanach é às vezes chamado de Mikrá (מקרא)

É importante ter em mente que a Bíblia como existe hoje é um livro cristão, ou seja, surgiu como algo que avoluiu do judaísmo. O ponto mais importante disso é que para o judaísmo os textos sagrados são aqueles que ficaram conhecidos para os não judeus como o Antigo Testamento. O Novo Testamento é uma coleção de textos, ou livros, exclusivamente cristãos, surgiram depois do advento do cristianismo. Muitos estudiosos e religiosos hoje inclusive estão trocando os termos Antigo e Novo Testamento por Primeiro e Segundo Testamento para não tornar irrelevante ou ultrapassado os textos judaicos, que fazem parte da primeira parte da Bíblia. Com o tempo o cristianismo, na sua vontade de se tornar uma religião independente do judaísmo, acabou atacando suas raízes se tornando muitas vezes anti-semita e este é um sentimento que aos poucos alguns cristãos vem tentando corrigir.

Quanto à segunda questão podemos dividí-la em duas para responder melhor:

2.1 A Bíblia é o livro mais antigo existente?

e

2.2 A Bíblia é o livro religioso mais antigo existente?

Em ambos os casos a resposta é não. O livro mais antigo que se tem notícias hoje é o I-Ching. Apesar das várias lendas que circulam a respeito de sua criação em algum momento da antiguidade os trigramas e hexagramas que formaram o seu conteúdo foram compilados tábuas de bambu entre os anos 3000 e 2000 antes da era Cristã (a.C. ou a.e.C.).

No caso de o livro religioso mais antigo ou mesmo o texto religioso mais antigo temos que ter em mente que o Judaísmo, a religião que começou a compilar e escrever os primeiros textos da Bíblia, não é a religião mais antiga, desde os primóridos da raça humana as pessoas tinham religiões, as mais antigas sendo classificadas como xamanismo, mas mesmo as mais modernas como o zoroastrismo ou o hinduísmo são bem mais antigas e já tinham seus textos sagrados respectivos.

3- E a Tanakh sempre foi a Tanakh? Ela é a versão mais antiga da Bíblia?

O nome Tanakh, ou seja a divisão refletida pelo acrônimo Tanakh está registrada em documentos do período do Segundo Templo (515 a.C. a 70 depois da era Cristã, ou d.C.) e na literatura rabínica (A Mishná e a Tosefta – compiladas a partir de materiais anteriores ao ano 200 d.C. – são as primeiras obras existentes da literatura rabínica, e a literatura rabínica já era desenvolvida por rabinos, ou seja por líderes religiosos, portanto o judaísmo já existia como religião estabelecida nesta época). Durante aquele período, entretando, o acrônimo Tanakh não era usado, sendo que o termo apropriado era Mikra (“Leitura”). Este termo continua sendo usado em nossos dias, junto com Tanakh, em referência as escrituras hebraicas.

No hebraico moderno, o uso do termo Mikra dá um tom mais formal do que o termo Tanakh.

De acordo com a tradição judaica, o Tanakh consiste de vinte e quatro livros. A Torah possui cinco livros, o Nevi’im oito livros e o Ketuvim onze.

Então o registro mais antigo dos textos já organizados na forma que temos hoje no Antigo Testamento data do século VI a.C.

4 – Mas espere ai. A Bíblia não vem desde a antiguidade? Mesmo não sendo o livro mais antigo ela não tem milhares e milhares de anos de idade?

Então, ai as coisas começam a ficam interessantes. Quando falamos da Bíblia temos que separar a tradição oral e o documento escrito. A tradição oral judaica é muito antiga, mas no que diz respeito a material sólido existente, letras registradas no papel (ou pergaminho ou papiro ou metal) o que temos é um pouco mais recente.

Para entender vamos recorrer à tradição que cerca a Bíblia. A primeira pessoa que supostamente começou a colocar o texto no papel. De acordo com a própria Bíblia, foi Moisés. Mas muita coisa que está escrita nela aconteceu muito antes de Moisés, e ai já temos o primeiro impacto que a tradição oral tem no texto. Muita coisa lá foi passada de pessoa para pessoa, algumas provavelmente já escritas e registradas, mas tudo foi juntado e compilado depois de Moisés.

O primeiro registro bíblico da passagem de uma tradição oral para uma escrita, ou seja a primeira vez que a própria Bíblia cita a escrita da tradição do povo, surge no livro do Êxodo quando Deus diz para Moisés que se prepare para receber “as tábuas de pedra, a lei e os mandamentos que escrevi para os ensinar” (Ex 24:12). Então antes da lei e dos mandamentos de Deus não havia um livro religioso oficial dos Judeus. E mesmo assim na Torá fica claro que não estão presentes todos os comandos e leis de Deus, ou seja muito da tradiçào oral não foi registrada como um texto sagrado. Um exemplo claro é o Shabat. Apesar de estar presente nos Dez Mandamento – tradição escrita – não existem detalhes de como fazer isso. Deus fala a Moisés que guarde o Shabat: “Santificai o dia de sábado, como ordenei a vossos pais” (Jeremias 17:22), mas não existe um relato dessas ordenanças, pelos textos contidos na Bíblia não existem as instruções de como guardar o sábado, mais para frente no texto existem amostras do que se podia fazer ou não, mas quando o texto foi registrado apenas se guardou o “santificar o sábado”. Outro exemplo está em Deuteronômio quando Deus diz para Moisés que “poderás degolar do teu gado e do teu rebanho … como te ordenei” (Deuteronomio 12:21) mas não existe um registro escrito na própria Bíblia que explique de que maneira isto deveria ser feito.

Assim vamos que mesmo que tenha surgido um registro escrito das leis muita coisa ficou de fora dele ainda, era uma tradição oral que foi mantida até muito depois.

E essa ausência de registros faz parte da cultura religiosa, como já afirmou o Rabino Aryeh Kaplan, “Visto que a Torá Escrita mostra-se primariamente incompleta a menos que complementada pela tradição oral…”.

Assim vemos que mesmo com a escrita a tradição oral sempre foi muito forte, e permanece assim até hoje.

5 – Mas não foi Moisés que escreveu a Torá? Essa parte não é tão antiga quanto ele? Qual o texto mais antigo da Tanakh?

De acordo com os cálculos de Jerónimo de Stridon, Moisés teria vivido entre 1592 a.C. e 1472 a.C., então se foi ele mesmo que escreveu a Torá ela teria que datar desta época. Mas embora a tradição reze que o pentateuco, os cinco livros de Moisés (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) sejam os livros mais antigos, como evidência, o pedaço de documento mais antigo encontrado até hoje datam de 100 a.C.

Em 1947 foram encontrados em uma caverna de Q’umran os textos bíblicos mais antigos. O livro bíblico mais antigo que se tem notícias hoje de existir é o Livro de Isaías, um rolo de pergaminho de 7 metros datado do ano 100 a.C.. O Livro de Isaías, com mais de dois mil anos de idade, é uma prova única da autenticidade da tradição da Sagrada Escritura, pois o seu texto concorda com a redação das Bíblias atuais.

Ou trocando a ordem, o Livro de Isaías que temos hoje nas Bíblias é o mesmo que usavam em 100 a.C.

Antes desta descoberta os manuscritos mais antigos existentes datavam principalmente do século III e IV.

Além deste, o documento mais antigo com um trecho apenas da Bíblia é uma passagem de um dos livros de Samuel, escrito em torno de 225 a.C. então como evidência real o trecho bíblico mais antigo nos chegou direto do século III a.C. e o livro bíblico mais antigo do século I a.C.

Agora isso não significa que esses textos tenham surgido nessa época. As descobertas de Q’umran mostram bem que um documento existente não prova que tenha sido o primeiro, graças ao manuscritos encontrados vimos que documentos com mais de 700 anos de idade surgiram daqueles que eram os textos mais antigos. Pergaminhos podem ser resistentes mas eles se perdem e assim evidências valiosas dos txtos se perdem com eles. E isto pode ser um problema.

Já que os textos em parte se baseavam em uma tradição oral, como podemos ter certeza de que o que foi registrado era ainda uma descrição fiel dos ocorridos, ou uma cópia exata dos fatos?

Antes de mais nada vamos imaginar que os escritores originais acreditavam em Deus e acreditavam que estavam registrando a Sua Vontade e a história de Seu povo. Imaginem o zelo de uma pessoa que deseja registrar um texto que está chegando a ela diretamente do criador. E mais, ela ainda tem o peso de ter que passar isso de forma que não existam erros ou dúvidas para as gerações presentes e futuras. Voltando para a Torá esse zelo aparece na passagem em que antes de morrer Moisés revisa a tradição passada por Deus que não havia sido registrada para esclarecer qualquer ponto que pudesse dar margens à dúvida ou interpretação: “Além do Jordão, na terra de Moab, começou Moisés a explicar esta Lei” (Deuteronômio 1:5). Mas veja que não existem registros ainda destas explicações, a preocupação não era registrar, mas passar adiante.

Ainda existe outro ponto interessante que é a resistência do próprio Deus de se registrar tudo o que se passasse. Sem querer ser leviano, era algo como: Passei os registros que impostavam ser registrados, agora obedeçam, não percam tempo escrevendo qualquer coisa que Eu diga!

Em Eclesiastes 12:12 lemos: “Escuta ainda, filho meu: escrever livros é tarefa sem fim, e muito estudo esgota a carne”. Ou em Oséias 8:12: “Se tivesse escrito a maioria de minha Torá, [Israel] seria contado igual a estranhos”, onde vemos a tradição como algo que deveria permanecer dentre o povo e não ser acessível ou passada para estranhos.

Assim temos uma relutância entre começar um registro da Vontade Divina, gravando-a para o futuro. Mas esse registro aconteceu, ao menos em parte. Para ver qual o impacto disso na acuidade do registro vamos fazer um exercício: imagine que Deus passou uma importante lei para o seu bisavô, que por sua vez a passou para seu pai, seu pai para você e você decide registrá-la para que não se perca. Você tem como saber que está registrando exatamente o que foi passado para seu antepassado não tão distante?

Claro que podemos afirmar que se algo é repetido diariamente ele permanece íntegro. Mas temos casos quotidianos que mostram que não é bem assim que a coisa funciona. Uma expressão muito conhecida hoje é “cor de burro quando foge”, mas ela acaba sendo aplicada em inúmeras situações que implicariam significados diversos. Estudando a origem da frase vemos que ela não se referia a uma mudança na coloração do asinino quando ele bate em retirada, e sim a um ditado que originalmente era: “corro de burro quando foge”. Um burro é um animal dócil, quando ele se irrita e sai correndo se torna um animal perigoso, a expressão significaria algo como: “quando a situação fica preta eu não perco tempo: dou no pé!”.

Vemos ai um caso de tradição oral que perde o sentido com o tempo e o uso. Um exemplo de outra tradição oral que não perde o sentido simplesmente mas muda de sentido completamente quando registrada é a famosa: “Quem tem boca, vai a Roma”. Se consultarmos o Dicionário de Máximas, Adágios e Provérbios, de Jayme Rebelo Hespanha (1936), a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (1948), o Grande Dicionário da Língua Portuguesa de António de Morais Silva (1949 a 1959), o Livro dos Provérbios Portugueses, da Editorial Presença (1999) e Dicionário de Provérbios, Adágios, Ditados, Máximas, Aforismos e Frases Feitas, da Porto Editora (2000) podemos atestar que este provérbio está registrado há muito tempo já, desde 1936 pelo menos, e que ainda existem variantes dele: «Quem tem língua vai a Roma»; «Quem língua tem a Roma vai e de Roma vem»; «Quem tem língua a Roma vai e vem».

Em cima disso existem estudos sobre o significado dele, como por exemplo:

” A frase «Quem tem boca vai a Roma» traduz a notoriedade da Cidade Eterna, mas também a verdade de que quem sabe perguntar consegue chegar seja onde for (literal e figuradamente), consegue obter os conhecimentos de que precisa para se orientar. As palavras-chave aqui são três: boca, vai e Roma. A boca significa a capacidade de falar, de perguntar, de comunicar; o verbo ir tem que ver com o percurso, a caminhada, significando passar de um lugar a outro, deslocar-se, mas também evoluir, progredir; Roma fora, aquando do Império Romano, a capital, a cidade mais importante do mundo conhecido dos europeus, mas uma cidade que ficava longe, sob o ponto de vista dos mais remotos territórios que constituíam o vasto império, e, por outro lado, esta é a cidade cabeça da Igreja Católica, traduz a própria Igreja, o seu governo, o papado, significando para os católicos o que de melhor existe e que se procura alcançar. Chegar a Roma poderá ser difícil, mas quem tem a capacidade de falar ultrapassará os obstáculos e alcançará o que pretende: conseguirá chegar longe, até conseguirá chegar a Roma.

Roma entrou no adagiário por causa da sua importância, do seu valor, do seu mérito, e não por aspectos negativos: «Roma locuta est» (= «Roma falou»: se Roma falou, o que ela disse deve ser seguido pelos católicos); «Roma locuta, causa finita» (= «Roma falou, a causa acabou»); «Roma e Pavia não se fizeram num dia»; «Em Roma, sê romano»; «Todos os caminhos vão dar a Roma», «O que vai aqui não vai em Roma».”

Agora se passarmos algum tempo lendo livros protestantes encontramos uma versão diferente deste adágio dizendo: Quem tem boca vaia (do verbo vaiar) Roma. Vamos nos lembrar agora que os protestantes se tornaram protestantes por protestar contra a Santa Sé Católica, personificada por Roma, como vimos no estudo acima. A origem do adágio não tinha como objetivo mostrar que com vontade chegamos ou conseguimos o que quisermos mas como crítica contra a corrupção do Clero.

Existe algum debate sobre qual o adágio original, mas isso serve apenas para mostrar como a tradição oral pode sofrer mutações nos significados de seus ensinamentos e como depois de registrados eles se tornam uma base que pode ser falha. Imagine que existisse no Novo Testamento uma passagem dizendo como Jesus, durante a Santa Ceia havia dito aos apóstolos que quem tem boca vai a Roma. E imagine que recentemente se encontrasse um pergaminho datado do século I com a mesma passagem contendo a variante “vaia Roma”. Como poderíamos ter certeza do que o Messias disse naquela noite?

Claro que nesses dois casos podemos dizer que são expressões populares que não podem ser comparadas a um ensinamento religioso passado por Deus aos Homens, mas podemos ver um outro caso onde algo semelhante ocorre.

Elvis Aaron Presley foi um homem admirado por muitos, em alguns casos essa admiração beirava a histeria e a mania. Ele nasceu em 1935 e morreu em 1977, mas se tornou febre só após os anos 1950 quando começa a sua carreira profissional.

O interessante de pensarmos em Elvis, é que este período em que virou uma febra cheio de fãs é bem recente, dos anos 1950 para os dias de hoje não transcorreram nem 60 anos. E em parte deste período ele esteve vivo ainda. No auge de sua carreira as pessoas desejavam por cada detalhe sobre sua vida que pudessem por as mãos e assim a mídia supria essas pessoas com tudo que pudesse imaginar, relatos de conhecidos e do próprio Elvis, entrevistas registradas, filmes, etc… Uma das manias de Elvis que ficou registrada era seu gosto por um sanduíche que ficou conhecido como Sanduíche de Elvis. É raro encontrar um fã que não tenha ouvido falar dele e muitos já o experimentaram, mas ai existe um problema interessante: não existe uma receita oficial aceita. As maiores biografias do Rei registram essa iguaria, dando também a receita, mas as receitas são diferentes.

O sanduíche era simples, Elvis morreu há pouco mais de 30 anos, três décadas, haviam cozinheiros, amigos, familiares, mas parece que cada um se lembra do sanduíche de maneira diferente. Alguns diziam que consistia de pão de forma, bananas fritas, manteiga de amendoim e bacon. Outros que não havia bacon, existem aqueles que dizem que havia sorvete, outros geléia.

Isto pode parecer uma comparação boba, mas não é. Se em três décadas uma simples receita de sanduíche se perde, por ficar apenas no boca a boca, imagine textos passados por Deus que ficaram no boca a boca por séculos antes de serem registrados?

Um último exemplo é talvez mais simples. Pare agora para cantar o hino nacional do Brasil. Então escreva numa folha de papel. Depois pare 5 pessoas na rua, de forma aleatória e peça para elas cantarem, anote a letra ou grave, e depois compare com a sua, veja se o hino que é cantado em escolas, jogos de futebol e pronunciamentos da república é passado oralmente da mesma forma por todas as pessoas.

Então embora a tradição oral seja tão antiga quanto um povo, essa tradição pode muitas vezes mudar desde quando foi formulada e repassada a primeira vez até finalmente ser registrada.

Portanto mesmo que Moisés tenha começado a registrar os textos da Bíblia não temos como saber o quanto eles se aproximam da tradição original que os criou. Assim temos que nos ater ainda aos textos mais antigos encontrados e compará-los com os textos que temos hoje para se ter uma idéia de a quanto tempo um texto como o que temos hoje é usado.

6 – Deixando a tradição oral de lado então, quando foi que os textos que compõe a Tanakh foram escritos originalmente?

Como vimos, a Tanakh é composta por três divisões: Torá, Neviim e Kethuvim.

A tradição judaica mais antiga defende que a Torá existe desde antes da criação do mundo e foi usada como um plano mestre do Criador para construir o mundo a humanidade e principalmente o povo judeu. No entanto, a Torá como conhecemos teria sido entregue por Deus a Moisés (que como vimos teria vivido entre 1592 a.C. e 1472 a.C.), quando o povo de Israel, após sair do cativeiro no Egito, peregrinou em direção à terra de Canaã.

Então aqui, culturalmente, teríamos uma primeira data. Apesar do mundo – de acordo com a Bíblia – ter sido criado milênios antes do cativeiro – precisamente 6000 antes de Cristo, de acordo com a tradição da época – ela teria sida recebida pelos humanos através de Moisés. Então – culturalmente – até o livro do Êxodo a Tanakh não circulava por ai. Portanto a Bíblia mais antiga, ainda culturalmente falando, deveria datar do séc. XVI a.C. A ênfase no culturalmente é: de acordo com o senso comum esta seria uma data, apesar da falta de evidências físicas para provar ou desmentir essa data.

Então, existem os que defendem que , ainda que a essência da Torá tenha sido trazida por Moisés, a compilação do texto final foi executada por outras pessoas, já que os textos tratam de assuntos que incluem a morte do próprio Moisés, tornando difícil para ele escrever sobre isso.

De acordo com Jan Astruc, pioneiro na sistematização do estudo do desenvolvimento da Torá, a mesma é constituída por três fontes básicas, denominadas jeovista, eloísta e código sacerdotal, e mais algumas outras fontes além destas três. Deixando claro que, quando se fala destas fontes, ele não se refere a autores isolados mas sim a escolas literárias.

Um estudo sobre a história do antigo povo de Israel mostra que, apesar de tudo, não havia uma unidade de doutrina e desconhecia-se uma lei escrita até os dias de Josias (16º rei de Judá, reinou durante o período de 640 a.C. a 609 a.C.). As fontes jeovista e eloísta teriam sua forma plenamente desenvolvida no período dos reinos divididos entre Judá e Israel (onde surgiria também a versão conhecida como Pentateuco Samaritano). O livro de Deuteronômio só viria a surgir no reinado de Josias (621 a.C.). A Torá como conhecemos viria a ser terminada nos tempos de Esdras, onde as diversas versões seriam finalmente fundidas. Vemos então o início de práticas que eram desconhecidas da maioria dos antigos israelitas, e que só seriam aceitas como mandamentos na época do Segundo Templo (de 515 a.C. a 70 d.C.) como a Brit milá, Pessach e Sucót por exemplo.

Então datar a Tanakh se torna complicado, pois apesar de ter condições de existir desde o século XVI a.C. – a época de Moisés – culturalmente o povo Judeu só teria condições de ter o livro nas mãos da forma que temos hoje depois do século VI a.C.

7 – E quando juntaram todos esses textos em um único volume?

Aproximadamente no século VI d.C. um grupo de escribas judeus recebeu a missão de reunir os textos inspirados por Deus que eram utilizados pela comunidade hebraica em um único escrito. Este grupo foi batizado de Escola de Massorá – o termo “massorá” provém do hebraico “mesorah” (מסורה ou מסורת) e indica “tradição”.

Os “massoretas” escreveram a Bíblia de Massorá, examinando e comparando todos os manuscritos bíblicos conhecidos à época. O resultado deste trabalho ficou conhecido posteriormente como o “Texto Massorético”.

Então na nossa linha do tempo a versão original do texto do Antigo Testamento da Bíblia, a Tanakh, se conclui finalmente no século VI d.C. 2200 anos depois de Moisés, aproximadamente.

8 – E então a Tanakh virou a Bíblia? O Antigo Testamento só ficou pronto depois de Cristo, depois do Novo Testamento?

Não, nada disso. O Texto Massorético foi extremamente importante porque deu uma unidade que não existia ainda nos textos judaicos. Apesar de ter sido escrito e compilado apenas no século VI, haviam já outras versões do Antigo Testamento circulando e muitas pessoas dão a elas mais importância do que a do Texto Massorético.

As outras versões existentes antes eram o Pentateuco Samaritano, que vimos lá atrás, e a Septuaginta.

9 – Preciso perguntar?

Não, não precisa.

O Pentateuco samaritano ou Torá samaritana é o nome que se dá à Torá usada pelos judeus samaritanos.

Os Samaritanos são um pequeno grupo étnico-religioso aparentado aos judeus que habita nas cidades de Holon e Nablus situadas em Israel e na Cisjordânia respectivamente. Designam-se a si próprios como Shamerim o que significa “os observantes” (da Lei). Os samaritanos recusam o restante dos livros do Tanakh, aceitando apenas sua Torá como livro inspirado.

O Pentateuco samaritano está escrito no alfabeto Samaritano, que é diferente do hebraico e era a forma de escrita usada antes do cativeiro babilônico (cerca de 597-586 a.C). Além da linguagem diferente existem outras discrepâncias entre o Texto Massorético e a Torá Samaritana. Um exemplo é que na versão Samaritanda dos 10 mandamentos Deus comanda o povo que construa o altar no Monte Gerizim.

Agora temos que ter em mente que o Pentateuco Samaritano ficou conhecido mundialmente quando Pietro della Valle trouxe de Damasco em 1616 uma cópia do texto.

Mesmo assim essa versão do Texto Samaritano não é absoluta. Em Q’umran foram encontrados fragmentos de textos da Torá que combinam com o Texto Massorético e são diferentes do texto samaritano, como por exemplo não trazer nenhuma referência ao Monte Gerizim. Ou seja existem diferentes versões deste texto.

Já a Versão dos Setenta, ou Septuaginta Grega, é como ficou conhecida a tradução grega do Antigo Testamento, elaborada entre os séculos IV e II a.C., feita em Alexandria, no Egito. O seu nome surgiu da lenda que dizia que essa tradução foi o resultado milagroso do trabalho de 70 (em alguns casos se citam 72) eruditos judeus que pretende exprimir que não só o texto, mas também a tradução, havia sido inspirada por Deus. De acordo com a dita lenda, cada sábio foi confinado a um aposento e não poderia ter contato com nenhum dos outros, para que não influenciassem um na tradução do outro, no final todas as traduções eram idênticas – vale notar que não existe hoje registro ou evidências arqueológicas dessas 70 ou 72 traduções originais. A Septuaginta Grega é a mais antiga versão do Antigo Testamento que conhecemos. A sua grande importância provém também do fato de ter sido essa a versão da Bíblia utilizada entre os cristãos desde que surgiram e a que é citada em grande parte do Novo Testamento. Então é importante ter em mente que grande parte das menções que o Novo Testamento faz do Antigo Testamento são tiradas não do texto original, mas da tradução que fizeram do original para o grego.

Da Septuaginta Grega fazem parte, além da Bíblia Hebraica, a Tanakh, os Livros Deuterocanônicos (aceitos como canônicos apenas pela Igreja Católica) e alguns escritos apócrifos (não aceitos como inspirados por Deus por nenhuma das religiões cristãs ocidentais).

10 – E finalmente temos a Bíblia…

Ainda não.

Preste atenção que até o momento todas essas versões que vimos do Texto da Lei, dos livros dos Profetas e dos Escritos eram usadas por Judeus. Não haviam cristãos ainda no mundo, mesmo o texto massorético do século VI d.C. ainda diz respeito aos judeus, foi compilado por judeus para os judeus. E para entender o surgimento do que os cristãos chamam de Bíblia temos que entender o que era o cristianismo, e não estamos falando de Jesus.

Os Judeus sempre se dividiram em vários grupos e todos eles, em um determinado momento, esperavam a vinda do Messias para unir o povo sob a Lei de Deus e trazer consigo um período de paz. O advento do Cristianismo foi a divulgação que de esse Messias teria finalmente chegado, na figura de Jesus, e então através de Cristo o povo teria uma nova aliança com Deus.

Mas a importância histórica disso não foi a maneira como o povo enxergava Cristo – se era ou não o messias judeu – e sim a mudança que ele trouxe para a fé judaica. Os primeiros cristãos, ou seja, as primeiras pessoas que pregavam a filosofia de Cristo e que a seguiam, eram todos judeus, a briga começou quando alguns deles começaram a defender que, como a mensagem de Cristo era para todos, os gentios – não judeus – poderiam compartilhar a mesma fé, deixando de lado alguns costumes judaicos, como por exemplo a circuncisão. Veja que a circuncisão foi usada por Abrahão para mostrar que estava a serviço de Deus, desde então todo Judeu deveria ser circuncidado; imagine o que era então para muitos dos cristãos judeus, terem que aceitar que pessoas que não faziam parte da crença judaica e que não obedeciam a certos costumes judeus fossem aceitas em seu grupo, um grupo formado por judeus que seguiam o messias do judaismo.

Isso criou a necessidade de um material para divulgar a crença judaica – não havia novo testamento ainda – para os novos convertidos, que não eram judeus, para eles se familiarizarem com as leis e a vontade divina, com o seu Deus, etc. Apesar do Judaísmo não ser a religião mais antiga, até hoje muitos afirmam que ela foi a religião monoteísta mais antiga, então os novos convertidos ao judaísmo cristão tinham que conhecer essa filosofia e essa religião antes de qualquer coisa já que Jesus não pregava uma nova religião, Jesus pregava o judaísmo, com algumas mudanças.

Quando o cristianismo começou a se espalhar pelo Império Romano, ou seja, quando o judaísmo começou a crescer e a divuldar a mensagem de que o Messias havia chegado e trazido com ele novas Leis de Deus, surgiu um novo público para a fé, não apenas os gentios que viviam na região do oriente médio, mas também os romanos, e assim nasceu uma nova necessidade de se traduzir os escritos sagrados para os cristãos que não liam nem grego nem hebraico.

Essa tradução surgiu no século I e foram realizadas por tradutores informais. Ficou conhecida como a Vetus Latina. Podemos dizer que ela foi a primeira versão da Tanakh para cristãos e mesmo assim não era carregada debaixo do braço para cima e para baixo; era usada como forma de catequese, para se criar uma base comum para todos: “se querem se beneficiar da salvação e das boas novas trazidas pelo Messias, estes textos são o mínimo que vocês tem que conhecer!” foi nesta época que a Tanakh começou a ser compartilhada com não judeus e deixou de ser um texto exclusivo da religião judaica. Um ponto importante para se ter em mente aqui é grande parte dos novos convertidos eram analfabetos, os textos eram lidos para eles, que absorviam a mensagem e tentavam viver de acordo com ela, em encontros grupais a mensagem era repetida e dúvidas tiradas. Ninguém levava para casa a cópia de um texto para ficar lendo.

11 – Então a primeira Bíblia Cristã surgiu no século I?

Não da forma como temos a Bíblia hoje. A Vetus Latina não era uma bíblia ainda. Como dissemos ela foi feita por tradutores informais, isso significa que pedaços dos textos antigos, tanto os judaicos quanto os gregos eram traduzidos de acordo com a necessidade. Assim ela não era uma Bíblia Latina. Ela era mais uma gambiarra para poder mostrar ao povo que não estava familiarizado com os textos Judeus a religião e então ter um texto que eles pudessem compreender e usar como base quando se convertessem. E mesmo assim suas primeiras versões não traziam os textos conhecidos como o Novo Testamento. Eles só surgiram nos séculos seguintes. E ainda não era um livro fechado, eram traduções avulsas de pedaços separados da Tanakh, muitas vezes nem eram os livros inteiros, mas os fragmentos que pareciam ser importantes, que foram sendo distribuídos e usados e só com o tempo foi crescendo e recebendo os livros que temos hoje do Novo Testamento.

Os textos da Vetus Latina chegaram até nós através de vários códices.

Os códices (ou codex, da palavra em latim que significa “livro”, “bloco de madeira”) eram os manuscritos gravados em madeira, em geral do período da era antiga tardia até a Idade Média. Manuscritos do Novo Mundo foram escritos por volta do século XVI.

O códice é um avanço do rolo de pergaminho e gradativamente substituiu este último como suporte da escrita. O códice, por sua vez, foi substituído pelo livro impresso.

Os códices mais conhecidos da Vetus Latina são:

Códice Bobienus (K) – séc. IV. É um manuscrito africano em Unçais. Contém fragmentos dos Evangelhos de Marcos e Mateus;

Códice Vercellensis (a) – Séc. IV. Texto em Unçais. Contém todos os quatro Evangelhos;

Códice Bezae (q) – Séc. V. É um manuscrito bilingüe, com o Grego no verso e o Latim na frente. Contém os quatro Evangelhos, Atos e 3 João;

Códice Monacensis 13 (q) – Séc. VI-VII. Texto em Unçais. Contém os quatro Evangelhos;

Palimpsest 53 (s) – Séc. VI. Conhecido também como Bobiensis ou Vindobonensis. Texto em meio unçal. Contém fragmentos dos Atos e as 14 Cartas Católicas.

Os textos da Vetus Latina organizados como um único livro foram encontrados em manuscritos tardios, datados do séc. XIII. Muitas das versões nem chegaram a ser  consideradas autorizadas como traduções bíblicas que poderiam ser usadas por toda igreja – veja que nesta época já havia uma igreja cristã regulamentando que textos podiam e não podiam ser usados. A estas traduções precedentes, muitos estudiosos adicionam freqüentemente citações das passagens bíblicas que aparecem nos escritos dos Pais da igreja Latina.

Mas para se ter uma idéia da bagunça que era, mesmo com a boa vontade dos primeiros tradutores era inevitável que diferentes traduções acabassem ficando diferentes entre si. Depois de comparar a leitura de Lucas 24,4-5 nos manuscritos da Vetus Latina, Bruce Metzger contou “não menos que 27 variações!”. Agora imaginem os pais da igreja com esses textos uns diferentes dos outros pregando o cristianismo sem uma base ainda para qual era a versão correta do texto.

Os livros bíblicos reunidos no conjunto de manuscritos disponíveis da Vetus Latina são:

VETUS TESTAMENTUM
Genesis
Exodus
Leviticus
Numeri
Deuteronomium
Josue
Judicum (Juízes)
Ruth
1-4 Regum (1 e 2 Reis (1 e 2 Samuel) e 3 e 4 Reis (1 e 2 Reis))
1-2 Paralipomenon (Paralipômenos ou Crônicas)
Esdras
Nehemias
3-4 Esdras
Tobit
Judith
Hester
Job
Psalmi (Salmos)
Proverbia
Ecclesiastes
Canticum Canticorum
Sapientia (Sabedoria de Salomão)
Sirach, Ecclesiasticus (Sabedoria de Sirac ou Eclesiástico).
Esaias (Isaías)
Jeremias (Lamentationes, Baruch)
Daniel
XII Prophetae (Doze Profetas)
I-II Macchabaeorum (1 e 2 Macabeus).

NOVUM TESTAMENTUM
Matthaeus
Marcus
Lucas
Johannes
Actus Apostolorum
Ad Romanos
Ad Corinthios I
Ad Corinthios II
Galatas
Ad Ephesios
Ad Philippenses
Colossenses
Ad Thessalonicenses
Timotheum
Ad Titum
Philemonem
Hebraeos
Epistulae Catholicae (1 e 2 Pedro; 1, 2 e 3 João; Tiago e Judas)
Apocalypsis Johannes

Mas esses livros foram surgindo com o tempo assim no século I a maioria destes textos ainda não existia e eles ainda não estavam juntos em um único livros. Muitas comunidades usavam apenas alguns deles. Se você pegar uma bíblia moderna vai ver que alguns desses textos antigos nem constam mais hoje como livros canônicos.

12 – E a Bíblia que existe hoje veio da Vetus Latina?

Não.

Como vimos, o texto “definitivo” – entre aspas porque ainda não é aceito por todo como unânime – do judaísmo, surgiu no século VI d.C., a versão destinada para cristãos ainda levou mais algum tempo para surgir.

No século IV d.C. Dâmaso (hoje conhecido como São Dâmaso ou ainda como Papa Dâmaso I) pediu que Jerônimo (conhecido como São Jerônimo, o padroeiro dos bibliotecários e das secretárias), criasse uma versão autorizada da Bíblia na língua latina. A idéia era parar com a enormidade de textos avulsos que surgiam, traduzidos por pessoas diferentes conforme a necessidade individual e criassem um texto padrão, que pudesse ser usado por todos, e assim eles saberiam que um cristão da África havia recebido exatamente a mesma doutrina de um cristão da Espanha, por exemplo, acabando assim com variações de um mesmo texto.

Jerônimo então reviu a Septuaginta grega e os textos da Vetus Latina e decidiu que a melhor coisa a fazer era jogar tudo for a e começar a criar o texto oficial da Bíblia Cristã a partir do zero. Este trabalho ele batiza de Vulgata. O nome vem da frase “versio vulgata”, isto é “versão dos vulgares”, e foi escrito em um latim cotidiano, que era a forma antiga de se dizer: “escrito em um latim atual e popular”.

Até então a igreja[2] usava textos na língua grega, foi inclusive nesta língua que se escreveu todo o Novo Testamento, incluindo a Carta aos Romanos, de Paulo, bem como muitos escritos cristãos nos séculos seguintes.

A Vulgata foi produzida para ser mais exata e mais fácil de compreender do que suas predecessoras. Foi a primeira, e por séculos a única, versão da Bíblia que possuiu os textos do Velho Testamento traduzidos diretamente do hebraico e não da versão grega (a Septuaginta). No Novo Testamento, Jerônimo selecionou e revisou textos. Ele inicialmente não considerou canônicos os sete livros, chamados por católicos e ortodoxos, de deuterocanônicos. Porém, trabalhos posteriores mostram sua mudança de conceito, pelo menos a respeito dos livros de Judite, Sabedoria de Salomão e o Eclesiástico (ou Sabedoria de Sirac), conforme atestamos em suas últimas cartas a Rufino.

13 – Perai, Jerônimo não considerou como canônico alguns livros? Mas quem decidia o que era canônico ou não? E o que é canônico?

Vamos começar de trás para frente.

Um cânone ou cânon normalmente se caracteriza como um conjunto de regras (ou, frequentemente, como um conjunto de modelos) sobre um determinado assunto, em geral ligado ao mundo das artes e da arquitetura. A canonização é a sistematização deste conjunto de modelos. Cânone, em hebraico é qenéh e no grego kanóni, têm o significado de “régua” ou “cana (de medir)”, no sentido de um catálogo.

O Cânone Bíblico designa o inventário ou lista de escritos ou livros considerados pelas religiões cristãs como tendo evidências de Inspiração Divina.

Quanto a quem decidia se um livro era canônico ou não é uma história interessante. Vamos responder juntamente com as próximas questões.

14 – Bom, então com a criação da Vulgata nós temos uma Bíblia, ou ainda não?

Glória aos Céus! Agora sim.

A Vulgata se tornou a primeira versão fechada da Bíblia, com todos os textos que temos hoje. Mesmo assim ela ainda passou por alguns ajustes que levaram mais alguns séculos. Finalmente entre os anos de 1545 e 1563 a igreja católica realizou seu 19º concílio ecumênico, também conhecido como o Concílio de Trento. Ele foi convocado pelo Papa Paulo III para assegurar a unidade da fé (sagrada escritura histórica) e a disciplina eclesiástica. O concílio tem este nome em referência à cidade de Trento, onde transcorreu, e nele foi estabelecido um texto único para a Vulgata, a partir de vários manuscritos existentes, e oficializado como a Bíblia oficial da Igreja. Esta Bíblia ficou conhecida como Vulgata Clementina.

Após o Concílio Vaticano II, por determinação de Paulo VI, foi realizada uma revisão da Vulgata, sobretudo para uso litúrgico. Esta revisão, terminada em 1975, e promulgada pelo Papa João Paulo II em 25 de abril de 1979, é denominada Nova Vulgata, estabelecendo esta como a nova Bíblia oficial da Igreja Católica.

15 – Mas a Bíblia só passou a existir desta forma no século XVI, ou no século XX?

Não extamente. Existem alguns fatos que devem ser levados em consideração quando falamos de o texto final e definitivo da Bíblia. Existe um processo por trás que durou séculos e que está em andamento até hoje.

Por exemplo, se levarmos em conta os textos sagrados em si, a Bíblia levou 1600 anos para ser escrita. Já que teoricamente ela começou a ser registrada na época de Moisés (cerca de 1500 a.C.) e terminou com o evangelho de João (cerca de 96 d.C.). Essa é a datação cultural dos textos.

Mesmo assim na época do evangelho de João, no final do século I d.C.,  não havia unidade nos textos. Para se ter idéia, os textos só passaram a ser conhecidos como Bíblia com Jerônimo (cerca de 347d.C. – 419/420 d.C.), que chamou pela primeira vez ao conjunto dos livros do Antigo Testamento e Novo Testamento de “Biblioteca Divina”. “Bíblia”, inclusive, é uma palavra que não aparece na Bíblia. Ela vem do termo grego biblos, por causa da cidade fenícia de Biblos, um importante centro produtor de rolos de papiro usados para fazer livros. Com o tempo, a palavra biblos passou a significar “livro”. Biblia é a forma plural (“livros”).

Então a primeira Bíblia oficial foi organizada, compilada e preparada pela igreja católica nos séculos IV e V d.C. como já vimos.

Mas antes de Jerônimo por a mão na massa tiveram que decidir quais dos textos existentes fariam parte da Bíblia, afinal além dos textos que temos hoje haviam dezenas, mesmo centenas de outros que circulavam na época.

E agora voltamos à pergunta 13: quem decidia que livros fariam parte da Bíblia?

Sempre houve uma preocupação muito grande de se ter as informações corretas sobre Deus e sobre as maneiras corretas de seguir suas leis e mandamentos, de honrá-lo e adorá-lo. Como dissemos lá na introdução, a Bíblia nasceu de uma necessidade dos povos de se manterem fiéis à fé, não como livro de regras a ser instituído a todos os povos. No início queriam apenas juntar os textos que julgavam pertinentes e sinceros em relação à fé. Assim durante a história muitos estudiosos, religiosos se reuniram e estudaram para analisar que textos eram de fato textos enviados por Deus ou eram textos sérios e quais seriam invenções ou simplesmente opiniões de outros religiosos e escritores.

Hoje muitas pessoas acreditam que o primeiro trabalho sério de se decidir quais seriam os textos aceitos pelos cristãos e que fariam parte da Bíblia foi o Concilio de Nicéia, realizado em 325 d.C., vinte e dois anos antes de Jerônimos começar seu trabalho. Embora algumas obras afirmem que no Concílio de Nicéia discutiu-se quais evangelhos fariam parte da Bíblia, quando pegamos os documentos que existem hoje sobre esta reunião não há menção de que esse assunto estivesse em pauta, nem nas informações dos historiadores do Concílio, nem nas Atas do Concílio que chegaram a nós em três fragmentos: o Símbolo dos apóstolos, os cânones, e o decreto senoidal.

No ano de 150 d.C. Marcião, um cristão muito influente na época, propôs uma lista dos livros que deveriam fazer parte do conjunto de livros religiosos do cristianismo. Nesta lista ele considerou apenas o Evangelho de Lucas e as cartas paulinas como textos inspirados. Essa lista ficou conhecida como o Cânone de Marcião.

No ano de 1740 foi publicado o Cânone Muratori – também conhecido por fragmento muratoriano ou fragmento de Muratori – descoberto na Biblioteca Ambrosiana de Milão por Ludovico Antonio Muratori (1672 – 1750). Apesar de ser consensual datar o manuscrito como sendo do século VII, ele é cópia de um texto mais antigo, datado como tendo sido escrito por volta do ano 170, já que nele existem menções ao Pastor de Hermas e ao papado de Pio I, morto em 157.

Na lista figuram os nomes dos livros que o autor, desconhecido até os dias de hoje, considerava admissíveis junto com alguns comentários. A lista está escrita em latim e encontra-se incompleta, daí ser chamada de fragmento.

Os livros canônicos mencionados no Cânone Muratori são aproximadamente os mesmos que se encontram hoje na Bíblia com algumas variações. O Cânone de Muraori aceita quatro evangelhos, dos quais dois são o Evangelho de Lucas e o Evangelho de João, não se conhecendo os outros dois, pois falta o princípio do manuscrito, onde estariam os nomes dos dois primeiros. A lista segue com os Atos dos Apóstolos e com 13 epístolas de Paulo de Tarso (não menciona a Epístola aos Hebreus). O autor considera falsificações as epístolas supostamente escritas por Paulo aos laodiceanos e a escrita aos alexandrinos. Nele só se mencionam duas epístolas de João, sem as descrever. Figura também no fragmento o Apocalipse de Pedro, ainda que com certas reservas (“o qual alguns dos nossos não permitem que seja lido na Igreja”).

O Livro da Sabedoria do Antigo Testamento também é citado como sendo canônico.

No Cânone de Muratori está escrito:

“…aos quais esteve presente e assim o fez. O terceiro livro do Evangelho é o de Lucas. Este Lucas ‘médico que depois da ascensão de Cristo foi levado por Paulo em suas viagens’ escreveu sob seu nome as coisas que ouviu, uma vez que não chegou a conhecer o Senhor pessoalmente, e assim, a medida que tomava conhecimento, começou sua narrativa a partir do nascimento de João. O quarto Evangelho é o de João, um dos discípulos.

Questionado por seus condiscípulos e bispos, disse: ‘Andai comigo durante três dias a partir de hoje e que cada um de nós conte aos demais aquilo que lhe for revelado’. Naquela mesma noite foi revelado a André, um dos apóstolos, que, de conformidade com todos, João escrevera em seu nome.

Assim, ainda que pareça que ensinem coisas distintas nestes distintos Evangelhos, a fé dos fiéis não difere, já que o mesmo Espírito inspira para que todos se contentem sobre o nascimento, paixão e ressurreição [de Cristo], assim como sua permanência com os discípulos e sobre suas duas vindas ´ depreciada e humilde na primeira (que já ocorreu) e gloriosa, com magnífico poder, na segunda (que ainda ocorrerá).

Portanto, o que há de estranho que João freqüentemente afirme cada coisa em suas epístolas dizendo: ‘O que vimos com nossos olhos e ouvimos com nossos ouvidos e nossas mãos tocaram, isto o escrevemos’? Com isso, professa ser testemunha, não apenas do que viu e ouviu, mas também escritor de todas as maravilhas do Senhor.

Os Atos foram escritos em um só livro. Lucas narra ao bom Teófilo aquilo que se sucedeu em sua presença, ainda que fale bem por alto da paixão de Pedro e da viagem que Paulo realizou de Roma até a Espanha.

Quanto às epístolas de Paulo, por causa do lugar ou pela ocasião em que foram escritas elas mesmas o dizem àqueles que querem entender: em primeiro lugar, a dos Coríntios, proibindo a heresia do cisma; depois, a dos Gálatas, que trata da circuncisão; aos Romanos escreveu mais extensamente, demonstrando que as Escrituras têm como princípio o próprio Cristo.

Não precisamos discutir sobre cada uma delas, já que o mesmo bem – aventurado apóstolo Paulo escreveu somente a sete igrejas, como fizera o seu predecessor João, nesta ordem: a primeira, aos Coríntios; a segunda, aos Efésios; a terceira, aos Filipenses; a quarta, aos Colossenses; a quinta, aos Gálatas; a sexta, aos Tessalonicenses; e a sétima, aos Romanos.

E, ainda que escreva duas vezes aos Coríntios e aos Tessalonicenses, para sua correção, reconhece – se que existe apenas uma Igreja difundida por toda a terra, pois da mesma forma João, no Apocalipse, ainda que escreva a sete igrejas, está falando para todas. Além disso, são tidas como sagradas uma [epístola] a Filemon, uma a Tito e duas a Timóteo; ainda que sejam filhas de um afeto e amor pessoal, servem à honra da Igreja Católica e à ordenação da disciplina eclesiástica. Correm também uma carta aos Laodicenses e outra aos Alexandrinos, atribuídas [falsamente] a Paulo, mas que servem para favorecer a heresia de Marcião, e muitos outros escritos que não podem ser recebidos pela Igreja Católica porque não convém misturar o fel com o mel.

Entre os escritos católicos, se contam uma epístola de Judas e duas do referido João, além da Sabedoria escrita por amigos de Salomão em honra do mesmo. Quanto aos apocalipses, recebemos dois: o de João e o de Pedro; mas, quanto a este último, alguns dos nossos não querem que seja lido na Igreja. Recentemente, em nossos dias, Hermas escreveu em Roma ‘O Pastor’, sendo que o seu irmão, Pio, ocupa a cátedra de Bispo da Igreja de Roma.

É, então, conveniente que seja lido, ainda que não publicamente ao povo da Igreja, nem aos Profetas ´ cujo número já está completo , nem aos Apóstolos ´ por ter terminado o seu tempo. De Arsênio, Valentino e Melcíades não recebemos absolutamente nada; estes também escreveram um novo livro de Salmos para Marcião, juntamente com Basíledes da Ásia…”

Então já na época haviam dúvidas a que textos eram de fato inspirados pelo Espírito de Deus e quais eram criações – sinceras ou não – de homens.

E como faziam para decidir?

Até hoje existem pessoas que tem um certo recentimento desses primeiros cristãos, que dizem que uma pessoa não teria como decidir que texto seria inspirado por Deus, diretamente ou via Espirito Santo, ainda mais porque os textos já existiam e estavam circulando, não haveria um modo seguro de se saber se o autor estava cumprindo a Vontade Deus ou simplesmente escrevendo o que achava ser correto. E assim se cria uma visão de que o caso foi resolvido através de puro dogmatismo e abuso de autoridade.

Existem estudiosos que citam Irineu (205 d.C.) afirmando que:

“O evangelho é a coluna da igreja, a igreja está espalhada por todo o mundo, o mundo tem quatro regiões, e convém, portanto, que haja também quatro Evangelhos… O Evangelho é o sopro do vento divino da vida para os homens, e pois, como há quatro ventos cardiais, daí a necessidade de quatro Evangelhos… O Verbo criador do Universo reina e brilha sobre os querubins, os querubins têm quatro formas, e eis porque o Verbo nos obsequiou com quatro Evangelhos.”

Ainda existem outras lendas e histórias de como se escolheram os textos como conta a obra Libelus Synddicus, de um autor anônimo: “estando os bispos em oração, os Evangelhos inspirados foram por si colocar-se em um altar…”

Outras lendas contam como todos os textos existentes foram colocados sobre um altar e aqueles que não eram inspirados caíram ou como uma pomba atravessou o vitral da igreja, durante o concilio de Nicéia e pousou no ombro de cada bispo e cochichou ao seu ouvido quais eram os livros inspirados.

Bem, como vimos o Concilio de Nicéia tem uma fama enorme em relação à escolha de que livros eram ou não inspirados, mas não existe um registro do evento que fale sobre o assunto, e já haviam listas, como o cânone Muratori onde os livros já eram escolhidos.

Isso sem contar que muitas destas afirmações mostram um certo descontentamento com a Instituição da Igreja Católica mas deixa de lado um pequeno detalhe: os livros sagrados judaicos da Bíblia, o Antigo Testamento, também foram criados a partir de livros aceitos e não aceitos, eles também foram peneirados. O mesmo trabalho de catalogação de um cânone oficial foi realizado pelos judeus, então este processo de identificar quais livros eram sagrados para fazer parte ou não da Bíblia não foi um trabalho unicamente cristão.

Em relação à Bíblia sabemos hoje que o bispo de Alexandria Anastásio, no ano de 367, propôs uma lista de livros inspirados. Essa lista foi posteriormente defendida no Concilio de Hipona, em 398, e a lista de Anastásio acabou sendo aprovada pelos bispos. Isso 50 anos depois de Jerônimo ter começado seu trabalho de criar a Vulgata.

E para se criar o concenso de que livros seriam aceitos foram criados uma série de critérios que deveriam ser observados, não apenas em ralação a textos cristãos mas a textos judaicos também. Nesta época a igreja já começava a se organizar e mesmo havendo vários grupos que possuíam textos próprios a idéia era começar a criar um corpo oficial de textos, literalmente um cânon. Assim os critérios adotados foram:

a) O livro deveria conferir identidade religiosa ao povo judeu e cristão.
b) O livro não poderia ser escrito em grego – isso em relação aos livros do Antigo Testamento.
c) Ainda em relação ao Antigo Testamento, o livro deveria ter sido escrito durante a época que vai de Moisés a Esdras.
d) Deveria ter sido catalogado na lista de Flávio Josefo, o historiador judeu.
e) O livro não deveria “manchar a mão”.

E finalmente dois critérios que refletiam muito bem o período histórico onde já haviam sinais do surgimento da igreja:

f) O livro não poderia ter origem em grupos de oposição ao pensamento dominante.
g) Deveria ser usado por muitas comunidades. Quanto maior fosse a aceitação de um livro, maior era a indicação que era um livro inspirado.

Se um texto passasse por esse crivo ele finalmente deveria ser reconhecido como

h) inspirado pelo Espírito Santo.

Assim para um texto passar pelo crivo religioso e ser aceito ele deveria primar pela consciência de que o povo judeu era o povo eleito, mantendo vivo essa fé como símbolo da indentidade nacional, também deveria professar a fé em Jesus crucificado, morto e principalmente ressuscitado. Se o texto fazia parte do Antigo Testamento deveria ter sido escrito originalmente em hebraico (com pequenas excessões onde o original se apresentava em aramaico) e deveria ter sido compilado até o século V a.C. na época de Esdras. Ele teria que ter estado presente nos escritos de Flávio Josefo e não poderia ter origem em grupos considerados subversivos. Por exemplo no Antigo Testamento temos o caso dos dois livros dos Macabeus, que era um dos grupos de judeus que lutava contra o império romano e desejava reestabelecer o judaísmo, eles eram inimigos dos Fariseus, que eram aqueles judeus que formavam o grupo religioso judaico que conduzia a religião judaica e que foi responsável pela criação do cânone judaico de Jâmnia. Assim os textos sobre os Macabeus não foram considerados inspirados pelos Judeus. Já no Novo Testamento os textos de origens gnósticas, que iam contra os grupos cristãos que estavam se tornando dominantes, foram descartados como fraudes. Deveria ser considerado um Best-Seller da época e aprovado por aquelas que eram consideradas as pessoas mais religiosas e ligadas a Deus.

Uma curiosidade sobre o critério e) é que nunca ficou muito claro o que os judeus queriam dizer com “manchar as mãos”. Se acreditavam que um livro impuro fosse uma aberração tão grande que mancharia aquele que o tocasse ou se havia o costume de algumas pessoas alterarem textos antigos escrevendo passagens novas e a tinta fresca seria a responsável pela mácula na mão daquele que o lesse.

Assim com o tempo os livros foram sendo aceitos e descartados da compilação final que existe hoje.

Além disso a Bíblia sempre foi apresentada como um longo texto corrido, ela foi dividida em capítulos apenas no século XIII d.C. (entre 1234 e 1242), pelo teólogo Stephen Langhton, então Bispo de Canterbury, na Inglaterra, e professor da Universidade de Paris, na França. Foi apenas nos séculos IX e X d.C. que estudiosos Judeus dividiram o Antigo Testamento em versículos. O Novo Testamento recebeu a divisão em versículos no ano de 1551, o responsável foi  um impressor francês chamado Robert d´Etiénne.

Até boa parte do século XVI, as Bíblias eram publicadas somente com os capítulos. Foi assim, por exemplo, com a Bíblia que Lutero traduziu para o Alemão, por volta de 1530. A primeira Bíblia a ser publicada incluindo integralmente a divisão de capítulos e versículos foi a Bíblia de Genebra, lançada em 1560, na Suíça.

E mesmo assim nem todas as Bíblias traziam os mesmos textos.

16 – Como assim? Com todo esse trabalho de escolher textos que eram ou não inspirados existiam Bíblias diferentes?

Sim.

Apesar da antiguidade dos livros bíblicos, os manuscritos mais antigos que possuímos datam a maior parte dos séculos III e IV d.C.. Tais manuscritos são o resultado do trabalho de copistas (escribas) que, durante séculos, foram fazendo cópias dos textos, de modo a serem transmitidos às gerações seguintes. Por causa desse processo manual e artesanal o texto bíblico, obviamente, está sujeito a erros e modificações, involuntários ou voluntários, dos copistas. E isso acaba se traduzindo na coexistência, para um mesmo trecho bíblico, de várias versões que, embora não afetem grandemente o conteúdo, suscitam diversas leituras e interpretações dum mesmo texto.

Por causa disso criou-se o que ficou conhecido como Crítica Textual, que é o trabalho desenvolvido por especialistas que se dedicam a comparar as diversas versões e a selecioná-las. O resultado deste trabalho são os Textos-Padrão.

Ou seja, existe um esforço para se descobrir quais as formas originais dos textos que temos hoje, e quais deles estariam mais próximos da forma como foram concebidos originalmente.

A grande fonte hebraica para o Antigo Testamento é o Texto Massorético, que como já vimos, foi fechada no século VI d.C.

Esses processos de cópia e produções de Bíblias combinados com as várias igrejas que se formaram depois do surgimento do cristianismo serviram para que várias versões da Bíblia sobrevivessem até os dias de hoje, cada uma com características próprias.

17 – Mas com o estabelecimento do cristianismo não houve um consenso sobre que textos fariam parte da Bíblia e que versões de cada texto era aceita?

Infelizmente não.

E para isso vamos voltar ao conceito de Cânone Bíblico e um pouco antes para o conceito de “cânone” judaico.

Segundo a literatura judaica Esdras, na qualidade de escriba e sacerdote, presidiu um conselho formado por 120 membros chamado Grande Sinagoga, que teria selecionado e preservado os rolos sagrados. Alguns acreditam que foi ai que o Cânone das Escrituras do Antigo Testamento foi fixado (Esdras 7:10,14). Entretanto esta tese é desacreditada pela crítica moderna. Os estudiosos concordam que foi essa mesma entidade que reorganizou a vida religiosa nacional dos repatriados e, mais tarde, deu origem ao Supremo Tribunal Judaico, denominado Sinédrio.

Curiosamente os Saduceus e os Samaritanos só aceitavam como canônicos os cinco livros de Moisés. Por esta razão, os especialistas especulam que Esdras tenha reunido apenas o Pentateuco, isto é, os cinco livros de Moisés.

O prólogo da versão grega do Eclesiástico, datado em 130 a.C. parece já confirmar a suspeita dos estudiosos modernos. Com efeito nele lemos: “Pela Lei, pelos Profetas e por outros escritores que os sucederam, recebemos inúmeros ensinamentos importantes (…) Foi assim que após entregar-se particularmente ao estudo atento da Lei, dos Profetas e dos outros Escritos, transmitidos por nossos antepassados […]”.

Nota-se que o cânon indicado neste escrito considera canônicos livros posteriores ao tempo dos profetas.

O Cânone Hebraico de 39 livros, só foi realmente fixado no Concílio de Jâmnia – criado para procurar um rumo para o judaísmo, após a destruição do Templo de Jerusalém, no ano 70 d.C – em 90 d.C.. Mesmo assim estudiosos como Leonard Rost garantem que tais decisões demoraram muito para serem aceitas e até hoje não tiveram aceitação em algumas comunidades judaicas como é o caso dos judeus do Egito.

Neste concílio os participantes decidiram considerar como textos canônicos do judaísmo apenas os que existiam em língua hebraica e que remontassem ao tempo do profeta Esdras, rejeitando todos os outros livros e demais escritos, considerando-os como apócrifos, ou seja, não tendo evidências de inspiração por Deus e fonte de fé. Houve muitos debates acerca da aprovação de certos livros, como Ester e Cântico dos Cânticos, conforme registro da Mishiná.

Apesar da crítica moderna afirmar que vários livros que constam no Cânon Hebraico são posteriores ao tempo de Esdras (como é o caso do Livro de Daniel), os estudiosos explicam que os Fariseus não dispunham do método científico que existe hoje para se datar uma obra, ou mesmo para se atribuir a ela um autor. De qualquer forma, os critérios por eles adotados excluíram os livros deuterocanônicos do Cânon Hebraico.

Para não confundir: o Concilio de Jâmnia (ano 90 d.C.) decidiu quais os livros que fariam parte do cânon. Os Massoretas, século VI, decidiram qual a forma correta dos textos que haviam sido selecionados.

Já do lado dos cristãos, temos que ter em mente que no início não havia uma igreja organizada como hoje e desde o tempo de Jesus, entre seus discípulos, sempre existiram controvérsias doutrinárias e disciplinares, como se vê em At 15, 1-5. Havia grupos em Roma, no Oriente e norte da África que, sob influência helenística, zoroastrista e de convicções pessoais, queriam adaptar a doutrina de Jesus às suas idéias. Tais foram os grupos dissidentes ou heréticos fundados por Donato, a gnose de Marcião (o “Primogênito de Satanás”), Montanus, Nestório, Paulo de Samósata e Valentinus entre outros. Os escritos de Tertuliano contra os heréticos e o “Contra as heresias” de Ireneu foram respostas às heresias. O Concílio de Nicéia foi convocado pelo imperador Constantino devido a disputas em torno da natureza de Jesus “não criado, consubstancial ao Pai”. Na Santíssima Trindade, as três pessoas têm a mesma natureza, ou seja, a divina.

Então apesar do Antigo Testamento já ter uma aceitação mais ou menos geral de que textos eram inspirados e quais não eram, o Novo Testamento ainda não possuía unidade. Mesmo com tentativas como a do Cânone Muratori, 170 d.C., o Novo Testamento ainda era um Deus nos Acuda, já que as pessoas ainda não tinham nem muita certeza sobre o que era o Cristianismo.

A partir de 325, algumas verdades do Cristianismo foram estabelecidas como dogma através de cânones promulgados por vários concílios, como o de Nicéia.

Desde Jesus Cristo (Jo 17,21) passando por todos os apóstolos, especialmente Paulo, existe um impulso para estabelecer unidade no cristianismo. A primeira forma de demonstração desse impulso foi a manutenção da unidade em torno de Pedro. Se há um só Deus, que se revelou em Jesus Cristo, que fundou Sua única Igreja (Mt 16,18) e se Jesus Cristo mesmo diz que Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida, não podem existir outras verdades verdadeiras. Uma das linhas que foi condenada como heresia eram as que divergiam da afirmação de que Cristo era totalmente divino e totalmente humano e que as três pessoas da Trindade são iguais e eternas. Este dogma (Um só Deus em Três Pessoas = Três pessoas e uma só natureza divina assim como existem bilhões de pessoas e uma só natureza humana) só foi estabelecido depois que Ário, um celebrado professor do cristianismo – e também mártir – o desafiou.

E assim, muitos textos que poderiam fazer parte da Bíblia foram banidos, por serem considerados heréticos.

Assim não apenas os textos finais foram escolhidos, mas também a forma que o cristianismo dominante teria também. Escolhendo-se textos que mostrassem certos aspectos de jesus e descartassem outros.

E ai voltamos ao cíclo vicioso da falta de gráficas, porque uma vez definidos os textos que fariam parte da Bíblia Cristã, eles estavam sujeitos à manipulação por parte dos copistas (seja essa manipulação causada por erro sincero ou pela maldade no coração do homem).

E como vimos, mesmo com a tentativa de Jerônimo de criar um texto único, muitos textos e livros ainda não haviam sido aprovados mesmo cinco décadas depois que ele começou o trabalho. Assim haviam algumas variantes dos mesmos textos.

Haviam também grupos que não estando ligados à igreja continuavam a usar textos próprios ou versões próprias de textos existentes, assim quando era o momento de se apontar que versão era a original não haviam uma base para se ter certeza.

18 – Então além do Antigos Testamento, e dos livros do Novo Testamento, haviam outros livros e textos religiosos circulando por ai?

Sim, tecnicamente esses livros receberam dois nomes: Deuterocanônicos e Apócrifos.

O termo “deuterocanônico” é formado pela raiz grega deutero (segundo) e canônico (que faz parte do Cânon, isto é do conjunto de livros considerados inspirados e normativos por uma religião ou igreja). Assim, o termo é aplicado a livros e partes de livros bíblicos que só num segundo tempo foram considerados como canônicos.

O adjetivo “deuterocanônico” é originalmente aplicado a estes textos pelos cristãos, que depois de um tempo passaram a encará-los como inspirados e fazendo parte integrante da Bíblia.

O fato de muitas pessoas, cristãs ou não, não os considerarem inspirados, eles ainda são obras muito importantes tanto para a fé cristã quanto para historiadores. Hoje eles são considerados patrimônios históricos da fé, pois refletem e fizeram parte das crenças cristãs ao longo da história.

São deuterocanônicos os seguintes livros bíblicos:

– Tobias
– Judite
– I Macabeus e II Macabeus
– Sabedoria
– Eclesiástico (também chamado Sirácide ou Ben Sirá )
– Baruc

Fora os livros deuterocanônicos podemos também encontrar fragmentos deuterocanônicas dentro de livros canônicos como:

– adições em Ester.
– adições em Daniel – especificamente os episódios da Casta Susana e de Bel e o dragão.

Estes livros eram já conhecidos pelos cristãos, que os citavam e utilizavam. Os estudiosos encontraram citações destes livros nas obras de Ireneu, Justino, Agostinho, Jerônimo, Basílio Magno, Ambrósio e muitos outros. E ainda haviam aqueles que julgavam esses textos como sendo somente eclesiásticos, isto é, não eram canônicos porém também não eram contrários à Fé. Foi o caso de Melitão, Rufino, Atanásio e outros. Como podemos ver o assunto não era pacífico, e houve bastante discórdia sobre o tema.

Jerônimo inicialmente negou a canonicidade dos deuterocanônicos. Porém, os estudiosos encontraram uma mudança posterior de sua opinião em suas cartas escritas a Rufino e a Paulino, Bispo de Nola.

Mas no fim das contas esta discórdia parece ter sido resolvida ou então não influenciou o parecer comum da igreja antiga.

Nenhum Concílio da igreja primitiva recusou a canonicidade destes livros, muito pelo contrário. Foram declarados canônicos nos Concílios regionais de Roma (382 d.C, dando origem ao Cânon Damaseno), Hipona I (cânon 36, 393 d.C), Cartago III (cânon 47, 397 d.C), IV (cânon 24, 417 d.C), Trullo (cânon 2, 692).

Um documento conhecido como Decreto Gelasiano (496 d.C) também confirma a canonicidade dos deuterocanônicos.

Mas isso não significa que todos os cristãos, fossem apenas seguidores da fé ou os sacerdotes de comunidades, aceitassem isso. Com a formação de uma igreja se destacando de outros grupos menores essa aceitação acontecia entre os cristãos católicos apostólicos romanos.

A aceitação comum dos deuterocanônicos como livros sagrados fica ainda mais clara ao encontrarmos os textos presentes nas primeiras versões Bíblicas, como a Vetus Latina e a Vulgata. Na época, no Oriente, a Septuaginta foi adotada como a versão oficial do Antigo Testamento.

Os livros deuterocanônicos foram escritos entre Malaquias e Mateus, ou seja, numa época em que segundo o historiador judeu Flávio Josefo, cessara por completo a revelação divina. Entretanto segundo os Evangelhos a revelação do Antigo Testamento durou até João Batista (cf. Mt 11,12-13 e Lc 16,16). Essa já começava a se mostrar a futura divisão que aconteceria entre o judaismo e o recém criado cristianismo.

Os textos deuterocanônicos chegaram até nós apenas em grego (alguns escritos originalmente nessa língua, outros traduzidos duma versão hebraica, que se perdeu), fazendo parte da Septuaginta. Tais textos não se encontram na Tanakh.

É importante dizer que também no Novo Testamento existem livros deuterocanônicos. São eles:

– Tiago
– Hebreus
– Apocalipse
– 2 Pedro
– 2 e 3 João.

Assim como os livros deuterocanônicos do Antigo Testamento, estes também tiveram sua canonicidade contestada por muitos séculos.

E mesmo depois deste tempo todo ainda não havia consenso. Martinho Lutero, o reformista da Igreja Católica e pai do Protestantismo, chegou até mesmo não considerar canônicos Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse, que na sua tradução da Bíblia para o Alemão deixou-os num apêndice sem numeração de páginas. Depois os demais reformadores decidiram que estes livros deveriam voltar à Bíblia, pela larga utilização nas comunidades cristãs, mas não fizeram o mesmo com os deuterocanônicos do AT.

No início do séc. XV, um grupo dissidente da Igreja Copta (também chamados de Monofisistas), conhecidos como Jacobitas questionaram muitos dos concensos cristãos da época, inclusive o Cânon Alexandrino. Em 1441, O Concílio Ecumênico de Florença, através da Bula Cantate Domino (4/2/1442) reafirma o caráter canônico do Cânon Alexandrino.

Com a Reforma Protestante, Lutero volta a questionar o caráter canônico dos Deuterocanônicos negando inclusive seu caráter eclesiástico, pois para ele estes livros eram contrários à Fé. Em 1545, é convocado o Concílio de Trento, que novamente afirma o caráter canônico do Cânon Alexandrino.

No início não houve consenso entre os Protestantes sobre o Cânon do Antigo Testamento. O Rei Jaime I da Inglaterra, responsável pela famosa tradução KJV (King James Version), defendia que os Deuterocanônicos deveriam continuar constando nas Bíblias Protestantes. Praticamente na mesma época surgiu uma tradução conhecida como Bíblia de Geneva ou Genebra, que caracterizava os Deuterocanônicos como apócrifos.

Somente após a “Confissão de fé de Westminster” (séc. XVII), protestantes ingleses que eram influenciados pelo calvinismo e puritanismo removeram das suas listas os livros deuterocanônicos, passando a adotar como lista de composição do Antigo Testamento o Cânon Hebraico conforme instituído no Concílio de Jâmnia. Princípios desta confissão foram espalhando-se por várias denominações e seu conteúdo funcionou como resposta ao concílio de Trento. Então novamente os textos do Antigo Testamento que não eram aprovados pelos Judeus foram retirados da Sagrada Escritura.

Até hoje existem muitos cristãos protestantes que chamam os deuterocanônicos de apócrifod, alegando que os textos trazem muitos erros, como por exemplo erros geográficos, e por acreditar que muitos fatos narrados neles não se concretizaram, eles chegam mesmo e remover os textos de suas Bíblias e dizem que não são textos inspirados. Outro argumento apontado é de que foram escritos no período intertestamentário (período de 400 anos compreendidos entre o novo e o velho testamento), ou seja em um período que segundo os teólogos reformadores Deus não teria levantado nenhum profeta. Este período também ficou conhecido como “silêncio profético”, e isso faz com que não reconheçam estes livros como fazendo parte da palavra de Deus.

Então se formos tentar colocar ordem nesta bagunça:

Os deuterocanônicos já faziam parte da vida dos judeus através Septuaginta, dos judeus cristãos através da Vetus Latina e da Vulgata. A primeira Bíblia impressa da história, conhecida como a Bíblia de Gutenberg (1450-1455) também já continha os livros deuterocanônicos do Antigo Testamento. Eles estavam presentes mesmo nas primeiras versões protestantes como a KJV (King James Version).

Já os Apócrifos, do grego Apokruphoi, secreto, separado ou excluído, eram conhecidos como Livros Pseudo-canônicos. O termo “apócrifo” foi cunhado por Jerônimo, no quinto século, para designar basicamente antigos documentos judaicos escritos no período entre o último livro das escrituras judaicas, Malaquias, e a vinda de Jesus Cristo. São livros considerados não  inspirados e portanto não entraram no Cânon.

No cristianismo ocidental atual existem vários livros considerados apócrifos; nos sínodos realizados ao longo da história esses livros foram banidos do canon, outros obtiveram uma reconsideração e retornaram à condição de Sagrados.

O número dos livros apócrifos é maior que o da Bíblia canônica. É possível contabilizar 113 deles, 52 em relação ao Antigo Testamento e 61 em relação ao Novo. A tradição conservou outras listas dos livros apócrifos, nas quais constam um número maior ou menor de livros. A seguir, alguns desses escritos segundo suas categorias.

Evangelhos:

– de Maria Madalena
– de Tomé
– Filipe
– Árabe da Infância de Jesus
– do Pseudo-Tomé
– de Tiago
– Morte e Assunção de Maria
– Judas Iscariotes

Atos:

– de Pedro
– Tecla e Paulo
– Dos doze apóstolos
– de Pilatos

Epístolas:

– de Pilatos a Herodes
– de Pilatos a Tibério
– dos apóstolos
– de Pedro a Filipe
– Paulo aos Laodicenses
– Terceira epístola aos Coríntios
– de Aristeu

Apocalipses:

– de Tiago
– de João
– de Estevão
– de Pedro
– de Elias
– de Esdras
– de Baruc
– de Sofonias

Testamentos:

– de Abraão
– de Isaac
– de Jacó
– dos 12 Patriarcas
– de Moisés
– de Salomão
– de Jó

Outros:

– A filha de Pedro
– Descida de Cristo aos Infernos
– Declaração de José de Arimatéia
– Vida de Adão e Eva
– Jubileus
– 1,2 e 3 Henoque
– Salmos de Salomão
– Oráculos Sibilinos

E isso para citar alguns. E todos esses textos de uma forma ou de outra passaram por aquele crivo do qual falamos anteriormente sendo banidos para sempre ou então ficando em cima do muro, aparecendo e sendo retirados e voltando a aparecer nas escrituras.

19 – Mas a Bíblia é uma zona!

Sim, mas só se você parar para pensar a respeito.

Vamos tentar criar aqui duas linhas do tempo, a primeira a cultural que representa como a Bíblia teria sido desenvolvida de acordo com a história que ela mesma conta:

A Bíblia como a que você compra hoje em uma loja foi escrita por um período de 1500/1600 anos, por cerca de 40 pessoas diferentes com profissões, origens culturais e classes sociais diferentes. Para quase todos os Judeus e Cristãos ela é a Palavra de Deus, ou seja, muito mais do que simplesmente um livro.

Ela teria sido escrita da época de Moisés entre 1592 a.C. e 1472 a.C. aproximadamente, até o último livro, o Apocalipse de São João, datado de cerca de 96 d.C., tendo passado por um período sem registros inspirados por Deus, o “silêncio profético”, que separou a época do Antigo Testamento (Judeus) do Novo Testamento (Cristãos), esse período foi de aproximadamente 400 anos.

Então lá pelo ano de 96 d.C. a Bíblia com textos de mais de 1600 anos de tradição estaria, em tese, pronta para circular e ser reproduzida integralmente até os dias de hoje para se chegar na sua mão.

Agora uma pausa para os cínicos de plantãos ou aqueles simplesmente confusos até agora antes de nos aventurarmos a montar nossa segunda linha do tempo, a criada a partir de registros e evidências históricas, arqueológicas e culturais. Nós estamos passando por uma revisão ortográfica que está definindo a nova regra da escrita da língua portuguesa. Um exemplo é a palavra Bem-Vindo sendo atualizada para Benvindo.

Se no ano de 2500 fossem realizar um estudo de capachos de portas para se publicar um desses livros de mesa de centro que algumas pessoas gostam tanto, eles teriam várias fotos de capachos dizendo SEJA BEM-VINDO anteriores a 2009 e várias fotos com capachos dizendo SEJA BENVINDO posteriores a esta data. Mesmo hoje em dia com a midia que temos e a pressão social de aceitar mudanças, podemos apostar que pelos próximos anos ainda serão produzidos muitos capachos com os dizeres BEM-VINDO, ou seja a forma que o texto foi escrito no capacho não é indicativo de que ele date de antes de 2009 ou depois de 2009.

Vamos dizer que lá pelo ano de 2050 surjam os puristas que defendem que se as pessoas cultas se reunem e decidem que BENVINDO é a melhor forma de se escrever algo então é porque deve ser seguido, pode ser que surja uma lei do INMETRO que defina que os capachos só poderão chegar no mercado caso tenham a grafia correta do termo. Ai podemos chamar esta manifestação de o primeiro Concílio de BENVINDO.

Acontece que isso acaba influenciando os maiores centros comerciais, cidades afastadas ou fabricantes de capacho que não ligam para a lei podem continuar com a sua grafia errada e assim teríamos os primeiros hereges – sejam conscientes (eu não vou comprar uma máquina nova que imprima a palavra nova), sejam os inocentes (mudou a palavra? eu não sabia).

Agora temos que levar em conta também outro fator, os capachos que tinham a grafia BENVINDO antes da mudança da norma ortográfica, ou seja, aqueles que já estavam errados antes do errado virar certo.

Só ai já teríamos problemas, 400 anos depois, de datar um capacho, simplesmente pela grafia de uma palavra, ele poderia ser anterior à data do Concílio de BENVINDO, poderia ser posterior, poderia ser um erro mais antigo ou poderia ser um capacho com a escrita antiga “gambiarrado” para apresentar a nova sem ter que mudar as máquinas, com um M deformado e o espaço entre as palavras coberto por um desenhinho qualquer.

Como isso se aplica à Bíblia?

Só porque um texto foi tomado como correto no século VI d.C. não significa que ele já não existisse 1600 anos antes, assim como um texto que começou a aparecer em determinado século não existisse com uma circulação muito mais restrita antes. Da mesma forma dois textos diferentes não querem dizer automaticamente manipulação maldosa. O fato de não termos hoje em mãos um original não significa que ele nunca tenha existido, e um texto que só se tornou oficial em um ano X não era sem valor antes. Pense que a palavra e o conceito Bem-Vindo existiam antes da correção ortográfica e provavelmente antes de inventarem a escrita e a registrarem pela primeira vez.

Vamos ver então como fica a história da Bíblia em termos de registros históricos:

640 a.C – Data em que se criou uma unidade doutrinária necessária para o reconhecimento da lei escrita.

287 – 247 a.C. – Criação da Septuaginta

225 a.C. – Trecho bíblico mais antigo: passagem de um dos livros de Samuel.

100 a.C. – O texto mais antigo conhecido da Bíblia: Livro de Isaías

0-100 d.C. – Vetus Latina & suposta época da composição do Novo Testamento

90 d.C. – Concilio de Jâmnia decidiu quais os livros que fariam parte do cânon judaico (Antigo Testamento)

125 d.C. – Texto mais antigo do Novo Testamento: fragmentos do evangelho de João, incluindo a pergunta de Pilatos a Jesus: “Você é o rei dos judeus?”

325 d.C. – Canonização do Novo Testamento

404 d.C. – Jerônimo completa a Vulgata.

500-600 d.C. – Texto Massorético (Antigo Testamento)

500 d.C. – A Bíblia começa a ser traduzida para mais de 500 línguas diferentes.

600 d.C. – Cria-se a Lei que determina que a Bíblia apenas pode ser copiada e distribuída em Latim.

995 d.C. – Surgem novas traduções anglo saxônicas da Bíblia do Novo Testamento.

1384 d.C. – Wycliffe se torna a primeira pessoa a se criar uma versão completa da Bíblia em Inglês (era uma versão manuscrita).

1455 d.C. – Gutenberg cria a primeira Máquina de Impressão e a partir de então as bíblias podem ser produzidas em massa. Até então todas as versões eram manuscritas.

1560 d.C. – Bíblia de Genebra

1611 d.C. – Surgimento da versão da Bíblia do Rei James.

1753 d.C. – Primeira publicação de uma Bíblia em Português.

1844 d.C. – Sociedade Bíblica Internacional traduz a Bíblia para os últimos idiomas vivos que restavam.

1885 d.C. – Os livros considerados apócrifos são removidos das versões impressas das Bíblias Protestantes.

1898 d.C. – Os Gideões Internacionais levam a Bíblia para as prisões, escolas e favelas, hoje qualquer quarto de hotel ou motel americano possui uma versão desta Bíblia.

1993 d.C. – Biblegateway.com é o primeiro site a colocar a Bíblia na internet com ferramenta de busca e diversas traduções sincronisadas.

20 – Mas existem muitas diferenças entre as Bíblias que circulam por ai hoje?

Novamente a resposta é positiva, e não apenas entre as Bíblias mas entre as Bíblias e os textos originais.

Tenha em mente que este texto não tem como objetivo julgar se a Bíblia é um livro sagrado ou uma arma de manipulação popular e sim estudar fatos que estejam relacionados com ela.

Como já vimos, mesmo os textos em hebraico da Tanakh possuem algumas diferenças, como no caso do pentateuco samaritano e outros que existiam. A que se devem estas diferenças? Não há como dizer.

Um grande ressentimento moderno contra a Igreja Católica afirma que todos foram causados como forma de garantir que a igreja tivesse poder e riquezas, e mesmo que este seja o caso em alguns momentos, não existe como provar isso – não que houve ou não manipulação, mas que ela foi realizada com este ou aquele objetivo específico. Muitas pessoas dizem que a igreja adotou o celibato dos padres, por exemplo, como forma de impedir que eles tivessem família e assim suas posses acumuladas em vida retornassem à igreja. Mas será que isto é verdade? Se pensarmos que tanto o judaísmo quanto o cristianismo sempre possuíram grupos ascetas, que renunciavam a existência mundana em prol da vida espiritual, chegando a casos extremos como monges que se flagelavam, castrações e outras, podemos ver que muitos dos primeiros cristãos eram adeptos do celibato, assim como vários grupos dentro do judaísmo como os Essênios, por exemplo, e que quando a igreja foi fundada e o cristianismo foi adotado como religião oficial de Roma o celibato já era um costume que mesmo que não obrigatório, era muito comum, não apenas para aqueles que pregavam o cristianismo mas também para aqueles que o tinham como religião pessoal. Então mesmo que afirmemos que a igreja tomou proveito disto não podemos afirmar com certeza que ela oficializou e incentivou este hábito motivada simplesmente pela cobiça assim como não temos como negar que este hábito também foi muito lucrativo para ela.

Assim, não vamos apontar dedos tentando imaginar que diferenças bíblicas foram criadas por quem e por que motivos, mas vamos apontar algumas delas para mostrar que mesmo que a Bíblia seja tomada como um livro absoluto, os textos impressos em suas páginas não o são.

Vamos começar levantando algumas mudanças que já ocorreram nas origens de seus textos.

Originalmente foram utilizados três idiomas diferentes na escrita dos diversos livros da Bíblia: o hebraico, o grego e o aramaico. Em hebraico foi escrito todo o Antigo Testamento, com excepção dos livros chamados deuterocanônicos e de alguns capítulos do livro de Daniel, que foram redigidos em aramaico. Em grego, além dos já referidos livros deuterocanônicos do Antigo Testamento, foram escritos praticamente todos os livros do Novo Testamento. Segundo a tradição cristã, o Evangelho de Mateus teria sido primeiramente escrito em hebraico, visto que a forma de escrever tinha como objetivo alcançar os judeus.

O hebraico utilizado na Bíblia não é todo igual. Encontramos em alguns livros o hebraico clássico (por ex. livros de Samuel e Reis), em outros um hebraico mais rudimentar e em outros ainda, nomeadamente os últimos a serem escritos, um hebraico elaborado, com termos novos e influência de outras línguas circunvizinhas. O grego do Novo Testamento, apesar das diferenças de estilo entre os livros, corresponde ao chamado grego koiné (isto é, o grego “comum” ou “vulgar”, por oposição ao grego clássico), o segundo idioma mais falado no Império Romano.

Precisamos então nos lembrar de que a Tanakh foi traduzida do hebraico (as diferentes formas de hebraico que foram compiladas por séculos) para o grego na criação da Septuaginta, termos primitivos, rebuscados, simples e de uso diário foram passados para uma forma corrente de grego, um mesmo estilo de grego do princípio ao fim e então essa versão assim como a hebraica foram traduzidas para o latim da Vetus Latina. Com Jerônimo a Septuaginta é deixada de lado e ele pega todos os textos antigos – com suas variantes linguísticas – e são novamentes traduzidos para um latim de um único estilo, mas isso não fez com que as versões da Vetus Latina fossem recolhidas do mercado, elas existiam de forma paralela e quando o cristianismo se espalha surgem novas traduções para línguas locais, essas traduções não vinham de um único documento oficial, mas dos textos que cada um tinha em mãos. Então enquanto uma versão Romena pudesse vir do Latim de Jerônimo, uma versão alemã poderia vir do grego da Septuaginta e um texto espanhol ter vindo de um dos muitos livros da Vetus.

Embora a mensagem geral destes textos fossem a mesma muitas coisas surgiam, eram adaptadas ou simplesmente mudavam.

Vejam um exemplo: pegando-se o texto da Tanakh de Oséias que usamos na questão quatro:

Oséias 8:12: “Se tivesse escrito a maioria de minha Torá, [Israel] seria contado igual a estranhos”

Vamos comparar com uma tradução atual da versão Almeida da Bíblia Corrigida e Revisada Fiel de 1994:

Oséias 8:12: “Escrevi-lhe as grandezas da minha lei, porém essas são estimadas como coisa estranha”

Com a versão da Sociedade Bíblica Britânica:

Oséias 8:12: “Embora eu lhe escreva a minha lei em miríades de preceitos, estes são tidos como coisa estranha”

Dentre as versões cristãs não existe muita diferença no significado, mas veja a diferença entre a passagem judaica e a passagem cristã. Numa o recado é para o povo escolhido, na outra o recado é para todos os não cristãos, independentes da origem do cristão em questão. Não há porque segregar o conhecimento apenas aos judeus, mas ele deve ser aberto aos que acreditam e aos que não acreditam.

Qual das duas versões você acha que deve ser mantida hoje? E quando for pensar nisso, pense que esta é a Palavra de Deus, e por isso deveria ser passada adiante de forma mais fiel o possível.

Outro caso que acontece não é apenas mudar o público alvo de determinada passagem, mas de se criar novas figuras na história. Vamos prestar atenção em uma que talvez tenha se tornado a mais célebre de todas: o diabo!

O Diabo se tornou, acidentalmente ou não, uma das figuras centrais da religião hoje em dia, mas ele não esteve sempre presente na Bíblia.

Um dos nomes atribuídos ao diabo é Lúcifer, mas este nome não existe nos textos originais. A primeira vez que este nome é citado é no livro de Isaías quando Deus protege seu povo destruindo o orgulho de seu inimigo. Em Isaías 14:13 surge a frase: “Como caíste do céu, ó Lúcifer, filho da alva!”. No original a expressão utilizada não era o nome Lúcifer e sim helel bem shahar, que significa aquele que brilha. Quando traduziram esta passagem para o grego o termo foi traduzido por um que era conhecido dos gregos: eosphorus; e então para o latim Lucifer. Agora Lucifer era a tradução literal para “aquele que brilha” – lux, lucis = luz; ferre = carregar; Lucifer = o portador da luz. Ao mesmo tempo este era o título dado ao planeta Vênus, a estrela da manhã, que brilhava em pleno dia. Desta forma, apenas por causa de traduções o termo helel – aquele que brilha – se torna eosphorus grego – o portador do archote – pois era o termo mais próximo de aquele que brilha, e então para Lucifer em latim que era o termo mais próximo nesta linguagem, só que lúcifer é o nome da estrela da manhã, Vênus, a estrela da alvorada.

Entretanto o nome de “Estrela d’alva”, ou Lúcifer, foi interpretado como sendo o nome de Satanás antes de sua queda do Paraíso. Segundo esta interpretação Lúcifer e seus anjos caíram por sua própria escolha, o motivo teria sido o orgulho, representado pela tentativa de se equipararem a Deus. Desejavam colocar sua própria vontade no lugar da vontade de Deus. E isto era considerado como a base do pecado em todos os níveis. Aos poucos, estas idéias começaram a se transformar na base dos ensinamentos tradicionais sobre o Diabo.

Mas se este trecho não fala do Diabo, fala do que? De acordo com os textos originais podemos supor que trata-se de uma interpretação errônea do seguinte trecho de Isaías que fala da “morte do rei da Babilônia” Nabucodonosor (Nebukadneççar em hebraico), que recebeu a maldição suprema da privação da sepultura:

«Como caíste do céu,
ó estrela dálva, filho da aurora!
Como foste atirado à terra,
vencedor da nações!
E, no entanto, dizias no teu coração:
‘Hei de subir até o céu,
acima das estrelas de Deus colocarei o meu trono,
estabelecer-me-ei na montanha da Assembléia,
nos confins do norte.
Subirei acima das nuvens, tornar-me-ei semelhante ao Altíssimo.’
E, contudo foste precipitado ao Xeol,
nas profundezas do abismo”.
Os que te vêem fitam os olhos em ti,
e te observam com toda atenção, perguntando:
“Porventura é este o homem que fazia tremer a terra,
que abalava reinos?”»
(Isaías 14, 12-15)

Isaías compara a queda do rei Nabucodonosor à Lúcifer! A queda do rei seria semelhante à queda da estrela da manhã – planeta Vênus no céu – ou seja, uma queda muito rápida.

E assim o diabo ganha o nome de Estrela da Manhã e Lúcifer, o que é irônico se pensarmos que este nome também é dado para Jesus no Apocalipse de São João 22:16: ” Eu, Jesus, enviei o meu anjo para vos testificar estas coisas a favor das igrejas. Eu sou a raiz e a geração de Davi, a resplandecente estrela da manhã.”

O mesmo podemos dizer sobre o nome Satã. Satã surge nos textos hebraicos originais como um adjetivo e não como um nome. Satã significa Adversário, mas não necessariamente o Adversário de Deus. Por exemplo a passagem 1Samuel 29:4, sobre o que pedem os príncipes filisteus a Davi, surge em algumas versões da Bíblia como: “Não se volte contra nós no combate”, mas no texto hebraico original está “Não se torne satã (inimigo) nosso no combate”. Davi aplica o termo satã aos homens que se opõem à vontade de Deus tentando o rei para que mate o benjaminita que o injuriou. Satã significa a oposição humana a Deus.

Outro exemplo é o livro de Jó 1:6, que se refere a um dos filhos de Deus que se apresenta diante do trono. O nome que lhe é dado é Satã. O nome comum representa o cargo de acusar e também a adversidade, a inimizade, a oposição que é permitida ou sancionada por Deus.

O próprio termo Diabo surge de uma tradução. O Livro da Sabedoria foi escrito em grego e não temos como saber qual seria a palavra escolhida pelo autor se o tivesse escrito em hebraico. O autor utiliza a palavra grega diábolos, termo usado na Septuaginta como tradução da palavra hebraica Satã: “É por inveja do Diabo que a morte entrou no mundo” (Sb 2,24).

Assim, no Antigo Testamento Satã não representa um ser que possamos considerar um demônio no sentido cultural cristão de um ser sobre-humano e perverso. O nome Satã, ou Satanás, no Antigo Testamento personifica a inimizade, dificuldade, contradição. A palavra satã, na sua forma verbal, stn em hebraico, aparece seis vezes no Antigo Testamento (Zc 3,1; Sl 38,21; Sl 71,13; Sl 109,4; Sl 120,29). Poderia ser traduzida por “satanizar”. A Septuaginta geralmente traduz o verbo stn por endiabállo, em grego; caluniar nas línguas vernáculas (e o substantivo satã, a Septuaginta geralmente o traduz por diábolos, que significa caluniador). A Bíblia de Jerusalém geralmente traduz por acusar.

E por causa dessas traduções se cria uma figura Mitológica do demônio.

Hoje é praticamente impossível se separar o Maligno do cristianismo, os protestantes são a prova viva disso. E agora essas traduções ajudam a incorporar novas culturas e hoje não apenas demônios, mas também encostos atormentam aqueles que escolhem trilhar o caminho apontado por Cristo.

Para não nos estendermos muito mais neste assunto vamos dar mais dois exemplos rápidos de como uma tradução pode mudar um texto original, seja de maneira sutil e inofensiva ou de uma forma mais agressiva.

Em Mateus 3:4 lemos que Jesus afirmou que: “E, outra vez vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus.”

Apenas neste trecho encontramos dois problemas com tradutores do grego para outras línguas.

Apesar de ser uma mensagem clara de que a humildade, e não a cobiça, é o caminho que leva a Deus esta passagem ficou muito exagerada.

Por um lado temos a palavra camelo. Além do animal existia outro camelo que os gregos conheciam, que era uma corda muito grossa utilizada por pescadores. Assim poderíamos entender que é mais fácil se passar uma corda grossa por um buraco de agulha do que um rico entrar nos céus. Apesar de ser uma idéia que de cara exclui automaticamente os ricos, sejam quem forem ou seja lá qual foi o método de se conseguir suas riquezas entrar no céu, fica uma metáfora menos exagerada. Agora temos que ter em mente que muitos patriarcas tiveram muitos bens, assim como reis e juízes, e eles com certeza devem ter entrado no céu, um exemplo é Abrahão. Mesmo das pessoas que conviviam com Cristo haviam aquelas ricas, o próprio José de Arimatéia, que cedeu a tumba onde Cristo ressuscitou, era rico; apenas se imaginarmos que mesmo tendo vivido com Cristo, respeitado tanto o Homem quanto sua mensagem, ele tenha sido deixado de fora do reino dos céus, temos que concluir que essa passagem é muito extrema. Jesus estaria dizendo que a riqueza é um grande mal, não importa de onde ela veio?

Podemos responder isso com o segundo problema de tradução, a palavra agulha. A agulha além do utensilho de costura é o nome dado às pequenas portas das cidades fortificadas para passagem dos animais das caravanas, utilizadas à noite depois que é dado o toque de recolher. Eram também utilizadas nos tempos de guerra, através das quais podia-se fazer o transporte de armas e comida. Essas agulhas são muito presentes ainda hoje nas muralhas da cidade antiga de Jerusalém.

Camelos com carga eram proibidos de passar por essas portinholas para evitar o comercio e o barulho durante o sono dos cidadãos. Além disso existe outro costume interessante, pelas portas principais das cidades eram comum que se passassem em sua maioria os mais bem quistos, ilustres e visitantes nobres. Pela agulha passavam os trabalhadores, o proletariado e os mercadores. Era como o elevador social e o elevador de serviço nos prédios hoje em dia. Além disso, mesmo durante o dia era realmente difícil se passar um camelo por elas. Era necessário bater no camelo e fazê-lo abaixar e na maioria dos casos, tirar a carga dele para passá-lo. Os camelos de grande porte, raramente passavam. Mas mesmo assim alguns passavam.

Desta forma temos dois fatores culturais, a corda dos pescadores – camelo – e as portinholas nos muros – agulhas – que deveriam ser levadas em conta no momento de se traduzir um texto como este.

A idéia de um animal passando por um buraco de agulha nos mostra que Jesus disse que ninguém rico entraria no reinos dos Céus. Isso poderia ser usado para mostrar que uma pessoa que aceite Deus deve se livrar de seus bens materiais. Já uma tradução que levasse em conta os costumes gregos e judaicos poderia levar em conta que a riqueza não é o que impede alguém de entrar no reino dos céus, mas aquilo que foi o motivo da riqueza – o trabalho ou a cobiça?

Por si só, a tradução deste trecho tem uma interpretação que muda de forma sutil um conceito que pode, por um efeito de bola de neve mudar a mensagem original.

Outro caso interessante de tradução é a famosa passagem da crucificação em que Jesus pergunta a Deus porque foi abandonado.

Em Mateus 27:45 e em Marcos 15:34 está registrado que depois de crucificado, Jesus, quando se aproximava a nona hora bradou/exclamou em voz alta: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”

Esta é uma exclamação curiosa que confunde várias pessoas. Como Jesus na cruz poderia ter sido abandonado por Deus.

Algumas pessoas dizem que neste momento Cristo não estava perguntando a Deus porque havia sido abandonado e sim estava recitando os salmos, já que o Salmo 22:1 – Salmo de Davi para o músico-mor, sobre Aijelete Hashahar – se inicia com a frase: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”

Este é um caso interessante da Bíblia, já que o Novo Testamento foi escrito quase todo em grego, mas contém palavras e frases que foram transliteradas do hebraico diretamente para o grego. Então a palavra יקתנב שé transliterada para σαβαχθανι. Assim em Mateus temos: “Eli! Eli! lamma sabachthani” e em Marcos: “Eloi! Eloi! lamma sabachthani”. Em ambos os casos a palavra sabachthani tem o significado de abandonastes.

Agora eis o caso que surge quando olhamos para algumas outras bíblias, como a versão espanhola de Casiodoro de Reina, de 1569 impressa na América onde a palavra que Jesus usa é sabachtani e não sabachthani. Antes de prosseguir vamos nos lembrar do Texto Massorético e sua importância.

O alfabeto hebraico não possiu vogais. Por isso a letra Beth pode ter as cinco pronúncias Ba, Be, Bi, Bo e Bu dependendo da palavra em que encontra. É como se em português a palavra “Belo” fosse escrita Bl, apenas o B e o L. Se a pessoa está escrevendo sobre uma pessoa e lemos que a achavam Bl podemos deduzir que ela era considerada bela, mas e se pegamos apenas Bl e deixamos escrita no meio de uma folha de papel? Está escrito ali Belo, Bela, Bala, Balé, Bolo, Bula, etc? Não temos como saber. Por isso foram criados os sinais massoréricos, eram sinais utilizados pelos massoretas para saber se a letra B tinha som de Ba ou de Be. Os sinais massoréticos são uma série de pontos e traços que podem estar embaixo, no meio ou em cima de cada letra e o objetivo era registrar uma palavra da forma que havia sido pronunciada. Só ai temos um problema novamente, isso faz com que tradições antigas dependam da tradição oral.

Imagine agora a seguinte cena, um patriarca recebe de Deus a mensagem de que devemos nos amar uns aos outros. Essa tradição vai sendo transmitida oralmente, até o momento em que a colocam no papel, usando um alfabeto onde não existem diferenças claras entre a pronúncia das palavras. Agora imagine que dois judeus, um que conhece a tradição e outro que não conhece recebam a tarefa de pintar nos muros a mensagem de Deus, e dão para cada um uma parte da cidade para que espalhem o recado.

Um deles pega seu balde e tinta e sai escrevendo nos muros: Deus mandou que nos amássemos uns aos outros. O outro escreve nos muros: Deus mandou que nos amassemos uns aos outros. Você percebe a diferença que as duas mensagens possuem? De um lado da cidade as pessoas declarariam o amor, do outro sairiam se amassando.

E ai voltamos ao trecho da crucificação. Jesus dá o seu brado, estava cercado por Judeus, eles levam o recado adiante e o transmitem. Apesar dos evangelhos terem sido escritos originalmente em grego os termos eram judeus, tanto que as palavras de Cristo vem escritas no original e então lhe oferecem a tradução. Acontece que os manuscritos gregos trazem a transcrição: “Li’Li LMH ShBHhTh-NI”, ou seja “sabachthani”, que tem como tradução “glorificas”, e não “abandonastes”. E assim por um erro mínimo, a compreensão da pronuncia de uma palavra ao invés do brado “Deus! Deus! O quanto me glorificas!” temos “Deus! Deus! Por que me abandonastes?”.

Pensando nos dois brados, qual parece o mais lógico por ter sido dado por Jesus, que sabia que seria crucificado, que sabia que Judas o delataria, que pediu para Judas na última ceia para ir fazer o que devia, que quando surgiram os soldados romanos procurando por Cristo se adiantou a todos e disse “Sou eu!” mesmo antes de ter sido apontado por Judas, que quando teve várias chances de evitar seu destino na frente de cada juiz e governante romano que o interrogou permaneceu calado? Bem a realidade nem sempre segue o que julgamos ser lógico, mas temos ai outro exemplo de como uma simples tradução pode influenciar um texto que deveria ser um registro exato criando sentidos tão diferentes para uma mesma passagem.

Assim cada nova versão que surgia e era usada como base para novas cópias, sejam manuais ou impressas geravam bíblias com textos trazendo algumas diferenças, em uma Jesus se lamenta em outra exalta Deus. E muitas dessas diferenças estão presentes até hoje.

21 – Mas não existe hoje uma Bíblia que seja aceita como a mais fiel aos textos originais, tipo uma Bíblia aceita por todos como a mais correta?

Não, a palavra de Deus recebeu várias versões durante a sua publicação e não apenas isso, diferentes grupos cristãos tem diferentes Bíblias oficiais.

Para se ter uma idéia a igreja primitiva, formada pelos primeiros seguidores da mensagem de Cristo começou a apresentar mudanças na crença original desde o século V. Nos dias de hoje existem dezenas, se não centenas, de variações do cristianismo e cada um com diferenças fundamentais entre si.

Vamos olhar uma breve linha do tempo da igreja para entender um pouco essas variantes.

Com o Concílio de Efeso em 431 uma vertente se solidifica, os Noestorianos, que entre outras coisas acreditavam que Cristo era formado por duas pessoas distintas, uma humana e outra divina, dois entes completos e independentes. Essa doutrina surgiu na Antióquia e influenciou a Síria, ela foi proposta pelo monge Nestório por causa das disputas cristológicas que surgiram nos séculos III, IV e V. No Concílio de Éfeso criou-se uma disputa centrada fundamentalmente em torno do título com o qual se devia referir a Maria, se somente cristotokos (mãe de Cristo, a dizer, de Jesus humano e mortal), como defendiam os nestorianos, ou de theotokos (mãe de Deus, ou seja, também do Logos divino), como defendiam os partidários de Cirilo. Resolveu-se adotar como verdade de fé a doutrina proposta por Cirilo, concedendo a Maria o título de Mãe de Deus e os nestorianos foram considerados hereges.

Até hoje é possível encontrar nestorianos, que se propagaram pela Ásia Central, chegando até a China e que durante algum tempo influenciaram os mongóis. Atualmente subsistem as igrejas nestorianas (conhecidas, de uma forma geral, como Igreja Assíria do Oriente) na Índia e no Iraque, Irã, China e nos Estados Unidos, além de alguns outros lugares onde haja migrado comunidades cristãs dos países citados. A Igreja Assíria do Oriente teve um papel fundamental na conservação de antigos textos gregos que foram traduzidos para o siríaco (um ramo do arameu). Mais tarde foram traduzidos para o árabe e no século XIII para o latim. Além da Igreja Assíria do Oriente, existem atualmente várias denominações cristãs que são também fortemente influenciadas pelo nestorianismo. Exemplos destas denominações, que foram fundadas muito após a igreja Assíria, são os anabatistas, os cristadelfianos e os rosacrucianos.

Em 451 com o Concílio de Calcedônia surgiram as igrejas não-calcedonianas – também conhecidas como antigas igrejas orientais. Elas surgiram por se recusarar a aceitar a doutrina das “duas naturezas de Cristo” (ou união hipostática), decretada pelo Concílio de Calcedônia e aceitada pelos católicos e ortodoxos. São acusadas de serem monofisita apesar de se recusarem a aceitar esta classificação se descrevendo como miafisitas. Isto porque as Igrejas não-calcedonianas também acham que o monofisismo é herético.

Para equilibrar as doutrinas antitéticas do monofisismo e da união hipostática (ambas também não aceitas pelos ortodoxos orientais), estas Igrejas defendem que em Jesus há a parte humana e a parte divina, mas que estas duas partes se unem para formar uma única e unificada Natureza de Cristo. Eles acreditam que uma união completa e natural das Naturezas Divina e Humana em uma só Natureza é autoevidente, de maneira a alcançar a salvação divina da humanidade, em oposição à crença na união hipostática (onde as Naturezas Humana e Divina não estão misturadas, porém também não estão separadas) promovida pelas atuais Igrejas Católica e Ortodoxa, esta crença defendida pelos não-calcedonianos chama-se miafisismo.

Atualmente, existem cerca de 79 milhões de ortodoxos não-calcedonianos que são organizados em seis Igrejas nacionais autocéfalas e em várias Igrejas autônomas associadas às Igrejas autocéfalas:

– Igreja Apostólica Armênia;
– Igreja Ortodoxa Síria;
– Igreja Ortodoxa Copta ou Alexandrina (egípcia ou etíope);
– Igreja Ortodoxa Etíope;
– Igreja Ortodoxa Indiana;
– Igreja Ortodoxa Eritréia

Apesar de serem autocéfalas, isto é, independentes umas das outras, estas Igrejas estão ainda em comunhão total entre si, partilhando as mesmas crenças e doutrinas cristãs.

No século XI acontece aquilo que ficou conhecido como o Grande Cisma do Oriente, que causou a separação entre a Igreja Católica Romana e a Igreja Católica Ortodoxa.

As tensões entre as duas igrejas datam no mínimo da divisão do Império Romano em oriental e ocidental e a transferência da capital da cidade de Roma para Constantinopla no século IV.

Uma diferença crescente de pontos de vista entre as duas igrejas foi causada pela ocupação do oeste pelos invasores bárbaros, enquanto o leste permaneceu herdeiro do mundo clássico. Enquanto a cultura ocidental se foi paulatinamente transformada pela influência de povos como os germanos, o Oriente permaneceu ligado à tradição da cristandade helenística. Era a chamada Igreja de tradição e rito grego. Isto foi exacerbado quando os papas passaram a apoiar o Sacro Império Romano no oeste, em detrimento do Império Bizantino no leste, especialmente no tempo de Carlos Magno. Havia também disputas doutrinárias e acordos sobre a natureza da autoridade papal.

A igreja de Constantinopla respeitou a posição de Roma como a capital original do império, além disso existia a oposição do Ocidente em relação ao cesaropapismo bizantino, isto é, a subordinação da igreja oriental a um chefe secular, como acontecia na igreja de Bizâncio.

Uma ruptura grave ocorreu de 456 a 867, tocada pelo patriarca Fócio que sabia que contribuía para aumentar o distanciamento entre gregos e latinos e usou a questão do filioque – uma expressão latina que significa “e do Filho”, que foi acrescentada pela igreja Católica Romana ao credo para explicitar que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho enquanto a Igreja Ortodoxa entende que o Espírito Santo procedeu apenas do Pai – como ponto de discórdia, condenando a sua inclusão no Credo da Cristandade ocidental e lançou contra ela a acusação de heresia. Além disso ela desconsidera a liderança papal.

Aqui vai uma lista das jurisdições que formam a igreja Ortodoxa:

– Patriarcado de Constantinopla
– Patriarcado de Alexandria
– Patriarcado de Antioquia
– Patriarcado de Jerusalém
– Patriarcado de Moscou
– Patriarcado da Geórgia
– Patriarcado da Sérvia
– Patriarcado da Roménia
– Patriarcado da Bulgária
– Igreja Ortodoxa de Chipre
– Igreja Ortodoxa Grega
– Igreja da Albânia
– Igreja da Sérvia
– Igreja Ortodoxa da Polónia
– Igreja das terras Checo-eslovacas
– Igreja Ortodoxa na América
– Igreja do Sinai
– Igreja da Finlândia
– Igreja da Ucrânia
– Igreja do Japão
– Igreja da China
– Igreja de Portugal

Já no século XVI acontece a Reforma Protestante, um movimento reformista cristão iniciado no século XVI por Martinho Lutero, que, através da publicação de suas 95 teses, protestou contra diversos pontos da doutrina da Igreja Católica, propondo uma reforma no catolicismo. Os princípios fundamentais da Reforma Protestante são conhecidos como os Cinco Solas:

1 – Sola fide: conhecida como Doutrina da justificação pela Fé, que afirma que é exclusivamente baseado na Graça de Deus, através somente da fé daquele que crê, por causa da obra redentora do Senhor Jesus Cristo, que são perdoadas as transgressões da Lei de Deus.

2 – Sola scriptura: significa “somente a escritura”, é o principio no qual a Bíblia tem primazia ante a Tradição legada pelo magistério quando os princípios doutrinários entre estas e aquelas forem conflitantes. Na Reforma, não se rejeita a Tradição, ela continua a ser usada como legitimadora para qualquer assunto omitido pela Bíblia.

3 – Solus Christus: a “salvação somente por Cristo”. Os protestantes caracterizavam os dogmas relativos ao Papa como representante de Cristo e chefe da Igreja sobre a terra, o conceito de mérito por obras e a idéia católica de um tesouro vindouro por causa das boas obras, como uma negação de que Cristo é o único mediador entre Deus e os homens.

4 – Sola gratia: “Somente a Graça”. A doutrina da salvação da Igreja Católica Romana seria uma mistura de confiança na graça de Deus e confiança no mérito de suas próprias obras, já a posição reformada é a de que a salvação é inteiramente condicionada a ação da graça de Deus, ou seja, só a graça através da regeneração unicamente promovida pelo Espírito Santo, em conjuto com a obra redentora de Jesus Cristo.

5 – Soli Deo gloria: “Glória somente a Deus”, é o princípio segundo o qual toda a glória é devida a Deus por si só, uma vez que salvação é efetuada exclusivamente através de sua vontade e ação. Não só o dom da expiação de Jesus na cruz, mas também o dom da fé, criada no coração do crente pelo Espírito Santo. Os reformadores acreditavam que os seres humanos – mesmo santos canonizados pela Igreja Católica Romana, os papas, e as autoridades eclesiástica – não eram dignos da glória que lhes foi atribuída.

Lutero foi apoiado por vários religiosos e governantes europeus provocando uma revolução religiosa, iniciada na Alemanha, e estendendo-se pela Suíça, França, Países Baixos, Reino Unido, Escandinávia e algumas partes do Leste europeu, principalmente os Países Bálticos e a Hungria. A resposta da Igreja Católica Romana foi o movimento conhecido como Contra-Reforma ou Reforma Católica, iniciada no Concílio de Trento.

O resultado da Reforma Protestante foi a divisão da chamada Igreja do Ocidente entre os católicos romanos e os reformados ou protestantes, originando o Protestantismo.

Foi por causa da reforma que surgiram outros grupos como:

– Os Anabatistas
– Pentecostais
– Adventistas
– Batistas
– Calvinistas
– Presbiterianos
– Congregacionalistas
– Puritanos Separatistas
– Metodistas
– Luteranos
– Pietistas
– Anglicanos

E cada uma com uma visão próprio da Mensagem de Deus e a meneira de utilizá-la. Por exemplo para os católicos a Bíblia é a fonte de fé, mas devia ser interpretada pelos padres da Igreja, a tradição Católica também é uma fonte de fé, assim como o Magistério da Igreja. Para os Calvinistas a Bíblia é a única fonte de fé e deve ser examinada por qualquer um livremente. Já para os Anglicanos a Bíblia é a fonte principal de fé mas deve ser interpretada pela Igreja (tradição) e então ela pode ser examinada livremente.

Além desses grupos principais cristãos durante a história surgiram outros grupos cristãos também:

Os Restauracionistas: que usam doutrinas surgidas após a Reforma Protestante cujas bases derrogam as de todas as outras tradições cristãs, basicamente tendo como ponto em comum apenas a crença em Jesus Cristo. A maioria deles não se considera propriamente “protestante” ou “evangélico” por possuirem grandes divergências teológicas. Nesta categoria estão enquadradas a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, a Igreja Adventista do Sétimo Dia e as Testemunhas de Jeová, entre outras denominações. Quanto às Testemunhas de Jeová, embora afirmem ser cristãs, também não se consideram parte do protestantismo. As Testemunhas aceitam a Jesus como criatura, de natureza divina, seu líder e resgatador, rejeitando, no entanto a crença na Trindade e ensinando que Cristo é o filho do único Deus, Jeová, não crendo que Jesus é Deus.

O Cristianismo esotérico: que é a parte mística do cristianismo, e compreende as escolas cristãs de mistérios e sincretismo religioso. A este ramo pertence o Gnosticismo que é uma crença com raízes anteriores ao próprio cristianismo e que tem características da ciência egípcia e da filosofia grega. O Rosacrucianismo também se enquadra nessa vertente sendo uma ciência oculta cristã que ressalta as boas ações por meio da fraternidade.

O Espiritismo: que algumas vezes é contestado como sendo uma vertente do cristianismo. Os espíritas não acreditam que uma pessoa ou ser, como Jesus Cristo, pode redimir “os pecados” de uma outra, contudo para a maior parte dos adeptos do espiritismo a obra de Allan Kardec constitui uma nova forma de cristianismo, ou então um resgate do cristianismo primitivo, que não inclui os dogmas adicionados pela Igreja Católica em seus diversos Concílios. Inclusive, um dos seus livros fundantes é denominado de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Esse livro apresenta uma reinterpretação de aspectos da filosofia e moral cristã, crendo em parte na Bíblia Sagrada.

O Rastafarianismo: também conhecido como movimento rastafári ou Rastafar-I (rastafarai) é um movimento religioso que surgiu na Jamaica entre a classe trabalhadora e camponeses negros em meados dos anos 20, iniciado por uma interpretação da profecia bíblica.

Como vimos cada um desses grupos, apesar de terem crenças cristãs em comum, possuem muitas divergências em crenças fundamentais, como a natureza de Cristo, o poder dado por Cristo a seus apóstolos, a fundação de uma igreja, etc… e isso acaba afetando a maneira como interpretam a Bíblia, os livros da Bíblia que são aceitos como realmente inspirados por Deus e a maneira como passam a Bíblia adiante.

E isso chega a afetar inclusive os textos de livros da Bíblia que são aceitos por todos. Para se ter idéia, alguns grupos acreditam que a Bíblia deveria ser não apenas passada a diante, mas ser atualizada com termos novos e atuais, um bom exemplo disso é a Bíblia Viva, editada no Brasil pela Editora Mundo Cristão. Ela foi considerada uma das traduções mais bem sucedidas do século XX pela revista Christianity Today. Kenneth N. Taylor ao invés de traduzir palavra por palavra resolveu traduzir “conceito por conceito”. Para ele não fazia sentido um texto como: “A criança de peito brincará sobre a toca da áspide e o já desmamado meterá a mão na cova do basilisco” e assim temos o trecho nesta Bíblia hoje como: “Criancinhas brincarão perto de cobras e não serão picadas, mesmo que enfiem a mão nas suas covas”.

Assim, mesmo a Vulgata de Jerônimo, que já buscava unificar os textos sagrados, acaba sendo traduzida e adaptada para termos correntes e locais, assim em 500 d.C. já haviam mais de 500 traduções diferentes. E lembre-se ainda das versões da Vetus Latina e da Septuaginta que surgiam e eram usadas.

Assim cada grupo novo que surgia não apenas encorajava mudanças nos textos aceitos – os católicos tem em sua versão da Bíblia os Deuterocanônicos, os protestantes não, os gnósticos usam os textos apócrifos, alguns grupos, mesmo Cristãos, rejeitam o Novo Testamento, outros rejeitam o antigo Testamento já que Cristo veio trazer uma nova aliança e a antiga não era mais necessária.

Para se ter uma idéia do quanto essas traduções afetaram a Bíblia, Thomas Linacre depois de ler os evangelhos em grego e os comparar com a versão da Vulgata em 1490, disse: “Ou isto (o texto grego original) não é o Evangelho… ou nós não somos cristãos”. Mostrando a corrupção das traduções para o Latim. De novo, isso não se devia exatamente a um plano da igreja de manipular a Bíblia, mas à maneira com que a Bíblia atravessava as eras. Quando os antigos copistas reproduziam os livros, reescreveendo-os integralmente à mão eles deixavam notas de rodapé sempre que percebiam que haviam cometido algum erro, principalmente no caso de terem omitido uma palavra ou mesmo uma linha do texto original. Quando escribas de um período posterior começavam a copiar essas cópias muitas vezes deixavam essas notas de rodapé de lado, não corrigiam o texto do livro (seria um pecado enorme um mero copista incluir em uma reprodução algum texto que não estivesse no original) e também deixavam de lado as notas que apontavam os erros que eram percebidos durante o processo de reprodução.

A primeira versão em inglês da Bíblia foi feita por John Wycliffe em 1380, ele era um professor de Oxford, um estudioso e teólogo. Wycliffe era conhecido também por se opor aos ensinamentos da igreja, os quais ele acreditava serem exatamente o oposto daqueles pregados pela Bíblia. Com a ajuda de seus seguidores, chamados de Lollardes, e de seu assitente Purvey, associados a inúmeros copistas ele conseguiu produzir dúzias do manuscrito em inglês. Eles foram traduzidos direto das Vulgatas em latim, que eram as únicas fontes da Bíblia disponíveis na época. O Papa ficou tão furioso com essa ousadia que 44 anos após a morte de Wycliffe mandou desenterrar seus ossos, esmagá-los, então moê-los para atirar o que restasse deles no rio.

Ainda no século XV surge uma versão Hussita da Bíblia e em 1478 uma versão em catalã escrita com o dialeto de Valência. Todas elas versões proibidas pela igreja católica.

Em 1496 John Colet decide traduzir partes do Novo Testamento do Grego para o inglês para repassá-las a seus alunos e mais tarde para os freqüentadores da Catedral de São Paulo em Londres. Nesta época as pessoas tinham tamanha ânsia em ouvir a Palavra do Senhor em sua língua nativa – já que eram muito poucos os que entendiam Latim – que em seis meses o público que entrava na Igreja para ouvir a missa ultrapassava as 20.000 pessoas e um número igual se acotovelava do lado de fora tentando entrar, comparando com os dias de hoje apenas 200 pessoas costumam estar na igreja presente para o culto e a grande maioria é composta por turistas.

Em 1516 a Froben Press publicou uma versão em grego do Novo Testamento editado por Desiderius Erasmus, que reconstruiu o texto grego recombinando vários manuscritos bizantinos com traduções do texto da Vulgata, do latim para o grego novamente, quando os textos que tinha em mãos não estavam completos. Essa sua versão da Bíblia possuiu 4 edições posteriores. A publicação de Erasmus foi a primeira versão das escrituras que não derivava da Vulgata que surgia em mil anos e a primeira tradução dos originais a ser impressa. Além disso o alerta dado por sua versão do Novo Testamento era o de o quanto a Vulgata havia se afastado dos textos originais e daí a importância de uma versão da Bíblia que fosse traduzida do hebraico original e do grego original.

Em 1530 surge a primeira versão francesa, traduzida por Lefèvre d´Étaples e publicada na Antuérpia. Em 1531 aparece a Bíblia Froschauer, conhecida também como a Bíblia de Zurique, traduzida por Huldrych Zwingli, contendo mais de 200 ilustrações (as traduções de porções de textos Bíblicos traduzidos para o alemão mais antigas existentes hoje datam dos anos 311 a 380, e foram feitas direto do grego).

Com a reforma protestante começaram a surgir as principais diferenças de tradução e de apresentação da Bíblia. Lutero e companhia já defendiam a livre consulta há pelo menos 60 anos. Mas vale uma ressalva aqui. Inicialmente a proposta não era que qualquer pessoa pegasse o livro e fundasse sua própria igreja, mas sim tirar o poder da interpretação como sendo uma exclusividade do sacerdócio católico e passá-la também ao clero alemão. A idéia era que a Bíblia poderia ser compreendida por qualquer pessoa com estudo e não apenas pelos membros do clero romano. Seis décadas foram mais do que o suficiente para o primado de Pedro se organizar na chamada Contra Reforma.

O jogo de poder agora estava entre o Papa e as monarquias nacionais. Cada país possuía seu próprio intelectual protestante que fazia a parte de autoridade erudita enquanto os seus respectivos reis acumulavam o poder político. A sociedade passou por grandes mudanças e o mesmo aconteceu com nosso livro sagrado. Em 1560 muitos destes líderes protestantes estavam refugiados na Suíça se escondendo dos olhares severos dos inquisidores. Juntos, criaram a primeira “Bíblia de Estudos” que serviria de modelo para quase todas as bíblias impressas posteriormente.

Bíblia de Genebra foi a primeira edição onde a hoje consagrada divisão em versículos foi usada. Foi um salto de gigante na evolução pedagógica da Bíblia pois permitiu uma notação de referências precisas de onde encontrar esta ou aquela passagem. A partir dai o sermão da montanha não estaria “em algum lugar do livro de Matheus” mas sim precisamente em Mt 5:1 ~ 7:29. Além disso a Bíblia de Genebra trouxe outras inovações importantes como suas incontáveis notas de rodapé contendo a visão protestante dos textos antigos e a primeira lista de referências cruzadas de que se tem notícia. Com estas ferramenta novas relações puderam ser feitas entre os vários livros já pertencentes ao Canon, e isso fortaleceu o protestantismo como movimento social. O resultado disso foram Bíblias onde a tradução fidedigna deu lugar a uma cristalização do cristianismo dominante de hoje. Diversas palavras que sequer poderiam ter sido usadas na época em que os livros foram escritos foram adicionadas ao livro sagrado: homossexualismo, espiritismo e médiuns são alguns dos exemplos.

Este novo movimento de reformulações da Bíblia, não apenas traduzindo-as para as línguas nativas dos diferentes países, mas também de buscar traduções mais coerentes e fiéis aos textos originais deu origem a inúmeras novos livros. Uma versão polonesa conhecida como Bíblia Brzeska é publicada em 1563.

Após a Bíblia de Genebra houve a necessidade de uma nova versão da Bíblia, que não atacasse de maneira tão veemente a igreja enquanto instituição e assim publicaram a Bíblia dos Bispos (Bishop’s Bible), que apesar de ter tido alguma aceitação, nunca foi páreo para a Bíblia de Geneva em termos de aceitação popular.

Em 1584 tanto o Novo quanto o Antigo Testamento foram traduzidos para o Esloveno pelo teólogo protestante Jurij Dalmatin, tornando os Eslovenos a décima segunda nação a ter uma Bíblia completa em sua própria língua.

Com essas versões em inglês da Bíblia, a própria Igreja Católica desistiu, em 1582, da regra de só haverem Bíblias em latim e assim deram início à preparação de uma versão oficial da Bíblia aprovada pela igreja católica em Inglês – a primeira tradução oficial das Escrituras Sagradas, um projeto compatível com a criação da Vulgata por Jerônimo mais de mil anos antes. Assim, tendo como base o texto corrupto em latim, eles criaram a versão que ficou conhecida como O Novo Testamento de Rhemes. Seguido pela Publicação do Antigo Testamento de Douay. A Bíblia resultante ficou conhecida como a versão Doway/Rhemes.

Em 1589 o Dr. William Fulke, de Cambridge, publicou o livro conhecido como a Refutação de Fulke, no qual colocava em colunas paralelas passagens da Bíblia dos Bispos e da Versão Rhemes, para mostrar como a Bíblia Católica continha textos cujas traduções estavam erradas, baseadas num latim que por si só já continha muitos erros.

Neste período morre a Rainha Elizabeth da Inglaterra e James I ocupa seu lugar no trono. O clero protestante então declara ao rei o seu desejo de uma nova tradução da Bíblia para substituir a Bíblia dos Bispos, impressa em 1568. Eles sabiam que a Bíblia de Geneva havia consquistado o povo inglês, mas queriam uma versão da Bíblia que fosse tão bem construida, com o mesmo cuidado e esmero, mas sem as notas de rodapé controversas – como as que afirmavam que o papa era o anticristo e outras semelhantes – ou seja, queriam uma bíblia para o povo com referências para as escrituras mas apenas com significados de palavras e um guia de referências cruzadas, nada que atacasse a igreja e seus membros.

Assim surge a Bíblia do Rei James, impressa pela primeira vez em 1611, que ficou conhecida como “a tradução para acabar com todas as traduções”. A Bíblia do Rei James levou mais de duas décadas para se tornar mais popular do que a versão da Bíblia de Genebra e isso se tornou algo que pode ser visto como uma das grandes ironias da história, já que muitas igrejas protestantes de hoje fazem uso da Bíblia do Rei James afirmando que ela é a única tradução dos textos sagrados para inglês considerada legítima, mas ela nem é uma tradução protestante! Ela foi impressa para competir com a Bíblia protestante, a Bíblia de Geneva, e foi encomendada e desenvolvida por autoridades que não gostavam dos Protestantes, que os perseguiam e matavam-nos, a Igreja Anglicana.

E a partir do século XVII os jesuítas se tornam responsáveis pela tradução da Palavra em inúmeras línguas do Novo Mundo.

Agora voltando os olhos para nossa língua, os primeiros registros de trechos da Bíblia para o portugês remontam ao final do século XIII, um trabalho creditado a Dom Dinis. Mas o principal responsável pela tradução de toda a Bíblia para o português foi João Ferreira de Almeida que iniciou o trabalho em 1644, quando contava com 16 anos, e prosseguiu até sua morte, em 1691, tendo traduzido todo o Novo Testamento e grande parte do Antigo Testamento, as partes que faltaram foram posteriormente traduzidas pelo pastor presbiteriano Jacob Akker, tendo sido publicada pela primeira vez em 1753 depois de alguns tropeços. Já no ano 2000 a Sociedade Bíblica Internacional editou O Livro, uma tradução dos dialetos europeus e foi concluída a Nova Versão Internacional.

Estes três trabalhos de tradução para o português ilustram bem como a revisão e constante tradução, mesmo que de uma fonte original podem criar diferenças básicas num texto, vejamos o exemplo do trecho João 3:16:

Tradução João Ferreira de Almeida
Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.

Tradução O Livro
Deus amou tanto o mundo que deu o seu único Filho para que todo aquele que nele crê não se perca espiritualmente, mas tenha a vida eterna.

Tradução NVI
Porque Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna.

Vale notar que tanto a tradução d’O Livro e da NVI foram realizadas pela mesma editora, a International Bible Society.

Outro exemplo é a versão da Bíblia das Testemunhas de Jeová, onde quase todas as palavras que se referem a Deus como Senhor, Deus, Criador, Pai, etc, foram substituídas pelo nome Jeová, foram mais de 7000 alterações no texto. A idéia é mostrar que se existem 7000 menções ao nome Jeová este é realmente o nome de Deus. O problema é que nos textos originais da Bíblia esse nome não aparece uma única vez, ele seria uma adaptação da palavra JHVH que surge na Tanakh, essa mesma palavra que quando provida de vogais também orgina outros nomes como Javé, Iavé, etc. Nem é preciso dizer que essa mudança é considerada por muitos como uma mutilação da Palavra de Deus, mas para os Testemunhas essa mudança é o texto correto e o aceito.

Assim podemos ver que de fato não existe uma versão aceita universal, uma tradução “correta” ou um concenso geral. Em determinadas épocas surgiam aqueles que pegavam para si o trabalho de traduzir, adaptar ou reorganizar os textos, e muitos desses trabalhos eram clandestinos e depois aceitos pelo público geral, por esse motivo acabaram se criando versões muito sólidas e muito difundidas, mas diferentes entre si.

22 – Mas então a Palavra de Deus é um samba do crioulo doido! Não é mais simples voltarem aos textos mais antigos e originais e tentarem chegar a um concenso, para que a Palavra seja universal e haja uma única Bíblia como os judeus e os cristãos originais queriam?

Veja, ai esbarramos no problema da Fé e da Crença. É indiscutível que todas essas pessoas citadas acima acreditavam e acreditam em Deus. Desde Judeus até Rastafaris, passando por Mórmons, Espíritas e muitos outros. E por mais cínicos que tentemos ser não podemos afirmar que todos os que se envolvem com a Bíblia apenas querem enriquecer e controlar as massas. Mas a coisa complica quando uma crença específica acha que a maneira dela é a única correta, a única verdade que leva a este Deus.

Hoje achamos que as inquisições caçavam bruxos e feiticeiras e que as guerras religiosas buscavam os pagãos e pessoas que cuspiam na cruz. Mas isto não é verdade, não completamente. Essa máquina de busca, apreensão e destruição era o resultado de diferentes grupos cristãos brigando entre si. Se um grupo achava que Cristo era um profeta, mas não era Deus encarnado, o pessoal que acreditava na história do Deus encarnado se ofendia e ia tirar satisfações. Invariavelmente o grupo mais forte falava mais alto e para se manter no caminho daquilo que julgavam ser a verdade estavam dispostos a exterminar quem julgassem estar trazendo a discórdia e a mentira para o próprio meio. Grupos Cristãos que tinham uma visão diferente do grupo principal e eram mais fracos (tinham menor número de seguidores e menos recursos para atacar ou se defender) eram chamados de hereges, recebiam a chance de abrir mão da própria crença e adotar uma nova. A maioria nem sonhava com isso, já que o Cristianismo ainda tem o diferencial de atrair pessoas com um gosto para se tornarem mártires, acreditando que morrer pela própria fé apenas consolida esta fé como sendo a mais real de todas. E assim grupos cristãos inteiros foram erradicados por outros grupos cristãos. Este é mais ou menos o resumo da história para a formação do que na Idade Média se tornou o Cristianismo aceito, ou heterogêneo e que depois com a reforma e as divisões da igreja voltou a ser um cristianismo plural.

E até hoje existe uma rixa acirrada entre os grupos existentes. Protestantes chutam santas católicas. Anglicanos criticam protestantes mas dizem que os católicos exageram na sua vontade de dominar o mundo. Católicos dizem que todos tem boa vontade mas estão errados. E no fundo o que parece é que se esquecem do Deus em que acreditam para discutir quem tem o melhor carro e o mapa correto para chegar no Paraíso.

E isso cria um impasse. Um grupo já com tradição não vai ceder sua crença para aceitar uma nova corrigida é o mesmo que assumir que por tanto tempo ele esteve meio que no caminho errado. E um católico dificilmente aceitaria se colocar no mesmo nível de um Testemunha de Jeová (seja lá qual for esse nível, se é que ele existe) e um protestante diria que só aceitaria uma mesma crença se os católicos parassem com essa besteira de Papa e de Santos e Nossa Senhora.

Assim dificilmente surgiria uma versão nova e original aceita por todos, ironicamente, talvez, uma versão assim seria aceita mais por céticos, estudiosos e simpatizantes do que pelos religiosos.

E isso porque não falamos de outro ponto interessante que dificulta a criação de uma versão única do texto.

Quando falamos em Jesuítas desbravando o mundo e levando a palavra de Cristo, muitos imaginam caravelas, índios e negros contrabandeados, fogueiras e colonizadores. Mas a verdade é que o processo de cristianização está a pleno vapor hoje em dia e parece que cada grupo cristão aceitou o desafio não apenas de levar a Palavra de Deus para todos, mas de levar a sua própria versão da Palavra de Deus.

Vejamos três exemplo que fogem da imagem que temos dos principais grupos cristãos – católicos e protestantes.

As Testemunhas de Jeová possuem adeptos em mais de 236 países e territórios autônomos, com mais de sete milhões e trezentos mil participantes. Segundo o anuário das Testemunhas de jeová de 2010 nos últimos dez anos mais de dois milhões e setecentos mil pessoas foram batizadas nesta crença em particular, uma média de cinco mil pessoas por dia. Além dessas pessoas, atire a primeira pedra aquele que nunca acordou num domingo de manhã com uma dupla de terno tocando a campainha com uma bíblia debaixo do braço, ou pelo menos que não conhece alguém que passou por isso.

E todas essas pessoas, junto com os simpatizantes da crença – que em 2009 foram contabilizados na casa dos dezoito milhões de pessoas – acabam aceitando a versão das Testemunhas da Bíblia.

Além deles existe uma organização, formada em 1899, conhecida como Gideons International (os Gideões Internacionais) que decidiram distribuir a Palavra para o mundo todo, para que todos tivessem acesso, a ideia original foi a de traduzir a bíblia para 80 línguas e atingir pelo menos 190 países, muitos deles já possuíam a bíblia em sua língua nativa, mas mesmo assim se fizeram novas traduções para se distribuir. Assim os Gideões começaram a distribuir bíblias de graça e com isso conseguiram, por exemplo, que nos Estados Unidos cada quarto de hotel ou motel tivesse uma bíblia em seu criado mudo – as pessoas que já assistiram Missão Impossível com Tom Cruise devem se lembrar do momento em que ele precisa de uma bíblia e simplesmente abre uma gaveta e lá está ela. Além disso eles tem o trabalho de distribuir suas versões da Bíblia em hospitais, asilos, prisões, exército e em escolas – que ironicamente são lugares onde as pessoas em sua maioria preferiam não estar.

Até o ano de 2007 mais de um bilhão e quintentos milhões de Biblías haviam sido distribuídas por eles. Cada uma, a versão dos Gideões do texto sagrado, antigamente a tradução da Bíblia do Rei James e hoje em dia a tradução da Nova Bíblia do Rei James.

Outro grupo são os Mórmons, também cohecidos como a Igreja de Jesus Cristo dos Últimos Dias, que surgiram na década de 1830. Em 2007 a igreja registrou o número de treze milhões e quinhentos mil de mebros ao redor do mundo, com mais de um milhão aqui no Brasil. Os Mórmons além da Bíblia seguem o livro conhecido como “O Livro de Mórmon, um outro testamento de Jesus Cristo”, que segundo a igreja, é um volume de escrituras sagradas com um propósito semelhante ao da Bíblia e da teologia e é considerado por seus membros como a pedra fundamental de sua religião. É uma história de comunicação de Deus com os antigos habitantes das Américas. A história começa 600 anos a.C, quando Deus ordenou que um profeta chamado Leí deixasse Jerusalém com sua família e rumassem todos para uma terra da Promessa: As Américas. Depois de Leí, o Senhor chamou outros profetas, como Néfi, Mosias, Helamã, entre outros. Mórmon foi um desses profetas.

A religião cresce e também há pregação, como os Testemunhas de Jeová.

Assim temos grupos espalhando milhões de versões da Palavra por ano, e isso cria um quadro onde de um lado existem pessoas já familiarizadas com a Bíblia – ou ao menos a versão aceita por sua crença – e de outro pessoas que não estão tão familiarizadas com a bíblia. E a base que a grande maioria das pessoas que entram em contato com todos esses evangelistas e catequisadores tem é de que:

1- Existe um Deus.

2- Essas pessoas estão distribuindo a Bíblia, que é a Palavra de Deus.

Dificilmente saberiam que aquela é uma das versões e que existem outras, muitas vezes com textos muito diferentes e significados que chegam a ser opostos uns aos outros.

Desta forma não só é dificil a aceitação de uma Biblia única como a cada dia mais e mais versões diferentes são divulgadas e com a sinceridade daquele que a distribui de ser a única Palavra correta.

E ainda existe uma questão interessante aqui: e quem pode julgar que versão está correta ou não? Da mesma forma que Deus e o Espírito Santo divulgaram a Palavra a primeira vez, como julgar que diferentes versões não foram inspiradas pela mesma fonte? Deus descansou no sétimo dia ou se aposentou da empresa que Ele criou e caiu fora dela? É difícil afirmar, se é que não é impossível. Assim se acreditamos que a Bíblia é de fato a Palavra, como podemos julgar qual delas é a correta ou mesmo se alguma delas pode ser apontada como uma versão errada?

23 – E essa loucura não vai acabar?

Vejamos. Por um lado temos cada dia mais acesso a informações que deveriam servir como base para corrigir erros históricos das coisas, a Bíblia seria uma delas. Com o material que existe hoje, desde os famosos textos do Mar Morto a grupos de arqueologia bíblica, deveriam haver meios de tornar a Bíblia em si mais factível, mais alinhada com fatos que já foram comprovados. Mas de novo isso provavelmente interessaria apenas a estudiosos e curiosos. Existem hoje cristãos que apresentam uma curiosidade digna da afirmação de Cristo: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” Mesmo assim são indivíduos e grupos pequenos, não tem o tamanho ou a influência necessária para se cria ruma nova versão das Escrituras ou talvez nem tenham a vontade de mudar as escrituras, apenas aprender os novos fatos.

Por outro lado cristãos e judeus tem um histórico de quando mais apanharem em nome da própria crença parece que mais certeza eles tem de estarem no caminho certo, então negar mesmo as evidências pode dar um ar de “não importam o que digam, minha crença é tão correta que eu não abro mão dela nem para o que aparenta ser o bom senso”.

Então não dá para dizer exatamente se essa zona vai continuar ou se a tendência é que todas essas pessoas comecem a buscar não apenas um livro impresso, mas a verdade comprovada por trás deste livro. Como dissemos no começo deste texto, originalmente o objetivo da Bíblia era que as pessoas se mantivessem fieis a Deus e seus Mandamentos e Leis, mas com o tempo a Bíblia se tornou um rótulo e hoje esse rótulo é defendido com unhas e dentes.

Mas acreditamos ser possível supor algumas probabilidades sobre o que seria o futuro da Bíblia.

Como vimos os grupos principais de Cristãos ainda esperam a segunda vinda de Cristo, alguns grupos não tão famosos acreditam que ele já voltou e existem aqueles que não acreditam que ele voltará. Assim, mesmo que existam por ai livros de novos profetas e novas palavras da segunda vinda de Cristo, no mainstream os profetas estão quietos há milênios e o Messias não retornou.

Umas das possibilidades é que surjam novos grupos cristãos e novas versões da Bíblia. Existem sempre aqueles que buscam os textos o mais próximos do original o possível. Bíblias multilingues com os originais em hebraico e grego são populares, o problema óbvio disso é que dificilmente a grande parte dos religiosos tem acesso a essas línguas e isso torna essas bíblias curiosidades. Existem versões ainda com quatro linguas e cinco linguas. Hebraico, Grego, Latim (inglês) e português. Mas de novo a grande maioria acaba contando apenas com a coluna em português (ou na sua língua natal) para ler o texto, já que hebraico e grego não possuem nem mesmo as mesmas letras que o alfabeto latino.

A tendência é que essas Bíblias acabem se aperfeiçoando trazendo pequenos glossários para tirar a dúvida de termos ambiguos ou mesmo apontando a direção certa em termos culturais e históricos de quando os textos foram escritos. Mas essas edições costumam ser caras, não dá para apostar que se tornem populares comparadas as bíblias distribuídas de graça.

Então a questão não se foca tanto na acuidade do texto em si, mas na popularidade daqueles que divulgam tais textos e na acessibilidade que eles tem, quanto mais baratos melhor, se estiverem disponíveis de graça, Amém. Existe a chance de surgirem grupos cristãos que tentem se aproximar mais das formas primitivas e originais dos textos e então trazê-los para o presente, mas eles só se tornariam maioria caso sua popularidade fosse maior do que a dos cristãos “concorrentes”. Então o futuro da Bíblia estaria ligado de novo a mensageiros e não à Palavra em si.

A internet talvez ajude a popularizar para um grupo grande novas versões e uma outra possibilidade é o surgimento de “meta” bíblias, ou seja, textos que sejam interpretados por indivíduos não ligados à igreja e assim vários interessados podem julgar que textos teriam mais coerência, mas de novo isso fugiria a uma unidade e acabaria estando preso à erudição de cada pessoa que poderia julgar que mesmo que tal versão fosse de alguém famoso ela tem passagens estranhas que são melhores ser deixadas de lado.

Talvez uma resposta que apontasse a uma direção certa seria a que o movimento Jesus Freak prega em seu manifesto, uma forma de cristianismo não presa em palavras, mas no exemplo deixado por Cristo, claro que isso não afetaria muito a Bíblia e suas variantes, apenas a relação de cada um com o texto.

Manifesto Jesus Freak

1 – Nós propomos que, seguindo o exemplo de Jesus Cristo, não nos deixemos limitar pela religião. Os primeiros inimigos de Cristo foram os altos sacerdotes do Templo. O primeiro amigo de Cristo foi um louco que gritava no deserto.

2 – Nós propomos que as Escrituras são a mais alta autoridade cristã. Portanto devemos nos esforçar para compreendê-las muito mais do que nos esforçamos para aceitar a forma que nossos ancestrais a compreenderam. O mundo dos homens muda a cada instante. O mundo de Deus permanece o mesmo para sempre.

3 – Nós propomos que cada cristão tenha o mesmo credo essencial de Paulo de Tarso, Francisco de Assis, Martinho Lutero, William J. Seymour, Martin Luther King e ainda assim sejam livres para expressar sua fé de sua própria maneira especial, assim como o fez cada um destes cinco homens.

4 – Nós propomos que ninguém tem o direito de dizer quem que uma pessoa não será salva em Cristo, uma vez que a hora cabe ao Pai e a salvação cabe ao Filho. Assim, ainda que o próximo viva em escândalo você não deve se escandalizar.

5 – Nós propomos que os livros de orações sejam deixados de lado por um tempo. Talvez seja difícil usufruir de nossa liberdade de expressão em um primeiro momento, mas seremos recompensados com uma relação mais intima e próxima com Deus. Por muito tempo temos usado de maneira pobre o nosso missal. É hora de orarmos mais e irmos menos à missa.

6 – Nós propomos que devemos nos preservar um pouco dos hinários e livros de salmos. Eles são lindíssimos, mas nossa mente precisa respirar e perceber que está vivendo em uma época nova e radiante. Devemos compor novas músicas com novas letras, que sejam atuais e de acordo com nossa época. Não existe nenhum problema em cantar as glórias antigas, mas há uma infinidade de glórias novas aguardando e clamando para serem cantadas.

7 – Nós propomos nos libertarmos da arquitetura do passado criando novos espaços para nossos cultos. Derrubemos as igrejas e templos para não haver mais a separação entre irmãs e irmãos, entre crentes e ateus, entre humanos e resto da criação. Chamemos de volta a todo aquele que expulsamos de nossas igrejas: os infieis e os piores pecadores! A Casa de Deus não é uma casa de desespero. Chamemos todos de volta, ainda que continuem pecando para sempre.

8 – Nós propomos que descubramos como os avanços tecnológicos de nossa época podem ser usados para a glória de Deus. “Frutificai e multiplicai-vos” nunca foi um desejo ligado única e exclusivamente ao sexo. “Eis que saiu o semeador a semear” nunca foi restrito as praças públicas. Deus nos presenteou com tecnologias que nossos antepassados sequer sonharam poder existir. Está na hora de aceitarmos essa graça e fazer bom uso dela. Vamos organizar oficinas e mostrar como a arte e a ciência podem fazer parte de nossas festas e nossos exercicios de contemplação.

9 – Nós propomos o uso do intercâmbio cultural para enriquecer nossa literatura litúrgica com materiais até então ignorados por nossos cultos tradicionais. Há uma abundância de sabedoria e beleza nos textos considerados apócrifos pela igreja medieval, nas escrituras sagradas de outras crenças e mesmo na poesia secular que podem e devem ser usados em nossa liturgia para atingirmos um propósito estético superior ao atual.

10 – Nós propomos que em um mundo dominado pela mídia onde o uso da imagem supera o do texto, os cristãos devam fazer uso das figuras mais fortes, corajosas e chocantes possíveis. O cinema, a televisão e mesmo intervenções urbanas devem ser usados. Não há lógica em mostrar o caminho, a verdade e a vida usando imagens piegas, meia luz e baixa resolução.

Notas:

[1] Abrahâmico faz referência a crenças que se originaram da revelação divina de Abrahão como o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo.
[2] Aqui Igreja tem a conotação de igreja primitiva, uma igreja não organizada, eram grupos de pessoas que seguiam a mesma crença mas sem uma instituição formada ainda.

Por Rev. Obito para o movimento Jesus Freak


Sentindo-se freak? Conheça Jesus Freak: o Guia de Campo para o Pecador Pós-Moderno


 

Postagem original feita no https://mortesubita.net/jesus-freaks/a-evolucao-da-biblia-da-boca-de-deus-ate-as-cabeceiras-dos-moteis/

A história da Kimbanda

Em terras bantas, muito antes de chegada do branco, já existia o culto aos ancestrais (chamados depois no Brasil “guias”). Também era conhecida a palavra “mbanda” (umbanda) significando “a arte de curar” ou “o culto pelo qual o sacerdote curava”, sendo que mbanda quer dizer “O Além – onde moram os espíritos”. Os sacerdotes da umbanda eram conhecidos como “kimbandas” (ki-mbanda = comunicador com o Além).

Quando chegam os portugueses e têm contato com os reinos bantos, procuram comerciar com eles de um jeito pacífico. Mais tarde, o Rei do Kongo (manikongo) descendente do primeiro ancestral kongo divinizado o “Tatá Akongo” converte-se ao catolicismo, também fazem o mesmo todos os seus vassalos. Pôde-se apreciar então, que os negros bantos eram evangelizados ainda na África, por vontade própria, fazendo eles mesmos, em sua terra, sincretismos entre Santos e Nkisis.

Porém, uma parte banta não aceitou, nem adotou a evangelização, então tramaram uma revolução contra do rei do Congo para se mostrarem opostos ao homem branco e os Santos, começaram a dizer que eram do Diabo. Esses povos bantos eram os Bagandas, Balundas e Balubas.

Depois de um tempo os Bagandas em revolta conquistaram a região de Angola e logo após quase todo o reino congo (que era formado por vários reinos vassalos). Um dos reis Bagandas foi Ngola Mbandi, de onde provém o nome de Angola. Esses revolucionários estavam apoiados pelos grandes feiticeiros e guardiões das tradições bantas. Sua bandeira era formada pelas cores da tribo dominante: vermelho e preto (muito depois seriam as cores de Angola). Os Luba-Lunda, que ajudavam na guerra em contra os brancos e os reinos congos evangelizados usavam na bandeira as cores vermelha, preta e branca.

Devemos também dizer que depois de muito tempo de paz entre portugueses e congos, um dos descendentes do Rei do Congo para não perder o reino, decidiu se unir ao pensamento das outras tribos, pegando novamente seu nome africano e declarando a guerra contra os portugueses, aliando-se com o resto dos povos bantos.

Os portugueses por seu lado, levaram-se milhares de escravos bantos para o Brasil, e entre eles se encontravam partidários dos dois grupos bantos: os evangelizados e os defensores das tradições. Este último grupo, já no Brasil, continuou em estado de revolta, contrário a tudo que vinha do branco, e também em parte “inimigo” dos escravos feiticeiros que sincretizavam os Nkisis com os Santos.

Kimbanda no Brasil

No período da escravidão, os bantos dos dois grupos (revolucionários e evangelizados) fazem contato com os grupos tupi-guaranis, sendo que também entre os índios, havia dois grupos com afinidade aos grupos bantos: índios bruxos que não aceitavam os santos (se identificando com o diabo) e os índios evangelizados que gostavam da idéia do sincretismo dos santos. Esses grupos se uniram para fazer suas magias em separado, quer dizer, os negros bantos contrários ao branco e aos santos com os índios bruxos; e os negros bantos evangelizados com os índios evangelizados.

Daí o surgimento de duas correntes paralelas e opostas que seriam conhecidas no Brasil como Umbanda – o culto dos caboclos e pretos evangelizados; e a Kimbanda – o culto dos caboclos e pretos que não aceitaram viver em baixo do pé do Deus dos brancos, se aliando ao Diabo (inimigo do branco) e com Exu (aquele que também era olhado como um demônio).

Aliás, temos dizer que, com o passar do tempo, quando morrem os escravos dos dois grupos, estes são chamados e incorporados através de transe por seus descendentes, a princípio na Macumba e logo depois na Umbanda. Porém, os espíritos chegavam todos num mesmo terreiro sem tanta diferenciação e até confundindo os grupos. O que os descendentes de escravos menos queriam era de serem chamados de satanistas ou macumbeiros, por isso colocaram aos grupos revoltosos em baixo do pé dos grupos evangelizados e a Kimbanda ficou sendo uma sub-linha da Umbanda. Porém os próprios Espíritos se encarregaram de fazer a separação e hoje em dia podemos dizer sem dúvida que existem duas religiões paralelas e diferentes: a Umbanda – aonde chegam os Espíritos Guias dos Pretos e Caboclos evangelizados, vestidos de branco, humildes, que acreditam nos santos e os orixás, onde não se fazem sacrifícios de animais, que não fazem o mal, etc, e a Kimbanda – aonde chegam os Espíritos Guias dos Pretos e Caboclos que trabalham para bem ou mal, com sacrifícios de animais, luxo, orgulho, revolução e que não acreditam nos Santos da Igreja, defensores de tudo o que seja africanismo, e aceitam os Orixás e Nkisis.

Cabe dizer, que os seguidores dos distintos ramos da umbanda, adotam e adaptam as duas linhas (umbanda-kimbanda) segundo os preceitos e as influências majoritárias da sua Casa de Religião. Por exemplo, aqueles que fazem Umbanda Branca (sem sangue) colocam a kimbanda em baixo da mesma e continuam sem praticar sacrifícios de sangue para os Exus. Aqueles que fazem culto aos Orixás iorubás e também praticam a Umbanda, dadas às influências iorubanas, olham na Umbanda como na Kimbanda um culto aos ancestrais (ou Linha de Almas) submetidos aos Orixás, fazendo para os ancestrais rituais de sacrifícios (princípio fundamental dessa cultura).

Hoje em dia podemos dizer que a Kimbanda se libertou da Umbanda, existindo um culto separado só para Exu da Kimbanda e fora do contexto umbandista.

[…] Postagem original feita no https://mortesubita.net/cultos-afros/a-historia-da-kimbanda/ […]

Postagem original feita no https://mortesubita.net/cultos-afros/a-historia-da-kimbanda/

A Chave dos Grandes Mistérios

Eliphas Levi

A Chave dos Grandes Mistérios De acordo com Henoch, Abraão, Hermes Trismegisto e Salomão

Eliphas Levi

 

Chave absoluta das ciências ocultas dada por
Guilherme de Postel e completado por Eliphas Levi.

A religião diz: Acreditai e compreendereis. A ciência vem vos dizer: Compreendei e acreditareis. “Então, toda a ciência mudará de fisionomia; o espírito, por muito tempo destronado e esquecido, retomará seu lugar; será demonstrado que as tradições antigas são inteiramente verdadeiras; que o paganismo não passa de um sistema de verdades corrompidas e deslocadas; que basta limpá-las, por assim dizer, e recolocá-las em seu lugar, para vê-las brilhar com todo o esplendor. Em uma palavra, todas as idéias mudarão; e, uma vez que, de todos os lados, uma multidão de eleitos clama em concerto: “Vinde, Senhor, vinde!”, por que reprovaríeis os homens que se lançam nesse futuro majestoso e se glorificam de adivinhá-lo?”

Joseph de Maistre,

Soirées de Saint-Pétersbourg

PREFÁCIO

Os espíritos humanos têm a vertigem do mistério. O mistério é o abismo que atrai, sem cessar, nossa curiosidade inquieta por suas formidáveis profundezas.

O maior mistério do infinito é a existência de Aquele para quem e somente para Ele – tudo é sem mistério.

Compreendendo o infinito, que é essencialmente incompreensível, ele próprio é o mistério infinito e externamente insondável, ou seja, ele é, ao que tudo indica, esse absurdo por excelência, em que acreditava Tertuliano.

Necessariamente absurdo, uma vez que a razão deve renunciar para sempre a atingi-lo; necessariamente crível, uma vez que a ciência e a razão, longe de demonstrar que ele não é, são fatalmente levadas a deixar acreditar que ele é, e elas próprias a adorá-lo de olhos fechados.

É que esse absurdo é a fonte infinita da razão, a luz brota eternamente das trevas eternas, a ciência, essa Babel do espírito, pode torcer e sobrepor suas espirais subindo sempre; ela poderá fazer oscilar a Terra, nunca tocará o céu.

Deus é o que aprenderemos eternamente a conhecer. É, por conseguinte, o que nunca saberemos.

O domínio do mistério é um campo aberto às conquistas da inteligência. Pode-se andar nele com audácia, nunca se reduzirá sua extensão, mudar-se-á somente de horizontes. Todo saber é o sonho do impossível, mas ai de quem não ousa aprender tudo e não sabe que, para saber alguma coisa, é preciso resignar-se-a estudar sempre!

Dizem que para bem aprender é preciso esquecer várias vezes. O mundo seguiu esse método. Tudo o que se questiona em nossos dias havia sido resolvido pelos antigos; anteriores a nossos anais, suas soluções escritas em hieróglifos não tinham mais sentido para nós; um homem reencontrou sua chave, abriu as necrópoles da ciência antiga e deu a seu século todo um mundo de teoremas esquecidos, de sínteses simples e sublimes como a natureza, irradiando sempre unidade e multiplicando-se como números, com proporções tão exatas quanto o conhecimento demonstra e revela o desconhecido. Compreender essa ciência é ver Deus. O autor deste livro, ao terminar sua obra, acreditará tê-lo demonstrado.

Depois, quando tiverdes visto Deus, o hierofante vos dirá: Virai-vos e, na sombra que projetais na presença desse sol das inteligências, ele fará aparecer o Diabo, o fantasma negro que vedes quando não olhais para Deus e quando acreditais ter preenchido o céu com vossa sombra, porque os vapores da terra parecem tê-la feito crescer ao subir.

Pôr de acordo, na ordem religiosa, a ciência com a revelação e a razão com a fé, demonstrar em filosofia os princípios absolutos que conciliam todas as antinomias, revelar enfim o equilíbrio universal das forças naturais, tal é a tripla finalidade desta obra, que será, por conseguinte, dividida em três partes.

Mostraremos a verdadeira religião com caracteres tais que ninguém, crente ou não, poderá desconhecê-la, será o absoluto em matéria de religião. Estabeleceremos, em filosofia, os caracteres imutáveis dessa verdade, que é, em ciência, realidade, em julgamento, razão e, em moral, justiça. Enfim, faremos conhecer estas leis da natureza cujo equilíbrio é o sustento e mostraremos o quanto são vãs as fantasias de nossa imaginação diante das realidades fecundas do movimento e da vida. Convidaremos também os grandes poetas do futuro para refazerem a divina comédia, não mais de acordo com os sonhos do homem, mas segundo as matemáticas de Deus.

Mistério dos outros mundos, forças ocultas, revelações estranhas, doenças misteriosas, faculdades excepcionais, espíritos, aparições, paradoxos mágicos, arcanos herméticos, diremos tudo e explicaremos tudo. Quem pois nos deu esse poder? Não tememos revelá-lo a nossos leitores.

Existe um alfabeto oculto e sagrado que os hebreus atribuem a Henoch, os egípcios a Tot ou a Mercúrio Trismegisto, os gregos a Cadmo e a Palamédio. Esse alfabeto, conhecido pelos pitagóricos, compõe-se de idéias absolutas ligadas a signos e a números e realiza, por suas combinações, as matemáticas do pensamento. Salomão havia representado esse alfabeto por setenta e dois nomes escritos em trinta e seis talismãs e é o que os iniciados do Oriente denominam ainda de as pequenas chaves ou clavículas de Salomão. Essas chaves são descritas e seu uso é explicado num livro cujo dogma tradicional remonta ao patriarca Abraão, é o Sepher Yétsirah, e, com a inteligência do Sepher Yétsirah, penetra-se o sentido oculto do Zohar, o grande livro dogmático da Cabala dos hebreus. As clavículas de Salomão, esquecidas com o tempo e que se dizia estarem perdidas, nós as encontramos, e abrimos sem dificuldade todas as portas dos antigos santuários, onde a verdade absoluta parecia dormir, sempre jovem e sempre bela, como aquela princesa de um conto infantil que espera durante um século de sono o esposo que deve despertá-la.

Depois de nosso livro, ainda haverá mistérios, mas mais alto e mais longe nas profundezas infinitas. Esta publicação é uma luz ou uma loucura, uma mistificação ou um monumento. Lede, refleti e julgai.

Primeira Parte

Mistérios Religiosos

Problemas a resolver

I. Demonstrar de uma maneira certa e absoluta a existência de um Deus e dela dar uma idéia satisfatória para todos os espíritos.

II. Estabelecer a existência de uma verdadeira religião de maneira a torná-la incontestável.

III. Indicar o alcance e a razão de ser de todos os mistérios da religião única, verdadeira e universal.

IV. Transformar as objeções da filosofia em argumentos favoráveis à verdadeira religião.

V. Traçar o limite entre a religião e a superstição e dar a razão dos milagres e dos prodígios.

Considerações preliminares

Quando o conde Joseph de Maistre, este grande lógico apaixonado, disse com desespero: O mundo está sem religião, assemelhou-se àqueles que dizem temerariamente: Deus não existe.

O mundo, com efeito, está sem a religião do conde Joseph de Maistre, assim como é provável que Deus, tal qual o concebe a maioria dos ateus, não exista.

A religião é uma idéia apoiada num fato constante e universal; a humanidade é religiosa: a palavra religião tem, portanto, um sentido necessário e absoluto. A própria natureza consagra a idéia que representa essa palavra e a eleva à altura de um princípio.

A necessidade de crer liga-se estreitamente à necessidade de amar: é por isso que as almas têm necessidade de comungar com as mesmas esperanças e com o mesmo amor. As crenças isoladas não passam de dúvidas: é o laço da confiança mútua que faz a religião ao criar a fé.

A fé não se inventa, não se impõe, não se estabelece por convicção política; manifesta-se, como a vida, com uma espécie de fatalidade. O mesmo poder que dirige os fenômenos da natureza estende e limita, além de todas as previsões humanas, o domínio sobrenatural da fé. Não se imaginam as revelações, elas se impõem, e nelas se crê. Por mais que o espírito proteste contra as obscuridades do dogma, está subjugado pela atração dessas mesmas obscuridades, e freqüentemente o mais indócil dos pensadores coraria em aceitar o título de homem sem religião.

A religião ocupa um espaço bem maior entre as realidades da vida do que pretendem crer aqueles que dispensam a religião ou que têm a pretensão de dispensá-la. Tudo o que eleva o homem acima do animal, o amor moral, a abnegação, a honra são sentimentos essencialmente religiosos. O culto da pátria e do lar, a religião do juramento e das lembranças são coisas que a humanidade jamais abjurará sem se degradar completamente, e que não saberiam existir sem a crença em alguma coisa maior do que a vida mortal, com todas as suas vissicitudes, suas ignorâncias e suas misérias.

Se a perda eterna no nada tivesse de ser o resultado de todas as nossas aspirações às coisas sublimes que sentimos serem eternas, a fruição do presente, o esquecimento do passado e a displicência para com o futuro seriam nossos únicos deveres, e seria rigorosamente verdadeiro dizer, com um sofista célebre, que o homem que pensa é um animal degradado.

Por isso, de todas as paixões humanas, a paixão religiosa é a mais poderosa e a mais vivaz. Produz-se seja pela afirmação seja pela negação, com igual fanatismo, uns afirmando com obstinação o deus que fizeram à sua imagem, outros negando Deus com temeridade, como se tivessem podido compreender e devastar por um único pensamento todo o infinito que está ligado a seu grande nome.

Os filósofos não refletiram suficientemente sobre o fato fisiológico da religião na humanidade: a religião, com efeito, existe além de toda discussão dogmática. É uma faculdade da alma humana, da mesma forma que a inteligência e o amor. Enquanto houver homens, a religião existirá. Considerada assim, ela não é outra coisa que a necessidade de um idealismo infinito, necessidade que justifica todas as aspirações ao progresso, que inspira todas as abnegações, que sozinha impede a virtude e a honra de serem unicamente palavras que servem para iludir a vaidade dos fracos e dos tolos em proveito dos fortes e dos hábeis.

É a essa necessidade inata de crença que se poderia dar o nome de religião natural, e tudo o que tende a diminuir e limitar o impulso dessa crença está, na ordem religiosa, em oposição à natureza. A essência do objeto religioso é o mistério, uma vez que a fé começa no desconhecido e abandona todo o resto às investigações da ciência. A dúvida é, aliás, mortal à fé; ela sente que a intervenção do ser divino é necessária para cobrir o abismo que separa o finito do infinito e afirma essa intervenção com todo o ímpeto de seu coração, com toda a docilidade de sua inteligência. Fora desse ato de fé, a necessidade religiosa não encontra satisfação e transmuta-se em ceticismo e em desespero. Mas, para que o ato de fé não seja um ato de loucura, a razão quer que ele seja dirigido e regulado. Pelo quê? Pela ciência? Vimos que nesse caso a ciência é impotente. Pela autoridade civil? É absurdo. Colocai guardas para vigiar as orações!

Resta, pois, a autoridade moral, única que pode constituir o dogma e estabelecer a disciplina do culto de comum acordo, dessa vez, com a autoridade civil, mas não conforme às suas ordens; é preciso, em uma palavra, que a fé dê à necessidade religiosa uma satisfação real, inteira, permanente, indubitável. Para tanto, é preciso a afirmação absoluta, invariável, de um dogma conservado por uma hierarquia autorizada. É preciso um culto eficaz que dê, com uma fé absoluta, uma realização substancial aos signos da crença.

A religião, assim compreendida, sendo a única que satisfaz a necessidade natural de religião, deve ser chamada de a única verdadeiramente natural. E chegamos por nós mesmos a esta dupla definição: a verdadeira religião natural é a religião revelada, é a religião hierárquica e tradicional, que se afirma absolutamente acima das discussões humanas pela comunhão da fé, da esperança e da caridade.

Ao representar a autoridade moral e ao realizá-la pela eficácia de seu ministério, o sacerdote é santo e infalível, enquanto a humanidade está sujeita ao vício e ao erro. O padre, ao agir como padre, é sempre o representante de Deus. Pouco importam as faltas ou mesmo os crimes do homem. Quando Alexandre VI fazia uma ordenação, não era o envenenador que impunha as mãos aos bispos, era o papa. Ora, o papa Alexandre VI nunca corrompeu nem falsificou os dogmas que o condenavam, os sacramentos que, em suas mãos, salvavam os outros e não o justificavam. Houve sempre e em todos os lugares homens mentirosos e criminosos; mas, na Igreja hierárquica e divinamente autorizada, nunca houve e nunca haverá nem maus papas nem maus padres. Mau e padre são palavras que não se ajustam.

Falamos de Alexandre VI e acreditamos que esse nome baste, sem que nos oponham outras lembranças justamente execradas. Grandes criminosos puderam duplamente desonrar-se, por causa do caráter sagrado de que estavam revestidos; mas não lhes foi dado desonrar esse caráter, que continua sempre radiante e esplêndido acima da humanidade que cai.

Dissemos que não há religião sem mistérios; acrescentemos que não há mistérios sem símbolos. Sendo o símbolo a fórmula ou a expressão do mistério, ele só exprime sua profundidade desconhecida por imagens paradoxais emprestadas do conhecido. Devendo caracterizar o que está acima da razão científica, a forma simbólica deve necessariamente encontrar-se fora dessa razão: daí, a palavra célebre e perfeitamente justa de um Pai da Igreja: Creio, porque é absurdo, credo quia absurdum.

Se a ciência afirmasse o que não sabe, destruiria a si própria. A ciência não pode, portanto, realizar a obra da fé, tanto quanto a fé não pode decidir em matéria de ciência. Uma afirmação de fé com que a ciência tenha a temeridade de ocupar-se será apenas um absurdo para ela, da mesma forma que uma afirmação de ciência que nos fosse dada como artigo de fé seria um absurdo na ordem religiosa. Crer e saber são dois termos que nunca se podem confundir.

Tampouco poderiam opor-se um ao outro num antagonismo qualquer. É impossível, com efeito, crer no contrário do que se sabe sem deixar, por isso mesmo, de o saber, e é igualmente impossível chegar a saber o contrário do que se crê sem deixar imediatamente de crer.

Negar ou mesmo contestar as decisões da fé, e isso em nome da ciência, é provar que não se compreende nem a ciência nem a fé: com efeito, o mistério de um Deus em três pessoas não é um problema de matemática; a encarnação do Verbo não é um fenômeno que pertença à medicina; a redenção escapa à crítica dos historiadores. A ciência é absolutamente impotente para decidir se se tem ou não razão de se acreditar ou não no dogma; ela pode constatar somente os resultados da crença e, se a fé torna evidentemente os homens melhores, se, aliás, a fé em si mesma, considerada como um fato fisiológico, é evidentemente uma necessidade e uma força, será preciso que a ciência o admita e tome o sábio partido de contar sempre com a fé.

Ousemos afirmar agora que existe um fato imenso, igualmente apreciável pela fé e pela ciência, um fato que torna Deus visível de algum modo sobre a terra, um fato incontestável e de alcance universal; esse fato é a manifestação, no mundo, a partir da época em que começa a revelação cristã, de um espírito desconhecido pelos antigos, de um espírito evidentemente divino, mais positivo que a ciência em suas obras, mais magnificamente ideal em suas aspirações que a mais elevada poesia, um espírito para o qual era preciso criar um nome novo, completamente inaudito nos santuários da Antigüidade. Assim, esse nome foi criado, e demonstraremos que esse nome, que essa palavra é, em religião, tanto para a ciência quanto para a fé, a expressão do absoluto; a palavra é caridade e o espírito de que falamos chama-se o espírito de caridade.

Diante da caridade, a fé prosterna-se e a ciência, vencida, inclina-se. Há evidentemente aqui alguma coisa maior do que a humanidade; a caridade prova por suas obras que não é um sonho. É mais forte do que todas as paixões; triunfa sobre o sofrimento e a morte; faz que Deus seja compreendido por todos os corações e parece já preencher a eternidade pela realização iniciada de suas legítimas esperanças.

Diante da caridade viva e atuante, que Proudhon ousará blasfemar? Que Voltaire ousará rir?

Empilhai, um sobre os outros, os sofismas de Diderot, os argumentos críticos de Strauss, as Ruínas de Volney – tão bem nomeadas, pois esse homem não poderia fazer senão ruínas -, as blasfêmias dessa revolução cuja voz extingue-se uma vez no sangue e outra no silêncio do desprezo; acrescentei a isso o que o futuro pode nos reservar de monstruosidades e devaneios; depois, que venha a mais humilde e a mais simples de todas as irmãs da caridade, o mundo abandonará todas as suas tolices, todos os seus crimes, todos os seus devaneios doentios, para inclinar-se diante dessa realidade sublime.

Caridade! palavra divina, palavra que, por si, leva à compreensão de Deus, palavra que contém uma revelação inteira! Espírito de caridade, aliança de duas palavras que são toda uma solução e todo um futuro! Que pergunta, com efeito, essas duas palavras não podem responder?

O que é Deus para nós senão o espírito de caridade? o que é a ortodoxia? não é o espírito de caridade que não discute sobre a fé a fim de não alterar a confiança dos pequenos e de não perturbar a paz da comunhão universal? Ora, o que é a Igreja universal senão a comunhão em espírito de caridade? É pelo espírito de caridade que a Igreja é infalível. O espírito de caridade é a virtude divina do sacerdócio.

Dever dos homens, garantia de seus direitos, prova de sua imortalidade, eternidade de felicidade iniciada para eles na terra, objetivo glorioso dado a sua existência, fim e meio de seus esforços, perfeição de sua moral individual, civil e religiosa, o espírito de caridade abrange tudo, aplica-se a tudo, tudo pode esperar, tudo empreender e tudo cumprir.

Era pelo espírito de caridade que Jesus, expirando na cruz, dava a sua mãe um filho na pessoa de São João e, triunfando sobre as angústias do mais horrível suplício, soltava um grito de libertação e de salvação ao dizer: “Pai, nas tuas mãos entrego meu espírito.”

Foi pelo espírito de caridade que doze artesãos da Galiléia conquistaram o mundo; amaram a verdade mais do que suas vidas; e foram sozinhos dizê-la aos povos e aos reis; provados pela tortura, foram considerados fiéis. Mostraram às multidões a imortalidade viva em sua morte e regaram a terra com um sangue cujo calor não podia extinguir-se, pois neles ardia a chama da caridade.

Foi pela caridade que os apóstolos constituíram seus símbolos. Disseram que acreditar juntos é melhor do que duvidar separadamente; constituíram a hierarquia sobre a obediência, tornada tão nobre e tão grande pelo espírito de caridade, que servir assim é reinar; formularam a fé de todos e a esperança de todos e puseram esse símbolo sob a guarda da caridade de todos. Ai do egoísta que se apropria de uma só palavra dessa herança do Verbo, pois é um deicida que quer desmembrar o corpo do Senhor.

O símbolo é a arca sagrada da caridade, quem quer que o toque é atingido pela morte eterna, pois a caridade retira-se dele. É a herança sagrada de nossos filhos, é o preço do sangue de nossos pais.

Era pela caridade que os mártires se consolavam nas prisões dos césares e atraíam para sua crença seus guardas e mesmo seus carrascos.

Era em nome da caridade que São Martinho de Tours protestava contra o suplício dos priscilianos e separava-se da comunhão do tirano que queria impor a fé pela espada.

Foi pela caridade que tantos santos consolaram o mundo dos crimes cometidos em nome da própria religião e dos escândalos do santuário profanado.

Foi pela caridade que São Vicente de Paulo e Fenelon impuseram-se à admiração dos séculos, mesmo aos mais ímpios, e fizeram calar de antemão o riso dos filhos de Voltaire diante da seriedade imponente de suas virtudes.

Foi pela caridade, enfim, que a loucura da cruz tornou-se a sabedoria das nações, porque todos os nobres corações compreenderam que é mais elevado acreditar ao lado dos que amam e devotam-se do que duvidar ao lado dos egoístas e dos escravos do prazer!

ARTIGO I

Solução do primeiro problema

O VERDADEIRO DEUS

Deus só pode ser definido pela fé; a ciência não pode negar nem afirmar que ele existe.

Deus é o objeto absoluto da fé humana. No infinito, é a inteligência suprema e criadora da ordem. No mundo, é o espírito de caridade.

Será o Ser universal uma máquina fatal que tritura eternamente as inteligências ocasionais ou uma inteligência providencial que dirige as forças para a melhoria dos espíritos?

A primeira hipótese repugna à razão, é desesperadora e imoral.

Ciência e razão devem, portanto, inclinar-se diante da segunda.

Sim, Proudhon, Deus é uma hipótese, mas é uma hipótese tão necessária que, sem ela, todos os teoremas tornam-se absurdos ou duvidosos.

Para os iniciados da cabala, Deus é a unidade absoluta que cria e anima os números.

A unidade da inteligência humana demonstra a unidade de Deus.

A chave dos números é a dos símbolos, porque os sintomas são as figuras analógicas da harmonia que vem dos números.

As matemáticas não saberiam demonstrar a fatalidade cega, uma vez que são a expressão da exatidão que é o caráter da mais suprema razão.

A unidade demonstra a analogia dos contrários; é o princípio, o equilíbrio e o fim dos números. O ato de fé parte da unidade e retorna à unidade.

Vamos esboçar uma explicação da Bíblia pelos números, porque a Bíblia é o livro das imagens de Deus.

Perguntaremos aos números a razão dos dogmas da religião eterna, e os números responderão sempre, reunindo-se na síntese da unidade.

 

As poucas páginas que se seguem são simples apanhados das hipóteses cabalísticas; são externas à fé e as indicamos somente como pesquisas curiosas. Não nos cabe inovar em matéria de dogma, e nossas asserções como iniciado estão inteiramente subordinadas à nossa submissão como cristão.

Esboço da teologia profética dos números

I. A UNIDADE

A unidade é o princípio e a síntese dos números, é a idéia de Deus e do homem, é a aliança da razão e da fé.

A fé não pode ser oposta à razão, é exigida pelo amor, é idêntica à esperança. Amar é acreditar e esperar, e esse triplo ímpeto da alma é chamado virtude, porque é preciso coragem para realizá-lo. Mas haveria coragem nisso se a dúvida não fosse possível? Ora, poder duvidar é duvidar. A dúvida é a força equilibrante da fé e tem todo o seu mérito.

A própria natureza nos induz a crer, mas as fórmulas de fé são constatações sociais das tendências da fé numa época dada. É o que dá a infalibilidade à Igreja, infalibilidade de evidência e de fato.

Deus é necessariamente o mais desconhecido de todos os seres, uma vez que só é definido em sentido inverso de nossas experiências, é tudo o que não somos, é o infinito oposto ao finito por hipótese contraditória.

A fé e, por conseguinte, a esperança e o amor são tão livres que o homem, longe de impô-los aos outros, não os impõe a si mesmo.

São graças, diz a religião. Ora, será concebível que se exija a graça, isto é, que se queira forçar os homens ao que vem livre e gratuitamente do céu? É preciso desejar-lhes isso.

Raciocinar sobre a fé é disparatar, uma vez que o objeto da fé é externo à razão. Se me perguntam: “Existe um Deus?”, eu respondo: “Acredito que sim.” “Mas o senhor tem certeza disso?” “Se tivesse certeza, não acreditaria nele, eu o saberia.”

Formular a fé é admitir termos da hipótese comum.

A fé começa onde a ciência acaba. Ampliar a ciência é aparentemente suprimir a fé, e, na realidade, é ampliar igualmente seu domínio, pois é ampliar sua base.

Só se pode adivinhar o desconhecido por suas proporções supostas ou passíveis de serem supostas do conhecido.

A analogia era o dogma único dos antigos magos. Dogma verdadeiramente mediador, pois é metade científico, metade hipotético, metade razão e metade poesia. Esse dogma foi e será sempre o gerador de todos os outros.

O que é o Homem-Deus? É o que realiza na vida mais humana o ideal mais divino.

A fé é uma adivinhação da inteligência e do amor dirigidos pelos índices da natureza e da razão.

Faz parte, portanto, da essência das coisas de fé serem inacessíveis à ciência, duvidosas para a filosofia e indefinidas para a certeza.

A fé é uma realização hipotética dos fins últimos da esperança. É a adesão ao signo visível das coisas que não se vê.

Sperandarum substantia rerum

Argumentum non apparentium

Para afirmar sem disparate que Deus existe ou não, é preciso partir de uma definição sensata ou insensata de Deus. Ora, essa definição para ser sensata deve ser hipotética, analógica e negativa do finito conhecido. Pode-se negar um Deus qualquer, mas o Deus absoluto não se nega tanto quanto não se prova; é sensatamente suposto e nele se acredita.

Bem-aventurados os que têm o coração puro, pois verão a Deus, disse o Mestre; ver com o coração é acreditar e, se essa fé se relaciona ao verdadeiro bem, não pode ser enganada contanto que não procure definir muito seguindo as induções arriscadas da ignorância pessoal. Nossos julgamentos, em matéria de fé, aplicam-se a nós mesmos, será para nós como tivermos acreditado. Isto é, nós próprios nos fazemos à semelhança de nosso ideal.

Quem faz os deuses torna-se semelhante a eles, assim como todos aqueles que lhes dão sua confiança.

O ideal divino do velho mundo fez a civilização que acabou, e não se deve desesperar ao ver o deus de nossos bárbaros pais tornar-se o diabo de nossos filhos mais esclarecidos. Fazem-se diabos com deuses de refugo, e Satã só é assim tão incoerente e tão disforme porque é feito com todos os retalhos das antigas teogonias. É a esfinge sem palavra, é o enigma sem solução, é o mistério sem verdade, é o absoluto sem realidade e sem luz.

O homem é o filho de Deus, porque Deus, manifestado, é chamado o filho do homem.

Foi depois de ter feito Deus em sua inteligência e seu amor que a humanidade compreendeu o verbo sublime que disse: Faça-se a luz!

O homem é a forma do pensamento divino, e Deus é a síntese idealizada do pensamento humano.

Assim, o Verbo de Deus é o que revela o homem, e o Verbo do homem é o que revela Deus.

O homem é o Deus do mundo, e Deus é o homem do céu.

Antes de dizer: Deus quer, o homem quis.

Para compreender e honrar Deus todo-poderoso, é preciso que o homem seja livre.

Obedecendo e abstendo-se por temor ao fruto da ciência, tendo sido inocente e estúpido como o cordeiro, curioso e rebelde como o anjo de luz, o homem cortou o cordão de sua ingenuidade e, caindo livre sobre a terra, arrastou Deus em sua queda.

E é por isso que, do fundo dessa queda sublime, revela-se glorioso com o grande condenado do calvário e entra com ele no reino do céu.

Pois o reino do céu pertence à inteligência e ao amor, ambos filhos da liberdade!

Deus mostrou ao homem a liberdade como uma amante, e, para pôr seu coração à prova, fez passar, entre ela e ele, o fantasma da morte.

O homem amou e sentiu-se Deus; deu por ela isto que Deus acabava de nos dar: a esperança eterna.

Lançou-se em direção de sua noiva através da sombra da morte e o espectro desapareceu.

O homem possuía a liberdade; tinha abraçado a vida.

Expia agora tua glória, ó Prometeu!

Teu coração devorado sem cessar não pode morrer; é o teu abutre e Júpiter que morrerão.

Um dia despertaremos enfim dos sonhos penosos de uma vida atormentada, a obra de nossa provação terá acabado, seremos fortes o bastante contra a dor para sermos imortais.

Então viveremos em Deus, numa vida mais abundante, e desceremos às suas obras com a luz de seu pensamento, seremos levados ao infinito pelo sopro de seu amor.

Seremos, sem dúvida, os primogênitos de uma nova raça; anjos do porvir.

Mensageiros celestes, vogaremos na imensidão e as estrelas serão nossas brancas naus.

Transformar-nos-emos em doces visões para acalmar os olhos dos que choram; colheremos lírios resplandecentes em prados desconhecidos e espargiremos seu orvalho sobre a terra.

Tocaremos a pálpebra da criança que dorme e alegraremos docemente o coração de sua mãe com o espetáculo da beleza de seu filho bem-amado.

II. O BINÁRIO

O binário é mais particularmente o número da mulher, esposa do homem e mãe da sociedade.

O homem é o amor na inteligência, a mulher é a inteligência no amor.

A mulher é o sorriso do criador contente de si próprio, e foi depois de tê-la feito que ele descansou, diz a parábola celeste.

A mulher está antes do homem, porque é mãe e tudo lhe é perdoado de antemão porque dá à luz com dor.

A mulher foi quem primeiro se iniciou na imortalidade pela morte; o homem, então, a viu tão bela e a compreendeu tão generosa, que não quis sobreviver a ela, e amou-a mais do que sua vida, mais do que sua felicidade eterna.

Feliz proscrito! já que lhe foi dada como companheira de seu exílio.

Mas os filhos de Caim revoltaram-se contra a mãe de Abel e escravizaram sua mãe.

A beleza da mulher tornou-se uma presa para a brutalidade dos homens sem amor.

Então, a mulher fechou seu coração como um santuário desconhecido e disse aos homens indignos dela: “Sou virgem, mas quero ser mãe, e meu filho ensinar-vos-á a me amar.”

Ó Eva! sê saudada e adorada em tua queda!

Ó Maria! sê abençoada e adorada em tuas dores e em tua glória!

Santa crucificada que sobrevivia a teu Deus para enterrar teu filho, sê para nós a última palavra da revelação divina!

Moisés chamava Deus de Senhor, Jesus chamava-o de meu Pai, e nós, pensando em ti, diremos à Providência: “Sois nossa mãe!”

Filhos da mulher, perdoemos a mulher decaída.

Filhos da mulher, adoremos a mulher regenerada.

Filhos da mulher, que dormimos em seu seio, que fomos embalados em seus braços e consolados por seus carinhos, amemo-la e amemo-nos entre nós!

III. O TERNÁRIO

O ternário é o número da criação.

Deus criou a si próprio eternamente e o infinito que ele preenche com suas obras é uma criação incessante e infinita.

O amor supremo contempla-se na beleza como em um espelho, e experimenta todas as formas como enfeites, pois é o noivo da vida.

O homem também afirma e cria a si próprio: enfeita-se com suas conquistas, ilumina-se com suas concepções, reveste-se com suas obras como que com vestes nupciais.

A grande semana da criação foi imitada pelo gênio humano divinizando as formas da natureza.

Cada dia forneceu uma revelação nova, cada rei progressivo do mundo foi por um dia a imagem e a encarnação de Deus! Sonho sublime que explica os mistérios da Índia e justifica todos os simbolismos!

A elevada concepção do homem-Deus corresponde à criação de Adão, e o cristianismo, à semelhança dos primeiros dias do homem típico no paraíso terrestre, foi apenas uma aspiração e uma viuvez.

Esperamos o culto da esposa e da mãe, aspiramos às núpcias da nova aliança.

Então os pobres, os cegos, todos os proscritos do velho mundo serão convidados para o festim e receberão um traje nupcial; e olhar-se-ão uns aos outros com uma grande doçura e um inefável sorriso, porque terão chorado muito tempo.

IV. O QUATERNÁRIO

O quaternário é o número da força. É o ternário completado por seu produto, é a unidade rebelada reconciliada à trindade soberana.

No ardor primeiro da vida, o homem, tendo esquecido sua mãe, compreendeu Deus apenas como um pai inflexível e cioso.

O sombrio Saturno, armado com sua foice parricida, põe-se a devorar seus filhos.

Júpiter teve cenhos que abalaram o Olimpo, e Jeová, trovões que ensurdeceram as solidões do Sinai.

E, no entanto, o pai dos homens, embriagado às vezes como Noé, deixava o mundo perceber os mistérios da vida.

Psiquê, divinizada por suas aflições, tornava-se esposa do Amor; Adônis ressuscitado reencontrava Vênus no Olimpo; Jó, vitorioso ao mal, recuperava mais do que tinha perdido.

A lei é uma prova de coragem. Amar a vida mais do que se teme as ameaças da morte é merecer a vida.

Os eleitos são os que ousam; ai dos tímidos!

Assim, os escravos da lei que se fazem os tiranos das consciências, e os servidores do temor, e os avaros de esperança, e os fariseus de todas as sinagogas e de todas as igrejas, estes são os réprobos e os malditos do Pai!

Cristo não foi excomungado e crucificado pela sinagoga?

Savonarola não foi queimado por ordem de um pontífice da religião cristã?

Os fariseus não são hoje o que eram no tempo de Caifás?

Se alguém lhes fala em nome da inteligência e do amor, escutá-lo-ão?

Foi arrancando os filhos da liberdade à tirania dos Faraós que Moisés inaugurou o reino do Pai.

Foi quebrando o jugo insuportável do farisaísmo mosaico que Jesus convidou todos os homens à fraternidade do filho único de Deus.

Quando caírem os últimos ídolos, quando se quebrarem as últimas correntes materiais das consciências, quando os últimos matadores de profetas, quando os últimos sufocadores do Verbo forem confundidos, será o reino do Espírito Santo.

Glória, pois, ao Pai, que enterrou o exército do Faraó no mar Vermelho!

Glória ao Filho que rasgou o véu do templo e cuja cruz extremamente pesada posta sobre a coroa dos Césares quebrou contra a terra a fronte dos Césares!

Glória ao Espírito Santo que deve varrer da terra com seu sopro terrível todos os ladrões e todos os carrascos para dar lugar ao banquete dos filhos de Deus!

Glória ao Espírito Santo que prometeu ao anjo da liberdade a conquista da terra e do céu.

O anjo da liberdade nasceu antes da aurora do primeiro dia, antes mesmo do despertar da inteligência, e Deus o denominou estrela da manhã.

Ó Lúcifer, tu te desligaste voluntária e desdenhosamente do céu onde o sol te inundava com sua claridade, para sulcar com teus próprios raios os campos agrestes da noite.

Brilhas quando o sol se põe e teu olhar resplandecente precede o nascer do dia.

Cais para de novo levantar; experimentas a morte para melhor conhecer a vida.

És, para as glórias antigas do mundo, a estrela da noite; para a verdade renascente, a bela estrela da manhã!

A liberdade não é a licença: a licença é a tirania.

A liberdade é a guardiã do dever, porque ela reivindica o direito.

Lúcifer, cujas idades das trevas fizeram o gênio do mal, será verdadeiramente o anjo da luz quando, tendo conquistado a liberdade ao preço da reprovação, fizer uso dela para se submeter à ordem eterna, inaugurando assim as glórias da obediência voluntária.

O direito é apenas a raiz do dever, é preciso possuir para dar.

Ora, eis como uma elevada poesia explica a queda dos anjos.

Deus tinha dado aos espíritos a luz e a vida, depois lhes disse: Amai.

– O que é amar?, responderam os espíritos.

– Amar é dar-se aos outros, respondeu Deus. – Os que amarem sofrerão, mas serão amados.

– Temos o direito de não dar nada, e nada queremos sofrer, disseram os espíritos inimigos do amor.

– Estais em vosso direito, respondeu Deus -, e separemo-nos. Eu e os meus queremos sofrer e morrer, mesmo para amar. É nosso dever!

O anjo caído é pois aquele que desde o princípio recusou amar; não ama, e é todo o seu suplício; não dá, e é toda a sua miséria; não sofre, e é seu nada; não morre, e é seu exílio.

O anjo caído não é Lúcifer, o porta-luz, é Satã, o caluniador do amor.

Ser rico é dar; não dar nada é ser pobre; viver é amar, não amar nada é estar morto; ser feliz é devotar-se; existir somente para si é reprovar a si próprio, é seqüestrar-se no inferno.

O céu é a harmonia dos sentimentos gerais; o inferno é o conflito dos instintos lassos.

O homem do direito é Caim, que matou Abel por inveja; o homem do dever é Abel, que morre para Caim por amor.

E tal foi a missão do Cristo, o grande Abel da humanidade.

Não é pelo direito que devemos ousar em tudo, é pelo dever.

O dever é a expansão e a fruição da liberdade; o direito isolado é o pai da servidão.

O dever é a obrigação, o direito é o egoísmo.

O dever é o sacrifício, o direito é a rapina e o roubo.

O dever é o amor, o direito é o ódio.

O dever é a vida infinita, o direito é a morte eterna.

Se é preciso combater pela conquista do direito, é somente para adquirir a potência do dever: e por que seríamos livres se não fosse para amar, devotarmo-nos e, assim, assemelharmo-nos a Deus?

Se é preciso infringir a lei, é quando ela submete o amor ao medo.

Aquele que quiser salvar sua alma perdê-la-á, diz o livro santo, e aquele que consentir em perdê-la salvá-la-á.

O dever é amar: pereça todo aquele que cria obstáculos ao amor! Silêncio aos oráculos do ódio! Aniquilamento aos falsos deuses do egoísmo e do medo! Vergonha aos escravos avaros de amor!

Deus ama os filhos pródigos!

V. O QUINÁRIO

O quinário é o número religioso, pois é o número de Deus reunido ao da mulher.

A fé não é a credulidade estúpida da ignorância maravilhada.

A fé é a consciência e a confiança do amor.

A fé é o grito da razão que persiste em negar o absurdo, mesmo diante do desconhecido.

A fé é um sentimento necessário à alma como a respiração à vida: é a dignidade do coração, é a realidade do entusiasmo.

A fé não consiste na afirmação deste ou daquele símbolo, mas na aspiração verdadeira e constante às verdades veladas por todos os simbolismos.

Um homem rejeita uma idéia indigna da divindade, quebra suas falsas imagens, revolta-se contra odiosas idolatrias, e dizeis que é um ateu?

Os perseguidores da Roma decaída também chamavam os primeiros cristãos de ateus, porque não adoravam os ídolos de Calígula ou de Nero.

Negar toda uma religião e mesmo todas as religiões de preferência a aderir a fórmulas que a consciência reprova é um corajoso e sublime ato de fé.

Todo homem que sofre por suas convicções é um mártir da fé.

Talvez se explique mal, mas prefere a justiça e a verdade a qualquer coisa; não o condeneis sem entendê-lo.

Acreditar na verdade suprema não é defini-la, e declarar que nela se crê é reconhecer ignorá-la.

O apóstolo São Paulo limita toda fé a estas duas coisas: acreditar que Deus existe e que ele recompensa aqueles que o procuram.

A fé é maior que as religiões, porque precisa menos dos artigos da crença.

Um dogma qualquer constitui apenas uma crença e pertence a uma comunhão especial; a fé é um sentimento comum a toda a humanidade.

Quanto mais se discute para precisar, menos se acredita; um dogma a mais é uma crença de que uma seita se apropria e eleva assim, de alguma maneira, à fé universal.

Deixemos os sectários fazerem e refazerem seus dogmas, deixemos os supersticiosos detalharem e formularem suas superstições, deixemos os mortos enterrarem seus mortos, como dizia o Mestre, e acreditemos na verdade indizível, no absoluto que a razão admite sem compreender, no que pressentimos sem saber.

Acreditemos na razão suprema.

Acreditemos no amor infinito e tenhamos piedade das estupidezes da escola e das barbáries da falsa religião.

Ó homem! dize-me o que esperas, e eu dir-te-ei o que vales.

Rezas, jejuas, velas e crês que escaparás assim sozinho, ou quase sozinho, à perda imensa dos homens devorados por um Deus cioso. És um hipócrita e um ímpio.

Fazes da vida uma orgia e esperas o nada como sono, és um doente ou um insano.

Estás pronto a sofrer como os outros e pelos outros e esperas a salvação de todos, és um sábio e um justo.

Esperar não é ter medo.

Ter medo de Deus! Que blasfêmia!

O ato de esperança é a oração.

A oração é o derramar-se da alma na sabedoria e no amor eternos.

É o olhar do espírito para a verdade e o suspiro do coração para a beleza suprema.

É o sorriso da criança para a mãe.

É o murmúrio do bem-amado que se debruça para os beijos de sua bem-amada.

É a doce felicidade da alma amante que se dilata num oceano de amor.

É a tristeza da esposa na ausência do novel esposo.

É o suspiro do viajante que pensa em sua pátria.

É o pensamento do pobre que trabalha para alimentar a mulher e os filhos.

Oremos em silêncio e ergamos em direção de nosso Pai desconhecido um olhar de confiança e de amor; aceitemos com fé e resignação a parte que nos cabe nas penas da vida, e todas as batidas de nossos corações serão palavras de oração.

Necessitamos acaso informar a Deus que coisas lhe pedimos, já não sabe ele o que nos é necessário?

Se choramos, apresentemos-lhe as nossas lágrimas; se nos regozijamos, dirijamos-lhe o nosso sorriso; se ele nos atinge, baixemos a cabeça; se nos acaricia, adormeçamos em seus braços!

Nossa oração será perfeita, quando orarmos sem sequer saber que oramos.

A oração não é um ruído que fere os ouvidos, é um silêncio que penetra no coração.

E doces lágrimas vêm umedecer os olhos, e suspiros escapam como a fumaça dos incensos.

Fica-se tomado por um inefável amor a tudo o que é beleza, verdade, justiça; palpita-se de uma nova vida e não se teme mais morrer. Pois a oração é a vida eterna da inteligência e do amor; é a vida de Deus na terra.

Amai-vos uns aos outros, eis a lei e os profetas! Meditai e compreendei essa palavra.

E, quando tiverdes compreendido, não leiais mais, não procures mais, não duvideis mais, amai!

Não mais sejais sábios, não mais sejais eruditos, amai! Essa é a doutrina da verdadeira religião; religião quer dizer caridade, e o próprio Deus não é senão amor.

Eu já vos disse: amar é dar.

O ímpio é aquele que absorve os outros.

O homem pio é aquele que se expande na humanidade.

Se o coração do homem concentra em si próprio o fogo com o qual Deus o anima, é um inferno que devora tudo e que só se preenche de cinzas; se ele o faz resplandecer fora, torna-se um doce sol de amor.

O homem doa-se à família; a família doa-se à pátria; a pátria, à humanidade.

O egoísmo do homem merece o isolamento e o desespero, o egoísmo da família merece a ruína e o exílio, o egoísmo da pátria merece a guerra e a invasão.

O homem que se isola de todo amor humano ao dizer: Eu servirei a Deus, este se engana. Pois, diz o apóstolo São João, se ele não ama ao próximo que vê, como amará a Deus que não vê?

É preciso dar a Deus o que é de Deus, mas não se deve recusar mesmo a César o que é de César.

Deus é quem dá a vida, César é quem pode dar a morte.

É preciso amar a Deus e não temer a César, pois está dito no livro sagrado: Quem com ferro fere com ferro perecerá.

Quereis ser bons, sede justos; quereis ser justos, sede livres!

Os vícios que deixam o homem semelhante à besta são os primeiros inimigos da sua liberdade.

Olhai o bêbado e dizei-me se essa besta imunda pode ser livre!

O avaro maldiz a vida de seu pai e, como o corvo, tem fome de cadáveres.

O ambicioso quer ruínas, é um invejoso em delírio; o devasso escarrou no seio da mãe e encheu de abortos as entranhas da morte.

Todos esses corações sem amor são punidos pelo mais cruel dos suplícios: o ódio.

Pois, saibamo-lo bem, a expiação está contida no pecado.

O homem que faz o mal é como um vaso de barro defeituoso, quebrar-se-á, a fatalidade o quer.

Com os escombros do mundo, Deus refaz estrelas; com os escombros da alma, refaz anjos.

VI. O SENÁRIO

O senário é o número da iniciação pela prova; é o número do equilíbrio, é o hieróglifo da ciência do bem e do mal.

Quem procura a origem do mal procura o que não é.

O mal é o apelativo da desordem do bem, é a tentativa infrutífera de uma vontade inábil.

Cada um possui o fruto de suas obras, e a pobreza é somente o aguilhão do trabalho.

Para o rebanho dos homens, o sofrimento é como o cão pastor que morde a lã das ovelhas para recolocá-las no caminho.

É por causa da sombra que podemos ver a luz; é por causa do frio que sentimos o calor; é por causa da dor que somos sensíveis ao prazer.

O mal é, portanto, para nós, a ocasião e o começo do bem.

Mas, nos sonhos de nossa inteligência imperfeita, acusamos o trabalho providencial, por não o compreender.

Assemelhamo-nos ao ignorante que julga o quadro no começo do esboço e diz, quando a cabeça está feita: “Então esta figura não tem corpo.”

A natureza continua calma e realiza sua obra.

A relha não é cruel quando rasga o seio da terra, e as grandes revoluções do mundo são a lavoura de Deus.

Tudo tem seu tempo: aos povos ferozes, senhores bárbaros; ao gado, açougueiros; aos homens, juizes e pais.

Se o tempo pudesse transformar os carneiros em leões, eles comeriam os açougueiros e os pastores.

Os carneiros nunca se transformam porque não se instruem, mas os povos instruem-se.

Pastores e açougueiros dos povos, tendes razão, portanto, em ver como inimigos aqueles que falam a vosso rebanho.

Rebanhos que conheceis ainda apenas vossos pastores e que quereis ignorar seu comércio com os açougueiros, sois desculpáveis por apedrejar aqueles que vos humilham e que vos inquietam ao falarem de vossos direitos.

Ó Cristo! Os grandes condenam-te, teus discípulos renegam-te, o povo amaldiçoa-te e aclama teu suplício, somente tua mãe chora, Deus abandona-te!

Eli! Eli! Lamma Sabachtani!

VII. O SETENÁRIO

O setenário é o grande número bíblico. É a chave da criação de Moisés e o símbolo de toda a religião. Moisés deixou cinco livros, e a lei resume-se em dois testamentos.

A Bíblia não é uma história, é uma coletânea de poemas, é um livro de alegorias e imagens.

Adão e Eva são somente tipos primitivos da humanidade; a serpente que tenta é o tempo que põe à prova; a árvore da ciência é o direito; a expiação pelo trabalho é o dever.

Caim e Abel representam a carne e o espírito, a força e a inteligência, a violência e a harmonia.

Os gigantes são os antigos usurpadores da terra; o dilúvio foi um imensa revolução.

A arca é a tradição conservada numa família: a religião, nessa época, torna-se um mistério e a propriedade de uma raça. Caim é maldito por ser seu revelador.

Nemrod e Babel são duas alegorias primitivas do désposta único e do império universal sempre sonhado desde então; empreendido sucessivamente pelos assírios, os medas, os persas, Alexandre, Roma, Napoleão, os sucessores de Pedro, o Grande, e sempre inacabado por causa da dispersão de interesses, figurada pela confusão das línguas.

O império universal não deveria realizar-se pela força, mas pela inteligência e pelo amor. Por isso, a Nemrod, homem do direito selvagem, a Bíblia opõe Abraão, homem do dever, que se exila para buscar a liberdade e a luta numa terra estrangeira de que se apodera pelo pensamento.

Tem uma mulher estéril, é seu pensamento, e uma escrava fecunda, é sua força; mas, quando a força produz seu fruto, o pensamento torna-se fecundo, e o filho da inteligência exila o filho da força. O homem de inteligência é submetido a duras provas; deve confirmar suas conquistas pelo sacrifício. Deus quer que ele imole seu filho, isto é, a dúvida deve pôr à prova o dogma e o homem intelectual deve estar pronto a tudo sacrificar diante da razão suprema. Deus, então, intervém: a razão universal cede aos esforços do trabalho, mostra-se à ciência e apenas o lado material do dogma é imolado. É o que representa o carneiro preso pelos chifres entre os arbustos. A história de Abraão é pois um símbolo à moda antiga e contém uma elevada revelação dos destinos da alma humana. Tomada ao pé da letra, é um relato absurdo e revoltante. Santo Agostinho não tomava ao pé da letra o Asno de Ouro de Apuleu! Pobres grandes homens!

A história de Isaac é uma outra lenda. Rebeca é o tipo de mulher oriental, laboriosa, hospitaleira, parcial em suas afeições, astuta e ardilosa em suas manobras. Jacó e Esaú são ainda os dois tipos reproduzidos de Caim e Abel; mas aqui Abel se vinga; a inteligência emancipada triunfa pela astúcia. Todo o gênio israelita está no caráter de Jacó, o paciente laborioso suplantador que cede à cólera de Esaú, torna-se rico e compra o perdão de seu irmão. Quando os antigos queriam filosofar, contavam, nunca se deve esquecer.

A história ou lenda de José contém em germe todo o gênio do Evangelho, e Cristo, desconhecido por seu povo, teve de chorar mais de uma vez ao reler esta cena em que o governador do Egito lança-se ao pescoço de Benjamim dando um grito e dizendo: “Eu sou José!”

Israel torna-se o povo de Deus, isto é, o conservador da idéia e o depositário do Verbo. Essa idéia é a da independência humana e a da realeza pelo trabalho, mas é ocultada com cuidado, como um germe precioso. Um signo doloroso e indelével é imprimido nos iniciados, toda imagem da verdade é proibida, e os filhos de Israel velam, segurando o sabre em torno da unidade do tabernáculo. Hermor e Siquém querem introduzir-se pela força na família sagrada e perecem com seu povo em conseqüência de uma falsa iniciação. Para dominar os povos, é preciso que o santuário já esteja cercado de sacrifícios e terror.

A servidão dos filhos de Jacó prepara sua libertação: eles têm uma idéia, e não se acorrenta uma idéia; têm uma religião, e não se violenta uma religião; são por fim um povo, e não se acorrenta um verdadeiro povo. A perseguição suscita vingadores, a idéia encarna-se num homem, Moisés levanta, o Faraó cai e a coluna de nuvens e chamas que precede um povo livre avança majestosamente no deserto.

O Cristo é o pai e o rei pela inteligência e pelo amor.

Recebeu a unção santa, a unção do gênio, a unção da fé, a unção da virtude que é a força.

Ele vem quando o sacerdote está esgotado, quando os velhos símbolos não têm mais virtudes, quando a pátria da inteligência está extinta.

Vem para fazer Israel voltar à vida e, se não puder galvanizar Israel, morto pelos fariseus, ressuscitará o mundo abandonado ao culto morto dos ídolos.

Cristo é o direito do dever!

O homem tem o direito de cumprir o seu dever e não tem outro.

Homem, tens o direito de resistir até a morte a quem quer que te impeça de cumprir o teu dever!

Mãe! teu filho afoga-se; um homem impede-te de socorrê-lo; feres esse homem e corres a salvar teu filho!… Quem ousará condenar-te?…

Cristo veio para opor o direito do dever ao dever do direito.

O direito para os judeus era a doutrina dos fariseus. E, com efeito, pareciam ter adquirido o privilégio de dogmatizar; não eram eles os legítimos herdeiros da sinagoga?

Tinham o direito de condenar o Salvador, e o Salvador sabia que seu direito era o de resistir-lhes.

O Cristo é a protestação viva.

Mas protestação de quê? Da carne contra a inteligência? Não!

Do direito contra o dever? Não!

Da atração física contra a atração moral? Não! não!

Da imaginação contra a razão universal? Da loucura contra a sabedoria? Não, mil vezes não, ainda uma vez!

O Cristo é o dever real que protesta eternamente contra o direito imaginário.

É a emancipação do espírito que quebra a servidão da carne.

É a devoção revoltada contra o egoísmo.

É a modéstia sublime que responde ao orgulho: Eu não te obedecerei!

O Cristo é viúvo, o Cristo é só, o Cristo é triste: por quê? É que a mulher prostituiu-se.

É que a sociedade é acusada de roubo.

É que a felicidade egoísta é ímpia.

Cristo é julgado, condenado, executado, e nós o adoramos!

Isso se passou num mundo talvez tão sério quanto o nosso.

Juizes do mundo em que vivemos, sede atentos e pensai naquele que julgará vossos julgamentos.

Mas, antes de morrer, o Salvador legou a seus filhos o símbolo imortal da salvação: a comunhão.

Comunhão! União comum! Última palavra do Salvador do mundo.

O pão e o vinho repartidos entre todos, disse ele, é minha carne e meu sangue!

Ele deu sua carne aos carrascos, seu sangue à terra que quis bebê-lo: e por quê?

Para que todos repartam o pão da inteligência e o vinho do amor. Ó signo da união dos homens! Ó mesa comum! Ó banquete da fraternidade e da igualdade! quando enfim serás melhor compreendido?

Mártires da humanidade, vós que destes a vida para que todos tivessem o pão que alimenta e o vinho que fortifica, também não dizeis ao impor a mão sobre esses símbolos da comunhão universal: Isso é nossa carne e nosso sangue!

E vós, homens do mundo inteiro, vós a quem o Mestre chama irmãos: oh, não sentis que o pão universal é Deus!

Devedores do crucificado.

Vós todos que não estais prontos para dar à humanidade vosso sangue, vossa carne e vossa vida não sois dignos da comunhão do Filho de Deus! Não o façais derramar seu sangue sobre vós, pois faria nódoas sobre vossa fronte!

Não aproximeis vossos lábios do coração de Deus, ele sentiria vossa mordedura.

Não bebais o sangue do Cristo, queimaria vossas entranhas; já é suficiente que ele o tenha derramado inutilmente por vós!

VIII. O NÚMERO OITO

O octonário é o número da reação e da justiça equilibrante.

Toda ação produz uma reação.

É a lei universal do mundo.

O cristianismo devia produzir o anticristianismo.

O anticristo é a sombra, é o contraste e a prova do Cristo.

O anticristo já se produzia na Igreja na época dos apóstolos: Aquele que resiste agora resiste até a morte, dizia São Paulo, e o filho da iniqüidade manifestar-se-á.

Os protestantes disseram: O anticristo é o papa.

O papa respondeu: Todo herege é um anticristo.

O anticristo não é mais o papa do que Lutero: o anticristo é o espírito oposto ao do Cristo.

É a usurpação do direito pelo direito; é o orgulho da dominação e o despotismo do pensamento.

É o egoísmo pretensamente religioso dos protestantes da mesmíssima maneira que a ignorância crédula e imperiosa dos maus católicos.

O anticristo é o que divide os homens ao invés de os unir; é o espírito de disputa, é a teimosia dos doutores e dos sectários, o desejo ímpio de se apropriar da verdade e dela excluir os outros, o de forçar todo o mundo a sofrer a estreiteza de nossos julgamentos.

O anticristo é o pai que amaldiçoa ao invés de abençoar, que afasta ao invés de aproximar, que escandaliza ao invés de edificar, que condena ao invés de salvar.

É o fanatismo odioso que desencoraja a boa vontade.

É o culto da morte, da tristeza e da fealdade.

Que futuro daremos a nosso filho? disseram os pais insensatos; ele é fraco de espírito e de corpo e seu coração não dá ainda sinal de vida: faremos dele um padre, a fim de que viva do altar. E não compreenderam que o altar não é uma manjedoura para os animais preguiçosos.

Por isso, olhai os padres indignos, contemplei esses pretensos servidores do altar. O que é que dizem a vossos corações esses homens gordos ou cadavéricos, de olhos inexpressivos, de lábios cerrados ou escancarados?

Escutai-os falarem: o que vos ensina esse ruído desagradável e monótono?

Rezam como dormem e sacrificam como comem.

São máquinas de pão, de carne, de vinho e de palavras vazias de sentido.

E, quando se regozijam, como ostras ao sol, por estarem sem pensamento e sem amor, diz-se que têm paz de espírito.

Têm a paz da besta e, para o homem, a do túmulo é melhor; são os padres da tolice e da ignorância, são os ministros do anticristo.

O verdadeiro padre do Cristo é um homem que vive, que sofre, que ama e que combate pela justiça. Não briga, não reprova, difunde o perdão, a inteligência e o amor.

O verdadeiro cristão é estranho ao espírito de seita; ele é tudo para todos e vê todos os homens como filhos de um pai comum que quer salvar a todos; o símbolo inteiro tem para ele somente um sentido de doçura e amor: deixa para Deus os segredos da justiça e só compreende a caridade.

Vê os maus como doentes de quem é preciso ter pena e cuidar; o mundo com seus erros e seus vícios é, para ele, o hospital de Deus, e ele quer ser seu enfermeiro.

Não se acha melhor que ninguém, apenas diz: Enquanto eu for melhor, sirvamos os outros, quando for preciso cair e morrer, outros talvez tomarão meu lugar e nos servirão.

IX. O NÚMERO NOVE

Eis o eremita do tarô; eis o número dos iniciados e dos profetas.

Os profetas são solitários, pois seu destino é nunca serem ouvidos.

Vêem muito mais que os outros; pressentem as desgraças por vir. Assim, são aprisionados, mortos ou vilipendiados, são rejeitados como leprosos, ou deixam-nos morrer de fome.

Depois, quando os eventos ocorrem, dizemos: Foram essas pessoas que nos trouxeram desgraça.

Agora, como sempre, na véspera dos grandes desastres, nossas ruas estão plenas de profetas.

Encontrei alguns nas prisões; vi outros que morriam esquecidos em pardieiros.

Toda grande cidade viu algum cuja profecia silenciosa era girar incessantemente e andar sempre coberto de andrajos no palácio do luxo e da riqueza.

Vi um cujo rosto resplandecia como o do Cristo: tinha as mãos calejadas e a roupa do trabalhador e moldava epopéias como argila. Torcia juntos o gládio do direito e o cetro do dever e, sobre esta coluna de ouro e aço, inaugurava o símbolo criador do amor.

Um dia, numa grande assembléia do povo, desceu a rua, segurando um pão que partia e distribuía, dizendo: Pão de Deus, faze-te pão para todos!

Conheço outro que gritou: Não quero mais adorar o Deus do diabo; não quero um carrasco como Deus! E acreditou-se que ele blasfemava.

Não; mas a energia de sua fé transbordava em palavras inexatas e imprudentes.

Dizia ainda, na loucura de sua caridade ferida: Todos os homens são solidários e expiam uns pelos outros, da mesma forma que se merecem uns aos outros.

O castigo para o pecado é a morte.

O próprio pecado é, aliás, um castigo, e o maior dos castigos. Um grande crime é apenas uma grande desgraça.

O pior dos homens é o que se acredita melhor do que os outros.

Os homens apaixonados são escusáveis, uma vez que são passivos. Paixão significa sofrimento e redenção pela dor.

O que chamamos de liberdade é somente a onipotência da atração divina. Os mártires diziam: Mais vale obedecer a Deus que aos homens.

O menos perfeito ato de amor vale mais ao que a melhor palavra de piedade.

Não julgueis, falai pouco, amai e agi.

Um outro que veio disse: Protestai contra as más doutrinas por boas obras, mas não vos separeis de ninguém.

Restabelecei todos os altares, purificai todos os templos e estai prontos para a visita do espírito do amor.

Que cada um reze seguindo seu rito e comungue com os seus, mas não condeneis os outros.

Uma prática de religião nunca é desprezível, pois é o símbolo de um grande e santo pensamento.

Rezar em conjunto é comungar na mesma esperança, na mesma fé, na mesma caridade.

O signo não é nada para si próprio: é a fé que o santifica.

A religião é o laço mais sagrado e mais forte da associação humana, e fazer um ato de religião é fazer um ato de humanidade.

Quando os homens compreenderem, enfim, que não se deve discutir sobre coisas que se ignora;

Quando sentirem que um pouco de caridade vale mais que muita influência e dominação;

Quando todos respeitarem o que o próprio Deus respeita na menor de suas criaturas: a espontaneidade da obediência e a liberdade do dever;

Então, só haverá uma religião no mundo, a religião cristã e universal, a verdadeira religião católica que não renegará mais a si própria por restrição de lugares ou de pessoas.

Mulher, dizia o Salvador à samaritana, em verdade te digo que virá o tempo em que os homens não adorarão mais a Deus nem em Jerusalém nem sobre esta montanha, pois Deus é espírito, e seus verdadeiros adoradores devem servi-lo em espírito e em verdade.

X. NÚMERO ABSOLUTO DA CABALA

A chave das sefirotes (ver Dogma e Ritual da Alta Magia).

XI. O NÚMERO ONZE

Onze é o número da força; é o da luta e do martírio.

Todo homem que morre por uma idéia é um mártir, pois nele as aspirações do espírito triunfaram sobre os temores dos animais.

Todo homem que morre na guerra é um mártir, pois morre pelos outros.

Todo homem que morre miserável é um mártir, pois é como um soldado vencido na batalha da vida.

Aqueles que morrem pelo direito são tão santos em seu sacrifício quanto as vítimas do dever e, nas grandes lutas da revolução contra o poder, os mártires caem dos dois lados.

Sendo o direito a raiz do dever, nosso dever é defender nossos direitos.

O que é um crime? É o exagero do direito. O assassínio e o roubo são negações da sociedade; é o despotismo isolado de um indivíduo que usurpa a realeza e faz guerra por sua conta e risco.

O crime deve ser sem dúvida reprimido, e a sociedade deve defender-se; mas quem poderia ser justo o suficiente, grande o suficiente e puro o suficiente para ter a pretensão de punir?

Paz a todos os que tombam na guerra, mesmo na guerra ilegítima, pois arriscaram a cabeça e perderam-na, e, tendo pago, o que podemos ainda reclamar?

Honra a todos os que combatem bravamente e lealmente! Vergonha somente aos traidores e aos covardes!

O Cristo morreu entre dois ladrões e levou consigo um deles ao céu.

O reino dos céus é dos lutadores e se ganha à força.

Deus dá sua onipotência ao amor. Gosta de triunfar sobre o ódio, mas vomita a tibieza.

O dever é viver, nem que seja por um instante!

É belo ter reinado por um dia, mesmo por uma hora! Mesmo que seja sob a espada de Dâmocles ou na fogueira de Sardanapalo.

Mas é mais belo ter visto a seus pés todas as coisas do mundo e ter dito: Serei o rei dos pobres e meu trono será sobre o calvário.

Existe um homem mais forte do que aquele que mata, é o que morre para salvar.

Não existem crimes isolados nem expiações solitárias.

Não existem virtudes pessoais nem devotamentos perdidos.

Quem não for irrepreensível é cúmplice de todo mal, e quem não for absolutamente perverso pode participar de todo bem.

É por isso que um suplício é sempre uma expiação humanitária, e toda cabeça que é recolhida de um cadafalso pode ser saudada e honrada como a cabeça de um mártir.

É por isso também que o mais nobre e o mais santo dos mártires podia, ao entrar em sua consciência, achar-se digno da pena que iria suportar e dizer, saudando o gládio pronto a feri-lo: Justiça seja feita!

Puras vítimas das catacumbas de Roma, judeus e protestantes massacrados por indignos cristãos.

Padres da Abbaye e dos Carmes, guilhotinados do terror, realistas degolados, revolucionários sacrificados, soldados de nossos grandes exércitos que semeasses as ossadas pelo mundo, vós todos que morresses com sofrimento, ousados de toda sorte, bravos filhos de Prometeu que não tendes medo nem do raio nem do abutre, honra a vossas cinzas, paz e veneração a vossas memórias! Sois os heróis do progresso, os mártires da humanidade!

XII. O NÚMERO DOZE

O doze é o número cíclico; é o do símbolo universal.

Eis uma tradução dos versos feitos para o símbolo mágico e católico sem restrição:

Creio num só Deus onipotente, nosso pai,

Eterno criador do céu e da terra.

Creio no Rei salvador, chefe da humanidade.

Da divindade, filho, palavra e esplendor.

Concepção viva do eterno amor,

Divindade visível e luz atuante.

Desejado pelo mundo sempre e em todos os lugares.

Mas que não é um Deus separável de Deus.

Descido entre nós para libertar a terra,

Santificou a mulher em sua mãe.

Era o homem celeste, sábio e doce homem.

Nasceu para sofrer e morrer como nós.

Proscrito pela ignorância, acusado pela inveja,

Morreu na cruz para nos dar a vida.

Todos os que o tomarem por guia e apoio

Podem, por sua doutrina, ser Deus como ele.

Ressuscitou para reinar sobre os tempos;

Deve, da ignorância, as nuvens dissipar.

Seus preceitos, um dia mais fortes e mais conhecidos,

Serão o julgamento dos vivos e dos mortos.

Creio no Espírito Santo cujos únicos intérpretes

São o espírito e o coração dos santos e dos profetas.

É um sopro de vida e fecundidade

Que provém da humanidade e do Pai.

Creio na família única e sempre santa

Dos justos que o céu reuniu em seu temor.

Creio na unidade do símbolo, do lugar,

Do pontífice e do culto na honra de um só Deus.

Creio que, em nos transformando, a morte nos renove,

E que em nós, como em Deus, a vida é eterna.

XIII. O NÚMERO TREZE

O treze é o número da morte e o do nascimento; é o da propriedade e da herança, da sociedade e da família, da guerra e dos tratados.

A sociedade tem por bases as trocas do direito, do dever e da fé mútua.

O direito é a propriedade; a troca, a necessidade; a boa fé, o dever.

Aquele que quer receber mais do que dá ou que quer receber sem dar é um ladrão.

A propriedade é o direito de dispor de uma parte da fortuna comum; não é nem o direito de destruição nem o direito de seqüestro.

Destruir ou seqüestrar o bem público não é possuir, é roubar.

Digo bem público, porque o verdadeiro proprietário de todas as coisas é Deus, que quer que tudo seja de todos. O que quer que façais, não levareis convosco ao morrer nenhum dos bens deste mundo. Ora, o que vos deve ser tomado um dia não vos pertence realmente. Foi apenas um empréstimo.

Quanto ao usufruto, é o resultado do trabalho; mas o próprio trabalho não é uma garantia segura de posse, e a guerra pode vir, pela devastação ou pelo incêndio, deslocar a propriedade.

Fazei, pois, um bom uso das coisas que perecem, vós que perecereis antes delas!

Levai em consideração que o egoísmo provoca o egoísmo e que a imoralidade do rico corresponderá a crimes dos pobres.

O que quer o pobre, se é honesto?

Quer trabalho. Usai vossos direitos, mais fazei vosso dever: o dever do rico é expandir a riqueza; o bem que não circula está morto, não entesoureis a morte.

Um sofista disse: A propriedade é o roubo. E queria sem dúvida falar da propriedade absorvida, subtraída à troca, desviada da utilidade COMUM.

Se esse era seu pensamento, ele poderia ir mais longe e dizer que tal supressão da vida pública é um verdadeiro assassínio.

É o crime do açambarcamento, que o instinto público sempre viu como um crime de lesa-majestade humana.

A família é uma associação natural que resulta do casamento.

O casamento é a união de dois seres que o amor uniu e que se prometem um devotamento mútuo no interesse dos filhos que podem nascer.

Dois esposos que têm um filho e se separam são ímpios. Será que querem executar o julgamento de Salomão e separar também o filho?

Prometer-se um amor eterno é puerilidade: o amor sexual é uma emoção sem dúvida divina, mas acidental, involuntária e transitória; mas a promessa do devotamente recíproco é a essência do casamento e o princípio da família.

A sanção e a garantia dessa promessa devem ser uma confiança absoluta.

Todo ciúme é uma suspeita, e toda suspeita é um ultraje.

O verdadeiro adultério é o da confiança: a mulher que se queixa de seu marido perto de outro homem; o homem que confia a outra mulher, que não a sua, as aflições ou as esperanças de seu coração, esses traem verdadeiramente a fé conjugal.

As surpresas dos sentidos só são infidelidades por causa dos arrebatamentos do coração que se abandona mais ou menos ao reconhecimento do prazer. Afora isso, são faltas humanas, de que é preciso envergonhar-se e que se deve esconder: são indecências que é preciso evitar afastando as ocasiões, mas que nunca se deve procurar surpreender; os bons costumes são a proscrição do escândalo.

Todo escândalo é uma torpeza. Não se é indecente porque tem-se órgãos que o pudor não nomeia; mas se é obsceno quando são mostrados.

Maridos, escondei as chagas de vossa vida a dois; não desnudeis vossas mulheres perante o escárnio público!

Mulheres, não exibais as misérias do leito conjugal: seria vos ínscreverdes na opinião pública como prostituídas.

É preciso uma elevada dignidade de coração para conservar a fé conjugal: é um pacto de heroismo que somente as grandes almas podem compreender em toda a extensão.

Os casamentos que são rompidos não são casamentos, são acasalamentos.

No que se pode transformar uma mulher que abandona o marido? Não é mais esposa, não é viúva; o que é então? É uma apóstata da honra, que é forçada a ser licenciosa, porque não é nem virgem nem livre.

Um marido que abandona a mulher a prostitui e merece o nome infame que é dado aos amantes das jovens perdidas.

O casamento é sagrado, indissolúvel, quando existe realmente.

Mas só pode existir para seres de elevada inteligência e nobre coração.

Os animais não se casam, e os homens que vivem como animais sofrem as fatalidades de sua natureza.

Fazem sem cessar tentativas para agir racionalmente. Suas promessas são tentativas e simulacros de promessas; seus casamentos, tentativas e simulacros de casamento; seus amores, tentativas e simulacros de amor. Quereriam sempre e não querem nunca; começam sempre e não terminam nunca. Para tais pessoas, as leis só se aplicam pela repressão.

Tais seres podem ter uma ninhada, mas nunca têm uma família: o casamento, a família são direitos do homem perfeito, do homem emancipado, do homem inteligente e livre.

Por isso, consultar os anais dos tribunais e lede a história dos parricidas.

Erguei o véu negro de todas estas cabeças cortadas e perguntai-lhes o que pensaram do casamento e da família, que leite sugaram, que carinhos as enobreceram… Depois tremei, vós todos que não dais a vossos filhos o pão da inteligência e do amor, vós todos que não sancionais a autoridade paterna pela virtude do bom exemplo…

Esses miseráveis eram órfãos pelo espírito e pelo coração e vingaram-se de seu nascimento!…

Vivemos num século em que mais do que nunca a família é desconhecida no que tem de augusta e sagrada: o interesse material mata a inteligência e o amor; as lições da experiência são desprezadas, regateia-se as coisas de Deus. A carne insulta o espírito, a fraude ri na cara da lealdade. Quanto mais ideal, mais justiça: a vida humana ficou órfã dos dois lados.

Coragem e paciência! Este século irá para onde devem ir todos os culpados. Vede como é triste! O tédio é o véu negro de sua cabeça… a carroça anda, e a multidão segue estremecendo…

Logo, mais um século será julgado pela história, e será escrito num túmulo de ruínas: Aqui jaz o século parricida! o século carrasco de Deus e de seu Cristo!

Na guerra tem-se o direito de matar para não morrer: mas na batalha da vida, o mais sublime dos direitos é o de morrer para não matar.

A inteligência e o amor devem resistir à opressão até a morte, nunca até o assassínio.

Homem de coração, a vida daquele que te ofendeu está em tuas mãos, pois ele é senhor da vida dos outros, o qual não faz questão da sua. Massacra-o com tua grandeza: perdoa-o!

– Mas será proibido matar o tigre que nos ameaça?

– Se for um tigre com rosto humano, é mais belo deixar-se devorar, no entanto, aqui, a moral nada prescreve.

– Mas e se o tigre ameaça meus filhos?

– A própria natureza vos responderá.

Harmódio e Aristogiston tinham festas e estátuas na Grécia antiga. A Bíblia consagrou os nomes de Judite e Aud e uma das mais sublimes figuras do livro santo, Sansão cego e acorrentado que sacode as colunas do templo e grita: Que eu morra com os filisteus!

Acreditai, entretanto, que, se Jesus, antes de morrer, tivesse ido a Roma apunhalar Tibério, teria salvado o mundo como fez ao perdoar seus carrascos e até mesmo ao morrer por Tibério?

Brutus, ao matar César, salvou a liberdade romana? Ao matar Calígula, Quéreas apenas deu lugar a Cláudio e a Nero. Protestar contra a violência com violência é justificá-la e forçá-la a se reproduzir.

Mas triunfar sobre o mal pelo bem, sobre o egoísmo pela abnegação, sobre a ferocidade pelo perdão: é o segredo do cristianismo e da vitória eterna.

Eu vi o lugar em que a terra sangrava ainda pelo assassínio de Abel e nesse lugar passava um regato de pranto.

E miríades de homens avançavam conduzidos pelos séculos, deixando cair lágrimas no regato.

E a eternidade, agachada e morna, contemplava as lágrimas que caíam, contava-as uma a uma, e nunca havia o suficiente para lavar uma mancha de sangue.

Mas, entre duas multidões e duas épocas, veio o Cristo, pálida e resplandecente figura.

E, na terra do sangue e das lágrimas, plantou a vinha da fraternidade, e as lágrimas e o sangue aspirados pelas raizes da árvore divina tornaram-se a seiva deliciosa da uva que deve embriagar de amor os filhos do futuro.

XIV. O NÚMERO CATORZE

Catorze é o número da fusão, da associação e da unidade universal, e é em nome do que representa que faremos aqui um apelo às nações, a começar pela mais antiga e mais santa.

Filhos de Israel, por que, em meio ao movimento das nações, continuais imóveis como se guardásseis os túmulos de vossos pais?

Vossos pais não estão mais aqui, ressuscitaram: pois o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó não é o Deus dos mortos!

Por que imprimis sempre a vossa geração a marca sangrenta do cutelo?

Deus não quer mais separar-vos dos outros homens; sede nossos irmãos, e comei conosco hóstias pacíficas nos altares que o sangue nunca conspurca.

A lei de Moisés está cumprida: lede vossos livros e compreendei que fostes um povo cego e duro, como dizem todos os vossos profetas.

Mas fostes também um povo corajoso e perseverante na luta.

Filhos de Israel, tornai-vos filhos de Deus: compreendei e amai!

Deus apagou de vossa fronte a marca de Caim, e os povos ao vos ver passar não dirão mais: Aí estão os judeus! gritarão: Abram alas para nossos irmãos, abram alas para os que nos precederam na fé.

E iremos todos os anos comemorar convosco a páscoa na nova Jerusalém.

E descansaremos debaixo de vossa videira e de vossa figueira; pois sereis ainda amigos do viajante, em memória de Abraão, de Tobias e dos anjos que os visitavam.

E em memória daquele que disse: Quem ao menor dentre vós recebe a mim me recebe.

Pois doravante não recusareis mais um asilo em vossa casa e em vosso coração a vosso irmão José que vendesses às nações.

Porque ele se tornou poderoso na terra do Egito onde procuráveis pão durante os dias de esterilidade.

E ele recordou-se de seu pai Jacó e de Benjamim, seu jovem irmão; e perdoa vossa inveja e vos abraça chorando.

Filhos dos crentes, cantaremos convosco: não existe outro Deus senão Deus e Maomé é seu profeta.

Dizei com os filhos de Israel: Nenhum Deus existe senão Deus e Moisés é seu profeta!

Dizei com os cristãos: Não existe outro Deus senão Deus e Jesus Cristo é seu profeta!

Maomé é a sombra de Moisés. Moisés é o precursor de Jesus.

O que é um profeta? É um representante da humanidade que procura Deus. Deus é Deus, o homem é o profeta de Deus quando faz que acreditemos em Deus.

A Bíblia, o Alcorão e o Evangelho são três traduções diferentes do mesmo livro. Há somente uma lei como há somente um Deus.

Ó mulher idealizada, ó recompensa dos eleitos, és mais bela do que Maria?

Ó Maria, filha do Oriente, casta como o puro amor, grande como as aspirações maternais, vem ensinar aos filhos do Islã os mistérios do céu e os segredos da beleza.

Convida-os para o festim da nova aliança, lá, em três tronos resplandecentes de pedrarias, três profetas estarão sentados.

A árvore tuba fará de seus galhos recurvados um dossel para a mesa celeste.

A esposa será branca como a lua e rubra como o sorriso da manhã.

Todos os povos acorrerão para vê-Ia e não temerão mais passar Al Sirah, pois, sobre essa ponte cortante como uma lâmina de barbear, o Salvador estenderá sua cruz e virá estender a mão aos que vacilarem, e aos que caírem a esposa estenderá seu véu perfumado e os trará em sua direção.

Povos, batei palmas e aplaudi o último triunfo do amor! Somente a morte ficará morta e somente o inferno será queimado.

Ó nações da Europa, a quem o Oriente estende as mãos, uni-vos para expulsar os ursos do Norte! Que a última guerra faça triunfar a inteligência e o amor, que o comércio entrelace os braços do mundo e que uma civilização nova, saída do Evangelho armado, reúna todos os rebanhos da terra sob o cajado do mesmo pastor!

Tais serão as conquistas do progresso; tal é o objetivo para o qual nos empurra todo o movimento do mundo.

O progresso é o movimento; e o movimento é a vida.

Negar o progresso é afirmar o nada e deificar a morte.

O progresso é a única resposta que a razão pode opor às objeções relativas à existência do mal.

Nada está bem, mas tudo estará bem um dia. Deus inicia e acabará sua obra.

Sem o progresso, o mal seria imutável como Deus!

O progresso explica as ruínas e consola Jeremias que chora.

As nações sucedem-se como os homens e nada é estável porque tudo caminha em direção da perfeição.

O grande homem que morre lega a sua pátria o fruto de seu trabalho; a grande nação que se extingue na terra transfigura-se numa estrela para iluminar as obscuridades da história.

O que ele escreveu por suas ações fica gravado no livro eterno; acrescentou uma página à bíblia do gênero humano.

Não digais que a civilização é má; pois assemelha-se ao calor úmido que amadurece as colheitas, desenvolve rapidamente os princípios da vida e os princípios da morte, mata e vivifica.

É como o anjo do julgamento que separa os maus dos bons.

A civilização transforma em anjos de luz os homens de boa vontade e coloca o egoísta abaixo da besta; é a corrupção dos corpos e a emancipação das almas.

O mundo ímpio dos gigantes elevou ao céu a alma de Henoch; acima das bacanais da Grécia primitiva eleva-se o espírito harmonioso de Orfeu.

Sócrates e Pitágoras, Platão e Aristóteles resumem, ao explicá-las, todas as aspirações do mundo antigo; as fábulas de Homero permanecem mais verdadeiras do que a história, e só nos restam das grandezas de Roma os escritos imortais que elaborou o século de Augusto.

Assim, Roma talvez só tenha abalado o mundo com suas guerreiras convulsões para gerar seu Virgílio.

O cristianismo é o fruto das meditações de todos os sábios do Oriente que revivem em Jesus Cristo.

Assim, a luz dos espíritos nasceu onde nasce o sol do mundo; o Cristo conquistou o Ocidente, e os doces raios do sol da Ásia tocaram os gelos do Norte.

Movidos por esse calor desconhecido, formigueiros de homens novos espalharam-se por um mundo exaurido; as almas dos povos mortos brilharam sobre os povos rejuvenescidos e aumentaram neles o espírito de vida.

Há no mundo uma nação que se chama franqueza e liberdade, pois essas duas palavras são sinônimos do nome França.

Essa nação sempre foi, de algum modo, mais católica do que o papa e mais protestante do que Lutero.

A França das cruzadas, a França dos trovadores e das canções, a França de Rabelais e de Voltaire, a França de Bossuet e de Pascal, ela é a síntese dos povos; ela consagra a aliança da razão e da fé, da revolução e do poder, da crença mais terna e da dignidade humana mais altiva.

Por isso, vede como ela caminha, como se agita, como luta, como cresce!

Freqüentemente enganada e ferida, nunca batida, entusiasta com seus triunfos, audaciosa em seus reveses, ela ri, canta, morre e ensina ao mundo a fé na sua imortalidade.

A velha guarda não se rende, mas também não morre. Confiai no entusiasmo de nossos filhos, que querem ser um dia, eles também, soldados da velha guarda!

Napoleão não é mais um homem, é o próprio gênio da França, é o segundo salvador do mundo, e também deu como símbolo a seus apóstolos a cruz!

Santa Helena e o Gólgota são os marcos da nova civilização, são os pilares de uma imensa arcada que o arco-íris do último dilúvio forma e que lança uma ponte entre dois mundos.

E pensaríeis que a espora de um tártaro quebrará um dia o pacto de nossas glórias, o testamento de nossa liberdade!

Dizei antes que voltaremos a ser crianças e retornaremos ao seio de nossas mães!

Caminha!, caminha!, diz a voz divina a Aasveros. Avança! avança! grita para a França o destino do mundo!… E para onde vamos? Para o desconhecido, para o abismo talvez; não importa! Mas para o passado, para os cemitérios do esquecimento, mas para os cueiros que nossa própria infância rasgou, mas para a imbecilidade e a ignorância das primeiras idades… nunca! nunca!

XV. O NÚMERO QUINZE

Quinze é o número do antagonismo e da catolicidade.

O cristianismo divide-se agora em duas Igrejas: a Igreja civilizadora e a Igreja bárbara, a Igreja progressista e a Igreja estacionária.

Uma é ativa, a outra é passiva; uma sempre condenou as nações e os governos, uma vez que os reis a temem; a outra submeteu-se a todos os despotismos e só pode ser um instrumento de servidão.

A Igreja ativa realiza Deus pelos homens e só ela crê na divindade do Verbo humano, intérprete do Verbo de Deus.

O que é, afinal de contas, a infalibilidade do papa, senão a autocracia da inteligência confirmada pelo sufrágio universal da fé?

A esse respeito, dir-se-á, o papa deveria ser o primeiro gênio de seu século. Por quê? É melhor, na realidade, que ele seja um espírito comum. Sua supremacia não é mais divina, porque é, de algum modo, mais humana.

Os acontecimentos não falam mais alto do que os rancores e as ignorâncias irreligiosas? Não vedes a França católica sustentar com uma mão o papado desfalecido e com a outra segurar a espada para combater na liderança do exército do progresso?

Católicos, israelitas, turcos, protestantes já combateram sob a mesma bandeira; o crescente uniu-se à cruz latina, e juntos lutamos contra a invasão dos bárbaros e contra sua embrutecida ortodoxia.

É para sempre um fato consumado. Ao admitir dogmas novos, a cátedra de São Pedro acaba de se pronunciar solenemente progressiva.

A pátria do cristianismo católico é a da ciência e das belas-artes, e o Verbo eterno do Evangelho vivo e encarnado numa autoridade visível é ainda a luz do mundo.

Silêncio pois aos fariseus da nova sinagoga! Silêncio às tradições odiosas da escola, ao presbiterianismo arrogante, ao jansenismo absurdo e a todas estas vergonhosas e supersticiosas interpretações do dogma eterno, tão justamente estigmatizadas pelo gênio impiedoso de Voltaire!

Voltaire e Napoleão morreram católicos. E será que sabeis o que deve ser o catolicismo do futuro?

Será o dogma evangélico posto à prova como ouro pela crítica dissolvente de Voltaire, e realizado no governo do mundo pelo gênio de um Napoleão cristão!

Os que não quiserem caminhar, os acontecimentos os arrastarão ou passarão sobre eles!

Imensas calamidades podem ainda pesar sobre o mundo. Os exércitos do Apocalipse um dia talvez desencadearão os quatro flagelos. O santuário será depurado. A santa e severa pobreza enviará seus apóstolos para sustentar todo aquele que cambalear, reanimar aquele que estiver fatigado e espalhar o óleo santo em todas as feridas!

O despotismo e a anarquia, esses dois monstros ávidos de sangue, dilacerar-se-ão e aniquilar-se-ão um ao outro depois de serem mutuamente sustentados, por pouco tempo, pelo próprio entrelaçamento de sua luta.

E o governo do futuro será aquele cujo modelo é mostrado na natureza pela família, no ideal religioso pela hierarquia dos pastores. Os eleitos devem reinar com Jesus Cristo durante mil anos, dizem as tradições apostólicas: ou seja, durante uma seqüência de séculos, a inteligência e o amor dos homens de elite dedicados aos encargos do poder administrarão os interesses e os bens da família universal.

Então, segundo a promessa do Evangelho só haverá um rebanho e um pastor.

XVI. O NÚMERO DEZESSEIS

Dezesseis é o número do templo.

Digamos o que será o templo do futuro.

Quando o espírito de inteligência e de amor tiver se revelado, toda trindade manifestar-se-á em sua verdade e em sua glória.

A humanidade transformada em rainha e, como que ressuscitada, terá a graça da infância em sua poesia, o vigor da juventude em sua razao e a sabedoria da idade madura em suas obras.

Todas as formas que o pensamento divino revestiu sucessivamente renascerão imortais e perfeitas.

Todos os traços que a arte sucessiva das nações tinha esboçado reunir-se-ão e formarão a imagem completa de Deus.

Jerusalém reconstruirá o templo de Jeová de acordo com o modelo profetizado por Ezequiel; e o Cristo, novo e eterno Salomão, nele cantará, debaixo de lambris de cedro e de ciprestes, suas núpcias com a santa liberdade, a jovem esposa do cântico.

Mas Jeová terá largado seu raio para abençoar com as duas mãos o noivo e a noiva: aparecerá sorridente entre os dois esposos e alegrar-se-á por ser chamado de pai.

Entretanto, a poesia do Oriente, em suas mágicas lembranças, ainda o chamará de Brama e Júpiter. A índia ensinará a nossos climas encantados as fábulas maravilhosas de Vishnu, e experimentaremos na fronte ainda ensangüentada de nosso Cristo bem-amado a tripla coroa de pérolas da mística trimurti. Vênus purificada sob o véu de Maria não mais chorará seu Adônis.

O esposo ressuscitou para não mais morrer, e o javali infernal encontrou a morte em sua passageira vitória.

Reerguei-vos, templos de Delfos e Éfeso! O deus da luz e das artes tornou-se o Deus do mundo, e o verbo de Deus concorda em ser chamado de Apolo! Diana não reinará mais como viúva nos campos solitários da noite; seu crescente prateado está agora sob os pés da esposa.

Mas Diana não foi vencida por Vênus; seu Endimião acaba de despertar, e a virgindade vai orgulhar-se de ser mãe!

Sai da tumba, ó Fídias, e alegra-te com a destruição de teu primeiro Júpiter: é agora que vais gerar um Deus!

Ó Roma! Que teus templos reergam-se ao lado de tuas basílicas; sê ainda a rainha do mundo e panteão das nações; que Virgílio seja coroado no capitólio pelas mãos de São Pedro; e que o Olimpo e o Carmelo unam suas divindades sob o pincel de Rafael!

Transfigurai-vos, antigas catedrais de nossos pais; arremessei até as nuvens vossas flechas cinzeladas e vivas, e que a pedra conte por figuras animadas as sombrias lendas do Norte, alegradas pelos apólogos dourados e maravilhosos do Alcorão!

Que o Oriente adore Jesus Cristo em suas mesquitas, e que nos minaretes de uma nova Santa Sofia a cruz se eleve em meio ao crescente!

Que Maomé liberte a mulher para dar ao verdadeiro crente as huris com que tanto sonhou, e que os mártires do Salvador ensinem castas carícias aos belos anjos de Maomé.

Toda a terra revestida com os ricos ornamentos que todas as artes lhe bordaram será então um templo magnífico, cujo padre eterno será o homem!

Tudo o que foi verdadeiro, tudo o que foi belo, tudo o que foi doce nos séculos passados reviverá gloriosamente nessa transfiguração do mundo.

E a forma bela continuará inseparável da idéia verdadeira, como o corpo será um dia inseparável da alma, quando a alma, tendo alcançado todo o seu poder, terá feito para si um corpo à sua imagem.

Esse será o reino do céu sobre a terra, e os corpos serão os templos da alma, da mesma forma que o universo regenerado será o templo de Deus.

E os corpos e as almas, e a forma e o pensamento, e o universo inteiro serão a luz, o Verbo e a revelação permanente e visível de Deus. Amém! Assim seja!

XVII. O NÚMERO DEZESSETE

Dezessete é o número da estrela; é o da inteligência e do amor.

Inteligência guerreira, audaciosa, cúmplice do divino Prometeu, primogênita de Lúcifer, louvor a ti em tua audácia! Quiseste saber para ter, desafiaste todos os trovões e afrontaste todos os abismos!

Inteligência, tu a quem os pobres pecadores amaram até o delírio, até o escândalo, até a reprovação! Direito divino do homem, essência e alma da liberdade, louvor a ti! Pois perseguiram-te pisoteando, por ti, todos os sonhos mais caros de sua imaginação, os fantasmas mais amados de seu coração!

Por ti foram repelidos e proscritos; por ti suportaram a prisão, o desenlace, a fome, a sede, o abandono daqueles que amavam e as sombrias tentações do desespero! Eras o direito deles, e eles conquistaram-te! Agora eles podem chorar e crer, podem submeter-se e rezar!

Caim arrependido teria sido maior do que Abel: é o legítimo orgulho satisfeito que tem o direito de se fazer humilde!

Creio porque sei por que e como é preciso crer; creio porque amo e porque não temo mais nada. Amor! amor! redentor e reparador sublime; tu que fazes tanta felicidade de tantas torturas, tu, o sacrificador do sangue e das lágrimas, tu que és a própria virtude e o salário da virtude; força da resignação, liberdade da obediência, alegria das dores, vida da morte, louvor, louvor e glória a ti! Se a inteligência é uma lâmpada, és a sua chama; se é o direito, és o dever; se é a nobreza, és a felicidade! Amor pleno de orgulho e pudor nos mistérios, amor divino, amor oculto, amor insano e sublime, Titã que toma o céu com duas mãos e que o força a descer, último e inefável segredo da viuvez cristã, amor eterno, amor infinito e ideal que seria suficiente para criar mundos, amor! amor! bênção e glória a ti! Glória às inteligências que se encobrem para não ofender os olhos doentes! Glória ao direito que se transforma inteiramente em dever e que se torna a devoção! às almas viúvas que amam e consumam-se sem serem amadas! aos que sofrem e não fazem nada sofrer, aos que perdoam os ingratos, aos que amam seus inimigos! Oh! felizes sempre, felizes mais do que nunca os que se empobrecem e que se esgotam para se dar! Felizes as almas que fazem sempre tua paz! Felizes os corações puros e simples que não se acham melhor do que ninguém! Humanidade minha mãe, humanidade filha e mãe de Deus, humanidade concebida sem pecado, Igreja universal, Maria! Feliz de quem tudo ousou para te conhecer e te entender, e de quem está pronto a tudo sofrer para te servir e te amar!

XVIII. O NÚMERO DEZOITO

Esse número é o do dogma religioso, que é toda poesia e todo mistério.

O Evangelho diz que, quando da morte do Salvador, o véu do templo rasgou-se, porque essa morte manifestou o triunfo da devoção, o milagre da caridade, o poder de Deus no homem, a humanidade divina e a divindade humana, o último e o mais sublime dos arcanos, a última palavra de todas as iniciações.

Mas o Salvador sabia que não seria compreendido a princípio, e disse: Não suportaríeis agora toda a luz de minha doutrina; mas, quando se manifestar o espírito de verdade, ele vos ensinará toda verdade e sugerirá o sentido do que eu vos disse.

Ora, o espírito de verdade é o espírito de ciência e de inteligência, o espírito de força e de conselho.

Foi esse espírito que se manifestou solenemente na Igreja romana, quando ela declarou nos quatro artigos do decreto de 12 de dezembro de 1845:

1º Que, se a fé for superior à razão, a razão deve apoiar as inspirações da fé;

2º Que a fé e a ciência tem cada uma seu domínio separado, e que uma não deve usurpar as funções da outra;

3º Que é próprio da fé e da graça não enfraquecer, mas, ao contrário, afirmar e desenvolver a razão;

4º Que o concurso da razão, que examina não as decisões da fé mas as bases naturais e racionais da autoridade que decide, longe de prejudicar a fé, não poderia senão ser-lhe útil; em outras palavras, que a fé, perfeitamente racional em seus princípios, não deve temer, mas deve, ao contrário, desejar o exame sincero da razão.

Semelhante decreto é toda uma revolução religiosa acabada, e a inauguração do Espírito Santo na terra.

XIX. O NÚMERO DEZENOVE

É o número da luz.

É a existência de Deus provada pela própria idéia de Deus.

Ou é preciso dizer que o Ser imenso é um túmulo universal, ou que se move automaticamente, uma forma sempre morta e cadavérica, ou é preciso admitir o princípio absoluto da inteligência e da vida.

A luz universal está morta ou viva? Fatalmente dedicada à obra da destruição ou providencialmente dirigida para a criação universal?

Se Deus não existe, a inteligência é apenas uma decepção pois ela carece de absoluto e seu ideal é uma mentira.

Sem Deus, o ser é um nada que se afirma, e a vida, uma morte que se disfarça.

A luz é uma noite sempre enganada pela miragem dos sonhos.

O primeiro e o mais essencial ato de fé é pois este.

O Ser é, e o ser do ser, a verdade do ser é Deus.

O Ser é vivo com inteligência, e a inteligência viva do Ser absoluto é Deus.

A luz é real e vivificante; ora, a realidade e a vida de toda luz é Deus.

O Verbo da razão universal é uma afirmação e não uma negação.

Cegos os que não vêem que a luz física é apenas o instrumento do pensamento!

Somente o pensamento vê a luz e a produz empregando-a em benefício próprio.

A afirmação do ateísmo é o dogma da noite eterna; a afirmação de Deus é o dogma da luz!

Vamos parar aqui, no décimo nono número, embora o alfabeto sagrado tenha vinte e duas letras; as dezenove primeiras são as chaves da teologia oculta. As outras são as chaves da natureza; voltaremos a elas na terceira parte desta obra.

Resumamos o que dissemos de Deus citando uma bela evocação emprestada da liturgia israelita. É uma página do Kether-Malkuth, poema cabalístico do rabino Salomão, filho de Gabirol.

“Sois um, o começo de todos os números, o fundamento de todos os edifícios; sois um e, no segredo de vossa unidade, os homens mais sábios perdem-se porque não a conhecem. Sois um, e vossa unidade nunca diminui, nem aumenta, nem sofre nenhuma alteração. Sois um, mas não como o um em matéria de cálculo, pois vossa unidade não admite nem multiplicação, nem mudança, nem fórmula. Sois um, para quem nenhuma de minhas fantasias pode fixar definição: eis por que vigiarei minha conduta, evitando cometer faltas com a língua. Sois um enfim, cuja excelência é tão elevada que não pode cair de maneira alguma, e não como em um que pode deixar de ser.

“Sois existente; entretanto, o entendimento e a vista dos mortais não podem atingir vossa existência nem colocar em vós o onde, o como e o porquê. Sois existente, mas em vós mesmo, uma vez que outro não pode existir convosco. Sois existente desde antes do tempo e em lugar algum. Sois enfim existente e vossa existência é tão oculta e tão profunda que ninguém pode descobri-Ia ou penetrar seu segredo.

“Sois vivo, mas não desde um tempo conhecido e fixo; sois vivo, mas não por um espírito e uma alma; pois sois a alma de todas as almas. Sois vivo, mas não como as vidas dos mortais, que são comparadas a um sopro, e cujo fim será o alimento dos vermes. Sois vivo, e aquele que puder atingir vossos mistérios desfrutará as delícias eternas e viverá para sempre.

“Sois grande, e perto de vossa grandeza todas estas grandezas se curvam, e tudo o que há de mais excelente torna-se defeituoso. Sois grande, acima de qualquer imaginação, e elevai-vos acima de todas as hierarquias celestes. Sois grande, acima de toda grandeza, e sois exaltado acima de qualquer louvor. Sois forte, e nenhuma de vossas criaturas fará as obras que fazeis e nem sua força poderá ser comparada à vossa. Sois forte, e é a vós que pertence essa força invencível que não muda nem se altera nunca. Sois forte, e por vossa magnanimidade perdoais no momento de vossa mais ardente cólera, e mostrai-vos paciente para com os pecadores. Sois forte, e vossas misericórdias que sempre existiram estendem-se para todas as vossas criaturas. Sois a luz eterna que as almas puras verão e que a nuvem dos pecados ocultará aos olhos dos pecadores. Sois a luz que é oculta neste mundo e visível no outro, onde a glória do Senhor se mostra. Sois soberano, e os olhos do entendimento que desejam vervos estão inteiramente espantados por só poderem atingir de vós uma parte e nunca o todo. Sois o Deus dos deuses, testemunham-no todas vossas criaturas; e em honra desse grande nome todas devem render-vos culto. Sois Deus, e todas as criaturas são vossas servidoras e vossas adoradoras; vossa glória não é embaçada mesmo que outros sejam adorados, porque a intenção deles é a de se dirigir a vós; são como cegos, cujo objetivo é seguir o grande caminho, e perdem-se. Um afoga-se num poço e o outro cai numa fossa; todos, em geral, acreditam ter alcançado seus desejos e, no entanto, cansaram-se em vão. Mas vossos servidores são como clarividentes que andam num caminho seguro, e que dele nunca se afastam, nem à direita, nem à esquerda, até que entrem no adro do palácio do rei. Sois Deus que sustentais por vossa deidade todos os seres e que socorreis por vossa unidade todas as criaturas. Sois Deus, e não há diferença entre vossa deidade, vossa unidade, vossa eternidade e vossa existência; pois tudo é um mesmo mistério; e, embora os nomes variem, tudo retorna ao mesmo. Sois sábio, e essa ciência, que é a fonte da vida, emana de vós mesmo; e em comparação com vossa ciência os homens mais sábios são estúpidos. Sois sábio e o antigo dos antigos, e a ciência sempre alimentou-se convosco. Sois sábio, e não aprendesses a ciência com ninguém, e tampouco a adquirisses de outro senão de vós. Sois sábio e, como um operário e um arquiteto, reservasses de vossa ciência uma divina vontade, num tempo marcado para atrair o ser do nada; do mesmo modo que a luz que sai dos olhos é atraída de seu próprio centro sem nenhum instrumento ou ferramenta. Essa divina vontade cavou, traçou, purificou e fundiu; ordenou ao nada abrir-se, ao ser aprofundar-se e ao mundo estender-se. Mediu os céus com o palmo, com seu poder reuniu o pavilhão das esferas, com o laço de seu poder cerrou as cortinas das criaturas do universo e, tocando com sua força a ponta da cortina da criação, uniu a parte superior à inferior.”

Extraído das orações do Kippur

Demos a essas ousadas especulações cabalísticas a única forma que lhes convém, a da poesia ou da inspiração do coração.

As almas crentes não precisam das hipóteses racionais contidas nessa explicação nova das figuras da Bíblia, mas os corações sinceros e afligidos pela dúvida, e que a crítica do século dezoito atormenta, compreenderão ao lê-la que a própria razão sem a fé pode encontrar no livro sagrado outra coisa além de escolhos; se os véus com que os textos divinos são cobertos projetam uma grande sombra, essa sombra é tão maravilhosamente desenhada pelas oposições da luz que se torna a única imagem inteligível de um ideal divino.

Ideal incompreensível como o infinito e indispensável como a própria essência do mistério.

ARTIGO II

Solução do segundo problema

A VERDADEIRA RELIGIÃO

A religião existe na humanidade como no amor.

É única como ele.

Como ele, existe ou não existe nesta ou naquela alma; mas, seja aceita ou negada, está na humanidade, está, portanto, na vida, está na natureza, é incontestável diante da ciência e mesmo diante da razão.

A verdadeira religião é a que sempre existiu, que existe e que sempre existirá.

Podem-nos dizer que a religião é isto ou aquilo; a religião é o que é. A religião é ela, e as falsas religiões são superstições dela copiadas, dela emprestadas, sombras mentirosas dela própria.

Pode-se dizer da religião o que se diz da arte verdadeira. As tentativas bárbaras de pintura ou escultura são tentativas da ignorância para se chegar à verdade. A arte prova-se por si, brilha com seu próprio esplendor, é única e eterna como a beleza.

A verdadeira religião é bela, e é por esse caráter divino que se impõe aos respeitos da ciência e ao assentimento da razão.

A ciência não poderia, sem temeridade, afirmar ou negar as hipóteses do dogma que são verdades para a fé; mas pode reconhecer, em certos aspectos, a única religião verdadeira, ou seja, a única que merece o nome de religião, reunindo todos os aspectos que convêm a essa grande e universal aspiração da alma humana.

Uma só coisa evidentemente divina manifestou-se para todos no mundo.

É a caridade.

A obra da verdadeira religião deve ser a de produzir, conservar e difundir o espírito de caridade. Para alcançar esse objetivo, é preciso que ela própria tenha todas as características da caridade, de modo que se possa bem defini-la, nomeando-a de caridade organizada.

Ora, quais são as características da caridade?

É São Paulo quem vai nos ensinar.

A caridade é paciente.

Paciente como Deus, porque ela é eterna como ele. Sofre as perseguições e nunca persegue ninguém.

É benevolente e indulgente, chamando para si os pequenos e não rechaçando os grandes.

Não é invejosa. A quem e a que invejaria, não tem a melhor parte que nunca lhe será tirada?

Não é nem inquieta e nem intrigante.

Não tem orgulho, ambição, egoísmo, ira.

Nunca supõe o mal e nunca triunfa pela injustiça, pois põe toda sua alegria na verdade.

Suporta tudo sem jamais tolerar o mal.

Crê em tudo, sua fé é simples, submissa, hierárquica e universal.

Sustenta tudo, e nunca impõe fardos que não carregasse antes.

A religião é paciente, é a religião dos grandes trabalhadores do pensamento: é a religião dos mártires.

É benevolente como o Cristo e os apóstolos, como os Vicentes de Paulo e os Fenelons.

Não deseja nem as dignidades nem os bens da terra. É a religião dos pais do deserto, de São Francisco de Assis e de São Bruno, das irmãs de caridade e dos irmão de São João de Deus.

Não é nem inquieta nem intrigante, ela reza, faz o bem e espera. É humilde, é doce, só inspira a devoção e o sacrifício. Tem, enfim, todas as características da caridade, porque é a própria caridade.

Os homens, ao contrário, são impacientes, perseguidores, invejosos, cruéis, ambiciosos, injustos e mostram-se como tais em nome dessa religião que puderam caluniar, mas que nunca obrigarão a mentir. Os homens passam, e a verdade é eterna.

Filha da caridade e criando por sua vez a caridade, a verdadeira religião é essencialmente realizadora; acredita nos milagres da fé, porque os cumpre todos os dias quando faz a caridade. Uma religião que faz a caridade pode vangloriar-se de realizar todos os sonhos do amor divino. Assim, a fé da Igreja hierárquica transforma o mistério em realismo pela eficácia de seus sacramentos. Não mais signos, não mais figuras que não tenham sua força na graça e que não dêem realmente o que prometem. A fé anima tudo, torna tudo de algum modo visível e palpável; as próprias parábolas de Jesus Cristo tomam um corpo e uma alma. Mostra-se em Jerusalém a casa do mau rico. Os simbolismos esparsos das religiões primitivas, abandonados pela ciência e privados da vida da fé, assemelhavam-se a essas ossadas embranquecidas que cobriam o campo de Ezequiel. O espírito do Salvador, o espírito de fé, o espírito de caridade sopraram esse pó, e tudo o que estava morto recuperou uma vida tão real que não se reconhece mais nesses vivos de hoje os cadáveres de ontem.

 

Grande Pantáculo tirado da visão de São João

E por que seriam reconhecidos, uma vez que o mundo renovou-se, uma vez que São Paulo queimou no Éfeso os livros dos hierofantes. São Paulo era pois um bárbaro, e não estava cometendo um atentado contra a ciência? Não, mas ele queimava os sudários dos ressuscitados para fazê-los esquecer a morte. Por que então lembramos hoje as origens cabalísticas do dogma? Por que então lembramos hoje as origens cabalísticas do dogma? Por que relacionamos as figuras da Bíblia com as alegorias de Hermes? Será para condenar São Paulo, para trazer a dúvida aos crentes? Certamente não, pois os crentes não necessitam de nosso livro, não o lerão, não o quererão compreender. Mas queremos mostrar à multidão inumerável dos que duvidam que a fé relaciona-se à razão de todos os séculos, à ciência de todos os sábios. Queremos forçar a liberdade humana e respeitar a autoridade divina, a razão a reconhecer as bases da fé, para que a fé e a autoridade, por sua vez, nunca mais proscrevam nem a liberdade nem a razão.

ARTIGO III

Solução do terceiro problema

RAZÃO DOS MISTÉRIOS

Sendo a fé a aspiração ao desconhecido, o objeto da fé é absoluta e necessariamente o mistério.

Para formular suas aspirações, a fé é forçada a emprestar do conhecido aspirações e imagens.

Mas ela especializa o emprego dessas formas ao reuni-las de uma maneira impossível na ordem conhecida. Tal é a profunda razão do aparente absurdo do simbolismo.

Demos um exemplo:

Se a fé dizia que Deus é impessoal, poder-se-ia concluir daí que Deus é apenas uma palavra ou, no máximo, uma coisa.

Se ela dizia que Deus é uma pessoa, o infinito inteligente seria representado sob a forma necessariamente limitada de um indivíduo.

Ela diz Deus é um em três pessoas para exprimir que se concebe em Deus a unidade e o número.

A fórmula do mistério exclui necessariamente a própria inteligência dessa fórmula, na medida em que empresta do Verbo coisas conhecidas, pois se fosse compreendida exprimiria o conhecido e não o desconhecido.

Pertenceria, então, à ciência e não mais à religião, isto é, à fé.

O objeto da fé é um problema de matemática onde o x escapa aos procedimentos de nossa álgebra.

As matemáticas absolutas provam somente a necessidade e, por conseguinte, a existência desse conhecido representado pelo x intraduzível.

Ora, por mais que a ciência avance em seu progresso indefinido, mas sempre relativamente finito, nunca encontrará na língua do finito a expressão completa do infinito. O mistério é, portanto, eterno.

Fazer entrar na lógica do conhecido os termos de uma profissão de fé é fazê-los sair da fé que tem por bases positivas o ilogismo, isto é, a impossibilidade de explicar logicamente o desconhecido.

Para os israelitas, Deus está separado da humanidade, não vive nas criaturas, é um egoísmo infinito.

Para os muçulmanos, Deus é uma palavra diante da qual nos prosternamos sobre a fé de Maomé.

Para os cristãos, Deus revelou-se na humanidade, prova-se pela caridade, reina pela ordem que constitui a hierarquia.

A hierarquia é guardiã do dogma, cuja letra e cujo espírito quer que respeitemos. Os sectários que, em nome de sua razão, ou melhor, de sua desrazão individual, tocaram o dogma, perderam, por esse mesmo fato, o espírito de caridade, excomungaram a si próprios.

O dogma católico, isto é, universal, merece esse belo nome resumindo todas as aspirações religiosas do mundo; ele afirma a unidade de Deus com Moisés e Maomé, reconhece em si a trindade infinita da geração eterna com Zoroastro, Hermes e Platão, concilia com o Verbo único de São João os números vivos de Pitágoras, eis o que a ciência e a razão podem constatar. É portanto diante da própria razão e diante da ciência o dogma mais perfeito, isto é, o mais perfeito que alguma vez se produziu no mundo. Que a ciência e a razão nos concedam isso, não lhes pediremos mais nada.

Substituir o despotismo legítimo da lei pelo arbitrário humano, pôr, em outras palavras, a tirania no lugar da autoridade é obra de todos os protestantismos e de todas as democracias. O que os homens chamam de liberdade é a sanção da autoridade ilegítima ou, antes, a ficção do poder não sancionado pela autoridade.

João Calvino protestava contra as fogueiras de Roma para se dar o direito de queimar Miguel Servet. Todo povo que se libertou de um Carlos I ou de um Luís XVI submeteu-se a um Robespierre ou a um Cromwel, e existe um antipapa mais ou menos absurdo por trás de todos os protestos contra o papado legítimo.

A divindade de Jesus Cristo só existe na Igreja católica, para a qual ele transmite hierarquicamente sua vida e seus poderes divinos. Essa divindade é sacerdotal e real por comunhão, mas fora dessa comunhão toda afirmação da divindade de Jesus Cristo é idolátrica, porque Jesus Cristo não poderia ser um Deus separado.

Pouco importa à verdade católica o número dos protestantes.

Se todos homens fossem cegos, essa seria uma razão para negar a existência do sol?

A razão, protestando contra o dogma, prova suficientemente que não o inventou, mas é forçada a admirar a moral que resulta desse dogma. Ora, se a moral é uma luz, é preciso que o dogma seja um sol, a claridade não vem das trevas.

Entre os abismos do politeísmo e do deísmo absurdo e limitado, só há um meio possível: o mistério da santíssima trindade.

Entre o ateísmo especulativo e o antropomorfismo só há um meio possível: o mistério da encarnação.

Entre a fatalidade imoral e a responsabilidade draconiana que decidiria pela danação de todos os seres, só há um meio possível: o mistério da redenção.

A trindade é a fé.

A encarnação é a esperança.

A redenção é a caridade.

A trindade é a hierarquia.

A encarnação é a autoridade divina da Igreja.

A redenção é o sacerdócio único, infalível, indefectível e católico.

Somente a Igreja católica possui um dogma invariável e encontra-se por sua própria constituição na impossibilidade de corromper a moral; ela não inova, explica. Assim, por exemplo, o dogma da imaculada concepção não é novo, estava inteiramente contido no Théotokon do concílio de Éfeso, e o Théotokon é uma conseqüência rigorosa do dogma católico da encarnação.

Da mesma forma, a Igreja católica não faz excomunhões, ela as declara e só ela as pode declarar, porque é a única guardiã da unidade.

Fora da barca de Pedro, só há o abismo. Os protestantes assemelham-se às pessoas que, cansadas da arfagem, jogar-se-iam na água para evitar o enjôo.

E da catolicidade, tal qual é constituída na Igreja católica, que é preciso dizer o que Voltaire disse de Deus com tanta ousadia.

Se não existisse, seria preciso inventá-la. Mas, se um homem fosse capaz de inventar o espírito de caridade, teria também inventado Deus. A caridade não se inventa, revela-se por suas obras, e é então que se pode gritar com o Salvador do mundo: Felizes os que têm o coração puro, pois verão a Deus!

Entender o espírito de caridade é ter a inteligência de todos os mistérios.

ARTIGO IV

Solução do quarto problema

A RELIGIÃO PROVADA PELAS OBJEÇÕES QUE LHE SÃO OPOSTAS

As objeções que se pode fazer contra a religião podem ser feitas seja em nome da razão, seja em nome da fé.

A ciência não pode negar os fatos da existência da religião, de seu estabelecimento e de sua influência sobre os acontecimentos da história. É proibido a ela tocar no dogma, o dogma pertence inteiramente à fé.

A ciência arma-se comumente contra a religião com uma série de fatos que tem o direito de apreciar, que de fato aprecia com severidade, mas que a religião condena mais energicamente ainda do que a ciência.

Assim fazendo, a ciência dá razão à religião e censura a si própria; carece de lógica, acusa a desordem que toda paixão rancorosa introduz no espírito dos homens e a necessidade incessante que ele tem de ser reerguido e dirigido pelo espírito de caridade.

A razão, por sua vez, examina o dogma e considera-o absurdo.

Mas, se não o fosse, a razão compreendê-lo-ia; se ela o compreendesse, não seria mais a fórmula do desconhecido.

Seria uma demonstração matemática do infinito.

Seria o infinito finito, o desconhecido conhecido, o incomensurável medido, o indizível nomeado.

Isso quer dizer que o dogma só deixaria de ser absurdo diante da razão, para se tornar, diante da fé, da ciência, da razão e do bom senso reunidos, o mais monstruoso e o mais impossível de todos os absurdos.

Restam as objeções da fé dissidente.

Os israelitas, nossos pais em religião, censuram-nos por termos atentado contra a unidade de Deus, por termos mudado uma lei imutável e eterna, por adorarmos a criatura no lugar do criador.

Essas censuras são fundamentadas numa noção perfeitamente falsa do cristianismo.

Nosso Deus é o Deus de Moisés, Deus único, imaterial, infinito, o só adorável e sempre o mesmo.

Como os judeus, acreditamo-lo presente em todos os lugares, mas, como eles deveriam fazer, acredítamo-lo vivo, pensante e amante na humanidade e adoramo-lo em suas obras.

Não mudamos sua lei, pois o decálogo dos israelitas é também a lei dos cristãos.

A lei é imutável, porque está fundamentada em princípios eternos da natureza; mas o culto exigido pelas necessidades do homem pode variar e modificar-se com os homens.

O que o culto significa é imutável, mas o culto modifica-se como as línguas.

O culto é um ensinamento, é uma língua, é preciso traduzi-lo quando as nações não o compreendem mais.

Traduzimos e não destruímos o culto de Moisés e dos profetas.

Adorando Deus na criação, não estamos adorando a própria criação.

Adorando Deus em Jesus Cristo, é somente Deus que adoramos, mas Deus unido à humanidade.

Tornando a humanidade divina, o cristianismo revelou a divindade humana.

O Deus dos judeus era inumano, porque eles não o compreendiam em suas obras.

Somos, portanto, mais israelitas que os próprios israelitas. No que acreditam, acreditamos com eles e melhor que eles. Acusam-nos de estarmos separados dele e são eles, ao contrário, que querem estar separados de nós.

Esperamo-los de coração e braços abertos.

Somos, como eles, discípulos de Moisés.

Como eles, viemos do Egito e detestamos sua servidão. Mas nós estamos na terra prometida, e eles obstinam-se em permanecer e morrer no deserto.

Os muçulmanos são os bastardos de Israel, ou melhor, são seus filhos deserdados, como Esaú.

Sua crença é ilógica, pois admitem que Jesus é um grande profeta, e tratam os cristãos como infiéis.

Reconhecem a inspiração divina de Moisés e não vêem os judeus como irmãos.

Acreditam cegamente em seu cego profeta, o fatalista Maomé, o inimigo do progresso e da liberdade.

Não tiremos, no entanto, de Maomé a glória de ter proclamado a unidade de Deus entre os árabes idólatras.

Encontram-se no Alcorão páginas puras e sublimes.

É lendo essas páginas que se pode dizer com os filhos de Ismael: Não existe outro Deus senão Deus, e Maomé é seu profeta.

Há três tronos no céu para os três profetas das nações; mas, no fim dos tempos, Maomé será substituído por Elias.

Os muçulmanos nada censuram nos cristãos, eles injuriam-nos.

Chamam-nos de infiéis e de giaurs, isto é, cães. Não temos nada a lhes responder.

Não se deve refutar os turcos e os árabes, é preciso instruí-los e civilizá-los.

Restam os cristãos dissidentes, isto é, aqueles que, tendo rompido o laço de união, declaram-se estrangeiros à caridade da Igreja.

A ortodoxia grega, irmã gêmea da Igreja romana, que não cresceu desde sua separação, que não tem mais importância nos faustos religiosos, que, desde Fócio, não inspirou uma única eloqüência; Igreja que se tornou inteiramente temporal e cujo sacerdócio não é mais que uma função regulada pela política imperial do czar de todas as Rússias; múmia curiosa da Igreja primitiva, colorida e dourada com todas as suas lendas e com todos os seus ritos que os popes não compreendem mais; sombra de uma Igreja viva, mas que quis parar quando essa Igreja avançava e que não é mais que uma silhueta apagada e sem cabeça.

Depois, os protestantes, esses eternos reguladores da anarquia, que romperam o dogma e tentam sempre preenchê-lo com raciocínios, como o tonel das Danaides; esses fantasistas religiosos cujas inovações em sua totalidade são negativas, que formularam para uso próprio um desconhecido pretensamente mais conhecido, mistérios mais explicados, um infinito mais definido, uma imensidão mais restrita, uma fé mais duvidosa, que quintessenciaram o absurdo, cindiram a caridade e tomaram atos de anarquia pelos princípios de uma hierarquia para sempre impossível; esses homens que querem realizar a salvação somente pela fé, porque a caridade lhes escapa e que nada mais podem realizar, mesmo sobre a terra, pois seus pretensos sacramentos não são mais que farsas alegóricas, não dão mais a graça, não fazem mais ver a Deus nem tocar em Deus, não são mais, em uma palavra, os signos da onipotência da fé, mas as testemunhas forçadas da impotência eterna da dúvida.

Foi, portanto, contra a própria fé que a reforma protestou. Os protestantes tiveram razão contra o zelo inconsiderado e perseguidor que queria forçar as consciências. Exigiram o direito de duvidar, o direito de ter menos religião ou de não a ter absolutamente; derramaram seu sangue por esse triste privilégio; conquistaram-no, possuem-no, mas não nos tirarão o de lastimá-los e de amá-los. Quando sentirem novamente a necessidade de acreditar, quando seu coração revoltar-se por sua vez contra a tirania de uma razão falseada, quando se cansarem das frias abstrações de seu dogma arbitrário, das vãs observâncias de seu culto sem efeito, quando sua comunhão sem presença real, suas igrejas sem divindade e sua moral sem perdão os aterrorizarem enfim, assim que ficarem doentes da nostalgia de Deus, não se levantarão como o filho pródigo e não virão jogar-se aos pés do sucessor de Pedro dizendo-lhe: Pai, pecamos contra o céu e contra vós, já não somos dignos de ser chamados vossos filhos, mas incluí-nos ao menos entre vossos mais humildes servidores.

Não falaremos da crítica de Voltaire. Esse grande espírito estava dominado por um ardente amor pela verdade e pela justiça, mas faltava-lhe esta retidão do coração que dá a inteligência da fé. Voltaire não podia admitir a fé, porque não sabia amar. O espírito de caridade não se revelou a essa alma sem ternura, e ele criticou amargamente um fogo cujo calor não sentia e uma lâmpada cuja luz não via. Se a religião fosse tal qual viu, teria tido mil vezes razão em atacá-la e seria preciso ajoelhar-se diante do heroismo de sua coragem. Voltaire seria o messias do bom senso, o hércules destruidor do fanatismo. Mas este homem ria demais para compreender aquele que disse: Felizes dos que choram, e a filosofia do riso nunca terá nada em comum com a religião das lágrimas.

Voltaire parodiou a Bíblia, o dogma, o culto, depois ridicularizou, achincalhou, vilipendiou sua paródia.

Apenas aqueles que vêem a religião na paródia de Voltaire podem se ofender com isso. Os voltairianos assemelham-se às rãs da fábula que saltam sobre as vigas e, em seguida, zombam da majestade real. São livres para tomar a viga por um rei, são livres para refazer esta caricatura romana de que, outrora, Tertuliano ria, e que representava o Deus dos cristãos na figura de um homem com cabeça de asno. Os cristãos darão de ombros ao ver essa brejeirice e pedirão a Deus pelos pobres ignorantes que pretendiam insultá-los.

O senhor conde Joseph de Maistre, depois de ter representado, num de seus mais eloqüentes paradoxos, o carrasco como um ser sagrado e como uma encarnação permanente de justiça divina na terra, queria que se erguesse para o ancião de Ferney uma estátua pela mão do carrasco. Existe profundidade nesse pensamento. Voltaire, com efeito, foi também, no mundo, um ser ao mesmo tempo providencial e fatal, dotado de insensibilidade para a realização de suas terríveis funções. Foi, no domínio da inteligência, um executor das grandes obras, um executor armado com a própria justiça de Deus.

Deus enviou Voltaire entre o século de Bossuet e o de Napoleão para aniquilar tudo o que separa esses dois gênios e reuni-los num só.

Era o Sansão do espírito, sempre pronto a sacudir as colunas do templo; mas, para fazê-lo girar, a contragosto, a pedra do moinho do progresso religioso, a Providência parecia ter cegado seu coração.

ARTIGO V

Solução do último problema

SEPARAR A RELIGIÃO DA SUPERSTIÇÃO E DO FANATISMO

A superstição, da palavra latina superstes, sobrevivente, é o símbolo que sobreviveu à idéia, é a forma preferida à coisa, é o rito sem razão, é a fé tornada insensata, porque se isola. E, por conseguinte, o cadáver da religião, a morte da vida, é a inspiração substituída pelo embrutecimento.

O fanatismo é a superstição apaixonada, seu nome vem da palavra fanum, que significa templo, é o templo colocado no lugar de Deus, é a honra do sacerdote substituída pelo interesse humano e temporal do padre, é a paixão miserável do homem explorando a fé do crente.

Na fábula do asno carregado de relíquias, La Fontaine diz-nos que o animal acreditou ser adorado, não nos diz que algumas pessoas acreditaram de fato adorar o animal. Essas pessoas eram os supersticiosos.

Se alguém tivesse rido de suas tolices, teriam-no talvez assassinado, pois da superstição ao fanatismo há um só passo.

A superstição é a religião interpretada pela tolice; o fanatismo é a religião servindo de pretexto à fúria.

Os que confundem proposital e preconceituosamente a própria religião com a superstição e o fanatismo emprestam à tolice suas prevenções cegas e talvez emprestassem ao fanatismo suas injustiças e seus ódios.

Inquisidores ou participantes dos Massacres de Setembro, que importam os nomes? A religião de Jesus Cristo condena e sempre condenou os assassinos.

RESUMO DA PRIMEIRA PARTE EM FORMA DE DIÁLOGO

A FÉ, A CIÊNCIA, A RAZÃO

A CIÊNCIA – Nunca me fareis acreditar na existência de Deus.

A FÉ – Não tendes o privilégio de acreditar, mas nunca me provareis que Deus não existe.

A CIÊNCIA – Para vo-lo provar, é preciso que, em primeiro lugar, eu saiba o que é Deus.

A FÉ – Não o sabereis nunca. Se soubésseis, poderíeis ensinarmo, e, quando eu o soubesse, não mais acreditaria nele.

A CIÊNCIA – Acreditais, então, sem saber em que estais acreditando?

A FÉ – Ali! não joguemos com as palavras. Sois vós quem não sabeis em que eu acredito, precisamente porque vós não o sabeis. Tendes a pretensão de ser infinita? Não sois interrompida a cada instante pelo mistério? O mistério é para vós uma ignorância que reduziria ao nada o finito de vosso saber, se eu não o iluminasse com minhas ardentes inspirações, e quando dizeis: Eu não sei mais, eu gritaria: Quanto a mim, começo a acreditar.

A CIÊNCIA – Mas vossas aspirações e seu objeto são e só podem ser hipóteses para mim.

A FÉ – Sem dúvida, mas são certezas para mim, uma vez que sem essas hipóteses eu duvidaria até mesmo de vossas certezas.

A CIÊNCIA – Mas, se começais onde eu paro, começais temerariamente muito cedo. Meus progressos atestam que eu ando sempre.

A FÉ – Que importam os vossos progressos, se ando sempre na vossa frente?

A CIÊNCIA – Tu, andar! sonhadora da eternidade, desdenhaste demais a terra, teus pés estão dormentes.

A FÉ – Sou carregada por meus filhos!

A CIÊNCIA – São cegos que carregam um outro, cuidado com os precipícios!

A FÉ – Não, meus filhos não são cegos, muito pelo contrário, desfrutam de dupla visão, vêem por teus olhos o que tu podes demonstrar para eles na terra e contemplam, pelos meus, o que lhes mostro no céu.

A CIÊNCIA – O que a razão pensa disso?

A RAZÃO – Penso, ó caras mestras, que poderíeis realizar um apólogo tocante, o do paralítico e o do cego. A ciência censura a fé por não saber andar na terra, e a fé diz que a ciência não vê nada no céu das aspirações e da eternidade. Ao invés de brigarem, ciência e fé deveriam unir-se: que a ciência carregue a fé e a fé console a ciência, ensinando-lhe esperar e amar.

A CIÊNCIA – Essa idéia é bela, mas é uma utopia. A fé dir-me-á absurdos, e eu quero andar sem ela.

A FÉ – O que é que chamais de absurdos?

A CIÊNCIA – Chamo de absurdos as proposições contrárias às minhas demonstrações, como, por exemplo, que três são um, que um Deus fez-se homem, isto é, que o infinito fez-se finito. Que o Eterno morreu, que Deus puniu seu filho inocente pelo pecado dos homens culpados…

A FÉ – Não digas mais nada. Externadas por ti, essas proposições são, de fato, absurdos. Por acaso sabes o que é o número em Deus, tu que não conheces Deus? És capaz de raciocinar sobre as operações do desconhecido? És capaz de entender os mistérios da caridade? Devo ser sempre absurda para ti, pois se entendesses minhas afirmações, elas seriam absorvidas por teus teoremas; eu seria tu, e tu serias eu, para dizer melhor, eu não existiria mais, e a razão, em presença do infinito, deter-se-ia sempre cegada por tuas dúvidas tão infinitas quanto o espaço.

A CIÊNCIA – Pelo menos, nunca usurpes minha autoridade, não me desmintas em meus domínios.

A FÉ – Nunca o fiz, e não posso nunca o fazer.

A CIÊNCIA – Assim, nunca acreditaste, por exemplo, que uma virgem possa ser mãe sem deixar de ser virgem, e isso na ordem física, natural e positiva, a despeito de todas as leis da natureza; não afirmas que um pedaço de pão é não somente um Deus mas um corpo humano verdadeiro, com ossos e veias, órgãos, sangue, de maneira que fazes de teus filhos que comem esse pão um povinho antropófago.

A FÉ – Não é cristão quem não se revolte com o que acabaste de dizer. Isso prova o suficiente que eles não entendem meus ensinamentos dessa maneira positiva e grosseira. O sobrenatural que afirmo está acima da natureza e não poderia, por conseguinte, opor-se a ela, as palavras de fé só são compreendidas pela fé; nada que, em as repetindo, a ciência desnature. Sirvo-me de tuas palavras, porque não tenho outras; mas uma vez que achas meus discursos absurdos, deves concluir que dou a essas mesmas palavras um significado que te escapa. O Salvador, ao revelar o dogma da presença real, não disse: A carne aqui não tem nenhuma serventia, minhas palavras são espírito e vida? Não te apresento o mistério da encarnação como um fenômeno de anatomia nem o da transubstanciação como uma manifestação química. Com que direito gritarias ao absurdo? Eu não raciocino sobre nada do que conheceis; com que direito dirias que eu disparato?

A CIÊNCIA – Começo a te compreender, ou melhor, vejo que nunca te compreenderei. Nesse caso, continuemos separadas, nunca precisarei de ti.

A FÉ – Sou menos orgulhosa e reconheço que me podes ser útil. Talvez também sem mim estarias bem triste e bem desesperada, e não quero separar-me de ti, a menos que a razão o consinta.

A RAZÃO – Não façais isso. Sou necessária a ambas. E eu, que faria sem vós? Preciso saber e crer para ser justa. Mas nunca devo confundir o que sei com o que acredito. Saber não é mais acreditar, acreditar não é saber ainda. O objeto da ciência é o conhecido, a fé não se ocupa dele e deixa-o inteiramente à ciência. O objeto da fé é o desconhecido, a ciência pode buscá-lo, mas não defini-lo; é portanto forçada, pelo menos provisoriamente, a aceitar as definições da fé que lhe é até mesmo impossível de criticar. Somente se a ciência renuncia à fé, renuncia à esperança e ao amor, cuja existência e necessidade são, no entanto, tão evidentes para a ciência quanto para a fé. A fé, como fato psicológico, pertence ao domínio da ciência, e a ciência, como manifestação da luz de Deus na inteligência humana, pertence ao domínio da fé. A ciência e a fé devem, portanto, aceitar-se, respeitar-se mutuamente, até mesmo sustentar-se e socorrer-se nas necessidades, mas sem nunca usurpar uma à outra. O meio de as unir é nunca as confundir. Mas não deve haver contradição entre elas, pois servindo-se das mesmas palavras não falam a mesma língua.

A FÉ – Pois bem! irmã ciência, o que dizeis disso?

A CIÊNCIA – Digo que estávamos separadas por um deplorável mal-entendido e que, doravante, podemos andar juntas. Mas a qual de seus símbolos vais-me associar? Serei judia, católica, muçulmana ou protestante?

A FÉ – Continuarás sendo a ciência e serás universal.

A CIÊNCIA – Ou seja, católica, se bem compreendo. Mas o que devo pensar das diferentes religiões?

A FÉ – Julga-as por suas obras. Procure a caridade verdadeira e, quando a tiver encontrado, pergunta-lhe a que culto pertence.

A CIÊNCIA – Não será certamente ao dos inquisidores e dos carrascos da Noite de São Bartolomeu.

A FÉ – É ao de São João, o Esmoler, de São Francisco de Sales, de São Vicente de Paulo, de Fenelon e de tantos outros.

A CIÊNCIA – Reconheceis que, se a religião produziu algum bem, fez também muito mal.

A FÉ – Quando se mata em nome do Deus que disse: Não matarás, quando se persegue em nome daquele que quer que se perdoe os inimigos, quando se propaga trevas em nome daquele que não quer que se oculte a luz, será justo atribuir o crime à própria lei que o condena? Dize, se quereis ser justa, que, apesar da religião, muito mal foi feito na terra. Mas, também, quantas virtudes ela fez nascer, quantos devotamentos e sacrifícios ignorados? Contaste estes nobres corações de ambos os sexos que renunciaram a todas as alegrias para se pôr ao serviço de todas as dores? Essas obras devotadas ao trabalho e à oração que passaram fazendo o bem? Quem pois fundou asilos para os órfãos e os idosos, hospícios para os doentes, retiros para o arrependimento? Essas instituições tão gloriosas quanto modestas são obras reais de que os anais da Igreja estão cheios; as guerras de religião e os suplícios dos sectários pertencem à política dos séculos bárbaros. Os sectários, aliás, eram eles próprios assassinos. Esquecestes a fogueira de Miguel Servet e o massacre de nossos padres renovado ainda em nome da humanidade e da razão pelos revolucionários inimigos da inquisição e da Noite de São Bartolomeu? Os homens são sempre cruéis, quando esquecem a religião que os abençoa e perdoa.

A CIÊNCIA – Ó fé, perdoa-me então se não posso acreditar, mas sei agora por que és crente. Respeito tuas esperanças e partilho de teus desejos. Mas é pesquisando que eu encontro e é preciso que eu duvide para pesquisar.

A RAZÃO – Trabalha e procura, então, ó ciência, mas respeita os oráculos da fé. Quando tua dúvida deixar uma lacuna no ensinamento universal, permite à fé preenchê-la. Andai distintas uma da outra, mas apoiadas uma na outra, e nunca vos separeis.

SEGUNDA PARTE

MISTÉRIOS FILOSÓFICOS

Considerações preliminares

Diz-se que o belo é o esplendor do verdadeiro.

Ora, a beleza moral é a bondade. É belo ser bom.

Para ser bom com inteligência, é preciso ser justo.

Para ser justo, é preciso agir com razão.

Para agir com razão, é preciso ter a ciência da realidade.

Para ter a ciência da realidade, é preciso ter consciência da verdade.

Para ter consciência da verdade, é preciso ter uma noção exata do ser.

O ser, a verdade, a razão e a justiça são os objetos comuns das buscas da ciência e das aspirações da fé. A concepção de um poder supremo, real ou hipotético, transforma a justiça em Providência, e a noção divina, por esse ponto de vista, torna-se acessível à própria ciência.

A ciência estuda o ser em suas manifestações parciais, a fé o supõe, ou melhor, o admite a priori em sua generalidade.

A ciência busca a verdade em todas as coisas, a fé relaciona todas as coisas a uma verdade universal e absoluta.

A ciência verifica realidades no detalhe, a fé explica-as por uma realidade de conjunto que a ciência não pode verificar, mas que a própria existência dos detalhes parece forçá-la a reconhecer e a admitir.

A ciência submete as razões das pessoas e das coisas à razão matemática e universal; a fé procura, ou melhor, supõe nas próprias matemáticas e acima das matemáticas uma razão inteligente e absoluta.

A ciência demonstra a justiça pela justiça; a fé dá justeza absoluta à justiça, subordinando-a à Providência.

Vê-se aqui tudo o que a fé empresta à ciência e tudo o que a ciência, por sua vez, deve à fé.

Sem a fé, a ciência está circunscrita por uma dúvida absoluta e encontra-se eternamente estacionada no empirismo arriscado a um ceticismo raciocinador; sem a ciência, a fé constrói suas hipóteses ao acaso e só pode prejulgar cegamente as causas dos efeitos que ignora.

A grande corrente que reúne ciência e fé é a analogia.

A ciência está forçada a respeitar uma crença cujas hipóteses são análogas às verdades demonstradas. A fé, que atribui tudo a Deus, está forçada a admitir a ciência como uma revelação natural que, pela manifestação parcial das leis da razão eterna, dá uma escala de proporções a todas as aspirações e a todos os ímpetos da alma no domínio do desconhecido.

É somente a fé, portanto, que pode dar uma solução aos mistérios da ciência e é, em contrapartida, somente a ciência que demonstra a razão de ser dos mistérios da fé.

Fora da união e do concurso dessas duas forças vivas da inteligência, não há para a ciência senão ceticismo e desespero, para a fé, temeridade e fanatismo.

Se a fé insulta a ciência, blasfema; se a ciência desconhece a fé, abdica.

Agora, escutemo-las falar de comum acordo.

– O Ser está em todos os lugares, diz a ciência. É múltiplo e variável em suas formas, único em sua essência e imutável em suas leis. O relativo demonstra a existência do absoluto. A inteligência existe no ser. A inteligência anima e modifica a matéria.

– A inteligência está em todos os lugares, diz a fé. Em nenhum lugar a vida é fatal, uma vez que está regulada. A regra é a expressão de uma sabedoria suprema. O absoluto em inteligência, o regulador supremo das formas, o ideal vivo dos espíritos é Deus.

– Em sua identidade com a idéia, o ser é a verdade, diz a ciência.

– Em sua identidade com o ideal, a verdade é Deus, retorque a fé.

– Em sua identidade com minhas demonstrações, o ser é a realidade, diz a ciência.

– Em sua identidade com minhas legítimas aspirações, a realidade é meu dogma, diz a fé.

– Na sua identidade com o verbo, o ser é a razão, diz a ciência.

– Na sua identidade com o espírito de caridade, a mais elevada razão é minha obediência, diz a fé

– Em sua identidade com o motivo dos atos racionais, o ser é a justiça, diz a ciência.

– Em sua identidade com o princípio de caridade, a justiça é a Providência, responde a fé.

Acordo sublime de todas as certezas com todas as esperanças, do absoluto em inteligência e do absoluto em amor. O Espírito Santo, o espírito de caridade deve assim tudo conciliar e tudo transformar em sua própria luz. Não é ele o espírito de inteligência, o espírito de ciência, o espírito de conselho, o espírito de força? Ele deve vir, diz a liturgia católica, e isso será como uma criação nova, e ele mudará a face da terra.

“Rir da filosofia já é filosofar”, disse Pascal ao fazer alusão a esta filosofia cética e duvidosa que não reconhece a fé. E, se existisse uma fé que pisoteasse a ciência, não diríamos que rir de semelhante fé seria dar provas de verdadeira religião, que é toda caridade, que não tolera o riso, mas ter-se-ia razão em censurar esse amor pela ignorância e em dizer a essa fé temerária: Já que desconheces tua irmã, não és a filha de Deus!

Verdade, realidade, razão, justiça, providência, tais são os cinco raios da estrela flamejante no centro da qual a ciência escreverá a palavra Ser, a que a fé acrescentará o nome inefável de Deus.

Solução dos problemas filosóficos

PRIMEIRA SÉRIE

Pergunta – O que é a verdade?

Resposta – É a idéia idêntica ao ser.

P – O que é a realidade?

R – É a ciência idêntica ao ser.

P – O que é a razão?

R – É o verbo idêntico ao ser.

P – O que é a justiça?

R – É o motivo dos atos idênticos ao ser.

P – O que é o absoluto?

R – É o ser.

P – Concebe-se algo acima do ser?

R – Não, mas concebe-se no próprio ser algo de supereminente e de transcendental.

P – O que é?

R – A razão suprema do ser.

P – Conheceis e podeis defini-la?

R – Somente a fé afirma-a e nomeia-a Deus.

P – Existe algo acima da verdade?

R – Acima da verdade conhecida existe a verdade desconhecida.

P – Como se pode racionalmente supor essa verdade?

R – Pela analogia e pela proporção.

P – Como se pode defini-la?

R – Pelos símbolos da fé.

P – Pode-se dizer da realidade a mesma coisa que da verdade?

R – Exatamente a mesma coisa.

P – Existe algo acima da razão?

R – Acima da razão finita existe a razão infinita.

P – O que é a razão infinita?

R – É esta razão suprema do ser a que a fé chama de Deus.

P – Existe algo acima da justiça?

R – Sim, de acordo com a fé, existe a providência em Deus e, no homem, o sacrifício.

P – O que é o sacrifício?

R – É o abandono benévolo e espontâneo do direito.

P – O sacrifício é racional?

R – Não, é uma espécie de loucura maior que a razão, pois a razão é forçada a admirá-lo.

P – Como chamar um homem que age de acordo com a verdade, a realidade, a razão e a justiça?

R – É um homem moral.

P – E se pela justiça ele sacrifica seus atrativos?

R – É um homem de honra.

P – E se, para imitar a grandeza e a bondade da Providência, ele faz mais do que seu dever e sacrifica seu direito pelo bem dos outros?

R – É um herói.

P – Qual é o princípio verdadeiro do heroismo?

R – É a fé.

P – Qual é o seu sustento?

R – A esperança.

P – E sua regra?

R – A caridade.

P – O que é o bem?

R – É a ordem.

P – O que é o mal?

R – É a desordem.

P – Que prazer é permitido?

R – O gozo da ordem.

P – Que prazer é proibido?

R – O gozo da desordem.

P – Quais são as conseqüências de um e de outro?

R – A vida e a morte na ordem moral.

P – O inferno, com todos os seus horrores, tem, pois, razão de ser no dogma religioso?

R – Sim, é a conseqüência rigorosa de um princípio.

P – E que princípio é esse?

R – A liberdade.

P – O que é a liberdade?

R – É o direito de fazer o dever com a possibilidade de não o fazer.

P – O que é faltar com o dever?

R – É perder o direito. Ora, sendo o direito eterno, perdê-lo significa perda eterna.

P – Não se pode reparar uma falta?

R – Sim, pela expiação.

P – O que é a expiação?

R – É uma sobrecarga de trabalho. Assim, porque fui preguiçoso ontem, devo realizar, hoje, uma dupla tarefa.

P – Que pensar dos que se impõem sofrimentos voluntários?

R – Se é para remediar a atração brutal do prazer, são sábios; se é para sofrer no lugar dos outros, são generosos; mas, se o fazem sem conselho e sem medida, são imprudentes.

P – Assim, diante da verdadeira filosofia, a religião é sábia em tudo o que ordena?

R – Vós o vedes.

P – Mas se enfim estivermos errados em nossas esperanças eternas?

R – A fé não admite essa dúvida. Mas a própria filosofia deve responder que todos os prazeres da terra não valem um dia de sabedoria, e que todos os triunfos da ambição não valem um só instante de heroismo e de caridade.

 

SEGUNDA SÉRIE

P – O que é o homem?

R – O homem é um ser inteligente e corporal feito à imagem de Deus e do mundo, uno em essência, triplo em substância, imortal e mortal.

P – Dizeis triplo em substância. Teria o homem duas almas ou dois corpos?

R – Não. Tem em si uma alma espiritual, um corpo material e um mediador plástico.

P – Qual é a substância desse mediador?

R – É a luz em parte volátil e em parte fixada.

P – O que é a parte volátil dessa luz?

R – É o fluido magnético.

P – E a parte fixada?

R – É o corpo fluídico ou arornal.

P – A existência desse corpo é demonstrada?

R – Sim, pelas experiências mais curiosas e mais conclusivas. Falaremos disso na terceira parte deste livro.

P – Essas experiências são artigos de fé?

R – Não, pertencem à ciência.

P – Mas a ciência preocupar-se-ia com isso?

R – Ela já se preocupa, uma vez que escrevemos este livro e uma vez que o ledes.

P – Dai-nos algumas noções sobre esse mediador plástico.

R – Ele é formado por uma luz astral ou terrestre e transmite ao corpo humano a dupla imantação. Ao agir sobre essa luz, a alma, por suas volições, pode dissolvê-la ou coagulá-la, projetá-la ou atraí-la. Ela é o espelho da imaginação e dos sonhos. Reage sobre o sistema nervoso e produz, assim, os movimentos do corpo. Essa luz pode dilatar-se indefinidamente e comunicar suas imagens a distâncias consideráveis, ela imanta os corpos submetidos à ação do homem e pode, fechando-se, atraí-los para si. Pode assumir todas as formas evocadas pelo pensamento e, nas coagulações passageiras de sua parte resplandecente, aparecer aos olhos e até mesmo oferecer uma espécie de resistência ao contato. Se essas manifestações e esses usos do mediador plástico são anormais, o instrumento luminoso não pode produzi-las sem ser falseado e causam necessariamente ou alucinação ou loucura.

P – O que é o magnetismo animal?

R – É a ação de um mediador plástico sobre um outro para dissolver ou coagular. Aumentando a elasticidade da luz vital e sua força de projeção, ela é enviada tão longe quanto se deseje e é retirada totalmente carregada de imagens, mas é preciso que essa operação seja favorecida pelo sono do sujeito, que se produz com maior coagulação da parte fixa de seu mediador.

P – O magnetismo é contrário à moral e à religião?

R – Sim, quando dele se abusa.

P – O que é abusar dele?

R – É servir-se dele de maneira desordenada ou para um fim desordenado.

P – O que é um magnetismo desordenado?

R – É uma emissão fluídica malsã e feita com más intenções, por exemplo, para saber os segredos dos outros ou para chegar a fins injustos.

P – Qual é, então, seu resultado?

R – Falseia no magnetizador e no magnetizado o instrumento fluídico de precisão. E é a essa causa que se devem atribuir as imoralidades e as loucuras reprovadas num grande número de pessoas que lidam com o magnetismo.

P – Quais as condições necessárias para se magnetizar convenientemente?

R – A saúde do espírito e do corpo; a intenção reta e a prática discreta.

P – Que vantagens pode-se obter pelo magnetismo bem dirigido?

R – A cura das doenças nervosas, a análise dos pressentimentos, o restabelecimento das harmonias fluídicas, a descoberta de alguns segredos da natureza.

P – Explicai-nos tudo isso de uma maneira mais completa.

R – Nós o faremos na terceira parte desta obra que tratará especialmente dos mistérios da natureza.

TERCEIRA PARTE

OS MISTÉRIOS DA NATUREZA

O grande agente mágico

Falamos de uma substância propagada no infinito

A décima chave do Tarô

A substância una que é céu e terra, isto é, conforme seus graus de polarização, sutil ou fixa.

Essa substância é o que Hermes Trismegisto chama de grande Telesma. Quando produz o esplendor, ela denomina-se luz.

É essa substância que Deus cria antes de todas as coisas, quando diz: Que seja a luz.

Ela é ao mesmo tempo substância e movimento. É um fluido e uma vibração perpétua.

A força que a põe em movimento e que lhe é inerente denomina-se magnetismo.

No infinito, essa substância única é o éter ou a luz etérea.

Nos astros que magnetiza, torna-se luz astral.

Nos seres organizados, luz ou fluido magnético.

No homem, forma o corpo astral ou o mediador plástico.

A vontade dos seres inteligentes age diretamente sobre essa luz e, por meio dela, sobre toda a natureza submetida às modificações da inteligência.

Essa luz é o espelho comum de todos os pensamentos e de todas as formas; guarda as imagens de tudo o que foi, os reflexos dos mundos passados e, por analogia, os esboços dos mundos futuros. E o instrumento da taumaturgia e da adivinhação, como nos resta explicar na terceira e última parte desta obra.

LIVRO I

OS MISTéRIOS MAGNéTICOS

CAPÍTULO I

A chave do mesmerismo

Mesmer encontrou a ciência secreta da natureza, ele não a inventou.

A substância primeira, única e elementar, cuja existência ele proclama em seus aforismos, era conhecida por Hermes e por Pitágoras.

Sinésio, que a canta em seus hinos, encontrara sua revelação em meio às lembranças platônicas da escola de Alexandria:

Mia paga, mic riza

Trifahj elcmfe morfc

. . . . . . . . . . . . . . . . . .

Peri gan spareisc pnoic

Cqonoj` ezwwse moifcj

Polndaidcloisi morcij

“Uma única fonte, uma única raiz de luz jorra e abre-se em três ramos de esplendor. Um sopro circula em volta da terra e vivifica, sob inumeráveis formas, todas as partes da substância animada.”

Hinos de Sinésio, hino 11

Mesmer viu na matéria elementar uma substância indiferente tanto ao movimento quanto ao repouso. Submetida ao movimento é volátil, de volta ao repouso é fixa, e ele não compreendeu que o movimento é inerente à substância primeira, que resulta não de, sua indiferença, mas de sua aptidão combinada a um movimento e a um repouso equilibrados um pelo outro: que o repouso não está em nenhuma parte na matéria uníversalmente viva, mas que o fixo atrai o volátil para fixá~lo, enquanto o volátil corrói o fixo para volatilizá-lo. Que o pretenso repouso das partículas aparentemente fixadas é somente uma luta mais encarniçada e uma tensão maior de suas forças fluídicas que se imobilizam neutralizando-se. É assim que, segundo Hermes, o que está no alto é como o que está embaixo, a mesma força que dilata o vapor contrai e endurece o gelo; tudo obedece às leis da vida inerentes à substância primeira; essa substância atrai e repele e coagula-se e dissolve-se numa constante harmonia; é dupla; é andrógina; abraça-se e fecunda-se; luta, triunfa, destrui, renova, mas nunca se abandona à inércia, pois a inércia seria a morte para ela.

É essa substância primeira que se designa na narrativa hierática do Gênesis, quando o verbo dos Eloim faz a luz ordenando-lhe que seja.

Eloim diz: Que seja a luz, e a luz foi.

Essa luz,cujo nome hebreu é r u t, or, é o ouro fluido e vivo da filosofia hermética. Seu princípio positivo é o enxofre deles; seu princípio negativo, o mercúrio, e seus princípios equilibrados formam o que eles denominaram seu sal.

Seria preciso, pois, em vez do sexto aforismo de Mesmer assim concebido:

“A matéria é indiferente a estar em movimento ou a estar em repouso.”

Estabelecer este:

A matéria universal é necessária ao movimento por sua dupla magnetização e procura fatalmente o equilíbrio.

E deste deduzir os seguintes:

A regularidade e a variedade no movimento resultam das combinações diversas do equilíbrio.

Um ponto equilibrado por todos os lados permanece imóvel pelo próprio fato de ser dotado de movimento.

O fluido é uma matéria em grande movimento e sempre agitada pela variação dos equilíbrios.

O sólido é a mesma matéria em pequeno movimento ou em repouso aparente, porque está mais ou menos equilibrada.

Não há corpo sólido que não possa ser imediatamente pulverizado, esvair-se em fumaça e tornar-se invisível, se o equilíbrio de suas moléculas viesse a cessar de repente.

Não há corpo fluido que não possa tornar-se num segundo mais duro que o diamante, sim se pudesse equilibrar imediatamente suas moléculas constitutivas.

Dirigir os ímãs, portanto, é destruir ou criar as formas, é produzir em aparência ou anular os corpos, é exercer a onipotência da natureza.

Nosso mediador plástico é um ímã que atrai ou repele a luz astral sob a pressão da vontade. É um corpo luminoso que reproduz com a maior facilidade as formas correspondentes às idéias.

É o espelho da imaginação. Esse corpo alimenta-se de luz astral, exatamente como o corpo orgânico alimenta-se dos produtos da terra. Durante o sono ele absorve a luz por imersão e, durante a vigília, por uma espécie de respiração mais ou menos lenta. Quando se produzem os fenômenos do sonambulismo natural, o mediador plástico está sobrecarregado por uma alimentação que digere mal. A vontade, então, embora ligada pelo torpor do sono, impele instintivamente o mediador em direção aos órgãos para liberá-lo, e produz-se uma reação, de certa forma mecânica, que equilibra pelo movimento do corpo a luz do mediador. É por isso que é tão perigoso acordar os sonâmbulos com um sobressalto, pois o mediador ingurgitado pode, então, retirar-se subitamente para o reservatório comum e abandonar inteiramente os órgãos que se encontram, nesse momento, separados da alma, o que ocasiona a morte.

O estado de sonambulismo, seja natural, seja factício, é, pois, extremamente perigoso, porque, ao reunir os fenômenos da vigília aos do sono, constitui uma espécie de grande lacuna entre dois mundos. Ao movimentar as moias da vida particular, a alma, banhando-se na vida universal, experimenta um bem-estar indizível e abandonaria de bom grado as ramificações nervosas que a mantêm suspensa acima da corrente. Nos êxtases de todos os tipos a situação é a mesma. Se a vontade aí mergulha num esforço apaixonado ou mesmo se a isso se abandona inteiramente, o sujeito pode ficar idiota, paralisado ou morrer.

As alucinações e as visões resultam de ferimentos causados ao mediador plástico e de sua paralisia local. Ora ele cessa de irradiar e substitui as realidades mostradas pela luz por imagens de algum modo condensadas, ora irradia com muita força e condensa-se fora, em torno de alguma morada fortuita e desregulada, como o sangue nas excrescências da carne, então as quimeras do nosso cérebro tomam um corpo e parecem tomar uma alma, parecemos a nós mesmos radiosos ou disformes como o ideal de nossos desejos ou de nossos temores.

Sendo as alucinações sonhos de pessoas acordadas, supõem sempre um estado análogo ao sonambulismo, porém em sentido contrário; o sonambulismo é o sono tomando emprestado ao despertar seus fenômenos; a alucinação é a vigília sujeita ainda em parte à embriaguez astral do sono.

Nossos corpos fluídicos atraem-se e repelem-se uns aos outros, segundo leis consoantes às da eletricidade. É o que produz as simpatias e as antipatias instintivas. Equilibram-se, assim, uns aos outros, e é por isso que as alucinações são frequentemente contagiosas; as projeções anormais mudam as correntes luminosas; a perturbação de um doente ganha as naturezas mais sensitivas, um círculo de ilusões estabelece-se e toda uma multidão é facilmente arrastada para ele. É a história das aparições estranhas e dos prodígios populares. Assim explicam-se os milagres dos médiuns da América e as vertigens dos giradores de mesa, que reproduzem em nossos dias os êxtases dos dervixes giradores. Os bruxos lapões com seus tambores mágicos e os malabaristas curandeiros chegam a resultados parecidos por procedimentos semelhantes; seus deuses ou seus diabos em nada contribuem.

Os loucos e os idiotas são mais sensíveis ao magnetismo do que as pessoas sãs de espírito; deve-se compreender a razão disso; é preciso pouco para virar completamente a cabeça de um homem embriagado, e contrai-se mais facilmente uma doença quando todos os órgãos estão predispostos a sofrerem suas impressões e a manifestarem suas desordens.

As doenças fluídicas têm suas crises fatais. Toda tensão anormal do aparelho nervoso termina em tensão contrária segundo as leis necessárias do equilíbrio. Um amor exagerado transforma-se em aversão, e todo ódio exaltado está bem próximo do amor; a reação dá-se frequentemente com o estrondo e a violência do raio. A ignorância, então, desola-se e indigna-se; a ciência resigna-se e cala-se.

Há dois amores, o do coração e o da mente, o amor do coração nunca se exalta, recolhe-se e cresce lentamente pelas provações e pelos sacrifícios; o amor da mente, puramente nervoso e apaixonado, vive apenas de entusiasmo, vai contra todos os deveres, trata o objeto amado como coisa conquistada, é egoísta, exigente, inquieto, tirânico e traz fatalmente consigo o suicídio por catástrofe final ou o adultério por remédio. Esses fenômenos são constantes como a natureza, inexoráveis como a fatalidade.

Uma jovem artista cheia de futuro e de coragem tinha por marido um homem de bem, um pesquisador científico, um poeta a quem não podia reprovar senão um excesso de amor por ela, abandonou-o ultrajandoo e, desde então, continua a odiá-lo. No entanto, ela também é uma boa mulher, mas o mundo impiedoso a julga e condena. Todavia, não é agora que ela é culpada. Sua culpa, se é permitido lhe imputar alguma, foi em primeiro lugar ter amado louca e apaixonadamente seu marido.

Mas, dir-se-á, a alma humana então não é livre?

– Não, ela não o é mais desde que se abandona à vertigem das paixões. Apenas a sabedoria é livre, as paixões desordenadas são o domínio da loucura, e a loucura é a fatalidade.

O que dissemos do amor pode-se dizer também da religião, que é o mais poderoso mas também o mais inebriante dos amores. A paixão religiosa tem também seus excessos e suas reações fatais. Pode-se ter êxtases e estigmas, como São Francisco de Assis, e cair em seguida em abismos de devassidão e impiedade.

As naturezas apaixonadas são ímãs exaltados, atraem ou repelem com força.

Podemos magnetizar de duas maneiras: primeiramente, agindo pela vontade sobre o mediador plástico de outra pessoa, cuja vontade e atos encontram-se, por conseguinte, subordinados a essa ação.

Em segundo lugar, agindo pela vontade de uma pessoa, seja por intimidação, seja por persuasão, para que a vontade impressionada modifique, segundo nosso desejo, o mediador plástico e os atos dessa pessoa.

Magnetiza-se pela irradiação, pelo contato, pelo olhar e pela palavra.

As vibrações da voz modificam o movimento da luz astral e são um veículo poderoso do magnetismo.

O sopro quente magnetiza positivamente, e o sopro frio magnetiza negativamente.

Uma insuflação quente e prolongada na coluna vertebral, abaixo do cerebelo, pode ocasionar fenômenos eróticos.

Se for colocada a mão direita sobre a cabeça e a mão esquerda sob os pés de uma pessoa envolta em lã ou em seda, ela será inteiramente atravessada por uma fagulha magnética, e pode-se ocasionar uma revolução nervosa em seu organismo com a rapidez de um raio.

Os passes magnéticos servem apenas para dirigir a vontade do magnetizador, confirmando-a através de atos. São sinais e nada além disso. O ato da vontade é expresso, e não operado, por esses sinais.

O carvão em pó absorve e retém a luz astral. É o que explica o espelho mágico de Dupotet.

Figuras desenhadas a carvão aparecem luminosas para uma pessoa magnetizada e tomam para ela, segundo a direção dada pela vontade do magnetizador, as mais graciosas ou as mais aterrorizantes formas.

A luz astral, ou melhor, vital do mediador plástico, absorvida pelo carvão, torna-se totalmente negativa; é por isso que os animais que a eletricidade atormenta, como por exemplo os gatos, gostam de rolar-se no carvão. A medicina, um dia, utilizará essa propriedade, e as pessoas nervosas encontrarão aí um grande alívio.

CAPÍTULO II

A vida e a morte. A vigília e o sono

O sono é uma morte incompleta; a morte é um sono perfeito.

A natureza submete-nos ao sono para habituar-nos à idéia da morte, e adverte-nos por meio dos sonhos sobre a persistência de uma outra vida.

A luz astral em que o sono nos mergulha é como um oceano onde flutuam inumeráveis imagens, restos das existências naufragadas, miragens e reflexos daquelas que passam, pressentimentos daquelas que vão nascer.

Nossa disposição nervosa atrai-nos para aquelas imagens que correspondem à nossa agitação, à nossa fadiga especial, como um ímã colocado em meio a detritos metálicos atrairia e escolheria, sobretudo, a limalha de ferro.

Os sonhos revelam-nos a doença ou a saúde, a calma ou a agitação de nosso mediador plástico e, por conseguinte, também de nosso aparelho nervoso.

Formulam nossos presentimentos por meio da analogia das imagens.

Pois todas as idéias têm um duplo signo para nós, relativo à nossa dupla vida.

Existe uma língua do sono, de que é impossível, no estado de vigília, compreender e até mesmo reunir as palavras.

A língua do sono é a da natureza, hieroglífica em seus caracteres e ritmada apenas em seus sons.

O sono pode ser vertiginoso ou lúcido.

A loucura é um estado permanente de sonambulismo vertiginoso.

Uma comoção violenta pode despertar os loucos, assim como pode matá-los.

As alucinações, quando trazem consigo a adesão da inteligência, são acessos passageiros de loucura.

Toda fadiga do espírito provoca o sono; mas, se a fadiga é acompanhada de irritação nervosa, o sono pode ser incompleto e tomar os caracteres do sonambulismo.

Adormece-se por vezes sem disso se aperceber em meio à vida real, e então, em vez de pensar, sonha-se.

Por que temos reminiscências de coisas que nunca nos aconteceram? É que as sonhamos acordados.

Esse fenômeno do sono involuntário e não sentido, que atravessa de repente a vida real, produz-se freqüentemente em todos aqueles que superexcitam seu organismo nervoso com excessos, quer de trabalho, quer de vigílias, quer de bebida, quer de um eretismo qualquer.

Os monomaníacos dormem quando se entregam a atos insensatos, e não têm mais consciência de nada ao acordarem.

Quando Papavoine foi preso pelos soldados, disse-lhes tranqüilamente estas palavras notáveis:

– Vós tomais o outro por mim.

Era ainda o sonâmbulo que falava.

Edgar Poe, esse gênio infeliz que se embriagava, descreveu de um modo terrível o sonambulismo dos monomaníacos. Ora é um assassino que ouve, e acredita que todo o mundo ouve, o coração de sua vítima bater através das lajes do túmulo, ora é um envenenador que, por força de dizer a si mesmo: Estou em segurança, contanto que não vá denunciar a mim mesmo, termina por sonhar em voz alta que se denuncia e denuncia-se de fato.

Edgar Poe não inventou ele próprio nem os personagens nem os fatos de seus estranhos contos, sonhou-os acordado, e é por isso que tão bem lhes dá as cores de uma horrível realidade.

O doutor Brière de Boismont, em sua notável obra sobre as Alucinações, conta a história de um inglês, aliás muito sensato, que acreditava ter encontrado um homem com quem travara conhecimento; este o conduzira a almoçar em sua taberna, depois, tendo-o convidado a visitar a Igreja de São Paulo, tentara precipitá-lo do alto da torre onde haviam subido juntos.

Desde esse momento, o inglês estava obcecado por esse desconhecido, que apenas ele podia ver, e que reencontrava sempre quando estava só e acabava de jantar bem.

Os abismos atraem; a embriaguez chama a embriaguez; a loucura possui irresistíveis atrativos para a loucura. Quando um homem sucumbe ao sono, abomina tudo o que poderia acordá-lo.

Acontece o mesmo com os alucinados, os sonâmbulos extáticos, os maníacos, os epiléticos e todos aqueles que se abandonam ao delírio de uma paixão. Eles ouviram a música fatal, entraram na dança macabra e sentem-se arrastados no turbilhão da vertigem. Vós lhes falais, não vos ouvem mais, vós os advertis, não vos compreendem mais, mas vossa voz os importuna; têm sono do sono da morte.

A morte é uma corrente que arrasta, um precipício que absorve, mas de cujas profundezas o menor movimento vos pode trazer de volta. Sendo a força de repulsão igual à de atração, freqüentemente, no instante mesmo de expirar, fica-se violentamente preso à vida, freqüentemente também, pela mesma lei de equilíbrio, passa-se do sono à morte; por complacência para com o sono.

Um bote balança-se próximo às margens do lago. A criança nele entra, a água brilhante de mil reflexos dança à sua volta chamando-a, a corrente que retém o barco estira-se e parece querer romper-se; um pássaro maravilhoso lança-se, então, da margem e plana cantando sobre as ondas alegres; a criança quer segui-lo, leva a mão à corrente, solta o elo.

A Antigüidade adivinhara o mistério da morte atraente e representara-o na fábula de Hilas. Cansado após uma longa navegação, Hilas chega a uma ilha florida, aproxima-se de uma fonte para retirar água, uma miragem graciosa lhe sorri; ele vê uma ninfa estender-lhe os braços, os seus enfraquecem e não podem retirar o cântaro pesado; o frescor da fonte adormece-o, os perfumes da margem embriagam-no, ei-lo debruçado sobre a água como um narciso cuja haste fosse quebrada por uma criança a brincar; o cântaro cheio cai ao fundo e Hilas segue-o, morre sonhando com ninfas que o acariciam, e não ouve mais a voz de Hércules que o chama de volta aos trabalhos da vida, e que percorre todas as margens gritando mil vezes: Hilas, Hilas!

Outra fábula, não menos comovente, que sai das sombras da iniciação órfica, é a de Eurídice chamada de volta à vida pelos milagres da harmonia e do amor, Eurídice, esta sensitiva rompida no próprio dia de seu casamento e que se refugiou na tumba ainda trêmula de pudor! Logo, ela ouve a lira de Orfeu, e lentamente sobe em direção à luz; as terríveis divindades do Érebo não ousam fechar-lhe a passagem. Ela segue o poeta, ou antes, a poesia que ela adora… Mas ai do amante se mudar a corrente magnética e se seguir, com um único olhar, aquela que ele deve somente atrair! O amor sagrado, o amor virginal, o amor mais forte que o túmulo busca apenas a dedicação e foge desvairado diante do egoísmo do desejo. Orfeu sabe disso, mas por um instante esquece. Eurídice, em suas brancas vestes de noiva, está deitada no leito nupcial, ele, sob as vestimentas de grande hierofante, está em pé, a lira nas mãos, a cabeça coroada com os louros sagrados, os olhos voltados para o Oriente, e canta. Canta as flechas luminosas do amor que atravessam as sombras do antigo caos, as ondas da doce claridade escorrendo da teta negra da mãe dos deuses, Eros e Ânteros. Adônis que volta à vida para escutar os lamentos de Vênus e que se reanima como uma flor sob o orvalho brilhante de suas lágrimas; Castor e Pólux que a morte não pôde desunir e que se amam ora no inferno, ora na terra… Depois ele chama suavemente Eurídice, sua querida Eurídice, sua Eurídice tão amada:

Ah! miseram Eurydicen animâ fugiente vocabat,

Eurydicen! toto referebant flumine ripae.

Enquanto ele canta, aquela pálida estátua que a morte fez colore-se com as primeiras nuanças da vida, seus lábios brancos começam a avermelhar-se como a aurora da manhã… Orfeu a vê, treme, balbucia, o hino vai expirar em sua boca, mas ela empalidece novamente; então o grande hierofante tira de sua lira cantos dilacerantes e sublimes, não olha mais senão para o céu, chora, implora, e Eurídice abre os olhos… Infeliz! não olhes para ela, canta ainda, não afugentes a borboleta de Psiquê, que quer pousar nesta flor!… Mas o insensato viu o olhar da ressuscitada, o grande hierofante cede à embriaguez do amante, a lira cai de suas mãos, olha Eurídice, corre em sua direção… Aperta-a em seus braços e a encontra ainda gelada, seus olhos tornaram a fechar-se, seus lábios estão mais pálidos e mais frios do que nunca, a sensitiva estremeceu, e o vínculo delicado da alma rompeu-se novamente e para sempre… Eurídice está morta e os hinos de Orfeu não mais a trarão de volta à vida.

Em nosso Dogma e Ritual da Alta Magia, ousamos dizer que a ressurreição dos mortos não é um fenômeno impossível na própria ordem da natureza, e nisso não negamos nem contradissemos de nenhum modo a fé fatal da morte. Uma morte que pode cessar é apenas uma letargia e um sono, mas é sempre pela letargia e pelo sono que a morte começa. O estado de quietude profunda que se sucede, nesse momento, às agitações da vida leva então a alma distendida e dormente, não se pode fazê-la voltar, forçá-la a novamente mergulhar, senão excitando violentamente todas as suas feições e todos os seus desejos. Quando Jesus, o Salvador do mundo, estava na terra, a terra era mais bela e mais desejável do que o céu, e no entanto, para acordar a filha de Jairo, Jesus precisou gritar e sacudi-la. Foi a poder de frémitos e de lágrimas que chamou de volta do túmulo o amigo Lázaro, tão difícil é interromper uma alma cansada que dorme o seu primeiro sono!

Todavia, o rosto da morte não tem a mesma serenidade para todas as almas que o contemplam; quando se teve frustrado o objetivo da vida, quando se levam consigo cobiças desenfreadas ou ódios insaciados, a eternidade aparece para a alma ignorante ou culpada com tão formidáveis proporções de dores que ela tenta algumas vezes lançar-se novamente na vida mortal. Quantas almas assim agitadas pelo pesadelo do inferno refugiaram-se em seus corpos gelados e já cobertos pelo mármore da tumba! Foram encontrados esqueletos revirados, convulsos, retorcidos, e foi dito: Aí estão homens que foram enterrados vivos. Enganavam-se frequentemente, e bem podiam ser retomados da morte, ressuscitados da sepultura que, por se terem abandonado completamente às angústias do limiar da eternidade, com ela foram ter por duas vezes.

Um magrietista célebre, o barão Dupotet, ensina no seu livro secreto sobre a Magia que se pode matar pelo magnetismo como pela eletricidade. Essa revelação nada tem de estranho para quem conhece bem as analogias da natureza. É certo que, dilatando-se além dos limites-ou coagulando-se repentinamente o mediador plástico de um sujeito, pode-se separar sua alma de seu corpo. Basta algumas vezes provocar numa pessoa uma violenta cólera ou um enorme susto para matá-la subitamente.

O uso habitual do magnetismo geralmente coloca o sujeito que a ele se abandona à mercê do magnetizador. Quando a comunicação é bem estabelecida, quando o magnetizador pode produzir à vontade o sono, a insensibilidade, a catalepsia, etc., só lhe custaria um esforço a mais trazer também a morte.

Contaram-nos, como verdadeira, uma história de que todavia não garantimos a autenticidade.

Vamos contá-la porque pode ser verdadeira.

Pessoas que duvidavam ao mesmo tempo da religião e do magnetismo, desses incrédulos que se prestam a todas as superstições e a todos os fanatismos, haviam convencido, a peso de ouro, uma pobre moça a submeter-se às suas experiências. Era uma natureza impressionável e nervosa, cansada além disso pelos excessos de uma vida mais do que irregular, e já enojada da existência. Adormecem-na; ordenam-lhe que veja; ela chora e debate-se. Falam-lhe de Deus…. tremem-lhe todos os membros.

– Não – diz ela -, ele me dá medo; não quero olhar para ele.

– Olhe para ele, eu quero.

Ela abre então os olhos; suas pupilas dilatam-se; fica apavorante.

– O que você está vendo?

– Não consigo dizer… Oh! por misericórdia, por misericórdia, acordem-me!

– Não, olhe e diga o que está vendo.

– Vejo uma noite negra em que turbilhonam fagulhas de todas as cores em volta de dois grandes olhos que se movem sem parar. Desses olhos saem raios que se enrolam em serpentinas e ocupam todo o espaço… Oh! isso me dói! acordem-me!

– Não, olhe.

– Para onde mais querem que eu olhe?

– Olhe dentro do paraíso.

– Não, não posso subir até lá; a grande noite me rechaça e volto sempre a cair.

– Então olhe dentro do inferno.

Aí, a sonâmbula agita-se convulsivamente.

– Não! Não! – grita soluçando -, não quero; me daria vertigem; cairia. Oh! segurem-me! detenham-me!

– Não, desça.

– Aonde querem que eu desça?

– Ao inferno.

– É horrível! Não, não, não quero ir!

– Vá.

– Misericórdia!

– Vá, eu quero.

As feições da sonâmbula ficam terríveis de se ver; os cabelos em pé; os olhos esbugalhados só mostram o branco; o peito arfa e deixa escapar um som rouco.

– Vá até lá, eu quero – repete o magnetizador.

– Estou aqui – diz entre dentes a infeliz, caindo esgotada. Depois, não responde mais; a cabeça inerte tomba sobre os ombros; os braços pendem ao longo do corpo. Aproximam-se dela; tocam-na. Querem, já tarde demais, acordá-la; o crime estava consumado; a mulher estava morta e os autores dessa experiência sacrílega, graças à incredulidade pública em matéria de magnetismo, não foram perseguidos. Coube à autoridade atestar um óbito, e a morte foi atribuída à ruptura de um aneurisma. O corpo, aliás, não tinha nenhuma marca de violência; mandaram-no enterrar e encerrou-se o caso.

Eis um outro caso que nos foi contado por companheiros da Volta à França.

Dois companheiros hospedavarn-se no mesmo albergue e dividiam o mesmo quarto. Um dos dois tinha o hábito de falar dormindo, quando então respondia às perguntas que seu colega lhe fazia. Uma noite, ele começa, de repente, a soltar gritos sufocados, o outro companheiro acorda e pergunta-lhe o que está havendo.

– Mas então você não está vendo – diz o que está dormindo não está vendo esta pedra enorme… está se soltando da montanha… está caindo sobre mim, vai me esmagar.

– Pois então fuja!

– Impossível, meus pés estão enroscados num espinheiro que se aperta cada vez mais… Ai! Socorro! lá… lá está a grande pedra que vem para cima de mim.

– Toma, aqui está ela! – diz rindo o outro, que lhe atira na cabeça o travesseiro para acordá-lo.

Um grito terrível, subitamente sufocado na garganta, uma convulsão, um suspiro, depois mais nada. O desastrado brincalhão levanta-se, puxa o colega pelo braço, chama-o, assusta-se por sua vez, grita, alguém traz uma luz… o infeliz sonâmbulo estava morto.

CAPÍTULO III

Mistérios das alucinações e da evocação dos espíritos

Uma alucinação é um ilusão produzida por um movimento irregular da luz astral.

É, como dissemos antes, a mistura dos fenômenos do sono aos da vigília.

Nosso mediador plástico aspira e respira a luz astral ou a alma vital da terra, como nosso corpo aspira e respira a atmosfera terrestre. Ora, do mesmo modo que em alguns lugares o ar é impuro e irrespirável, também algumas circunstâncias fenomenais podem tornar a luz astral malsã e não assimilável.

Tal ar também pode ser muito vivo para algumas pessoas e convir perfeitamente a outras, sendo assim também com a luz magnética.

O mediador plástico assemelha-se a uma estátua metálica permanentemente em fusão. Se o molde está defeituoso, ela torna-se disforme; se o molde se quebra, ela foge.

O molde do mediador plástico é a força vital equilibrada e polarizada. Nosso corpo, por meio do sistema nervoso, atrai e retém essa forma fugidia de luz especificada; mas a fadiga local ou a superexcitação parcial do aparelho pode ocasionar disformidades fluídicas.

Essas disformidades alteram parcialmente o espelho da imaginação e ocasionam alucinações habituais próprias aos visionários extáticos.

O mediador plástico, feito à imagem e semelhança de nosso corpo, cujos órgãos reproduz luminosamente, tem visão, tato, audição, olfato e paladar que lhe são próprios; pode, quando está superexcitado, comunicá-los por vibrações ao aparelho nervoso, de tal modo que a alucinação seja completa. A imaginação parece, então, triunfar sobre a própria natureza e produz fenômenos verdadeiramente estranhos. O corpo material inundado de fluido parece participar das qualidades fluídicas, escapa às leis da gravidade, torna-se momentaneamente invulnerável e mesmo invisível num círculo de alucinados por contágio. Sabe-se que os convulsionários de São Medardo deixavam-se atenazar, espancar, triturar, crucificar, sem que sentissem nenhuma dor, que se erguiam do chão, andavam de cabeça para baixo, comiam alfinetes e os digeriam.

Achamos oportuno relatar aqui o que publicamos no jornal O Estafeta sobre os prodígios do médium americano Home e sobre vários fenômenos da mesma ordem.

Nunca fomos, nós mesmos, testemunhas dos milagres do senhor Home, mas nossas informações vêm das melhores fontes, recolhemo-nas numa casa onde o médium americano foi acolhido com benevolência quando estava infeliz, e com indulgência quando chegou a tomar sua doença por uma felicidade e uma ventura. É a casa de uma senhora nascida na Polônia, mas três vezes francesa pela nobreza de seu coração, pelos encantos inefáveis de seu espírito e pela celebridade européia de seu nome.

A publicação dessas informações no Estafeta atraiu-nos, sem que saibamos bem por quê, as injúrias de um senhor De Pène, conhecido, desde então, por seu duelo infeliz. Lembramo-nos, na ocasião, da fábula de La Fontaine sobre o louco que atirava pedras num sábio. O senhor De Pène tratava-nos de “padre que abandonou a batina” e de mau católico. Mostramo-nos pelo menos bom cristão compadecendo-nos dele e perdoando-o, e, como é impossível ser “padre que abandonou a batina” sem nunca ter sido padre, deixamos cair por terra uma injúria que não nos atingia.

Na semana passada, o senhor Home queria mais uma vez deixar Paris, essa Paris onde, se os próprios anjos e demônios aparecessem sob uma forma qualquer, não passariam muito tempo por seres maravilhosos, e nada melhor teriam a fazer senão retornar logo ao céu ou ao inferno, para escapar ao esquecimento e ao abandono dos humanos.

O sr. Home, com ar triste e desiludido, despedia-se, então, de uma nobre dama, cuja benevolente acolhida fora uma de suas primeiras alegrias na França. Naquele dia, como sempre, a sra. B… foi gentil com ele, e quis retê-lo para jantar; o misterioso personagem ia aceitar, quando alguém disse que era esperado um cabalista conhecido no mundo das ciências ocultas pela publicação de um livro intitulado Dogma e Ritual da Alta Magia; as feições do sr. Home alteraram-se de repente, e ele declarou balbuciando e com uma visível perturbação que não podia ficar e que a aproximação daquele professor de magia causava-lhe um insuperável terror. Tudo o que lhe disseram para tranqüilizá-lo foi inútil. – Não julgo esse homem – dizia ele -, nem afirmo que ele seja bom ou mau, nada sei sobre isso, mas sua atmosfera me faz mal, perto dele me sentiria sem forças e como que sem vida.

E, depois dessa explicação, o sr. Home apressou-se a despedir-se e a sair.

Esse terror dos homens de prestígio em presença dos verdadeiros iniciados à ciência não é um fato novo nos anais do ocultismo. Pode-se ler em Filóstrato a história da estrige que treme ao ouvir chegar Apolônio de Tiana. Nosso admirável escritor Alexandre Dumas dramatizou essa lenda mágica no belo resumo de todas as lendas que serviria de prólogo à sua grande epopéia romanesca do Judeu Errante. A cena passa-se em Corinto; é uma cerimônia de casamento antiga com belas crianças coroadas de flores que carregam archotes nupciais e cantam epitalâmios graciosos e ornados de voluptuosas imagens como as poesias de Catulo. A noiva está linda, em suas castas vestes, como a Polímnia antiga; está amorosa e deliciosamente provocante em seu pudor, como uma Vênus de Corrégio ou uma Graça de Cânova. Aquele que ela desposa é Clínias, um discípulo do célebre Apolônio de Tiana. O mestre prometeu vir às núpcias de seu discípulo, mas não vem, e a bela noiva respira mais aliviada, pois teme Apolônio. No entanto, o dia não acabou. É chegada a hora do leito nupcial, e de repente Méroe treme, empalidece, olha fixamente em direção à porta, estende a mão aterrorizada e diz numa voz sufocada: “Ei-lo! é ele!” É Apolônio de fato. Eis o mago, eis o mestre: a hora dos encantamentos passou, os prestígios caem diante da verdadeira ciência. Procura-se a bela noiva, a branca Méroe, e vê-se apenas uma velha mulher, a bruxa Canídie, a devoradora de criancinhas. Clínias está desiludido, agradece seu mestre; está salvo.

O vulgo sempre se enganou sobre a magia, e confunde os adeptos com os encantadores. A verdadeira magia, isto é, a ciência tradicional, dos magos, é inimiga mortal dos encantamentos; ela impede ou faz cessar os falsos milagres, hostis à luz e fascinadores de um pequeno número de testemunhas preparadas ou crédulos. A desordem aparente nas leis da natureza é uma mentira; não é, pois, uma maravilha. A maravilha verdadeira, o verdadeiro prodígio sempre resplandecente aos olhos de todos é a harmonia sempre constante dos efeitos e das causas; são os esplendores da ordem eterna!

Não saberíamos dizer se Cagliostro teria feito milagres diante de Swedenborg, mas teria certamente temido a presença de Paracelso e de Henri Khunrath, se esses dois grandes homens tivessem sido seus contemporâneos.

Longe de nós, no entanto, a idéia de denunciar o sr. Home como um bruxo de baixa categoria, isto é, um charlatão. O célebre médium americano é doce e ingênuo como uma criança. É um pobre ser muito sensitivo, sem intriga e sem defesa; é o joguete de uma força terrível que ele ignora, e ele próprio é certamente a primeira de suas vítimas.

O estudo dos estranhos fenômenos que se produzem em torno desse moço é da maior importância. Trata-se de rever seriamente as denegações demasiado levianas do século XVIII, e de abrir diante da ciência e da razão horizontes menos estreitos que os da crítica burguesa, que nega tudo o que ainda não pode explicar. Os fatos são inexoráveis, e a verdadeira boa fé nunca deve recear examiná-los.

A explicação desses fatos que todas as tradições obstinam-se em afirmar e que se reproduzem diante de nós com uma incômoda publicidade, essa explicação, antiga como os próprios fatos, rigorosa como a matemática, mas pela primeira vez tirada das sombras onde a escondiam os hierofantes de todas as idades, seria um grande evento científico, se pudesse obter bastante luz e publicidade. Vamos talvez preparar esse evento, pois não nos seria permitido a esperança audaciosa de concluí-lo.

Em primeiro lugar, eis os fatos em toda sua singularidade. Comprovamo-os e vamos restabelecê-los com uma rigorosa exatidão abstendo-nos, inicialmente, de qualquer explicação ou comentário.

O sr. Home está sujeito a êxtases que o põem, segundo ele, em contato diretamente com a alma de sua mãe, e, pela intermediação desta, com todo o mundo dos espíritos. Descreve, como os sonâmbulos de Cahagnet, pessoas que nunca viu e que são reconhecidas pelos que as evocam; vos dirá mesmo seus nomes e responderá de sua parte a perguntas que só podem ser compreendidas por elas e por vós mesmos.

Quando ele está num apartamento, ruídos inexplicáveis fazem-se ouvir. Batidas violentas ecoam nos móveis e nas paredes; algumas vezes as portas e as janelas abrem-se como se fossem impelidas por uma tempestade; fora, chega-se a ouvir o vento e a chuva; ao sair, o céu está sem nuvens, e não se sente nem o mais leve sopro de vento.

Os móveis são erguidos e deslocados sem que ninguém os toque.

Lápis escrevem sozinhos. A caligrafia é a do sr. Home, e cometem os mesmos erros que ele.

As pessoas presentes sentem-se tocar e agarrar por mãos invisíveis. Esses contatos, que parecem escolher as damas, carecem de seriedade, e por vezes mesmo de conveniência, em sua aplicação. Pensamos que nos compreendem o suficiente.

Mãos visíveis e tangíveis saem ou parecem sair das mesas, mas para isso é preciso que as mesas estejam cobertas. São necessários alguns preparativos ao agente invisível, assim como aos mais hábeis sucessores de Robert Houdin.

Essas mãos mostram-se sobretudo na escuridão; são quentes e fosforescentes ou frias e negras. Escrevem tolices ou tocam piano; e quando tocam piano é preciso vir o afinador, pois seu contado é sempre fatal à afinação do instrumento.

Um dos mais recomendáveis personagens da Inglaterra, sir Edward Bulwer Lytton, viu e tocou essas mãos; lemos a declaração escrita e assinada por ele. Declara mesmo tê-las apertado e puxado para si com toda a força, para fazer saírem do seu esconderijo os braços a que naturalmente elas deviam estar ligadas. Mas a coisa invisível foi mais forte do que o romancista inglês, e as mãos escaparam-lhe.

Um fidalgo russo, que foi o protetor do senhor Home e cujo caráter e boa fé não poderiam ser alvo de nenhuma dúvida, o conde A.B… também viu e apertou vigorosamente as mãos misteriosas. Eram, disse ele, formas perfeitas de mãos humanas, quentes e vivas; só que não se sentiam os ossos. Cerradas num aperto inevitável, as mãos não lutaram para escapar, mas diminuíram, fundiram-se de algum modo, e o conde acabou por nada mais segurar.

Outras pessoas que viram e tocaram essas mãos dizem que os dedos são inchados e rígidos, e comparam-nos a luvas de borracha cheias de um ar fosforescente e quente. Por vezes, no lugar de mãos, são pés que se exibem, todavia, nunca a descoberto. O espírito, a quem provavelmente faltam sapatos, respeita ao menos nisso a delicadeza das damas, e nunca mostra seu pé a não ser sob um cortinado ou uma toalha.

A aparição desses pés cansa e assusta muito o senhor Home. Ele procura então aproximar-se de alguma pessoa saudável, agarra-a como se temesse afogar-se; e a pessoa assim agarrada pelo médium sente-se de repente num estado singular de esgotamento e debilidade.

Um fidalgo polonês, que assistia a uma das sessões do senhor Home, colocara no chão entre seus pés um lápis sobre um papel, e pedira um sinal da presença do espírito. Durante alguns instantes nada se moveu. De repente, o lápis foi lançado ao outro extremo do apartamento. O fidalgo abaixou-se, pegou o papel e viu aí três signos cabalísticos que ninguém compreendia. Só o senhor Home, ao vê-los, pareceu experimentar uma grande contrariedade e manifestou um certo temor; porém recusou-se a explicar a natureza e a significação desses caracteres. Guardaram-nos, então, e trouxeram-nos para este professor de magia, cuja aproximação o médium tanto receara. Examinamo-os e aqui está sua minuciosa descrição.

Estavam desenhados com força e o lápis quase rasgara o papel.

Estavam espalhados na folha sem ordem e sem alinhamento.

O primeiro era o signo que os iniciados egípcios geralmente colocavam na mão de Tífon. Um tau com duplo traço vertical aberto em forma de compasso, uma cruz com alça tendo no alto um círculo, abaixo do círculo um duplo traço horizontal, sob o duplo traço horizontal um duplo traço oblíquo em forma de V invertido.

O segundo caráter representava uma cruz de grande hierofante com as três travessas hierárquicas. Esse símbolo, que remonta à mais alta Antigüidade, é ainda o atributo de nossos soberanos pontífices e arremata a extremidade superior de seu bastão pastoral. Mas o signo traçado pelo lápis tinha de particular que o ramo superior, a cabeça da cruz, era duplo e formava ainda o terrível V tifoniano, o signo do antagonismo e da separação, o símbolo do ódio e do combate eterno.

O terceiro caráter era o que os maçons denominam cruz filosófica, uma cruz de quatro ramos iguais com um ponto em cada um dos ângulos. Porém, em vez de quatro pontos, havia somente dois, colocados nos dois ângulos da direita, ainda um signo de luta, de separação e de negação.

O professor, que nos será permitido distinguir aqui do narrador e nomear na terceira pessoa, para não cansar nossos leitores parecendo falar-lhes de nós, o professor, pois, mestre Eliphas Levi, deu às pessoas reunidas na sala da senhora B… a explicação científica das três assinaturas, e eis o que ele disse:

“Estes três signos pertencem à série dos hieróglifos sagrados e primitivos conhecidos somente pelos iniciados da primeira ordem, o primeiro é a assinatura de Tífon. Ele exprime a blasfêmia desse espírito do mal estabelecendo o dualismo no princípio criador. Pois a cruz com alça de Osíris é um linga invertido, e representa a força paterna e ativa de Deus (a linha vertical saindo do círculo) fecundando a natureza passiva (a linha horizontal). Dobrar a linha vertical é afirmar que a natureza tem dois pais; é colocar o adultério no lugar da maternidade divina, é afirmar, ao invés do primeiro princípio inteligente, a fatalidade cega que tem por resultado o conflito eterno das aparências no nada; é, pois, o mais antigo, o mais autêntico e o mais terrível de todos os estigmas do inferno. Significa o deus ateu, é a assinatura de Satã.

“Essa primeira assinatura é hierática e refere-se aos caracteres ocultos do mundo divino.

“A segunda pertence aos hieróglifos filosóficos, representa a medida ascensional da idéia e a extensão progressiva da forma.

“É um triplo tau invertido, é o pensamento humano afirmando alternativamente o absoluto nos três mundos, e esse absoluto termina aqui por um forcado, ou seja, pelo signo da dúvida e do antagonismo. De tal modo que, se o primeiro caráter queria dizer: Não existe Deus, este tem por significação rigorosa: A verdade hierárquica não existe.

“O terceiro, ou a cruz filosófica, foi em todas as iniciações o símbolo da natureza e de suas quatro formas elementares, os quatro pontos representam as quatro letras indizíveis e incomunicáveis do tetragrama oculto, esta fórmula eterna do grande arcano G.’. A.’.

“Os dois pontos da direita representam a força, os da esquerda figuram o amor, e as quatro letras devem ser lidas da direita para a esquerda começando pelo alto à direita, e indo daí para a letra embaixo à esquerda, e assim para as outras fazendo a cruz de Santo André.

“A supressão dos dois pontos da esquerda exprime, pois, a negação da cruz, a negação da misericórdia e do amor.

“A afirmação do reino absoluto da força, e de seu antagonismo eterno, de alto a baixo e de baixo ao alto.

“A glorificação da tirania e da revolta.

“O signo hieroglífico do vício imundo, que se teve ou não razão de reprovar aos Templários, é o signo da desordem e do desespero eternos.”

Tais são, portanto, as primeiras revelações da ciência oculta dos magos sobre esses fenômenos de manifestações sobrenaturais. Agora, seja-nos permitido relacionar essas assinaturas estranhas a outras aparições contemporâneas de escrituras fenomenais, pois é um verdadeiro processo que a ciência deve instruir antes de levá-lo ao tribunal da razão pública. É preciso, pois, não desprezar nenhuma averiguação e nenhum indício.

Nas proximidades de Caen, em Tilly-sur-Seulles, uma série de fatos inexplicáveis produziam-se, havia alguns anos, sob a influência de um médium ou de um extático chamado Eugène Vintras.

Algumas circunstâncias ridículas e um processo fraudulento logo fizeram cair no esquecimento e mesmo no desprezo esse taumaturgo, atacado aliás com violência em panfletos cujos autores eram antigos admiradores de sua doutrina, pois o médium Vintras também dogmatiza. No entanto, uma coisa é notável nas invectivas de que ele é alvo: é que seus adversários, mesmo esforçando-se em condená-lo, reconhecem a verdade de seus milagres e contentam-se em atribuí-los ao demônio.

Quais são, pois, os milagres tão autênticos de Vintras?

Sobre esse assunto estamos melhor informados do que ninguém, como logo se notará. Autos assinados por testemunhas honradas, artistas, médicos, padres, aliás irrepreensíveis, foram-nos comunicados; interrogamos testemunhas oculares, e, melhor do que isto, vimos. As coisas merecem ser contadas com alguns detalhes.

Existe em Paris um escritor, no mínimo excêntrico, que se chama Madrolle. É um ancião cuja família e relações são honradas. Escreveu primeiramente no sentido católico mais exaltado, recebeu os estímulos mais lisonjeiros das autoridades eclesiásticas e até mesmo breves emanações da Santa Sé, depois conheceu Vintras; e, arrastado pelo prestígio de seus milagres, tornou-se um sectário determinado e um inimigo irreconciliável da hierarquia e do clero.

Na época em que Eliphas Levi publicava seu Dogma e Ritual da Alta Magia, recebeu uma brochura de Madrolle que o surpreendeu. O autor sustentava abertamente os paradoxos mais inauditos no estilo desordenado dos extáticos. Para ele, a vida bastava para a expiação dos grandes crimes, uma vez que ela era a conseqüência de uma sentença de morte. Os piores homens, por serem os mais infelizes de todos, pareciam-lhe oferecer a Deus uma expiação mais sublime. Enfurecia-se contra toda repressão e toda danação. “Uma religião que condena”, exclamava ele, “é uma religião condenada!” Depois pregava a licença mais absoluta sob o pretexto de caridade, e chegava até a dizer que o ato de amor mais imperfeito e aparentemente mais repreensível valia mais que a melhor das preces. Era o Marquês de Sade tornado pregador. Depois negava o diabo com um entusiasmo por vezes pleno de eloqüência.

“Podeis conceber”, dizia ele, “um diabo que Deus tolera, que Deus autoriza! Conceber além disso um Deus que fez o diabo e que o deixa atormentar criaturas já tão fracas e tão prontas a se enganarem! Um Deus do diabo enfim, secundado, preconceituoso e mal superado em suas vinganças por um diabo de Deus!…” O restante da brochura tinha a mesma força. O professor de magia esteve a ponto de aterrorizar-se e tratou de conseguir o endereço de Madrolle. Não foi sem alguma dificuldade que ele chegou até esse singular panfletário, e eis a seguir mais ou menos o que foi a conversa:

Eliphas Levi: – Senhor, recebi sua brochura. Venho agradecer-lhe e testemunhar-lhe ao mesmo tempo meu espanto e meu pesar.

Madrolle: – Seu pesar, senhor! Queira explicar-se, não estou entendendo.

– Lamento profundamente, senhor, vê-lo cometer erros que outrora eu mesmo cometi. Mas eu tinha, então, pelo menos a desculpa da inexperiência e da juventude. Falta alcance à sua brochura porque falta-lhe medida. Por certo sua intenção era protestar contra erros na crença, contra abusos na moral; e acontece serem a própria crença e a moral que o senhor ataca. A exaltação que transborda em seu pequeno escrito deve mesmo causar-lhe muito transtorno, e alguns de seus melhores amigos devem ter-se preocupado com seu estado de saúde…

– Sem dúvida! Já se disse e ainda se diz que sou louco. Mas não é de hoje que os crentes devem suportar a loucura da cruz. Estou exaltado porque, no meu lugar, o senhor também estaria, pois é impossível permanecer frio na presença dos prodígios.

– Oh! Oh! o senhor está falando de prodígios, isso me interessa. Vejamos, cá entre nós e de boa fé, de que prodígios se trata?

– Ora! de que prodígios senão daqueles do grande profeta Elias, que voltou à terra sob o nome de Pierre Michel.

– Estou ouvindo; o senhor quer dizer Eugène Vintras. Ouvi falar de suas obras. Mas ele realmente faz milagres?

(Nesse momento, Madrolle dá um salto da cadeira, ergue os olhos e as mãos para o céu, e termina por sorrir com uma condescendência que se assemelha a uma profunda piedade.)

– Se ele faz milagres, meu senhor! E os maiores!… Os mais surpreendentes!… Os mais incontestáveis!… Os mais verdadeiros milagres que se tenham feito na terra desde Jesus Cristo!… Como! milhares de hóstias aparecem sobre altares onde não havia nenhuma, o vinho brota em cálices vazios, e não é uma ilusão, é vinho, um vinho delicioso… ouvem-se músicas celestes, exalam-se aromas do outro mundo… e finalmente sangue… um verdadeiro sangue humano (foi examinado por médicos!), um sangue de verdade, estou dizendo, goteja e por vezes jorra das hóstias deixando nelas caracteres misteriosos! Estou lhe dizendo o que vi, ouvi, toquei, provei! E o senhor quer que eu permaneça frio diante de uma autoridade eclesiástica que acha mais cômodo negar tudo do que examinar qualquer coisa…!

– Com licença, meu senhor; é sobretudo em matéria de religião que a autoridade nunca pode errar… Em religião, o bem é a hierarquia, e o mal é a anarquia; a que se reduziria, com efeito, a influência do sacerdócio, se o senhor coloca como princípio que é preciso acreditar no testemunho dos sentidos mais do que nas decisões da Igreja? A Igreja não é mais visível do que todos os seus milagres? Os que vêem milagres e não vêem a Igreja são bem mais dignos de compaixão do que os cegos, pois não lhes resta nem mesmo o recurso de se deixarem conduzir…

– Meu senhor, sei tanto quanto o senhor essas coisas. Mas Deus não pode estar em desacordo consigo próprio. Não pode permitir que a boa fé seja ludibriada, e a própria Igreja não poderia decidir que sou cego quando tenho dois olhos… Ouça, eis o que se lê nas cartas de Jan Hus, quadragésima terceira carta, no final:

“Um doutor disse-me: “Em todas as coisas submeter-me-ia ao concílio, tudo então seria bom e legítimo para mim.” Acrescentou: “Se o concílio dissesse que tendes apenas um olho, embora tenhais dois, ainda assim seria preciso dizer que o concílio tem razão.” Quando o mundo inteiro, respondi, afirmasse tal coisa, enquanto tivesse o uso da razão, não poderia concordar sem ferir minha consciência.” Eu lhe direi como Jan Hus: Antes de haver uma Igreja e concílios, há uma verdade e uma razão.

– Um momento, meu caro senhor. Antigamente o senhor era católico, não é mais; as consciências são livres. Observarei apenas que a instituição da infalibilidade hierárquica em matéria de dogma é de modo bem diverso racional e bem mais incontestavelmente verdadeira que todos os milagres do mundo. Aliás, o que não se deve fazer para conservar a paz! Acredita o senhor que Jan Hus não teria sido um homem bastante superior, se tivesse sacrificado um de seus olhos à concórdia universal, ao invés de inundar a Europa de sangue! Oh! Senhor, que a Igreja decida quando lhe aprouver que sou caolho; só lhe peço uma graça, a de me dizer de qual olho, para que eu possa fechá-lo e olhar através do outro, com uma ortodoxia irrepreensível!

– Confesso que não sou ortodoxo ao seu modo.

– Estou percebendo. Mas voltemos aos prodígios! O senhor os viu, tocou, sentiu, provou; mas, vejamos, exaltações à parte, queira me contar um bem detalhado, bem circunstanciado, e que sobretudo seja evidentemente um milagre. Estou sendo indiscreto ao lhe pedir isso?

– De modo nenhum; mas qual escolherei? Há tantos! Ouça – acrescentou Madrofle após um instante de reflexão e com um leve tremor de emoção na voz -, o profeta está em Londres e nós estamos aqui. Pois bem! se o senhor lhe pedisse, apenas em pensamento, que lhe enviasse imediatamente a comunhão e se, num lugar designado pelo senhor, em sua casa, numa peça de roupa, num livro, o senhor encontrasse, ao voltar, uma hóstia, o que diria?

– Declararia esse fato inexplicável pelos meios usuais da crítica. – Pois bem, senhor! – exclama então Madrolle triunfante – no entanto, é isso que muitas vezes me acontece; quando quero, isto é, quando estou preparado e quando espero ser digno! Sim, senhor, encontro a hóstia quando a peço; eu a encontro real, palpável, mas freqüentemente decorada com pequenos corações milagrosos que se acreditaria pintados por Rafael.

Eliphas Levi, que se sentia pouco à vontade para discutir fatos a que se misturava uma espécie de profanação das coisas mais veneradas, despediu-se do antigo escritor católico e saiu meditando sobre a estranha influência desse Vintras, que modificara assim esta velha crença e esta velha mente de sábio.

Alguns dias depois, o cabalista Eliphas foi acordado muito cedo por um visitante desconhecido. Era um homem de cabelos brancos, todo vestido de preto, a fisionomia de um padre extremamente devoto, de aspecto, em suma, inteiramente respeitável.

Esse eclesiástico estava munido de uma carta de recomendação assim escrita:

“Caro Mestre,

Envio-lhe um velho sábio que deseja “arranhar” com o senhor o hebraico da bruxaria. Receba-o como eu mesmo (quero dizer como eu mesmo o recebi), desembaraçando-se dele da melhor maneira possível.

Todo seu na sacrossanta Cabala.

Ad. Desbarolles.”

– Senhor Abade – diz Eliphas sorrindo após haver lido -, estou à sua inteira disposição e nada posso recusar ao amigo que me escreve, então o senhor esteve com meu excelente discípulo Desbarolles?

– Sim, senhor, e encontrei nele um homem muito amável e muito sábio. O senhor e ele, acredito serem dignos da verdade que recentemente se manifestou através de surpreendentes milagres e das revelações positivas do arcanjo São Miguel.

– O senhor nos deixa honrados. O prezado Desbarolles surpreendeu-o, então, por sua ciência?

– Oh! com certeza ele possui os segredos da quiromancia num grau bastante notável; apenas com a leitura de minha mão contou-me quase toda minha vida.

– Ele é bem capaz disso. Mas entrou em detalhes?

– O suficiente, senhor, para convencer-me de seus conhecimentos extraordinários.

– Disse-lhe que o senhor é o antigo pároco de Mont-Louis, na diocese de Tours? Que é o discípulo mais zeloso do extático Eugène Vintras? E que se chama Charvoz?

Tamanha reviravolta causou-lhe um choque: o velho padre, a cada uma dessas três frases, dera um salto na cadeira. Quando ouviu seu nome empalideceu e levantou-se como se fosse impulsionado por uma mola.

– O senhor é realmente um mágico? – exclamou ele. – Charvoz é de fato meu nome, mas não é o que uso; faço-me chamar La Paraz…

– Eu sei. La Paraz é o sobrenome de sua mãe. O senhor deixou uma posição bastante invejável: a de pároco de um cantão e de um encantador presbitério, para compartilhar da existência agitada de um sectário…

– Diga de um grande profeta!

– Senhor, acredito inteiramente em sua boa fé. Mas vai me permitir examinar um pouco a missão e o caráter de seu profeta.

– Pois não, senhor, o exame, o grande dia, a luz da ciência, eis o que pedimos. Venha a Londres e verá! Os milagres são permanentes.

– Pode me dar, antes, alguns detalhes exatos e conscienciosos sobre os milagres?

– Oh! quantos quiser.

E o velho padre começou imediatamente a contar coisas que todo o mundo teria considerado impossíveis, mas que não fizeram o professor de alta magia sequer franzir as sobrancelhas.

Coisas como por exemplo:

– Um dia, Vintras, num acesso de entusiasmo, pregava diante de seu altar heterodoxo; vinte e cinco pessoas assistiam a esse sermão. Um cálice vazio estava sobre o altar, cálice bem conhecido pelo abade Charvoz; trouxera-o ele próprio de sua igreja de Mont-Louis, e tinha absoluta certeza de que esse cálice sagrado não tinha nem conduto misterioso nem fundo duplo.

“Para vos provar”, diz Vintras, “que é o próprio Deus quem me inspira, ele me faz saber que o cálice vai se encher com as gotas de seu sangue sob a aparência de vinho, e todos vós podereis saborear o produto das vinhas do porvir, o vinho que devemos beber com o Salvador no reino de seu pai…”

– Tomado de espanto e medo – continua o abade Charvoz subo ao altar, pego o cálice, olho no fundo: estava inteiramente vazio. Viro-o diante de todos, depois volto a me ajoelhar ao pé do altar, segurando o cálice entre as mãos… De repente ouve-se um leve ruído, como se tivesse caído do teto uma gota de água no cálice, e uma gota de vinho aparece no fundo. Todos os olhares voltam-se para mim, olha-se para o teto, pois nossa simples capela estava armada num quarto pobre; no teto não havia buraco nem fenda, nada se via cair, e no entanto o barulho da queda das gotas multiplicava-se mais rápido e mais apressado… e o vinho brotava do fundo do cálice para a borda. Quando o cálice ficou cheio, passei-o lentamente sob os olhares da assembléia, depois o profeta molhou aí seus lábios, e todos, um após o outro, provaram o vinho milagroso. Qualquer lembrança de um sabor delicioso não poderia dar a idéia de seu gosto. E o que lhe direi – acrescentou o abade Charvoz – dos prodígios de sangue que nos surpreendem todos os dias. Milhares de hóstias feridas e sangrentas refugiam-se em nossos altares. Os estigmas sagrados aparecem diante de todos aqueles que os querem ver. As hóstias, inicialmente brancas, marmorizam-se lentamente de caracteres e de corações ensangüentados… Deve-se acreditar que Deus abandona aos prestígios do demônio as coisas mais santas? ou antes de mais nada é preciso adorar e crer que é chegada a hora da suprema e última revelação?

O abade Charvoz, ao falar assim, tinha na voz aquela espécie de tremor nervoso que Eliphas Levi já observara em Mandrolle. O mágico balançava a cabeça com um ar pensativo; depois, de repente:

– Senhor – diz ao abade -, o senhor traz consigo uma ou várias dessas hóstias. Seja gentil deixando-me vê-Ias.

– Senhor…

– Eu sei que o senhor as tem; por que tentar negar?

– Não o nego – diz o abade Charvoz -, mas o senhor me permitirá não expor às investigações da incredulidade os objetos da mais sincera e devotada crença.

– Senhor Abade – diz gravemente Eliphas -, a incredulidade é a desconfiança de uma ignorância quase certa de estar enganada. A ciência não é incrédula. A princípio creio em sua convicção, uma vez que o senhor aceitou uma vida de privações e mesmo de reprovações por essa infeliz crença. Mostre-me, pois, suas hóstias milagrosas e creia em todo o meu respeito pelos objetos de uma sincera adoração.

– Pois bem! – diz o abade Charvoz após ter ainda hesitado um pouco -, vou mostrar-lhe.

Então ele desabotoou o alto de seu colete negro e tirou um pequeno relicário de prata, diante do qual pôs-se de joelhos com lágrimas nos olhos e preces nos lábios; Eliphas ajoelhou-se perto dele, e o abade abriu o relicário.

Havia no relicário três hóstias, uma inteira, as duas outras quase em pasta e como que amassadas com sangue.

A hóstia inteira tinha no centro um coração em relevo dos dois lados; um grumo de sangue moldado na forma de coração, e que parecia ter-se formado na própria hóstia de modo inexplicável. O sangue não poderia ter sido aplicado por fora, pois a coloração por embebição deixara brancas as partes aderentes à superfície exterior. A aparência do fenômeno era a mesma dos dois lados. O mestre de magia foi tomado por um tremor involuntário.

Essa emoção não escapou ao velho pároco que, tendo adorado mais uma vez e fechado seu relicário, tirou do bolso um álbum e entregou-o a Eliphas sem nada dizer. Eram cópias de todos os caracteres sangrentos observados nas hóstias desde o começo dos êxtases e dos milagres de Vintras.

Havia corações de todos os tipos, emblemas de todos os gêneros. Mas três sobretudo excitaram ao máximo a curiosidade de Eliphas…

– Senhor Abade – diz ele a Charvoz -, conhece estes três signos?

– Não – disse ingenuamente o abade -, mas o profeta garante que são da mais alta importãncia e que sua significação oculta deverá ser conhecida logo, isto é, no final dos tempos.

– Pois bem, senhor – diz solenemente o professor de magia – antes mesmo do fim dos tempos vou explicar-lhe: estes três signos cabalísticos são a assinatura do diabo!

– É impossível! – exclama o velho padre.

– É isso mesmo – continuou com firmeza Eliphas.

Ora, eis que signos eram esses:

1º – A estrela do microcosmo, ou o pentagrama mágico. É a estrela de cinco pontas da maçonaria oculta, a estrela em que Agripa desenhou a figura humana, a cabeça na ponta superior, os quatro membros nas quatro outras. A estrela flamejante que, invertida, é o signo hieroglífico do bode da magia negra, cuja cabeça pode, então, estar desenhada na estrela, os dois chifres no alto, à direita e à esquerda as orelhas, a barba embaixo. É o signo do antagonismo e da fatalidade. É o bode da luxúria atacando o céu com seus chifres. É um signo execrado mesmo no sabbat pelos iniciados de uma ordem superior.

2º – As duas serpentes herméticas, porém as cabeças e as caudas, ao invés de se juntarem em dois semicírculos paralelos, estavam de fora, e não havia linha intermediária representando o caduceu. Acima da cabeça das serpentes via-se o V fatal, o forcado tifoniano, o caráter do inferno. À direita e à esquerda, os números sagrados III e VII relegados sobre a linha horizontal que representa as coisas passivas e secundárias. O sentido do caráter, portanto, era este:

O antagonismo é eterno.

Deus é a luta das forças fatais que criam sempre destruindo.

As coisas religiosas são passivas e passageiras.

A audácia delas se serve, a guerra delas se aproveita, e é através delas que a discórdia se perpetua.

3º – Finalmente, o monograma cabalístico de Jehova, o Iod e o He, porém invertidos, o que forma, segundo os doutores da ciência oculta, a mais terrível de todas as blasfêmias e significa, de qualquer modo que se leia:

“Só a fatalidade existe: Deus e o espírito não são. A matéria é tudo, e o espírito é apenas uma ficção dessa mesma matéria em demência. A forma é mais que a idéia, a mulher mais que o homem, o prazer mais que o pensamento, o vício mais que a virtude, a multidão mais que seus chefes, os filhos mais que seus pais, a loucura mais que a razão!”

Eis o que estava escrito em caracteres de sangue nas hóstias supostamente milagrosas de Vintras!

Damos nossa palavra de honra de que todos os fatos acima enunciados são tais como os relatamos e de que nós mesmos vimos e explicamos os caracteres, segundo a verdadeira ciência mágica e as verdadeiras chaves da Cabala.

O discípulo de Vintras comunicou-nos também a descrição e o desenho das vestes pontificais dadas, dizia ele, pelo próprio Jesus Cristo ao pretenso profeta durante um de seus sonos extáticos. Vintras mandou confeccionar essas vestes e enfeita-se com elas para fazer seus milagres. São vermelhas. Ele deve trazer na fronte uma cruz em forma de linga, ter um bastão pastoral encimado por uma mão, cujos dedos estão todos fechados, à exceção do polegar e do auricular.

Ora, tudo isso é diabólico por excelência, e não é uma coisa verdadeiramente maravilhosa essa intuição dos signos de uma ciência perdida? Pois foi a alta magia que, apoiando o universo sobre as duas colunas de Hermes e de Salomão, dividiu o mundo metafísico em duas zonas intelectuais, uma branca e luminosa encerrando as idéias positivas, a outra negra e obscura contendo as idéias negativas, e que deu à noção sintética da primeira o nome de Deus, à síntese da outra o nome do diabo, ou de Satã.

O signo do linga trazido na fronte é, na Índia, a marca distintiva dos adoradores de Shiva, o destruidor; sendo esse signo o do grande arcano mágico que detém o mistério da geração universal, trazê-lo sobre a fronte é fazer profissão de impudor dogmático. Ora, dizem os orientais, no dia em que não houver mais pudor no mundo, e este estiver abandonado à devassidão, que é estéril, logo acabará por falta de mães. O pudor é a aceitação da maternidade.

A mão com os três grandes dedos fechados expressa a negação do ternário e a afirmação das únicas forças naturais.

Os antigos hierofantes, como vai explicar nosso sábio e espirituoso amigo Desbarolles num belo livro, haviam feito da mão humana o resumo da ciência mágica. O indicador, para eles, representava Júpiter; o grande dedo ou dedo médio, Saturno; o anular, Apolo ou o Sol. Para os egípcios, o dedo médio era Ops, o indicador, Osíris e o anular, Hórus; o polegar representava a força geradora, e o auricular, a habilidade insinuante. A mão mostrando apenas o polegar e o auricular equivale, em língua hieroglífica sagrada, à afirmação exclusiva da paixão e da habilidade. É a tradução abusiva e material desta grande fala de Santo Agostinho: “Amai e fazei o que quiserdes.” Comparai agora esse signo à doutrina de Madrolle: o ato de amor mais imperfeito e aparentemente mais condenável vale mais do que a melhor das preces. E vós vos perguntareis qual força é essa que, independentemente da vontade e da maior ou menor ciência dos homens (pois Vintras é um homem sem letras e sem instrução), formula seus dogmas com signos enterrados nos destroços do antigo mundo, reencontra os mistérios de Tebas e de Elêusis, e escreve-nos os mais doutos devaneios da Índia com os alfabetos ocultos de Hermes.

Que força é essa? Eu vos direi. Mas tenho ainda muitos outros prodígios a vos contar, e este trabalho é, digamos, como uma instrução jurídica. Devemos antes de mais nada completá-la.

No entanto, ser-nos-á permitido, antes de passar a outros relatos, transcrever aqui uma página de um iluminado alemão, Ludwig Tieck.

“Se, por exemplo, como narra uma antiga tradição, uma parte dos anjos criados não tardou em decair, e se foram precisamente, como é dito ainda, os mais brilhantes, pode-se depreender dessa queda apenas que eles buscavam um caminho novo, uma outra atividade, outras ocupações e uma outra vida, ao contrário daqueles espíritos ortodoxos, ou mais passivos, que permaneceram na região que lhes era destinada e não fizeram nenhum uso da liberdade, seu apanágio comum. Sua queda foi essa gravidade da forma que agora chamamos realidade, e que é a reabsorção do espírito universal nos abismos. É assim que a morte conserva e reproduz a vida, é assim que a vida é noiva da morte… Compreendeis agora o que é Lúcifer? Não é o gênio mesmo do antigo Prometeu, essa força que impulsiona o mundo, a vida, o próprio movimento, e que regula o curso das forças sucessivas? Essa força, por sua resistência, equilibrou o princípio criador. Foi assim que os Eloim criaram o mundo. Quando em seguida os homens foram colocados na terra, pelo Senhor, como espíritos intermediários, em seu entusiasmo que os levava a investigar a natureza e suas profundezas, abandonaram-se à influência daquele soberbo e poderoso gênio, e quando num doce enlevo precipitaram-se na morte, para aí encontrar a vida, começaram então a existir de modo verdadeiro, natural e como convém às criaturas.”

Esta página não necessita de comentário e explica o suficiente as tendências do que se denomina espiritualismo, ou a doutrina espírita.

Há muito tempo já essa doutrina, ou essa antidoutrina, trabalha o mundo para precipitá-lo numa anarquia universal. Porém a lei de equilíbrio nos salvará, e o grande movimento de reação já começou.

Retomemos o relato dos fenômenos.

Um operário apresentou-se um dia na casa de Eliphas Levi. Era um homem de uns cinqüenta anos, alto, de olhar direto e que falava de modo bastante sensato. Perguntado sobre o motivo de sua visita, respondeu:

– O senhor deve saber, venho pedir-lhe e suplicar-lhe que me devolva o que perdi.

Devemos dizer, para sermos sinceros, que Eliphas nada sabia sobre esse visitante nem sobre o que ele pudesse ter perdido. Assim, respondeu-lhe:

– Acredita-me muito mais bruxo do que na realidade sou; não sei quem é nem o que procura, portanto, se acredita que lhe possa ser útil em alguma coisa, é necessário que se explique e esclareça o seu pedido.

– Pois bem! uma vez que não quer me compreender, reconhecerá pelo menos isso – disse então o desconhecido, tirando do bolso um pequeno livro negro e roto.

Era o grimório do papa Honório.

Uma palavra sobre esse pequeno livro tão desacreditado.

O grimório de Honório compõe-se de uma constituição apócrifa de Honório II para a evocação e o governo dos espíritos; e mais, de algumas receitas supersticiosas… Era o manual dos maus padres que exerciam a magia negra durante os mais tristes períodos da Idade Média. Encontram-se aí ritos sangrentos misturados a profanações da missa e das espécies consagradas, fórmulas de bruxaria e de malefícios, e também práticas que só a estupidez pode admitir e a perfídia aconselhar. Enfim, é um livro completo em seu gênero; assim, tornou-se muito raro nas livrarias, e os apreciadores fazem seu preço subir muito nos leilões.

– Meu caro senhor – disse o operário suspirando -, desde a idade de seis anos, não deixei uma única vez de fazer meu serviço. Este livro não me deixa, e sigo rigorosamente todas as prescrições que ele contém. Por que então os que me visitavam abandonaram-me? Eli, Eli, Lamma…

– Pare – disse Eliphas -, não parodie as mais formidáveis palavras que uma agonia já fez o mundo ouvir! Quais são os seres que o visitavam pelo poder deste livro horrível? Conhece-os? Prometeu-lhes alguma coisa? Assinou um pacto?

– Não – interrompeu o proprietário do grimório -, não os conheço e não assumi com eles nenhum compromisso. Sei apenas que entre eles os chefes são bons, os intermediários alternativamente bons e maus; os inferiores maus, mas não cegamente e sem que lhes seja possível fazer melhor. Aquele a quem evoquei e que freqüentemente me apareceu pertence à hierarquia mais elevada, pois tinha boa aparência, era bem vestido e sempre me dava respostas favoráveis. Mas perdi uma página do meu grimório, a primeira, a mais importante, a que trazia a assinatura do espírito, e, desde então, não aparece mais quando o chamo. Sou um homem perdido. Estou nu como Jó, não tenho mais força nem coragem. Oh! mestre, eu lhe suplico, o senhor a quem a uma única palavra, a um único sinal os espíritos obedecerão, tenha piedade de mim e devolva-me o que perdi!

– Dê-me seu grimório – disse Eliphas. – Que nome dava ao espírito que lhe aparecia?

– Chamava-o Adonai.

– Em que língua era sua assinatura?

– Ignoro, mas suponho que fosse hebraico.

– Tome – disse o professor de alta magia após haver traçado duas palavras hebraicas no começo e no final do livro. – Eis duas assinaturas que os espíritos das trevas nunca falsificarão. Vá em paz, durma bem e não evoque mais os fantasmas.

O operário retirou-se.

Oito dias depois voltou a procurar o homem de ciência.

– O senhor devolveu-me a esperança e a vida, minha força voltou em parte, posso, com as assinaturas que me deu, aliviar a dor dos que sofrem e livrar os obcecados, mas ele não posso mais ver, e, enquanto não o vir de novo, estarei triste até a morte. Antigamente, ele estava sempre perto de mim, tocava-me por vezes e acordava-me à noite para me dizer tudo o que eu precisava saber. Mestre, eu lhe suplico, faça com que o veja de novo.

– Quem?

– Adonai.

– Sabe quem é Adonai?

– Não, mas gostaria de revê-lo.

– Adonai é invisível.

– Eu o vi.

– Ele não tem forma.

– Eu o toquei.

– Ele é infinito.

– É mais ou menos do meu tamanho.

– Os profetas dizem que a orla de sua roupa, do Oriente ao Ocidente, varre as estrelas da manhã.

– Tinha um sobretudo muito limpo e a roupa muito branca.

– A Sagrada Escritura diz ainda que não se pode vê-lo sem morrer.

– Tinha um rosto bom e jovial.

– Mas como o senhor procedia para obter essas aparições?

– Ora! Fazia tudo o que está indicado no grande grimório.

– O quê! mesmo o sacrifício de sangue?

– Sem dúvida.

– Infeliz! mas quem era a vítima?

A essa pergunta, o operário teve um leve tremor, empalideceu, seu olhar perturbou-se.

– Mestre, o senhor sabe melhor do que eu – disse humildemente e em voz baixa. – Oh! custou-me muito; sobretudo a primeira vez, num único golpe com a faca mágica cortar a garganta dessa criatura inocente! Uma noite, tinha acabado de cumprir os ritos fúnebres, estava sentado dentro do círculo, na soleira interna da minha porta, e a vítima acabava de se consumir num grande fogo feito com álamos e ciprestes… De repente, perto de mim… vi, ou antes senti, que ele passava… Ouvi um lamento dilacerante… parecia chorar, e a partir desse momento tinha a impressão de ouvi-lo sempre.

Eliphas levantara-se e olhava fixamente seu interlocutor. Teria diante de si um louco perigoso capaz de repetir as atrocidades do Senhor de Retz? No entanto, a aparência desse homem era suave e honesta. Não, isso não era possível.

– Mas enfim, essa vítima… diga-me claramente o que era. O senhor supõe que eu já saiba, e talvez saiba mesmo, mas tenho razões para querer que me diga.

– Era, de acordo com o ritual mágico, um cabritinho de um ano, virgem e sem defeitos.

– Um cabrito de verdade?

– Sem dúvida. Acredite, não era nem um brinquedo de criança nem um animal empalhado.

Eliphas respirou.

“Ainda bem!” pensou, “este homem não é um bruxo digno da fogueira. Não sabe que os abomináveis autores dos grimórios, quando falavam do cabrito virgem, queriam dizer uma criancinha.”

– Pois bem! – disse então àquele que o consultava -, dê-me detalhes sobre essas visões. O que me conta interessa-me muitíssimo.

O bruxo, pois é preciso chamá-lo pelo seu nome, o bruxo contou-lhe então uma série de fatos estranhos de que duas famílias haviam sido testemunhas, e esses fatos eram precisamente idênticos aos fenômenos do senhor Home: mãos que saíam das paredes, agitações de móveis, aparições fosforescentes. Um dia, o temerário aprendiz de mágico ousara chamar Astaroth, e vira aparecer um monstro gigantesco que tinha o corpo de um porco e a cabeça tirada de um colossal esqueleto de boi. Mas tudo isso era contado num tom de verdade, com uma certeza de ter visto, que excluía qualquer dúvida sobre a boa fé e a inteira convicção do narrador. Eliphas, que é artista em magia, encantou-se com esse achado. No século XIX, um verdadeiro bruxo da Idade Média, um bruxo ingênuo e convicto! Um bruxo que viu Satã sob o nome de Adonai, Satã vestido como um burguês e Astaroth sob sua verdadeira forma diabólica! que obra de arte! que tesouro de arqueologia!

– Meu amigo – disse a seu novo discípulo -, quero ajudá-lo a encontrar o que diz ter perdido. Pegue meu livro, observe as prescrições do ritual e venha ver-me daqui a oito dias.

Oito dias depois, nova conferência, e então o operário declarou que inventou uma máquina de salvamento da maior importância para a marinha. A máquina está perfeitamente montada; falta apenas uma coisa… não funciona: um defeito imperceptível está no mecanismo. Que defeito é esse? Só o espírito de malícia poderia dizer. É, pois, absolutamente necessário evocá-lo!…

– Cuidado – disse Eliphas -; antes, diga durante nove dias esta invocação cabalística (e entregou-lhe uma folha manuscrita). Comece esta noite, e volte amanhã para me dizer o que viu, pois esta noite o senhor terá uma manifestação.

No dia seguinte, nosso homem não faltou ao encontro.

– Acordei de repente, mais ou menos à uma hora da manhã. Vi diante de minha cama uma grande luz, e dentro dessa luz um braço de sombra que passava e repassava diante de mim como para magnetizar-me. Então, tornei a dormir, e, alguns instantes depois, tendo novamente acordado, revi a mesma luz, mas ela mudara de lugar. Passara da esquerda para a direita, e sobre o fundo luminoso distingui a silhueta de um homem que cruzava os braços e me olhava.

– Como era esse homem?

– Aproximadamente da sua estatura e do seu peso.

– Está bem. Vá e continue a fazer o que eu lhe disse.

Passaram-se os nove dias; ao final desse tempo, nova visita do adepto; mas dessa vez muito feliz e agradecido. Ao ver ao longe Eliphas:

– Obrigado, mestre! – exclamou -, a máquina funciona, pessoas que eu não conhecia vieram colocar à minha disposição o capital de que necessitava para terminar meu empreendimento, reencontrei a paz do sono, e tudo isso graças ao seu poder.

– Diga antes graças à sua fé e à sua docilidade, e agora adeus, preciso trabalhar… E então? por que este ar suplicante, o que ainda quer de mim?

– Oh! se o senhor quisesse!…

– Se quisesse o quê? Não obteve tudo o que pediu, e até mais do que pediu, pois o senhor não havia falado em dinheiro.

– Sim, certamente, disse o outro suspirando, mas gostaria muito de revê-lo!

– Incorrigível!

Algumas semanas depois, o professor de alta magia foi acordado mais ou menos às duas horas da manhã por uma dor de cabeça aguda. Durante alguns instantes, receou uma congestão cerebral, levantou-se, acendeu a lâmpada, abriu a janela, passeou pelo seu gabinete de estudos, depois, acalmado pelo ar fresco da manhã, voltou a deitar-se e adormeceu profundamente; teve, então, um pesadelo; viu, com uma aparência terrível de realidade, o gigante de cabeça de boi descarnada de que lhe falara o mecânico. Esse monstro perseguia-o e lutava com ele. Quando acordou já era dia e alguém batia à sua porta. Eliphas levantou-se, jogou uma roupa sobre o corpo e foi abrir: era o operário.

– Mestre – disse entrando apressadamente e com um ar alarmado -, como o senhor está se sentindo?

– Muito bem – respondeu Eliphas.

– Mas essa noite, às duas horas da manhã, o senhor não correu perigo?

Eliphas não sabia do que se tratava e já não se lembrava de sua indisposição da noite.

– Um perigo? não, nenhum que eu saiba.

– O senhor não foi atacado por um fantasma monstruoso que tentava estrangulá-lo? O senhor não sofreu?

Eliphas lembrou-se.

– Sim, certamente tive um começo de apoplexia e um sonho horrível. Mas como sabe disso?

Na mesma hora, uma mão invisível bateu-me com força no ombro e acordou-me em sobressalto. Sonhava, então, que o via lutando com Astaroth. Sentei-me na cama e uma voz disse-me ao ouvido: “Levante-se e vá em socorro de seu mestre; ele está em perigo.” Levantei-me precipitadamente.

Mas, em primeiro lugar, para onde era preciso correr? Que perigo o ameaçava? Era em sua casa ou em outra parte? A voz nada dissera sobre isso. Tomei a decisão de esperar o nascer do sol, e, desde que o dia clareou, vim em seu auxílio, e aqui estou.

– Obrigado, meu amigo – disse-lhe o mágico estendendo-lhe a mão, Astaroth é um bufão desagradável, e essa noite um pouco de sangue subiu-me à cabeça, apenas isto. Agora estou perfeitamente bem. Pode, portanto, ficar tranqüilo e voltar ao trabalho.

Por mais estranhos que sejam os fatos que acabamos de contar, resta-nos revelar um drama fúnebre ainda bem mais extraordinário.

Trata-se do fato cruento, que no início deste ano, mergulhou no luto e no estupor Paris e toda a cristandade; fato a que ninguém suspeitou que a magia negra não fosse estranha.

Eis o que aconteceu:

Durante o inverno, no início do ano passado, um livreiro informou ao autor de Dogma e Ritual da Alta Magia que um eclesiástico procurava seu endereço e demonstrava o maior desejo de vê-lo. Eliphas Levi não se sentiu, de início, tomado de confiança por esse desconhecido a ponto de expor-se sem precauções à sua visita; indicou uma casa amiga, onde deveria estar com seu fiel amigo Desbarolles. Na hora combinada e no dia marcado, eles foram à casa da senha A…, e encontraram o eclesiástico que já há alguns instantes os esperava.

Era um moço bastante magro, de nariz pontiagudo e arqueado, de olhos azuis e ternos. Sua testa ossuda e saliente era mais larga do que alta: a cabeça era alongada atrás, os cabelos lisos e curtos, repartidos de lado, eram de um loiro acinzentado, pendendo para o castanho claro, mas com uma nuança particular e desagradável. A boca era sensual e batalhadora; seus modos, aliás, eram afáveis, a voz doce e a fala algumas vezes um pouco embaraçada. Perguntado por Eliphas Levi sobre o objetivo sua visita, respondeu que estava à procura do grimório de Honório e que vinha informar-se com o professor de ciências ocultas sobre o modo de se obter esse pequeno livro negro, que se tornara praticamente impossível de encontrar.

– Eu daria cem francos por um exemplar desse grimório – dizia ele.

– A obra em si nada vale – disse Eliphas. – É uma constituição, que se supõe ser de Honório II, que o senhor talvez encontre citada por algum colecionador de constituições apócrifas; o senhor poderia procurar na biblioteca.

– Farei isso, pois em Paris passo quase todo o meu tempo na bibliotecas públicas.

– Não está ocupado no ministério de Paris.

– Não, no momento não. Estive trabalhando durante algum tempo na paróquia São Germano de Auxerre.

– E, pelo que vejo, ocupa-se agora com pesquisas curiosas sobre as ciências ocultas.

– Não exatamente; mas persigo a realização de uma idéia… Tenho alguma coisa a fazer.

– Suponho que essa alguma coisa não seja uma operação de magia negra; sabe, como eu, senhor abade, que a Igreja sempre condenou e ainda condena severamente tudo o que se relaciona com essas práticas proibidas.

Um pálido sorriso, marcado por uma espécie de ironia sarcástica, foi toda a resposta do abade, e a conversa interrompeu-se.

No entanto, o quiromante Desbarolles observava atentamente a mão do padre; este percebeu e seguiu-se, naturalmente, uma explicação, o abade então ofereceu de bom grado sua mão ao experimentador. Desbarolles franziu as sobrancelhas e pareceu embaraçado. A mão era úmida e fria, os dedos lisos e espatulados; o monte de Vênus, ou a parte da palma da mão que corresponde ao polegar, de um desenvolvimento bastante notável, a linha da vida curta e interrompida, cruzes no centro da mão, estrelas no monte da Lua.

– Senhor abade – disse Desbarolles -, se o senhor não tivesse uma sólida instrução religiosa, tornar-se-ia um perigoso sectário, pois, por um lado, é inclinado ao misticismo mais exaltado e, pelo outro, à obstinação mais concentrada e menos comunicativa que possa existir no mundo. O senhor procura muito, mas imagina mais ainda, e como não confia a ninguém suas imaginações elas poderiam atingir proporções que as transformariam em suas verdadeiras inimigas. Seus hábitos são contemplativos e um pouco indolentes, mas é uma sonolência cujos despertares podem ser dignos de temor. É levado a uma paixão que seu estado… Mas, perdoe-me, senhor abade, receio ter ultrapassado os limites da discrição.

– Diga tudo, senhor, posso ouvir tudo e desejo tudo saber.

– Pois bem! se, como não duvido, o senhor dedica à caridade toda a atividade inquieta que as paixões do coração lhe dariam, deve ser muitas vezes bendito por suas boas obras.

Mais uma vez o abade deu aquele sorriso duvidoso e fatal que dava ao seu pálido rosto tão singular expressão.

Levantou-se e despediu-se sem ter dito seu nome e sem que ninguém se tivesse lembrado de perguntá-lo.

Eliphas e Desbarolles reconduziram-no até a escada em respeito à sua dignidade de padre. Perto da escada, voltou-se e disse lentamente:

– Em breve os senhores ouvirão dizer algo… Ouvirão falar de mim, acrescentou sublinhando cada palavra. Depois saudou-os com um gesto de cabeça e com a mão, virou-se sem acrescentar uma só palavra e desceu a escada.

Os dois amigos retomaram à casa da senhora A…

– Eis aí um singular personagem – disse Eliphas. – Pareceu-me ver Pierrot des Furnambules no papel de um traidor. O que nos disse ao partir parece-se bastante com uma ameaça.

– O senhor intimidou-o – disse a senhora A… – Antes de sua chegada, ele começava a expor todo seu pensamento, mas o senhor falou-lhe de consciência e das leis da Igreja, ele não ousou confessar o que queria.

– Ora essa! o que ele queria então?

– Ver o diabo.

– Pensaria, por acaso, que o trago no bolso?

– Não, mas sabe que o senhor dá aulas de cabala e de magia, esperava que o ajudasse em seus empreendimentos. Contou-nos, à minha filha e a mim, que em seu presbitério, no campo, já fizera uma noite uma evocação com o auxílio de um grimório vulgar. Então, disse ele, um redemoinho pareceu abalar o presbitério, as vigas rangeram, a madeira do forro estalou, as portas balançaram-se, as janelas abriram-se com estrondo, e ouviram-se assovios em todos os cantos da casa. Esperava, então, a visão formidável, mas nada viu, nenhum monstro se apresentou; numa palavra, o diabo não quis aparecer. É por isso que ele procura o grimório de Honório, pois espera encontrar aí conjurações mais fortes e ritos mais eficazes.

– Realmente! esse homem então é um monstro… ou um louco.

– Deve estar apenas ingenuamente apaixonado – disse Desbarolles. – Está tormentado por alguma paixão absurda e não espera absolutamente nada, a menos que o diabo se intrometa.

– Mas como, então, ouviremos falar dele?

– Quem sabe? Talvez tencione seqüestar a rainha da Inglaterra ou a mãe do sultão.

A conversa parou por aí, e um ano inteiro se passou sem que nem a senhora A…. nem Desbarolles, nem Eliphas ouvissem falar do jovem padre desconhecido.

Na noite do primeiro para o segundo dia de janeiro do ano de 1857, Eliphas Levi acordou sobressaltado com as emoções de um sonho estranho e fúnebre. Parecia-lhe estar num quarto gótico em ruínas muito semelhante à capela abandonada de um velho castelo. Uma porta oculta por um pano negro dava para esse quarto, atrás do pano adivinhava-se a luz tênue e avermelhada dos círios, e parecia a Eliphas que, levado por uma curiosidade cheia de terror, aproximava-se do pano negro… Então o pano entreabriu-se, uma mão estendeu-se e agarrou o braço de Eliphas. Ele não viu ninguém, mas ouviu uma voz baixa que dizia em seu ouvido:

– Venha ver seu pai que vai morrer!

O magista acordou com o coração palpitante e a testa banhada de suor.

“O que quer dizer esse sonho?”, pensou. “Meu pai morreu há muito tempo; por que me dizem que ele vai morrer, e por que essa advertência perturbou meu coração?”

Na noite seguinte, o mesmo sonho voltou com as mesmas circunstâncias, e Eliphas Levi acordou mais uma vez ouvindo repetir ao seu ouvido:

– Venha ver seu pai que vai morrer!

Essa repetição de pesadelos impressionou Eliphas penosamente: ele aceitara para 3 de janeiro um convite para jantar em companhia alegre, escreveu para desculpar-se, achando-se pouco disposto para a alegria de um banquete de artistas. Permaneceu, então, em seu gabinete de estudos; o tempo estava carregado; ao meio-dia, recebeu a visita de um de seus discípulos de magia, o visconde de M… A chuva caiu, então, com tal abundância que Eliphas ofereceu seu guarda-chuva ao visconde, que recusou-se a aceitá-lo. Seguiu-se uma discussão de polidez, cujo resultado foi que Eliphas saiu para reconduzir o visconde. Enquanto estavam fora, a chuva cessou, o visconde encontrou um carro, e Eliphas, ao invés de voltar para casa, atravessou maquinalmente o Luxemburgo, saiu pelo portão que dá para a Rua do Inferno, e encontrou-se diante do Panteão.

Uma dupla fileira de barracas improvisadas para a novena de Santa Genoveva indicava aos peregrinos o caminho de Santo Estêvão do Monte. Eliphas, cujo coração estava triste e, por conseguinte, disposto às orações, seguiu essa via e entrou na Igreja. Podiam ser, nesse momento, quatro horas da tarde.

A igreja estava cheia de fiéis, e o ofício realizava-se com um grande recolhimento e uma solenidade extraordinária. Os estandartes das paróquias da cidade e do subúrbio atestavam a veneração pública por essa virgem que salvou Paris da fome e das invasões. No fundo da igreja, o túmulo de Santa Genoveva resplandecia de luz. Cantavam-se as ladainhas e a procissão saía do coro.

Após a cruz, acompanhada de seus acólitos e seguida pelos meninos do coro, vinha o estandarte de Santa Genoveva; depois caminhavam em duas filas as senhoras genovevinas, vestidas de preto com um véu branco na cabeça, uma fita azul ao pescoço e a medalha da legenda, um círio na mão encimado por uma pequena lanterna gótica, como as que a tradição atribui às imagens da santa. Pois, nos antigos legendários, Santa Genoveva é sempre representada com uma medalha ao pescoço, a que lhe deu São Germano de Auxerre, e segurando um círio que o demônio esforça-se em apagar, mas que é preservado do sopro do espírito imundo por um pequeno tabernáculo milagroso.

Após as senhoras genovevinas vinha o clero, depois, finalmente, aparecia o venerável arcebispo de Paris, mitrado de branco, portando uma capa levantada de cada lado por dois grandes vigários; o prelado, apoiando-se em seu báculo, caminhava lentamente e abençoava à direita e à esquerda a multidão que se ajoelhava à sua passagem. Eliphas via o arcebispo pela primeira vez e observou os traços de seu rosto. Expressavam a bonomia e a doçura; mas podia-se notar aí a expressão de um grande cansaço e mesmo de um sofrimento nervoso penosamente dissimulado.

A procissão desceu até o ádrio da igreja atravessando a nave, subiu pela nave à esquerda da porta de entrada e chegou ao túmulo de Santa Genoveva; depois voltou pela nave da direita continuando a cantar ladainhas.

Um grupo de fiéis seguia a procissão e caminhava logo atrás do arcebispo.

Eliphas misturou-se a esse grupo para atravessar mais facilmente a multidão que ia se formar novamente e para alcançar a porta da igreja, pensativo e enternecido com essa piedosa solenidade.

A frente da procissão já tornava a entrar no coro, o arcebispo chegava à grade da nave: aí o vão era muito estreito para que três pessoas pudessem passar de frente; o arcebispo, portanto, estava adiante e os dois grandes vigários atrás sempre segurando as extremidades de sua capa, que encontrava-se, assim, jogada e puxada para trás, de modo que o prelado apresentava seu peito descoberto e protegido apenas pelos bordados cruzados da estola.

Então, os que estavam atrás do arcebispo viram-no estremecer, e ouviu-se uma interpelação feita em voz alta, todavia sem clamor. O que fora dito? Parecia ter sido: Abaixo as deusas! mas acreditava-se ter ouvido mal, tão deslocada e sem sentido parecia essa frase. No entanto, a exclamação repetiu-se duas ou três vezes, alguém gritou: “Salvem o arcebispo!” outras vozes responderam: “Às armas!” A multidão dispersou-se, então, revirando as cadeiras e as barreiras, precipitou-se para as portas gritando. Eram choros de criança, gritos de mulheres, e Eliphas, arrastado pela multidão, foi de certo modo carregado para fora da igreja; mas os últimos olhares que pôde lançar aí dentro depararam-se com um terrível e indelével quadro.

No meio de um círculo alargado pelo terror dos que o rodeavam, o prelado estava em pé, só, sempre apoiado em seu báculo e sustentado pela rigidez de sua capa, que os grandes vigários haviam soltado, e que pendia agora até o chão.

A cabeça do arcebispo estava um pouco inclinada, os olhos e a mão que não segurava o báculo estavam erguidos para o céu. Sua atitude era a que Eugênio Delacroix deu ao Bispo de Liège assassinado por bandidos do Javali das Ardenas; havia no seu gesto toda a epopéia do martírio, era uma aceitação e uma oferenda, uma prece por seu povo e um perdão para o seu algoz.

A tarde caía, e a igreja começava a escurecer. O arcebispo, com os braços erguidos para o céu e iluminado por um último raio de luz vindo dos caixilhos da nave, destacava-se contra um fundo sombrio, onde se distinguia apenas um pedestal sem estátua em que estavam escritas estas duas palavras da paixão de Cristo: ECCE HOMO, e mais adiante, no fundo, uma pintura apocalíptica representando os quatro flagelos prontos a lançarem-se sobre o mundo, e os turbilhões do inferno seguindo os rastros poeirentos do cavalo pálido da morte.

Diante do arcebispo, um braço erguido, que se desenhava na sombra como uma silhueta infernal, segurava e brandia uma faca: soldados avançavam com a espada em punho.

E enquanto todo esse tumulto acontecia no ádrio da igreja, o canto das ladainhas continuava no coro como a harmonia das esferas celestes perpetua-se, atenta às nossas revoluções e às nossas angústias.

Eliphas Levi fora arrastado para fora pela multidão. Saíra pela porta da direita. Quase no mesmo instante, a porta da esquerda abria-se com violência, e um grupo furioso precipitava-se para fora da igreja.

Esse grupo girava em volta de um homem que cinqüenta braços pareciam segurar, que cem punhos estendidos queriam socar.

Esse homem, mais tarde, queixou-se de ter sido maltratado pelos soldados; mas, tanto quanto se podia observar nesse tumulto, os soldados protegiam-no contra a exasperada multidão.

Mulheres corriam em seu encalço gritando: Matem-no! – Mas o que ele fez? – diziam outras vozes.

– O miserável! deu um soco no arcebispo, diziam as mulheres. Depois outras pessoas saíram da igreja, e as versões contraditórias entrecruzavam-se.

– O arcebispo teve medo e passou mal – diziam alguns.

– Ele morreu – respondiam outros.

– Viram a faca? – acrescentava um novo interlocutor.

– Era longa como um sabre, e o sangue escorria na lâmina.

Esse pobre monsenhor perdeu um de seus sapatos – observava uma velha senhora juntando as mãos.

– Não foi nada! Não foi nada! – veio anunciar, então, uma locadora de cadeiras.

– Podem voltar para a igreja: monsenhor não está ferido, acabam de declará-lo no púlpito.

A multidão, então, fez um movimento para retornar à igreja.

– Saiam! Saiam! – disse nesse mesmo instante a voz grave e desolada de um padre.

– O ofício não pode prosseguir. A igreja será fechada; está profanada.

– Como está o arcebispo? – disse então um homem.

– Senhor – respondeu o padre -, o arcebispo está morrendo, e talvez nesse momento mesmo em que falamos ele esteja morto!

A multidão dispersou-se consternada, para ir divulgar essa funesta notícia em toda Paris.

Uma circunstância estranha envolveu Eliphas, e de certo modo desviou o seu espírito da profunda dor pelo que acabava de acontecer.

Na hora do tumulto, uma mulher idosa e de aparência muito respeitável tomara-lhe o braço solicitando sua proteção.

Ele achou-se no dever de responder a esse apelo, e, quando saiu da multidão com essa senhora:

– Como estou feliz – disse-lhe – por ter encontrado um homem que se aflige com esse grande crime com o qual alegram-se, nesse momento, tantos miseráveis!

– O que diz, senhora, e como é possível existirem seres tão depravados para alegrarem-se com tamanha infelicidade?

– Silêncio! – disse a velha senhora – talvez nos ouçam… Sim – acrescentou, abaixando a voz -, há pessoas que estão encantadas com o que aconteceu, e olhe, ali, há poucos minutos, havia um homem de aparência sinistra, que dizia para a multidão inquieta, quando interrogado sobre o que acabava de acontecer… Oh! não foi nada! foi uma aranha que tombou!

– Não, a senhora deve ter ouvido mal. A multidão não teria permitido esse abominável propósito, e o homem teria sido imediatamente preso.

– Quisera Deus que todo o mundo pensasse como o senhor – disse a dama.

Depois acrescentou:

– Recomendo-me às suas orações, pois vejo que é um homem de Deus.

– Talvez não seja a opinião de todo o mundo – respondeu Eliphas.

– E o que nos importa o mundo? – continuou a senhora com vivacidade – ele é mentiroso, caluniador, ímpio! talvez fale mal do senhor. Não me espanto com isso, e se o senhor pudesse saber o que ele diz de mim, compreenderia por que desprezo sua opinião.

– O mundo fala mal da senhora!

– Certamente, e o pior mal que se possa dizer.

– Como assim?

– Acusa-me de sacrilégio.

– A senhora está me assustando. E de qual sacrilégio, por favor?

– De uma indigna comédia que teria representado para enganar duas crianças na montanha da Salette.

– Quê! seria…

– Sou a senhorita Merlière.

– Ouvi falar de seu processo, senhorita, e do escândalo que provocou, mas parece-me que sua idade e sua responsabilidade deveriam protegê-la de semelhante acusação.

– Venha ver-me, senhor, e o apresentarei a meu advogado, senhor Farre, é um homem talentoso que eu gostaria de ganhar para Deus.

Conversando assim os dois interlocutores haviam chegado à Rua do Velho Pombal. A dama agradeceu ao seu cavalheiro improvisado e renovou o convite para que fosse vê-Ia.

– Vou tentar – disse Eliphas. – Mas, se for, perguntarei ao porteiro pela senhorita Merlière?

– Cuidado! não me conhecem por esse nome; pergunte pela senhora Dutruck.

– Dutruck, está bem, senhora, queira aceitar meus humildes cumprimentos.

E separaram-se.

O julgamento do assassino começou, e Eliphas, ao ler nos jornais que esse homem era padre, que fizera parte do clero de São Germano de Auxerre, que fora pároco no interior, que parecia furioso, lembrou-se do padre pálido que um ano antes procurava o grimório de Honório. Mas a descrição que as páginas públicas davam desse criminoso contrariava as lembranças do professor de magia. Com efeito, a maioria dos jornais atribuíam-lhe cabelos negros… Portanto, não é ele, pensava Eliphas. No entanto, tenho ainda no ouvido e na memória as palavras que para mim estariam agora explicadas por esse grande crime:

– Não tardarão a saber algo. Em breve ouvirão falar de mim.

O julgamento teve lugar com todas as horríveis peripécias que todos conhecem, e o acusado foi condenado à morte.

No dia seguinte, Eliphas leu numa folha judiciária o relato dessa cena inaudita nos anais da justiça; e sentiu a vista turvar-se quando leu o trecho em que se descrevia o acusado: “Ele é loiro”.

– Deve ser ele – disse o professor de magia.

Alguns dias depois, uma pessoa que na audiência pudera traçar um esboço do perfil do condenado mostrou-o a Eliphas.

– Deixe-me copiar este desenho – disse, tremendo de espanto.

Fez a cópia e levou-a ao seu amigo Desbarolles a quem perguntou sem maiores explicações:

– Conhece este rosto?

– Sim – assentiu vivamente Desbarolles -; espere, é o padre misterioso que vimos na casa da senhora A…. e que queria fazer evocações mágicas.

– Pois bem, meu amigo! o senhor confirma minha triste convicção. O homem que vimos, não tornaremos mais a ver, a mão que o senhor examinou tornou-se sanguinária. Ouvimos falar dele, como nos anunciara, pois este padre pálido, sabe qual era seu nome?

– Oh! meu Deus! – disse Desbarolles mudando de cor – receio saber.

– Pois o senhor sabe, era o infeliz Louis Verger!

Algumas semanas depois do que acabamos de contar, Eliphas Levi conversava com um livreiro que tem por especialidade colecionar velhos livros de ciências ocultas sobre o grimório de Honório.

– É agora um artigo impossível de ser encontrado, dizia o comerciante. O último que tive nas mãos cedi-o a um padre que ofereceu cem francos por ele.

– Um jovem padre! e lembra-se qual era sua fisionomia?

– Oh! perfeitamente. Mas o senhor deve conhecê-lo, pois ele contou-me tê-lo visto, e fui eu quem o indicou.

Assim, não havia mais dúvida, o infeliz padre encontrara o fatal grimório, fizera a evocação e preparara-se para o crime através de uma série de sacrilégios, pois eis no que consiste a evocação infernal, segundo o grimório de Honório:

“Escolher um galo preto e dar-lhe o nome do espírito das trevas que se quer evocar.”

“Matar o galo, reservar sua língua, o coração e a primeira pena da asa esquerda.”

“Deixar secarem a língua e o coração e reduzi-los a pó.”

“Não comer carne e não beber vinho nesse dia.”

“Na terça-feira, ao nascer do dia, dizer uma missa dos anjos.”

“Traçar sobre o altar com a pena do galo molhada em vinho consagrado assinaturas diabólicas (aquelas do lápis do senhor Home e das hóstias ensangüentadas de Vintras).”

“Na quarta-feira, preparar uma vela de cera amarela; levantar-se à meia-noite, e, sozinho numa igreja, começar o ofício dos mortos.”

“Misturar a esse ofício evocações infernais.”

“Terminar o ofício à luz de uma única vela, que será em seguida apagada, e permanecer sem luz na igreja assim profanada até o nascer do sol.”

“Na quinta-feira, misturar à água benta o pó da língua e do coração do galo preto, e fazer um cordeiro macho de nove dias engolir a mistura…”

A mão recusa-se a escrever o resto. É um misto de práticas brutais e atentados revoltantes apropriados a matar o discernimento e a consciência.

Mas para comunicar-se com o fantasma do mal absoluto, para realizar o fantasma a ponto de vê-lo e tocá-lo, não é preciso estar, necessariamente, sem consciência e sem discernimento?

Aí está certamente o segredo dessa inacreditável perversidade, dessas fúrias assassinas, desse ódio doentio contra toda ordem, toda magistratura, toda hierarquia, dessa fúria sobretudo contra o dogma que santifica a paz, a obediência, a doçura sob o símbolo tão comovente de uma mãe.

Esse infeliz estava certo de que não morreria. O imperador, acreditava ele, seria forçado a perdoá-lo, um exílio honroso esperava-o, seu crime lhe daria uma enorme celebridade, seus devaneios seriam comprados a peso de ouro pelos livreiros. Tornar-se-ia imensamente rico, atrairia a atenção de uma grande dama e se casaria do outro lado do mar. Era com promessas semelhantes que outrora o fantasma do demônio também tentava e fazia saltar de um crime a outro Gilles de Laval, senhor de Retz. Um homem capaz de evocar o diabo, segundo os ritos do grimório de Honório, engajou-se de tal maneira na trilha do mal que está disposto a todas as alucinações e a todas as mentiras. Assim Verger adormecia no sangue para acordar em não sei que abominável Panteão; e acordou no cadafalso.

Mas as aberrações da perversidade não constituem uma loucura; a execução desse miserável provou-o.

Sabe-se que resistência desesperada ele opôs aos executores. “É uma traição”, dizia, “não posso morrer assim! Uma hora apenas, uma hora para escrever ao Imperador! O Imperador deve salvar-me.”

Quem, pois, o traía?

Quem, pois, prometera-lhe a vida?

Quem, pois, assegurara-lhe de antemão uma clemência impossível, visto que ela teria revoltado a consciência pública?

Perguntai tudo isso ao grimório de Honório!

Duas coisas nessa história tão trágica relacionam-se com os fenômenos do senhor Home: o ruído de tempestade ouvido pelo mau padre quando de suas primeiras evocações e a perturbação que o impediu de expor todo seu pensamento na presença de Eliphas Levi.

Pode-se observar também a aparição de um homem sinistro regozijando-se com o luto público e sustentando um propósito verdadeiramente infernal em meio à multidão consternada, aparição observada apenas pela extática da Salette, a tão célebre senhorita Merlière, que, não obstante ter a aparência de uma pessoa boa e respeitável, é muito exaltada e capaz talvez de agir e de falar, sem se aperceber, sob a influência de um sonambulismo ascético.

Esta palavra sonambulismo traz-nos de volta ao senhor Home, e nossos relatos não nos fizeram esquecer do que o título deste trabalho prometia a nossos leitores.

Devemos dizer-lhes o que é o senhor Home.

Vamos manter nossa promessa.

O senhor Home é um doente afetado por um sonambulismo contagioso.

Isso é uma asserção.

Restou-nos uma explicação e uma demonstração a dar.

Essa explicação e essa demonstração, para serem completas, pediam um trabalho capaz de encher um livro.

Esse livro está pronto e publicá-lo-emos brevemente.

Eis seu título: A Razão dos Prodígios, ou o Diabo diante da Ciência.

Por que o diabo? Porque demonstramos através de fatos o que antes de nós o senhor Mirville incompletamente pressentira.

Dizemos incompletamente porque o diabo é, para o senhor Mirville, uma personagem fantástica, enquanto para nós é o uso abusivo de uma força natural.

Um médium disse: O inferno não é um lugar, é um Estado.

Poderíamos acrescentar: O diabo não é nem uma pessoa nem uma força; é um vício e, por conseguinte, uma fraqueza.

Voltemos por um momento ao estudo dos fenômenos.

Os médiuns geralmente são seres doentes e limitados.

Nada de extraordinário podem fazer diante das pessoas calmas e instruídas.

É preciso estar habituado a seu contato para ver e sentir algo.

Os fenômenos não são os mesmos para todos os espectadores. Assim, onde um verá uma mão, o outro notará apenas um vapor esbranquiçado.

As pessoas impressionáveis pelo magnetismo do senhor Home experimentam uma espécie de mal-estar; parece-lhes que a sala gira, e têm a sensação de que a temperatura abaixa-se rapidamente.

Os prodígios ou os prestígios realizam-se melhor diante de um pequeno número de testemunhas escolhidas pelo próprio médium.

Numa reunião de pessoas que verão os prestígios, pode encontrar-se uma que não verá absolutamente nada.

Dentre as pessoas que vêem, não vêem todas a mesma coisa.

Assim, por exemplo:

Numa noite, na casa da senhora B… I o médium fez aparecer o filho que essa senhora perdeu. Apenas a senhora B… via a criança, o conde de M… via um pequeno vapor esbranquiçado em forma de pirâmide, as outras pessoas nada viam.

Todo mundo sabe que certas substâncias, o haxixe, por exemplo, entorpecem sem privar do uso da razão, e fazem ver, com uma surpreendente impressão de realidade, coisas que não existem.

Grande parte dos fenômenos do senhor Home pertencem a uma influência natural semelhante à do haxixe.

Eis por que o médium quer operar apenas diante de um pequeno número de pessoas escolhidas por ele.

O restante desses fenômenos deve ser atribuído ao poder magnético.

Ver algo com o senhor Home não é um indício tranqüilizador para a saúde de quem vê.

Aliás, mesmo que a saúde fosse excelente, essa visão revela uma perturbação passageira do aparelho nervoso em suas relações com a imaginação e com a luz.

Se essa perturbação fosse frequentemente repetida, a pessoa se tornaria seriamente doente.

Quem sabe quantas catalepsias, tétanos, loucuras e mortes violentas a mania das mesas girantes já produziu?

Esses fenômenos tornam-se particularmente terríveis quando deles a perversidade se apodera.

É então que se pode realmente afirmar a intervenção e a presença do espírito do mal.

Perversidade ou fatalidade, os pretensos milagres obedecem a um desses dois poderes.

Quanto às escrituras cabalísticas e às assinaturas misteriosas, diremos que se reproduzem pela intuição magnética das imagens do pensamento no fluido vital universal.

Esses reflexos instintivos podem produzir-se se o Verbo mágico nada tiver de arbitrário e se os signos do santuário oculto forem a expressão natural das idéias absolutas.

É o que demonstramos em nosso livro.

Mas, para não remetermos nossos leitores do desconhecido ao futuro, vamos antecipar dois capítulos dessa obra inédita, um sobre o Verbo cabalístico, o outro sobre os segredos da cabala, e deles tiraremos conclusões que completarão de modo satisfatório para todos a explicação que prometemos para os fenômenos do senhor Home.

Existe um poder gerador das formas; este poder é a luz.

A luz cria as formas segundo as leis das matemáticas eternas, pelo equilíbrio universal do dia e da sombra.

Os signos primitivos do pensamento delineiam-se por si sós na luz, que é o instrumento material do pensamento.

Deus é a alma da luz. A luz universal e infinita é para nós como o corpo de Deus.

A cabala ou a alta magia é a ciência da luz.

A luz corresponde-se com a vida.

O reino das trevas é a morte.

Todos os dogmas da verdadeira religião estão escritos na cabala em caracteres de luz numa página de sombra.

A página de sombra são as crenças cegas.

A luz é o grande mediador plástico.

A aliança da alma com o corpo é um casamento de luz e de sombra.

A luz é o instrumento do Verbo, é a escritura branca de Deus no grande livro da noite.

A luz é a fonte dos pensamentos, e é nela que se deve buscar a origem de todos os dogmas religiosos. Mas só há um verdadeiro dogma, como só há uma pura luz; apenas a sombra é infinitamente variada.

A luz, a sombra e sua união que é a visão dos seres, tal é o princípio analógico dos grandes dogmas da Trindade, da Encarnação e da Redenção.

Tal é também o mistério da cruz.

Eis o que nos será fácil provar pelos monumentos religiosos, pelos signos do Verbo primitivo, pelos livros iniciados na cabala, pela explicação racional, enfim, de todos os mistérios por meio das chaves da magia cabalística.

Com efeito, em todos os simbolismos encontramos as idéias de antagonismo e de harmonia produzindo uma noção trinitária na concepção divina, depois a personificação mitológica dos quatro pontos cardeais do céu completa o setenário sagrado, base de todos os dogmas e de todos os ritos. Para convencermo-nos disto, bastará relermos e meditarmos sobre a sábia obra de Dupuis, que seria um grande cabalista se tivesse visto uma harmonia de verdades onde suas preocupações negativas apenas o deixaram ver um concerto de erros.

Não devemos refazer aqui o seu trabalho, que todos conhecem; mas o que importa provar é que a reforma religiosa de Moisés era inteiramente cabalística, e que o cristianismo, ao instituir um dogma novo, simplesmente reaproximou-se das fontes primitivas do mosaísmo, e que o Evangelho não é mais do que um véu transparente lançado sobre os mistérios universais e naturais da iniciação oriental.

Um sábio notável, mas muito pouco conhecido, M. P. Lacour, em seu livro sobre os Eloim ou deuses de Moisés, lançou nova luz sobre essa questão e encontrou nos símbolos do Egito todas as figuras alegóricas do Gênesis. Mais recentemente, um bravo pesquisador, de vasta erudição, M. Vincent (de Yonne), publicou um tratado sobre a idolatria entre os antigos e os modernos, onde ergue o véu da mitologia universal.

Convidamos os homens de estudos conscienciosos a lerem essas diferentes obras e nós nos concentraremos no estudo especial da cabala entre os hebreus.

Sendo o Verbo, ou a palavra, segundo os iniciados nessa ciência, toda a revelação, os princípios da alta cabala devem se encontrar reunidos nos próprios sinais que compõem o alfabeto primitivo.

Ora, eis o que encontramos em todas as gramáticas hebraicas.

Há uma letra principiante e universal geradora de todas as outras. É o Iod h .

Há duas outras letras mães opostas e análogas entre si; o Aleph t e o Mem n , seguindo-se a outras o Schin a .

Há sete letras duplas, o Beth c , o Ghimel d , o Daleth s , o Caph f , o Phé p , o Resch r e o Tau , .

Finalmente há doze simples que são as outras letras; ao todo, vinte e duas.

A unidade é representada de modo relativo pelo aleph, o ternário é figurado ou por iod, mem, schin, ou por aleph, mem, schin.

O setenário por beth, ghimel, daleth, caph, phé, resch, tau.

O duodenário pelas outras letras. O duodenário é o ternário multiplicado por quatro; e entra também no simbolismo do setenário.

Cada letra representa um número:

Cada conjunto de letras uma série de números.

Os números representam idéias filosóficas absolutas.

As letras são hieróglifos abreviados.

Vejamos agora as significações hieroglíficas e filosóficas de cada uma das vinte e duas letras. (Ver Belarmino, Reuchlin, São Jerônimo, Kabbala denudata, o Sepher Yétsírah, Technica curiosa do padre Schott, Pico delia Mirandola e os outros autores, especialmente os da coleção de Pistorius.)

AS MÃES

O iod – o princípio absoluto, o ser produtor;

O mem – o espírito, ou o Jaquim de Salomão;

O schin – a matéria, ou a coluna Boaz.

AS DUPLAS

Beth – o reflexo, o pensamento, a lua, o anjo Gabriel, príncipe dos mistérios;

Ghimel – o amor, a vontade, Vênus, o anjo Anael, príncipe da vida e da morte;

Daleth – a força, o poder, Júpiter, Sachiel Melech, rei dos reis;

Caph – a violência, a luta, o trabalho, Mars Samaël Zébaoth, príncipe das falanges;

Phé – a eloqüência, a inteligência, Mercúrio, Rafael, príncipe das ciências;

Resch – a destruição e a regeneração, o Tempo, Saturno, Cassiel, rei dos túmulos e das solidões;

Tau – a verdade, a luz, o Sol, Micael, rei dos Eloim.

AS SIMPLES

As simples dividem-se em quatro ternários trazendo por títulos as quatro letras do tetragrama divino v u v h .

No tetragrama divino, o iod, como acabamos de dizer, figura o princípio produtor ativo. O he v representa o princípio produtor passivo, o ctëiss. O vau , figura a união dos dois ou o linga, e o he final é a imagem do princípio produtor secundário, isto é, da reprodução passiva no mundo dos efeitos e das formas.

As doze letras simples v u z y j h k b o g m e , divididas em grupos de três, reproduzem a noção do triângulo primitivo, com a interpretação e sob a influência de cada uma das letras do tetragrama.

Vê-se que a filosofia e o dogma religioso da cabala estão indicados aí de modo completo mas velado.

Interroguemos agora as alegorias do Gênesis.

“No princípio (iod, a unidade do ser), Eloim, as forças equilibradas (Jaquin e Boaz) fizeram o céu (o espírito) e a terra (a matéria), em outras palavras, o bem e o mal, a afirmação e a negação.” Assim começa o relato de Moisés.

Depois, quando se trata de dar um lugar ao homem e um primeiro santuário à sua aliança com a divindade, Moisés fala de um jardim no meio do qual uma fonte única dividia-se em quatro rios (o Jod e o Tetragrama), depois de duas árvores, uma da vida, outra da morte, plantadas perto do rio. Aí são colocados o homem e a mulher, o ativo e o passivo, a mulher simpatiza com a morte e arrasta consigo em sua ruína Adão, eles são, pois, expulsos do santuário da verdade e um chérub (uma esfinge com cabeça de touro, ver os hieróglifos da Assíria, da Índia e do Egito) é colocado à porta do jardim da verdade para impedir os profanadores de destruírem a árvore da vida. Aí está, portanto, o dogma misterioso com todas as suas alegorias e seus horrores que sucede à simples verdade. O ídolo substituiu Deus, e a humanidade decadente não tardará a dedicar-se ao culto do novilho de ouro.

O mistério das reações necessárias e sucessivas dos dois princípios um sobre o outro é, em seguida, indicado pela alegoria de Caim e Abel. A força vinga-se, por opressão, das seduções da fraqueza; a fraqueza mártir expia e intercede pela força condenada em conseqüência do crime à vergonha e ao remorso. Assim revela-se o equilíbrio do mundo moral, assim assenta-se a base de todas as profecias e o ponto de apoio de toda política inteligente. Abandonar uma força a seus próprios excessos é condená-la ao suicídio.

O que faltou a Dupuis para compreender o dogma religioso universal da cabala foi a ciência desta bela hipótese demonstrada em parte e realizada a cada dia mais pelas descobertas da ciência: a analogia universal.

Privado dessa chave do dogma transcendental, não pôde ver em todos os deuses senão o sol, os sete planetas e os doze signos do zodíaco, mas não viu no sol a imagem do logos de Platão, nos sete planetas as sete notas da gama celeste, e no zodíaco a quadratura do ciclo ternário de todas as iniciações.

O imperador Juliano, esse espiritualista incompreendido, esse iniciado cujo paganismo era menos idólatra do que a fé de certos cristãos, o imperador Juliano, dizemos, compreendia melhor que Dupuis e Volnay o culto simbólico ao sol. Em seu hino ao rei Hélio reconhece que o astro do dia é apenas o reflexo e a sombra material daquele sol de verdade que ilumina o mundo da inteligência e que é ele próprio apenas um clarão tomado emprestado ao absoluto.

Coisa notável, Juliano tem o Deus supremo que os cristãos pensavam serem os únicos a adorar, idéias bem maiores e bem mais justas do que as de vários pais da Igreja, adversários e contemporâneos desse imperador.

Eis como ele expressa-se em sua defesa do helenismo:

“Não basta escrever num livro: Deus disse, e as coisas foram feitas. É preciso ver se as coisas que atribuem a Deus não são contrárias às próprias leis do Ser. Pois, se assim for, Deus não as pode ter feito, ele que não pode dar desmentidos à natureza sem negar-se a si próprio… Sendo Deus eterno, é absolutamente necessário que suas ordens sejam imutáveis como ele.”

Eis como falava esse apóstata e esse ímpio, e mais tarde um doutor cristão, que se tornou o oráculo das escolas de teologia, devia, inspirando-se talvez nas belas palavras do descrente, colocar um freio em todas as superstições ao escrever esta bela e corajosa máxima que tão bem resume o pensamento do grande imperador:

“Uma coisa não é justa porque Deus a quer; mas Deus a quer porque ela é justa.”

A idéia de uma ordem perfeita e imutável na natureza, a noção de uma hierarquia ascendente e de uma influência descendente em todos os seres fornecerá aos antigos hierofantes a primeira classificação de toda a história natural. Os minerais, os vegetais, os animais foram estudados analogicamente, e atribuíram-se sua origem e suas propriedades ao princípio passivo ou ao princípio ativo, às trevas ou à luz. O signo de sua eleição ou de sua reprovação, desenhado na sua forma, tornou-se o caráter hieroglífico de um vício ou de uma virtude; depois, de tanto tomar o signo pela coisa, e exprimir a coisa pelo signo, acabou-se por confundi-los, e tal é a origem da história natural fabulosa em que leões deixam-se abater por galos, em que delfins morrem de dores após haverem feito ingratos entre os homens, em que mandrágoras falam e estrelas cantam. Esse mundo encantado é verdadeiramente o domínio poético da magia; mas tem como realidade apenas a significação dos hieróglifos que lhe deram origem. Para o sábio que compreende as analogias da alta cabala e a relação exata das idéias com os signos, esse país fabuloso das fadas é uma região ainda fértil em descobertas, pois as verdades muito belas ou muito simples para agradar aos homens sem véus foram todas ocultadas sob essas sombras engenhosas.

Sim, o galo pode intimidar o leão e tornar-se seu mestre, porque a vigilância frequentemente substitui a força e consegue domar a cólera. As outras fábulas da pretensa história natural dos antigos explicam-se do mesmo modo, e, nesse uso alegórico das analogias, já se pode compreender os abusos possíveis e pressentir os erros que se devem ter originado na cabala.

A lei das analogias foi, de fato, para os cabalistas da segunda ordem, o objeto de uma fé cega e fanática. É a essa crença que devem ser relacionadas todas as superstições reprovadas aos adeptos das ciências ocultas. Eis como raciocinavam:

O signo exprime a coisa.

A coisa é a virtude do signo.

Há correspondência analógica entre o signo e a coisa significada.

Quanto mais perfeito é o signo, mais a correspondência é total.

Dizer uma palavra é evocar um pensamento e torná-lo presente. Dizer Deus, por exemplo, é manifestar Deus.

A palavra age sobre as almas e as almas reagem sobre os corpos; pode-se, portanto, assustar, consolar, fazer adoecer, curar, matar e ressuscitar por palavras.

Proferir um nome é criar ou chamar um ser.

No nome está contida a doutrina verbal ou espiritual do próprio ser.

Quando a alma evoca um pensamento, o signo desse pensamento escreve-se por si só na luz. Invocar é adjurar, isto é, jurar por um nome: é fazer ato de fé nesse nome e comungar na virtude que ele representa.

As palavras, portanto, são por si próprias boas ou más, venenosas ou salutares.

As palavras mais perigosas são as palavras vãs e proferidas levianamente, porque são abortos voluntários do pensamento.

Uma palavra inútil é um crime contra o espírito de inteligência. É um infanticídio intelectual.

As coisas são para cada pessoa o que ela as faz ao denominá-las. O verbo de cada pessoa é uma impressão ou uma prece habitual.

Falar bem é viver bem.

Um belo estilo é uma auréola de santidade.

Desses princípios, uns verdadeiros, outros hipotéticos, e das conseqüências mais ou menos exageradas que deles tiravam, resultava para os cabalistas supersticiosos uma confiança absoluta nos encantamentos, evocações, conjurações e orações misteriosas. Ora, como a fé sempre realiza prodígios, nunca lhe faltaram as aparições, os oráculos, as curas maravilhosas, as doenças súbitas e estranhas.

Foi assim que uma simples e sublime filosofia tornou-se a ciência secreta da magia negra. É sobretudo desse ponto de vista que a cabala pode ainda excitar a curiosidade da maioria em nosso século tão desconfiado e tão crédulo. No entanto, como acabamos de expor, a verdadeira ciência não está aí.

Os homens raramente procuram a verdade por ela mesma; têm sempre por motivo secreto em seus esforços alguma paixão a satisfazer ou alguma cupidez a saciar. Dentre os segredos da cabala, há um que sempre atormentou os pesquisadores: o segredo da transmutação dos metais e a conversão de todas as substâncias terrestres em ouro.

De fato, a alquimia tomou emprestado à cabala todos os seus signos, e era na lei das analogias, resultantes da harmonia dos contrários, que baseava suas operações. Um segredo físico imenso estava, aliás, oculto sob parábolas cabalísticas dos antigos. Conseguimos decifrá-lo e vamos confiá-lo às investigações dos fazedores de ouro. Ei-lo:

1º – Os quatro fluidos imponderáveis são apenas as manifestações diversas de um mesmo agente universal que é a luz.

2º – A luz é o fogo que serve à grande obra sob forma de eletricidade.

3º – A vontade humana dirige a luz vital por meio do aparelho nervoso. Em nossos dias isso denomina-se magnetizar.

4º – O agente secreto da pedra filosofal, o azote dos sábios, o ouro vivo e vivificante dos filósofos, o agente produtor metálico universal é a ELETRICIDADE MAGNETIZADA.

A aliança dessas duas palavras ainda não nos diz muito e, no entanto, elas talvez encerrem uma força capaz de revolucionar o mundo. Dizemos talvez por conveniência filosófica, pois, de nossa parte, não duvidamos da alta importância desse grande arcano hermético.

Acabamos de dizer que a alquimia é filha da cabala; e, para convencer-se disso, basta interrogar os símbolos de Flamel, de Basílio Valentim, as páginas do judeu Abraão e os oráculos mais ou menos apócrifos da mesa de esmeralda de Hermez. Em toda a parte encontram-se os traços dessa década de Pitágoras tão brilhantemente aplicada, no Sepher Yétsirah, à noção completa e absoluta das coisas divinas, essa década composta da unidade e de um tríplice ternário que os rabinos denominaram o Bereschit e a Mercabah, a árvore luminosa das Sefirotes e a chave dos Schemamphorasch.

Falamos, com certa extensão, em nosso livro intitulado Dogma e Ritual da Alta Magia, de um monumento hieroglífico conservado até os nossos dias sob um pretexto fútil, e que sozinho explica todas as escrituras misteriosas da alta iniciação. Esse monumento é o tarô dos Boêmios que deu origem a nossos jogos de cartas. Compõe-se de vinte e duas letras alegóricas e de quatro séries, cada uma de dez hieróglifos relativos às quatro letras do nome de Jehovah. As diversas combinações desses signos e dos números que lhes correspondem formam a mesma quantidade de oráculos cabalísticos, de modo que a ciência inteira está contida nesse livro misterioso. Essa máquina filosófica perfeitamente simples surpreende pela profundidade e exatidão de seus resultados.

O abade Trithème, um de nossos maiores mestres em magia, compôs sobre o alfabeto cabalístico um trabalho muito engenhoso a que ele denomina poligrafia. É uma série combinada de alfabetos progressivos em que cada letra representa uma palavra, as palavras correspondem-se e completam-se de um alfabeto ao outro, e não há dúvida de que Trithème teve conhecimento do tarô e dele se utilizou para dispor numa ordem lógica suas sábias combinações.

Jerônimo Cardano conhecia o alfabeto simbólico dos iniciados como se pode reconhecer pelo número e pela disposição dos capítulos de sua obra sobre a sutileza. Essa obra, com efeito, é composta de vinte e dois capítulos, e o tema de cada capítulo é análogo ao número e à alegoria da carta correspondente no tarô. Fizemos a mesma observação sobre um livro de São Martinho intitulado Quadro Natural das Relações que existem entre Deus, o Homem e o Universo. A tradição desse segredo não foi, pois, interrompida desde os primórdios da cabala até os nossos dias.

Os giradores de mesa e os que fazem falar os espíritos através de quadrantes alfabéticos estão, pois, muitos séculos atrasados e não sabem que existe um instrumento de oráculo claro e de um sentido exato por meio do qual se pode comunicar com os sete gênios dos planetas e fazer falar à vontade as setenta e duas rodas de Aziah, Jezirah e Briah. Para isso basta conhecer o sistema de analogias universais, tal como expôs Swedenborg na chave hieroglífica dos arcanos, depois embaralhar as cartas e tirar ao acaso, dispondo-as sempre pelos números correspondentes às idéias cujos esclarecimentos se deseja, depois ler os oráculos como devem ser lidas as escrituras cabalísticas, isto é, começando no meio indo da direita para a esquerda para os números ímpares, começando à direita para os pares e interpretando sucessivamente o número pela letra que lhe corresponde, o conjunto das cartas pela adição de seus números e todos os oráculos sucessivos por sua ordem numeral e suas relações hieroglíficas.

Essa operação dos sábios cabalistas para encontrar o desenvolvimento rigoroso das idéias absolutas degenerou em superstições em meio aos padres ignorantes e aos nômades ancestrais dos Boêmios que possuíam o tarô da Idade Média, sem conhecer seu verdadeiro emprego e que dele se serviam unicamente para ler a sorte.

O jogo de xadrez, atribuído a Palamedes, não tem outra origem senão o tarô, e nele encontram-se as mesmas combinações e os mesmos símbolos, o rei, a rainha, o cavaleiro, o soldado, o louco, a torre, depois casas representando os números. Os antigos jogadores de xadrez procuravam em seu tabuleiro a solução dos problemas filosóficos e religiosos, e argumentavam um contra o outro em silêncio manobrando os caracteres hieroglíficos através dos números. Nosso vulgar jogo do ganso, copiado dos gregos e igualmente atribuído a Palamedes, é apenas um tabuleiro de figuras imóveis e números móveis por meio dos dados. É um tarô disposto em roda destinado ao uso dos aspirantes à iniciação. Ora, a palavra tarô, em que se encontram rota e tora, exprime ela própria, como demonstrou-o Guilherme Postel, essa disposição primitiva em forma de roda.

Os hieróglifos do jogo do ganso são mais simples que os do tarô, mas encontram-se aí os mesmos símbolos: o bobo, o rei, a rainha, a torre, o diabo ou tífon, a morte, etc. As probabilidades aleatórias desse jogo representam as da vida e escondem um sentido filosófico bastante profundo para fazer meditar os sábios e bastante simples para ser compreendido pelas crianças.

A personagem alegórica de Palamedes é aliás idêntica às de Henoc, de Hermes e de Cádmo, aos quais atribui-se a invenção das letras nas diversas mitologias. Mas, no pensamento de Homero, Palamedes, o revelador e a vítima de Ulisses, representa o iniciador ou o gênio cujo destino eterno é ser morto por aqueles que inicia. O discípulo torna-se a realização viva dos pensamentos do mestre apenas depois de ter tomado seu sangue e comido sua carne, segundo a enérgica e alegórica expressão do iniciador tão mal compreendido pelos cristãos.

A concepção do alfabeto primitivo era, como se pode ver, a idéia de uma língua universal, encerrando em suas combinações e em seus próprios signos o resumo e a lei da evolução de todas as ciências divinas e humanas. Acreditamos que, desde então, nada mais bonito nem maior foi sonhado pelo gênio dos homens e confessamos que a descoberta desse segredo do mundo antigo compensou-nos plenamente por tantos anos de pesquisas estéreis e trabalhos ingratos nas criptas das ciências perdidas e nas necrópoles do passado.

Um dos primeiros resultados dessa descoberta seria uma nova direção dada ao estudo das escrituras hieroglíficas ainda tão imperfeitamente decifradas pelos êmulos e pelos sucessores de Champollion. Sendo o sistema de escritura dos discípulos de Hermes analógico e sintético como todos os signos da cabala, para a leitura das páginas gravadas nas pedras dos antigos templos não importaria recolocar essas pedras em seu lugar e contar o número de suas letras comparando-as com os números das outras pedras?

O obelisco de Lúxor, por exemplo, não era uma das duas colunas da entrada de um templo? ficava à direita ou à esquerda? Se ficava à direita, seus sinais referem-se ao princípio ativo; se ficava à esquerda, é pelo princípio passivo que se devem interpretar seus caracteres. Mas deve haver uma correspondência exata de um obelisco ao outro, e cada signo deve receber seu sentido completo da analogia dos contrários; Champollion encontrou traços do copta nos hieróglifos, um outro sábio talvez encontrasse mais facilmente e mais felizmente o hebraico, mas o que diriam se não fosse nem hebraico nem copta? Se fosse, por exemplo, a língua universal primitiva? Ora, essa língua, que é a da alta cabala, existiu certamente, existe na base do próprio hebraico e de todas as línguas orientais que dele derivam, essa língua é a do santuário, e as colunas da entrada dos templos geralmente resumiam todos os seus símbolos. A intuição dos extáticos aproxima-se mais da verdade sobre esses signos primitivos do que a própria ciência dos sábios. Isso porque, como dissemos, o fluido vital, universal, a luz astral, sendo princípio mediador entre as idéias e as formas, obedece aos impulsos extraordinários da alma que procura o desconhecido e fornece-lhe naturalmente os signos já encontrados, mas esquecidos, das grandes revelações do ocultismo. Assim formaram-se as pretensas assinaturas dos espíritos, assim produziram-se as escrituras misteriosas de Gablidone que visitava o doutor Laváter, dos fantasmas de Schroepfer, do São Miguel de Vintras e dos espíritos do senhor Home.

Se a eletricidade pode mover um corpo leve ou mesmo pesado sem que seja tocado, seria impossível, pelo magnetismo, dar à eletricidade uma direção e assim produzir naturalmente sinais e escrituras? É certamente possível, uma vez que isso é feito.

Assim, portanto, aos que nos perguntarem qual é o maior agente dos prodígios, responderemos:

– É a matéria-prima da pedra filosofal.

– É a ELETRICIDADE MAGNETIZADA.

Tudo foi criado pela luz.

É na luz que a forma conserva-se.

É pela luz que a forma reproduz-se.

As vibrações da luz são o princípio do movimento universal.

Pela luz os sóis ligam-se uns aos outros e entrelaçam seus raios como cadeias de eletricidade.

Os homens e as coisas são imantados de luz como os sóis e podem, por meio de cadeias eletromagnéticas estendidas pelas simpatias e afinidades, comunicar-se uns com os outros de uma à outra extremidade do mundo, acariciar-se ou bater-se, curar-se ou ferir-se de modo natural certamente, mas prodigioso e invisível.

Aí está o segredo da magia.

A magia, a ciência que nos vem dos magos. A magia, a primeira das ciências.

A mais santa de todas, uma vez que estabelece de modo mais sublime as grandes verdades religiosas.

A mais caluniada de todas, porque o vulgo obstina-se em confundir a magia com a bruxaria supersticiosa cujas práticas abomináveis denunciamos.

É somente pela magia que pode, diante das questões enigmáticas da Esfinge de Tebas e das obscuridades por vezes escandalosas difundidas nos relatos da Bíblia, responder a tais perguntas e encontrar a solução desses problemas da história judaica.

Os próprios historiadores sagrados reconhecem a existência e o poder da magia que concorria abertamente com o de Moisés.

A Bíblia conta-nos que Janes e Mambres, os mágicos do Faraó, fizeram em primeiro lugar os mesmos milagres que Moisés, e que declararam impossíveis à ciência humana os que não puderam imitar. Com efeito, é mais lisonjeiro para o amor-próprio de um charlatão confessar o milagre do que declarar-se vencido pela ciência ou pela destreza de um colega, sobretudo quando esse colega é um inimigo político ou um adversário religioso.

Onde começa e onde termina o possível na ordem dos milagres mágicos? Eis uma grave e importante questão. É certa a existência dos fatos habitualmente classificados como milagres. Os magnetizadores e os sonâmbulos fazem-nos todos os dias; a irmã Rose Tamisier os fez, o iluminado Vintras ainda os faz; mais de quinze mil testemunhas atestavam ultimamente os dos médiuns da América, dez mil camponeses do Berry e da Sologne atestariam, se necessário, os do deus Cheneau (um antigo comerciante de botões retirado dos negócios e que se acredita inspirado por Deus). Todas essas pessoas são alucinadas ou espertalhonas? Alucinadas, talvez, mas o próprio fato de ser sua alucinação idêntica, seja separadamente, seja coletivamente, não é um milagre bastante grande da parte de quem o produz sempre que deseja e no momento oportuno?

Fazer milagres ou persuadir a multidão de que os faz é quase a mesma coisa, sobretudo num século tão leviano e tão zombeteiro quanto o nosso. Ora, o mundo está cheio de taumaturgos, e a ciência é freqüentemente obrigada a negar suas obras ou a recusar-se a vê-las para não ser obrigada a examiná-las e atribuir-lhes uma causa.

No século passado, repercutiram em toda a Europa os prodígios de Cagliostro. Quem não sabe de todo o poder que se atribuía a seu vinho do Egito e a seu elixir? Que poderíamos acrescentar a tudo o que se conta daquelas ceias do outro mundo, em que ele fazia aparecer em carne e osso os personagens ilustres do passado? No entanto, Cagliostro estava longe de ser um iniciado da primeira ordem, já que a grande associação dos adeptos abandonou-o à inquisiçao romana, diante da qual, se se deve acreditar nas peças de seu processo, deu uma ridícula e odiosa explicação do trigrama maçônico L.’.P.’.D.’.

Mas os milagres não são um quinhão exclusivo dos iniciados da primeira ordem e freqüentemente são realizados por seres sem instrução e sem virtude. As leis naturais encontram num organismo, cujas qualidades excepcionais nos escapam, uma ocasião para exercerem-se, e fazem sua obra, como sempre, com precisão e calma. Os gourmets mais delicados apreciam as trufas e consomem-nas, mas são os porcos que as desenterram: analogicamente, ocorre o mesmo com muitas coisas menos materiais e menos gastronômicas: os instintos procuram e pressentem, mas apenas a ciência verdadeiramente encontra.

O progresso atual do conhecimento humano diminuiu muito as chances dos prodígios, mas resta ainda um grande número deles, uma vez que não se conhece nem a força da imaginação nem a razão de ser e o poder do magnetismo. A observação das analogias universais foi negligenciada e é por isso que não se crê mais na adivinhação.

Um sábio cabalista ainda pode, portanto, assustar a multidão e confundir até mesmo as pessoas instruídas:

1º – Adivinhando as coisas ocultas;

2º predizendo muitas coisas futuras;

3º dominando a vontade dos outros de modo a impedi-los de fazer o que desejam e a forçá-los a fazer o que não desejam;

4º excitando à vontade aparições e sonhos;

5º curando um grande número de doenças;

6º devolvendo a vida a sujeitos em que se manifestam todos os sintomas da morte;

7º finalmente, demonstrando, com exemplos, se necessário, a realidade da pedra filosofal e da transmutação dos metais, segundo os segredos de Abraão, o Judeu, de Flamel e de Raimundo Lúlio.

Todos esses prodígios operam-se por meio de um único agente que os hebreus chamavam OD, como o cavaleiro de Reichenbach; que chamamos luz astral, com a escola de Pasqualis Martinez; que Mirville chama diabo; que os antigos alquimistas denominavam azote. É o elemento vital que se manifesta pelos fenômenos de calor, de luz, de eletricidade e de magnetismo, que imanta todos os globos terrestres e todos os seres vivos. Nesse agente manifestam-se as provas da doutrina cabalística sobre o equilíbrio e o movimento pela dupla polaridade, em que uma atrai enquanto a outra repele, em que uma produz o quente, a outra o frio, enfim em que uma dá uma luz azul e esverdeada, a outra uma luz amarela e avermelhada.

Esse agente, por seus diferentes modos de imantação, atrai-nos uns para os outros ou distancia-nos uns dos outros, submete um às vontades do outro fazendo-o entrar em seu círculo de atração, restabelece ou perturba o equilíbrio na economia animal por suas transmutações e seus eflúvios alternativos, recebe e transmite as impressões da força imaginária, que é no homem a imagem e a semelhança do verbo criador, produz, assim, os pressentimentos e determina os sonhos. A ciência dos milagres é, pois, o conhecimento dessa força maravilhosa, e a arte de fazer milagres é tão simplesmente a arte de imantar ou de iluminar os seres segundo as leis invariáveis do magnetismo ou da luz astral.

Preferimos a palavra luz a magnetismo, porque ela é mais tradicional no ocultismo e expressa de modo mais completo e perfeito a natureza do agente secreto. Encontra-se aí, verdadeiramente, o ouro fluido e potável dos mestres da alquimia, a palavra ouro vem do hebraico or, que significa luz. “O que quereis?”, perguntava-se aos recipiendários de todas as iniciações. “Ver a luz”, devia-se responder. O nome iluminados, que comumente se dá aos adeptos, foi, pois, muito mal interpretado quando lhe deram um sentido místico, como se significasse homens cuja inteligência teria se tornado iluminada num dia miraculoso. Iluminados quer dizer simplesmente conhecedores e possuidores da luz, seja pela ciência do grande agente mágico, seja pela noção racional e ontológica do absoluto.

O agente universal é a força vital e subordinada à inteligência. Abandonado a si próprio, devora rapidamente, como Moloch, tudo o que gera, e transforma em vasta destruição a superabundância da vida. É, então, a serpente infernal dos antigos mitos, o Tífon dos egípcios e o Moloch da Fenícia; mas, se a sabedoria, mãe dos Eloim, coloca-lhe o pé sobre a cabeça, extingue todas as chamas vomitadas por ele e derrama sobre a terra, a mãos cheias, uma luz vivificante. Do mesmo modo está dito no Zohar que no início de nosso período terrestre, quando os elementos disputavam entre si a superfície do mundo, o fogo, semelhante a uma serpente imensa, envolvera tudo em suas espirais e ia consumir todos os seres, quando a clemência divina, erguendo à sua volta as ondas do mar como uma vestimenta de nuvens, colocou o pé sobre a cabeça da serpente e fê-la retornar ao abismo. Quem não vê nessa alegoria o primeiro dado e a explicação mais razoável de uma das imagens mais caras ao simbolismo católico, o triunfo da mãe de Deus?

Os cabalistas dizem que o nome oculto do diabo, seu verdadeiro nome, é o mesmo de Jehovah escrito às avessas. Isso é toda uma revelação para o iniciado aos mistérios do tetragrama. De fato, a ordem das letras desse grande nome indica a predominância da idéia sobre a forma, do ativo sobre o passivo, da causa sobre o efeito. Invertendo-se essa ordem obtém-se o contrário. Jehovah é aquele que doma a natureza como a um cavalo bravio e a faz ir onde ele quer, chevajoh (o demônio) é o cavalo sem freio que, semelhante aos dos egípcios no cântico de Moisés, derruba seu cavaleiro arrastando-o consigo para o abismo.

O diabo, pois, existe de modo muito real para os cabalistas, mas não é nem uma pessoa, nem um poder distinto das próprias forças da natureza. O diabo é a divagação ou o sono da inteligência. É a loucura e a mentira.

Assim explicam-se todos os pesadelos da Idade Média, assim explicam-se também os estranhos símbolos de alguns iniciados, como os dos Templários, por exemplo, bem menos culpados por terem prestado culto a Baphomet do que por terem revelado sua imagem a profanos. O Baphomet, figura panteística do agente universal, não é outra coisa senão o demônio barbudo dos alquimistas. Sabe-se que os mais graduados na antiga maçonaria hermética atribuíam a um demônio barbudo dar conclusão à pedra filosofal, cabendo ao não iniciado nesta palavra persignar-se e tapar a vista, mas os iniciados ao culto de Hermès-Panthée compreendiam a alegoria e cuidavam em não explicá-la aos profanos.

Mirville, num livro atualmente quase esquecido, mas que teve certa repercussão há alguns meses, deu-se muito trabalho para reunir algumas bruxarias no gênero das que enchem as compilações dos Delancre, dos Delrio e dos Bodin. Teria encontrado melhor do que isso na história. E sem falar dos milagres tão averiguados dos jansenistas de PortRoyal e do diácono Páris, que pode haver de mais maravilhoso do que a grande monomania do marítimo que fez as crianças e as próprias mulheres acorrerem ao suplício como a uma festa durante trezentos anos? Que pode haver de mais magnífico do que essa fé entusiasta atribuída durante tantos séculos aos mais incompreensíveis e, humanamente falando, mais revoltantes dos mistérios? Nessa ocasião, direis, os milagres vinham de Deus, e servimo-nos deles até como uma prova para estabelecer a verdade da religião. Ora essa! Os heréticos também deixavam-se matar por dogmas francamente bastante absurdos; sacrificavam, pois, também a razão e a vida ao seu credo? Oh! com relação aos heréticos é evidente que o diabo estava em jogo. Pobres-coitados que tomavam o diabo por Deus e Deus pelo diabo! Como desiludiram-se quando os fizeram reconhecer o verdadeiro Deus na caridade, na ciência, na justiça e sobretudo na misericórdia de seus ministros!

Os necromantes, que fazem aparecer o diabo após uma série fatigante e quase impossível das mais revoltantes evocações, são apenas crianças ao pé do Santo Antônio da lenda que os tirava aos milhares do inferno e os arrastava sempre consigo, como de Orfeu se conta que atraía para si os carvalhos, as rochas e os animais mais selvagens.

Somente Callot, iniciado pelos boêmios nômades durante a infância aos mistérios da bruxaria negra, pôde compreender e reproduzir as evocações do primeiro eremita. E credes que ao descreverem os sonhos assustadores da maceração e do jejum, os legendários tenham inventado? Não; ficaram muito aquém da realidade. Os claustros, com efeito, sempre foram povoados por espectros sem nome, cujas sombras e larvas infernais pulsam em suas paredes. Certa vez, Santa Catarina de Sena passou oito dias em meio a uma orgia obscena que teria desencorajado a veia poética de Aretino; Santa Teresa sentiu-se transportada viva ao inferno e aí sofreu, entre muralhas que se juntavam, angústias que apenas as mulheres histéricas poderão compreender… Tudo isso, dirse-á, passava-se na imaginação dos pacientes. Mas onde, pois, quereis que se possam passar fatos de ordem sobrenatural? O certo é que todos esses visionários viram, tocaram, tiveram o sentimento lancinante de uma realidade aterradora. Falamos baseados em nossa própria experiência, e há visões de nossa primeira juventude passada num recolhimento e num ascetismo cuja lembrança ainda nos faz estremecer.

Deus e o diabo são o ideal do bem e do mal absolutos. Mas o homem nunca concebe o mal absoluto senão como uma falsa idéia do bem. Só o bem pode ser absoluto, e o mal é relativo unicamente a nossas ignorâncias e a nossos erros. Todo homem para ser deus faz-se primeiro diabo; mas, como a lei da solidariedade é universal, a hierarquia existe no inferno como no céu. Um ser malévolo sempre encontrará um pior do que ele para fazer-lhe mal; e quando o mal atinge seu ápice é preciso que cesse, pois só poderia continuar pelo aniquilamento do ser, o que é impossível. Então os homens-diabo, esgotados seu recursos, recaem no domínio dos homens-Deus e são salvos por aqueles que inicialmente pareciam ser suas vítimas; mas o homem que se esmera em viver fazendo o mal presta homenagem ao bem por toda a inteligência e energia que desenvolve em si próprio. É por isso que o grande iniciador dizia em sua linguagem figurada: Sede frios ou quentes, porque se sois mornos fazeis-me vomitar.

O grande mestre, numa de suas parábolas, condena unicamente o preguiçoso que enterrou seu depósito por medo de perdê-lo nas operações arriscadas desse banco que se chama vida. Nada pensar, nada amar, nada querer, nada fazer, eis o verdadeiro pecado. A natureza reconhece e recompensa apenas os trabalhadores.

A vontade humana desenvolve-se e aumenta pela atividade. Para querer realmente, é preciso agir. A ação domina e sempre arrasta a inércia. Tal é o segredo da influência dos pretensos celerados sobre as pessoas supostamente honestas. Quantos poltrões e covardes crêem-se virtuosos porque têm medo! Quantas mulheres honradas olham com inveja para as prostitutas! Não faz ainda muito tempo os galerianos estavam na moda. Por quê? Pensais que a opinião pública nunca possa render homenagem ao vício? Não, mas ela faz justiça à atividade e à audácia, e está na ordem que os covardes infames estimem os bandidos audaciosos.

A audácia unida à inteligência é a mãe de todos os sucessos neste mundo. Para empreender, é preciso saber; para realizar, é preciso querer; para querer verdadeiramente, é preciso ousar; e, para recolher em paz os frutos da própria audácia, é preciso calar-se.

SABER, OUSAR, QUERER, CALAR-SE são, como dissemos antes, os quatro verbos cabalísticos que correspondem às quatro letras do tetragrama e às quatro formas hieroglíficas da Esfinge. Saber é a cabeça humana; ousar são as garras do leão; querer são as ilhargas laboriosas do touro; calar-se são as asas místicas da águia. Apenas mantém-se acima dos outros homens quem não prostitui os segredos de sua inteligência aos comentários e ao escárnio daqueles.

Todos os homens verdadeiramente fortes são magnetizadores e o agente universal obedece à sua vontade. É assim que eles operam maravilhas. Fazem-se acreditar, fazem-se seguir e quando dizem: Isto é assim, a natureza de certa forma muda aos olhos do vulgo e torna-se o que o grande homem quis. Isto é minha carne e isto é meu sangue, disse um homem que se fez Deus por suas virtudes e, em presença de um pedaço de pão e de um pouco de vinho, dezoito séculos viram, tocaram, provaram, adoraram a carne e o sangue divinizados pelo martírio! Dizei-nos agora que a vontade humana nunca realiza milagres!

Não nos faleis aqui de Voltaire, Voltaire não foi um taumaturgo, foi o espiritual e eloqüente intérprete daqueles sobre os quais os milagres não agiam mais. Tudo em sua obra é negativo; ao contrário, tudo era afirmativo na de Galileu, como o chamava um ilustre e muito infeliz imperador. Do mesmo modo, Juliano tentara em sua época mais do que Voltaire pôde realizar, queria opor o prestígio aos prestígios, a austeridade do poder à do protesto, as virtudes às virtudes, os milagres aos milagres; os cristãos jamais tiveram inimigos tão perigosos, e sentiram-no bem, pois Juliano foi assassinado, e a lenda dourada ainda atesta que um santo mártir, acordado na tumba pelos clamores da Igreja, pegou das armas e feriu o apóstata no ombro em meio a seu exército e a suas vitórias. Tristes mártires que ressuscitam para serem algozes! Crédulo imperador que se fiava em seus deuses e nas virtudes dos tempos antigos.

Quando os reis da França viviam cercados pela adoração de seu povo, quando eram vistos como os ungidos do Senhor e os primogênitos da Igreja, curavam escrófulas. Um homem em voga fará milagres quando quiser. Cagliostro podia ser apenas um charlatão, mas, desde que a opinião pública fizera dele o divino Cagliostro, ele devia operar prodígios, e foi também o que aconteceu.

Quando Céphas Barjona era apenas um judeu, proscrito por Nero e que vendia às mulheres dos escravos um específico para a vida eterna, não passava de um charlatão para todas as pessoas instruídas de Roma; mas a opinião pública fez do empírico espiritualista um apóstolo; e os sucessores de Pedro, sejam eles Alexandre VI ou mesmo João XXII, são infalíveis para todo homem bem-educado e que não deseje ser inutilmente banido da sociedade. Assim segue o mundo.

O charlatanismo, quando bem-sucedido, é, pois, em magia como em todas as coisas, um grande instrumento de poder. Fascinar habilmente o vulgo não é já dominá-lo? Vê-se que os pobres-diabos dos bruxos que, na Idade Média, tolamente faziam-se queimar vivos não tinham um grande domínio sobre os outros. Joana d’Arc era mágica à frente dos exércitos, e em Rouen a pobre moça não foi bruxa. Sabia apenas orar e combater, e o prestígio que a rodeava cessou assim que lhe colocaram os grilhões. Consta de sua história que o rei da França a tenha reclamado? Que a nobreza francesa, que o povo, que o exército tenham protestado contra sua condenação? O papa, de quem o rei da França era o primogénito, excomungou os algozes da Virgem? Não, nada disso. Joana d’Arc foi bruxa para todos assim que deixou de ser mágica, e certamente não foram os ingleses os únicos a queimá-la. Quando se exerce um poder aparentemente sobre-humano, é preciso exercê-lo sempre ou resignar-se a perecer. O mundo vinga-se sempre covardemente por ter acreditado muito, admirado muito e sobretudo obedecido muito.

Só compreendemos o poder mágico em sua aplicação às grandes coisas, se um verdadeiro mágico prático não se torna mestre do mundo é porque o desdenha; e para que desejaria diminuir seu soberano poder? “Eu te darei todos os reinos do mundo se tu caíres a meus pés e me adorares”, diz a Jesus o satã da parábola. “Retira-te”, diz-lhe o Salvador, “pois está escrito: Tu adorarás somente a Deus…” Eli, Eli lamma Sabbachtani! devia gritar mais tarde esse sublime e divino adorador de Deus. Se tivesse respondido a satã: Não te adorarei e és tu que vais cair a meus pés, pois ordeno-te em nome da inteligência e da eterna razão!, não teria devotado sua santa e nobre vida ao mais atroz de todos os suplícios. O satã da montanha foi bem cruelmente vingado.

Os antigos chamavam a magia prática de arte sacerdotal e arte real; e lembramos que os magos foram os mestres da civilização primitiva, porque foram os mestres de toda a ciência de seu tempo.

Saber é poder quando se ousa querer.

A primeira ciência do cabalista prático ou do mago é o conhecimento dos homens. A frenologia, a psicologia, a quiromancia, a observação dos gostos e dos movimentos, do som da voz e das impressões, sejam simpáticas, sejam antipáticas, são ramos dessa arte, e os antigos não os ignoravam. Gall e Spurzëim reencontraram em nossos dias a frenologia, Laváter depois de Porta. Cardano, Taisnier, Jean Belot e alguns outros novamente adivinharam mais do que reencontraram a ciência da psicologia; a quiromancia está ainda oculta e é com dificuldade que se encontram alguns traços seus na obra bastante recente e muito interessante, aliás, do cavalheiro d’Arpentigny. Para se ter noções suficientes dessa ciência é preciso remontar às próprias fontes cabalísticas em que se inspirou o sábio Cornélius Agrippa. É oportuno, pois, dizer algumas palavras a esse respeito, enquanto aguardamos a obra de nosso amigo Desbarolles.

A mão é no homem o instrumento da ação; é, como o rosto, uma espécie de síntese nervosa, e também deve ter seus traços e sua fisionomia. O caráter dos indivíduos está traçado aí em signos irrefutáveis. Assim, dentre as mãos, umas são laboriosas, outras preguiçosas; umas pesadas e quadradas, outras insinuantes e leves. As mãos duras e secas são feitas para a luta e o trabalho, as mãos macias e úmidas aspiram somente à volúpia. Os dedos pontudos são escrutadores e místicos, os dedos quadrados, matemáticos, os dedos espatulados, pertinazes e ambiciosos.

O polegar, pollex, o dedo da força e do poder, corresponde no simbolismo cabalístico à primeira letra do nome de Jehovah. Esse dedo, pois, é por si só como a síntese da mão: se ele é forte, o homem é forte moralmente; se é fraco, o homem é frágil. Ele possui três falanges, das quais a primeira está oculta na palma da mão, como o eixo imaginário do mundo atravessa a espessura da terra. Essa primeira falange corresponde à vida física, a segunda à inteligência, a última à vontade. As palmas da mão gordas e espessas denotam gostos sensuais e uma, grande força física; um polegar longo, sobretudo em sua última falange, revela uma vontade forte que pode chegar ao despotismo; polegares curtos, ao contrário, são caracteres dóceis e fáceis de dominar.

As pregas naturais da mão determinam suas linhas. Essa linhas, portanto, são o traço dos hábitos, e o observador paciente saberá reconhecê-las e julgá-las. O homem cuja mão fecha-se mal é desastrado ou infeliz. A mão tem três funções principais: pegar, segurar e apalpar. As mãos mais macias pegam e apalpam melhor; as mãos duras e fortes retêm mais tempo. Mesmo as mais leves rugas atestam as sensações habituais desse órgão. Cada dedo, aliás, tem uma função especial que lhe ocasionou o nome. Já falamos do polegar; o indicador é o dedo que aponta, é o do verbo e da profecia; o médio domina toda a mão, é o do destino; o anular é o das alianças e das honras: os quiromantes consagraram-no ao sol; o auricular é insinuante e loquaz, ao menos no dizer dos simplórios e das amas a quem seu dedinho conta tantas coisas: a mão tem sete protuberâncias que os cabalistas, segundo as analogias naturais, atribuíram aos sete planetas: a do polegar, a Vênus; do indicador, a Júpiter; do médio, a Saturno; do anular, ao Sol; do auricular, a Mercúrio; dos dois outros, a Marte e à Lua. De acordo com sua forma e sua predominância, eles julgavam os atrativos, as aptidões e, por conseguinte, os prováveis destinos dos indivíduos submetidos à sua apreciação.

Não existe vício que não deixe marca, nem uma virtude que não tenha seu sinal. Além disso, para os olhos exercitados do observador, não há hipocrisia possível. Compreender-se-á que tal ciência já é um poder verdadeiramente sacerdotal e real.

A predição dos principais acontecimentos da vida já é possível pelas numerosas probabilidades analógicas dessa observação, contudo existe uma faculdade que se designa pressentimentos ou sensitivismo. As coisas eventuais freqüentemente existem em sua causa antes de realizarem-se em ações, os sensitivos vêem antecipadamente os efeitos nas causas, e existiram antes de todos os grandes acontecimentos surpreendentes predições. Durante o reinado de Luís Filipe, ouvimos sonâmbulos e extáticos anunciarem a volta do Império e precisarem a data de seu advento. A República de 1848 estava claramente anunciada na profecia de Orval, que datava no mínimo de 1830 e de que suspeitamos, bem como daquelas atribuídas aos Olivarius, ter sido obra pseudônima de Mlle. Lenormand. Mas isso pouco importa para nossa tese.

Essa luz magnética que faz prever o futuro também faz adivinhar as coisas presentes e ocultas; como é a vida universal, ela é também o agente da sensibilidade humana, transmitindo a uns os males ou a saúde dos outros, segundo a influência fatal dos contatos ou as leis da vontade. É o que explica o poder das bênçãos e dos feitiços tão claramente reconhecido pelos grandes adeptos e sobretudo pelo maravilhoso Paracelso. Um crítico judicioso e sagaz, M. Ch. Fauvety, num artigo publicado pela Revista Filosófica e Religiosa, aprecia de modo notável os trabalhos avançados de Paracelso, Pomponace, Goglenius, Crollius e Robert Flud sobre o magnetismo. Mas o que nosso sábio amigo e colaborador estuda somente como uma curiosidade filosófica, Paracelso e os seus praticavam sem preocuparem-se muito em torná-lo compreensível para o mundo, pois era segundo eles, um desses segredos tradicionais para os quais o ocultismo é de rigor, e que basta indicar aos que sabem, deixando sempre um véu sobre a verdade para desorientar os ignorantes.

Ora, eis o que Paracelso reservava somente para os iniciados, e que compreendemos ao definir os caracteres cabalísticos e as alegorias de que ele faz uso na coleção de suas obras:

A alma humana é material, o mens divino lhe é oferecido para imortalizá-la e fazê-la viver espiritual e individualmente, mas sua substância natural é fluídica e coletiva.

Há no homem, pois, duas vidas, a individual ou racional, e a vida comum ou instintiva. É por esta última que se pode viver uns nos outros, uma vez que a alma universal, como todo organismo nervoso com uma consciência separada, é a mesma para todos.

Vivemos da vida comum e universal no embrionato, no êxtase e no sono. De fato, no sono a razão não age, e a lógica, quando é encontrada em nossos sonhos, ocorre apenas fortuitamente e segundo os acasos das reminiscências puramente físicas.

Nos sonhos, temos a consciência da vida universal; misturamo-nos à água, ao fogo, ao ar e à terra; voamos como os pássaros; escalamos como os esquilos; rastejamos como as serpentes; estamos embriagados de luz astral; tornamos a mergulhar na morada comum, como acontece de modo mais completo na morte; mas então (e é assim que Paracelso explica os mistérios da outra vida) os maus, isto é, aqueles que se deixaram dominar pelos instintos da besta em prejuízo da razão humana, afogam-se no oceano da vida comum com todas as angústias de uma morte eterna; os outros flutuam e gozam para sempre das riquezas daquele ouro fluido que conseguiram dominar.

Essa identidade da vida física permite às vontades mais fortes apoderarem-se da existência das outras e tornarem-se suas auxiliares, explica as correntes simpáticas que ocorrem em proximidade ou à distância, e dá todo o segredo da medicina oculta, porque essa medicina tem por princípio a grande hipótese das analogias universais e, atribuindo todos os fenômenos da vida física ao agente universal, ensina que é preciso agir sobre o corpo astral para reagir sobre o corpo materialmente visível; ensina também que a essência da luz astral é um duplo movimento de atração e de projeção; assim como os corpos humanos atraem-se e repelem-se uns aos outros, podem também absorver-se, propagar-se uns nos outros e realizar trocas; as idéias ou as imaginações de um podem influenciar sobre a forma do outro e reagir em seguida sobre o corpo exterior.

Assim produzem-se os fenômenos tão estranhos da influência dos olhares na gravidez, assim a proximidade de pessoas doentes causa maus sonhos, assim a alma respira algo de insalubre na companhia dos loucos e dos maus.

Pode-se observar que nos pensionatos as crianças adquirem um pouco a fisionomia umas das outras; cada casa de educação tem, por assim dizer, um ar de família que lhe é próprio. Nos escolas de órfãs dirigidas por religiosas, todas as garotas parecem-se e adquirem todas essa fisionomia obediente e apagada que caracteriza a educação ascética. Os homens tornam-se belos na escola do entusiasmo, das artes ou da glória; tornam-se feios na prisão, e de ar triste nos seminários e nos conventos.

Aqui compreende-se que abandonamos Paracelso para entrar nas conseqüências e nas aplicações de suas idéias, que são simplesmente as dos antigos magos e os elementos dessa cabala física que chamamos magia.

Segundo os princípios cabalísticos formulados pela escola de Paracelso, a morte seria apenas um sono cada vez mais profundo e definitivo, que seria possível interromper em seu início exercendo uma poderosa ação de vontade sobre o corpo astral que se desprende e chamando-o de volta à vida por algum interesse poderoso ou alguma afeição dominante. Jesus exprimia o mesmo pensamento quando dizia da filha de Jairo: “Esta moça não está morta, está dormindo”; e de Lázaro: “Nosso amigo adormeceu e vou acordá-lo.” Para exprimir esse sistema ressurreicionista de modo que não ofenda o senso comum, isto é, as opiniões geralmente adotadas, digamos que a morte, quando não há destruição ou alteração essencial dos órgãos, é sempre precedida de uma letargia mais ou menos longa. (A ressurreição de Lázaro, se tivesse de ser admitida como fato científico, provaria que esse estado pode durar quatro dias).

Voltemos agora ao segredo da pedra filosofal que demos somente em hebraico não pontuado no Ritual da Alta Magia. Eis o texto completo em latim, tal como é encontrado à página 144 do Sepher Yétsirah, comentado pelo alquimista Abraão (Amsterdam, 1642):

SEMITA XXXI

Vocatur intelligentia perpetua; et quare vocatur ita? Eo quod ducit motum solis et lunae juxta constitutionem eorum; utrumque in orbe sibi conveniente.

Rabbi Abraham F.’. D.’.

dicit:

Semita trigésima prima vocatur intelligentia perpetua: et illa ducit solem et lunam et reliquas stellas et figuras, unum quodque in orbe suo, et impertit omnibus creatis juxta dispositionem ad signa et figuras.

Eis a tradução do texto hebraico que transcrevemos em nosso ritual:

“A trigésima primeira via chama-se inteligência perpétua e rege o sol e a lua e as outras estrelas e figuras, cada qual em seu orbe respectivo. E distribui o que convém a todas as coisas criadas segundo sua disposição nos signos e nas figuras.”

Vê-se que esse texto é ainda totalmente obscuro para alguém que não conhece o valor característico de cada uma das trinta e duas vias. (As trinta e duas vias são os dez números e as vinte e duas letras hieroglíficas da Cabala. A trigésima primeira refere-se ao a , que representa a lâmpada mágica ou a luz entre os chifres de Baphomet. É o signo cabalístico do od ou da luz astral com seus dois pólos e seu centro equilibrado. Sabe-se que na linguagem dos alquimistas o sol significa o olho, a lua, a prata, e que as outras estrelas ou planetas referem-se aos outros metais. Deve-se compreender agora o pensamento do judeu Abraão.

O fogo secreto dos mestres em alquimia era, pois, a eletricidade, e aí está a metade de seu grande arcano; mas eles sabiam equilibrar sua força por uma influência magnética que concentravam em seu atanor. É o que resulta dos dogmas obscuros de Basílio Valentim, Bernard Trévisan e Henri Kunrath, que pretendem, todos, ter operado a transmutação como Raimundo Lúlio, Arnaud de Villeneuve e Nicolas Flamel.

A luz universal, quando imanta os mundos, chama-se luz astral; quando forma os metais, denomina-se azote, ou mercúrio dos sábios; quando dá vida aos animais, deve chamar-se magnetismo animal.

O bruto sofre as fatalidades dessa luz; o homem pode dirigi-la. É a inteligência que, ao adaptar o sinal ao pensamento, cria as formas e as imagens.

A luz universal é como a imaginação divina, e esse mundo que muda sem cessar, permanecendo sempre o mesmo quanto às suas leis de configuração, é o sonho imenso de Deus.

O homem formula a luz por sua imaginação; atrai para si luz suficiente para dar as formas convenientes a seus pensamentos e mesmo a seus sonhos; se essa luz o invade, se afoga seu entendimento nas formas que evoca, fica louco. Mas a atmosfera fluídica dos loucos freqüentemente é um veneno para as razões vacilantes e para as imaginações exaltadas.

As formas que a imaginação superexcitada produz para perturbar o entendimento são tão reais quanto as impressões da fotografia. Não se pode ver o que não existe. Os fantasmas dos sonhos, e os próprios sonhos das pessoas acordadas, são, pois, imagens reais que existem na luz.

Existem, aliás, alucinações contagiosas. Mas afirmamos aqui algo mais do que alucinações comuns. Se as imagens atraídas pelos cérebros doentes são algo real, eles não podem projetá-las exteriormente, reais como as recebem?

Essas imagens, projetadas por todo o organismo nervoso do médium, não podem afetar todo o organismo daqueles que, deliberadamente ou não, entram em simpatia nervosa com o médium?

Os feitos do senhor Home provam que tudo isso é possível.

Agora, respondamos aos que crêem ver nesses fenômenos manifestações do outro mundo e fatos de necromancia.

Tomamos nossa resposta emprestada ao livro sagrado dos cabalistas, e nisto nossa doutrina é igual à dos rabinos compiladores do Zohar.

Axioma

O espírito reveste-se para descer e despoja-se para subir.

De fato: Por que os espíritos criados são revestidos de corpos?

É que eles devem ser limitados para terem uma existência possível. Despojados de corpo e, por conseguinte, tornados sem limites, os espíritos criados se perderiam no infinito, e, por não poderem concentrar-se em algum lugar, estariam mortos e impotentes em toda a parte, porque estariam precipitados na imensidão de Deus.

Todos os espíritos, portanto, têm corpos, uns mais delgados, outros mais espessos, segundo os meios em que foram chamados a viver.

A alma de um morto não poderia, pois, viver na atmosfera dos vivos, assim como nós não poderíamos viver na terra ou na água.

Seria necessário a um espírito aéreo, ou antes, etéreo, um corpo factício semelhante aos aparelhos de mergulhadores, para que pudesse chegar até nós.

Tudo o que podemos ver dos mortos são os reflexos que deixaram na luz atmosférica, luz cujas impressões evocamos pela simpatia de nossas lembranças.

As almas dos mortos estão acima de nossa atmosfera. Nosso ar respirável torna-se terra para eles. Foi o que o Salvador declarou em seu Evangelho, quando fez a alma de um bem-aventurado dizer:

“Agora o grande caos firmou-se para nós, e os que estão no alto não podem mais descer para os que estão embaixo.”

As mãos que o senhor Home faz aparecer são, pois, ar colorido pelos reflexos que sua imaginação doente atrai e projeta.

São tocadas como são vistas: metade ilusão, metade força magnética e nervosa.

A nosso ver aí estão explicações bastante claras e precisas.

Raciocinemos um pouco com os partidários de aparições do outro mundo:

Ou essas mãos são corpos reais.

Ou são ilusões.

Se são corpos, não são, portanto, espíritos.

Se são ilusões produzidas por miragens, seja em nós, seja fora de nós, então vós me dais ganho de causa.

Agora, uma observação:

Todos os doentes de congestão luminosa ou de sonambulismo contagioso perecem de morte violenta, ou pelo menos de morte súbita.

É por essa razão que antigamente se atribuía ao diabo o poder de estrangular os bruxos.

O bom e honesto Laváter evocava habitualmente o suposto espírito de Gablidone.

Foi assassinado.

Um vendedor de limonadas de Leipsick, Scroepfer, evocava imagens animadas dos mortos.

Suicidou-se com um tiro de pistola.

Sabe-se qual foi o final infeliz de Cagliostro.

Apenas um mal maior que a própria morte pode salvar a vida desses experimentadores imprudentes. Podem tornar-se idiotas ou loucos, e então só não morrem se forem atentamente vigiados para impedir que se suicidem.

As doenças magnéticas por si próprias são um encaminhamento para a loucura, e sempre nascem da hipertrofia ou da atrofia do sistema nervoso.

Assemelham-se ao histerismo, que é uma de suas variações, e freqüentemente são produzidas ou por excessos de celibato, ou por excessos de um gênero totalmente oposto.

Sabe-se qual a relação existente entre o cérebro e os órgãos encarregados pela natureza da realização de suas obras mais nobres: as que têm por finalidade a reprodução dos seres.

Não se viola impunemente o santuário da natureza.

Ninguém ergue, sem arriscar a própria vida, o véu da grande Isis.

A natureza é casta, e é à castidade que ela deve as chaves da vida.

Entregar-se aos amores impuros é desposar a morte.

A liberdade, que é a vida da alma, se conserva apenas na ordem da natureza. Toda desordem voluntária a fere, um excesso prolongado a mata.

Então, ao invés de sermos guiados e preservados pela razão, somos abandonados às fatalidades do fluxo e do refluxo da luz magnética.

Ora, a luz magnética devora sem cessar porque está sempre criando; para produzir continuamente, é preciso eternamente absorver.

Daí vêm as monomanias assassinas e as tentações de suicídio.

Daí vem esse espírito de perversidade que Edgar Poe descreveu de forma tão impressionante e tão verdadeira, e que Mirville teria razão em chamar diabo.

O diabo é a vertigem da inteligência atordoada pelas oscilações do coração.

É a monomania do nada, é a atração do abismo, independentemente do que isso possa ser segundo as decisões da fé católica, apostólica e romana, em que não receamos tocar.

Quanto à reprodução dos signos e dos caracteres por esse fluido universal a que chamamos luz astral, negar sua possibilidade seria importar-se pouco com os fenômenos mais comuns da natureza. A miragem nas estepes da Rússia, os palácios da fada Morgana, as figuras impressas naturalmente no coração das pedras que Gaffarel denomina gamahés, a configuração monstruosa de algumas crianças proveniente dos olhares ou pesadelos das mães, todos esses fenômenos e muitos outros provam que a luz está repleta de imagens e reflexos que projeta e reproduz de acordo com as evocações da imaginação, da lembrança ou do desejo. A alucinação não é sempre um devaneio sem objeto: desde que todos vêem uma coisa, ela certamente é visível; mas, se essa coisa é absurda, deve-se rigorosamente concluir que todos estão enganados ou alucinados por uma aparência real.

Dizer, por exemplo, que nas sessões magnéticas do senhor Home saem das mesas mãos reais e vivas, mãos verdadeiras, que uns vêem, que outros tocam, e pelas quais outros ainda sentem-se tocados sem vê-Ias, dizer que essas mãos verdadeiramente corporais são mãos de espíritos é falar como crianças ou como loucos, é implicar contradição nos termos. Mas reconhecer que esta ou aquela aparência, esta ou aquela sensação se produz é ser simplesmente sincero e zombar da zombaria dos homens probos ainda quando esses homens fossem espirituosos como este ou aquele redator brincalhão do jornal.

Esses fenômenos de luzes que produzem aparições mostraram-se sempre em épocas difíceis para a humanidade. São os fantasmas da febre do mundo, é o histerismo de uma sociedade que se entedia. Virgílio conta-nos em belos versos que, na época de César, Roma estava repleta de espectros; sob Vespasiano, as portas do Templo de Jerusalém abriam-se sozinhas, e ouvia-se gritar: “Os deuses se vão.” Ora, quando os deuses partem, os diabos retornam. O sentimento religioso transforma-se em superstição quando a fé está perdida; pois as almas têm necessidade de acreditar, porque têm sede de ter esperança. Como a fé pode perder-se? Como a ciência pode duvidar do infinito e da harmonia? Porque o santuário do absoluto está sempre fechado para a maioria. Mas o reino da verdade, que é o de Deus, sofre violências e deve ser conquistado pelos fortes. Existe um dogma, uma chave, uma tradição sublime; e esse dogma, essa chave, essa tradição é a alta magia. Apenas aí encontram-se o absoluto da ciência e a base eterna da lei, o preservativo contra toda loucura, toda superstição e todo erro, o Éden da inteligência, o repouso do coração e a quietude da alma. Não dizemos isso na esperança de convencer os que riem, mas somente para advertir os que procuram. Coragem e esperança a estes; eles certamente encontrarão, uma vez que nós encontramos.

O dogma mágico não é aquele dos médiuns. Os médiuns que dogmatizam só podem ensinar a anarquia, uma vez que sua inspiração resulta de uma exaltação desordenada. Eles sempre prevêem desastres, negam a autoridade hierárquica, assumem a postura de soberanos pontífices, como Vintras. O iniciado, ao contrário, respeita antes de tudo a hierarquia, ama e conserva a ordem, inclina-se diante das crenças sinceras, ama todos os signos da imortalidade na fé e da redenção pela caridade, que é toda ela disciplina e obediência.

Acabamos de ler um livro publicado sob a influência da vertigem astral e magnética e ficamos chocados com as tendências anárquicas de que ele está repleto sob uma grande aparência de benevolência e religião. Encabeçando a obra, vê-se o signo, ou, como dizem os magistas, a assinatura das doutrinas que ela ensina. Em vez da cruz cristã, símbolo de harmonia, aliança e regularidade, vê-se aí a vara de videira tortuosa, com seus brotos em gavinhas, imagens da alucinação e da embriaguez.

As primeiras idéias formuladas nesse livro são o cúmulo do absurdo. As almas dos mortos, diz ele, estão em toda a parte, e nada mais as limita. Eis o infinito todo povoado de deuses que entram uns nos outros. As almas podem e querem comunicar-se conosco por meio das mesas e dos chapéus. Assim, nada mais de ensino regulamentado, de sacerdócio, de Igreja, o delírio alçado à condição de verdade, oráculos que escrevem para a salvação do gênero humano a palavra atribuída a Cambronne, grandes homens que deixam a serenidade dos destinos eternos para fazer dançarem nossos móveis e manter conosco conversas semelhantes àquelas que lhes empresta Béroalde de Verville como meio de ter sucesso. Tudo isso causa piedade; e no entanto, na América, propaga-se como uma peste intelectual. A jovem América delira, tem febre, talvez esteja em sua primeira dentição. Mas a França! A França acolher semelhantes coisas! Não, isso não é possível, e isso não é. Mas, ao renegarem as doutrinas, os homens sérios devem observar os fenômenos, permanecer calmos em meio às agitações de todos os fanatismos (pois a incredulidade também tem o seu), julgar após haver examinado. Conservar a razão em meio aos loucos, a fé em meio às superstições, a dignidade em meio aos caracteres enfraquecidos e a independência em meio aos carneiros de Panurgo é de todos os milagres o mais raro, o mais belo e também o mais difícil de realizar.

CAPÍTULO IV

Os fantasmas fluídicos e seus mistérios

Os antigos davam-lhes diferentes nomes. Eram larvas, lêmures, empusas. Gostavam do vapor do sangue derramado, e fugiam do gume do gládio.

A teurgia evocava-os, e a cabala conhecia-os sob o nome de espíritos elementares.

No entanto, não eram espíritos, pois eram mortais.

Eram coagulações fluídicas que se podiam destruir, dividindo-as.

Eram espécies de miragens animadas, emanações imperfeitas da vida humana: as tradições da magia negra as fazem nascer do celibato de Adão. Paracelso diz que os vapores do sangue das mulheres histéricas povoam o ar de fantasmas; e essas idéias são tão antigas que as encontramos em Hesíodo, que defende expressamente fazer secar diante do fogo roupa branca manchada por uma poluição qualquer.

As pessoas obcecadas pelos fantasmas geralmente estão exaltadas por um celibato muito rigoroso, ou enfraquecidas por excessos de devassidão.

Os fantasmas fluídicos têm os abortos da luz vital; são mediadores plásticos sem corpo e sem espírito, nascidos dos excessos do espírito e dos desregramentos do corpo.

Esses mediadores errantes podem ser atraídos por certos doentes que lhes são fatalmente simpáticos, e que lhes emprestam, às suas expensas, uma existência factícia mais ou menos durável. Servem, então, de instrumentos suplementares para as vontades instintivas desses doentes: nunca, todavia, para curá-los, sempre para desviá-los e aluciná-los mais.

Se os embriões corporais têm a propriedade de tomar as formas que lhes dá a imaginação das mães, os embriões fluídicos errantes devem ser prodigiosamente variáveis e transformar-se com uma surpreendente facilidade. Sua tendência a darem-se um corpo para atrair uma alma faz com que condensem e assimilem, naturalmente, as moléculas corporais que flutuam na atmosfera.

Assim, ao coagularem o vapor do sangue, refazem sangue, o mesmo sangue que os maníacos alucinados vêem escorrer nos quadros e nas estátuas. Mas não são os únicos a vê-lo. Vintras e Rose Tamisier não são impostores nem vítimas de alguma ilusão; o sangue escorre realmente; médicos examinam-no; analisam-no; é sangue, verdadeiro sangue humano: de onde vem? Pode ter se formado espontaneamente na atmosfera? Pode sair naturalmente de um mármore, unia tela pintada ou uma hóstia? Não, certamente; esse sangue circulou em veias, depois propagou-se, evaporou-se, dessecou-se, o soro tornou-se vapor, os glóbulos poeira intangível, o todo flutuou e voltejou na atmosfera, depois foi atraído para a corrente de um eletromagnetismo especificado. O soro voltou a ser líquido, retomou e embebeu novamente os glóbulos que a luz astral coloriu, e o sangue escorreu.

A fotografia é prova suficiente de que as imagens são modificações reais da luz. Ora, existe uma fotografia acidental e fortuita que opera, segundo as miragens errantes na atmosfera, impressões duráveis em folhas de árvores, na madeira e até no coração das pedras: assim formam-se as figuras naturais a que Gaffarel consagrou várias páginas em seu livro Curiosidades Inauditas, as pedras a que ele atribui uma virtude oculta, e que denomina gamahés; assim traçam-se as escrituras e os desenhos que tanto surpreendem os observadores dos fenômenos fluídicos. São fotografias astrais feitas pela imaginação dos médiuns com ou sem a ajuda das larvas fluídicas.

A existência dessas larvas nos foi demonstrada de modo peremptório por uma experiência bastante curiosa. Várias pessoas, para testar o poder mágico do americano Home, pediram-lhe que evocasse parentes que elas alegavam ter perdido, mas que na realidade jamais existiram. Os espectros não faltaram a esse apelo, e os fenômenos que habitualmente seguiam-se à evocação do médium manifestaram-se plenamente.

Essa experiência por si só bastaria para convencer de credulidade deplorável e de erro formal os que crêem na intervenção dos espíritos nesses fenômenos estranhos. Para que mortos retornem, é preciso antes de mais nada que tenham existido, e demônios não seriam tão facilmente enganados por nossas mistificações.

Como todos os católicos, acreditamos na existência dos espíritos das trevas; mas sabemos também que o poder divino lhes deu as trevas por prisão eterna e que o Redentor viu Satã cair do céu como um raio. Se os demônios nos tentam é pela cumplicidade voluntária de nossas paixões más, e não lhes é permitido afrontar o império de Deus e perturbar, por manifestações tolas e inúteis, a ordem eterna da natureza.

Os caracteres e assinaturas diabólicos, que se produzem à revelia dos médiuns, evidentemente não são provas de um pacto tácito ou formal entre esses doentes e as inteligências do abismo. Esses signos serviram em todos os tempos para exprimir a vertigem astral e permaneceram no estado de miragem nos reflexos da luz extraviada. A natureza também tem suas reminiscências e envia-nos os mesmos signos com relação às mesmas idéias. Não há nisso nada de sobrenatural nem de infernal.

“Como quer o senhor que eu admita”, dizia-nos o pároco Charvoz, primeiro vigário de Vintras, “que Satã ousa imprimir seus hediondos estigmas nas espécies consagradas e tornadas o próprio corpo de Jesus Cristo?” Declaramos logo que nos era igualmente impossível pronunciarmo-nos a favor de semelhante blasfêmia; no entanto, como demonstramos em nossos folhetins do jornal O Estafeta, os signos impressos em caracteres sangrentos nas hóstias de Vintras, regularmente consagradas por Charvoz, eram os que, na magia negra, são absolutamente reconhecidos como as assinaturas dos demônios.

As escrituras astrais são freqüentemente ridículas ou obscenas. Os pretensos espíritos, interrogados sobre os maiores mistérios da natureza, respondem muitas vezes com uma expressão grosseira tornada heróica, segundo dizem, nos lábios militares de Cambronne. Os desenhos que os lápis traçam por si sós reproduzem com freqüência essas figuras priápicas informes, que o pálido vadio, para servirmo-nos da pitoresca expressão de Augusto Barbier, desenha assoviando ao longo dos muros de Paris, prova recente do que adiantamos, isto é, que o espírito não preside de nenhum modo a essas manifestações e que seria soberbamente absurdo reconhecer aí sobretudo a intervenção dos espíritos desligados da matéria.

O jesuíta Paul Saufidius, que escreveu sobre os usos e costumes dos japoneses, narra um caso muito interessante. Um grupo de peregrinos japoneses, atravessando um dia um deserto, viu aproximar-se um bando de espectros em igual número ao seu e que caminhava no mesmo passo. Esses espectros, no princípio disformes e semelhantes a larvas, tomavam ao se aproximarem a aparência do corpo humano. Logo, encontraram os peregrinos e misturaram-se a eles, deslizando em silêncio por entre as fileiras, então os japoneses viram-se duplos, tendo cada fantasma se tornado a imagem perfeita e como que a miragem de cada peregrino. Os japoneses aterrorizados prosternaram-se, e o bonzo que os conduzia pôs-se a orar por eles com grandes contorsões e em altos brados. Quando os peregrinos se levantaram, os fantasmas haviam desaparecido e o grupo devoto pôde continuar livremente seu caminho. Esse fenômeno, que não colocamos em dúvida, apresenta as duplas características de uma miragem e de uma projeção repentina de larvas astrais, ocasionadas pelo calor da atmosfera e esgotamento fanático dos peregrinos.

O doutor Brière de Boismont, em seu curioso Tratado das Alucinações, conta que um homem perfeitamente sensato, e que jamais tivera visões, foi atormentado uma manhã por um terrível pesadelo. Viu em seu quarto um macaco enorme, horrendo, que rangia os dentes e fazia as mais hediondas contorsões. Acordou sobressaltado, era dia claro; saltou da cama e ficou apavorado ao ver realmente o medonho objeto de seu sonho. O macaco estava lá perfeitamente idêntico àquele do pesadelo, igualmente absurdo, igualmente assustador e fazendo as mesmas caretas. O personagem em questão não podia acreditar em seus olhos; permaneceu cerca de meia hora imóvel, observando esse singular fenômeno e perguntando-se se estava com febre alta ou se estava ficando louco. Aproximou-se, enfim, do fantástico animal para tocá-lo e a aparição dissipou-se.

Cornelius Gemma, em sua História Crítica Universal, conta que em 454, na ilha de Creta, o fantasma de Moisés apareceu para alguns judeus na praia; trazia na fronte seus chifres luminosos, na mão sua vara fulminante, e convidava-os a segui-lo apontando-lhes o horizonte na direção da Terra Santa. A notícia desse prodígio espalhou-se, e uma multidão de israelitas precipitou-se em direção à margem. Todos viram, ou imaginaram ter visto, a maravilhosa aparição: eram em número de vinte mil, no dizer do cronista, que supomos ter exagerado um pouco. Logo as cabeças esquentam-se, as imaginações exaltam-se; acredita-se num milagre mais extraordinário do que foi outrora a travessia do mar Vermelho. Os judeus formam-se em colunas cerradas e correm em direção ao mar; os últimos empurravam os primeiros com frenesi: acreditavam ver o suposto Moisés caminhando sobre as águas. Foi um terrível desastre: essa multidão quase toda afogou-se, e a alucinação só se extinguiu com a vida da maioria desses infelizes visionários.

O pensamento humano cria o que imagina; os fantasmas da superstição projetam sua disformidade real na luz astral e vivem dos próprios terrores que os conceberam. Esse gigante negro que estende suas asas do oriente ao ocidente para ocultar ao mundo a luz, esse monstro que devora as almas, essa aterrorizante divindade da ignorância e do medo, numa palavra, o diabo, ainda é, para uma multidão de crianças de todas as idades, uma aterradora realidade. Em nosso Dogma e Ritual da Alta Magia, representamo-lo como a sombra de Deus, e dizendo isso ocultamos ainda metade de nosso pensamento; Deus é a luz sem sombra. O diabo é apenas a sombra do fantasma de Deus!

O fantasma de Deus! Esse último ídolo da terra; esse espectro antropomórfico que se torna maliciosamente invisível; essa personificação finita do infinito; esse invisível que não se pode ver sem morrer, sem morrer ao menos em inteligência e em razão, pois que para ver o invisível é preciso estar louco; o fantasma do que não tem corpo; a forma confusa que é sem formas e sem limites: eis o que adora sem saber a maioria dos crentes. Aquele que é essencialmente, puramente, espiritualmente, não sendo nem o ser absoluto, nem um ser abstrato, nem a coleção dos seres, numa palavra, o infinito intelectual, é muito difícil de se imaginar! Assim, toda imaginação a seu respeito é uma idolatria, é preciso nele crer e adorá-lo. Nosso espírito deve calar-se diante dele e apenas nosso coração tem direito a dar-lhe um nome: Pai nosso!

LIVRO II

OS MISTÉRIOS MÁGICOS

CAPÍTULO I

Teoria da vontade

A vida humana e suas dificuldades incontáveis têm por finalidade, na ordem da sabedoria eterna, a educação da vontade do homem.

A dignidade do homem consiste em fazer o que quer e em querer o bem, em conformidade com a ciência do verdadeiro.

O bem conforme ao verdadeiro é o justo.

A justiça é a prática da razão.

A razão é o verbo da realidade.

A realidade é a ciência da verdade.

A verdade é a história idêntica ao ser.

O homem chega à idéia absoluta do ser por duas vias, a experiência e a hipótese.

A hipótese é provável quando é solicitada pelos ensinamentos da experiência; é improvável ou absurda quando é rejeitada por esse ensinamento.

A experiência é a ciência, e a hipótese é a fé.

A verdadeira ciência admite necessariamente a fé; a verdadeira fé conta necessariamente com a ciência.

Pascal blasfemava contra a ciência quando disse que, pela razão, o homem não pode chegar ao conhecimento de nenhuma verdade.

Assim, Pascal morreu louco.

Mas Voltaire não blasfemava menos contra a ciência, quando declarava absurda toda hipótese da fé e admitia por regra da razão apenas o testemunho dos sentidos.

Assim, as últimas palavras de Voltaire foram esta fórmula contraditória:

DEUS E A LIBERDADE

Deus, isto é, um mestre supremo: o que exclui toda idéia de liberdade, como a entendia a escola de Voltaire.

E a liberdade, isto é, uma independência absoluta de todo mestre; o que exclui toda idéia de Deus. A palavra DEUS exprime a personificação suprema da lei e, por conseguinte, do dever; e, se pela palavra LIBERDADE se quiser entender conosco O DIREITO DE FAZER O DEVER, tomaremos, de nossa parte, por divisa e repetiremos sem contradição e sem erro:

DEUS E A LIBERDADE

Como só há liberdade para o homem na ordem que resulta do verdadeiro e do bem, pode-se dizer que a conquista da liberdade é o grande trabalho da alma humana. O homem, libertando-se das más paixões e de sua servidão, de certo modo cria-se a si próprio uma segunda vez. A natureza fizera-o vivo e sofredor, ele se faz feliz e imortal; torna-se, assim, o representante da divindade na terra e exerce relativamente sua onipotência.

AXIOMA I

Nada resiste à vontade do homem quando ele sabe o verdadeiro e quer o bem.

AXIOMA II

Querer o mal é querer a morte. Uma vontade perversa é um começo de suicídio.

AXIOMA III

Querer o bem com violência é querer o mal; pois a violência produz a desordem, e a desordem produz o mal.

AXIOMA IV

Pode-se e deve-se aceitar o mal como meio para o bem; mas é preciso nunca querê-lo ou fazê-lo, do contrário destruir-se-ia com uma mão o que se edificasse com a outra. A boa fé nunca justifica os maus meios; corrige-os quando são suportados e condena-os quando deles se lança mão.

AXIOMA V

Para se ter direito de possuir, sempre é preciso querer pacientemente e por muito tempo.

AXIOMA VI

Passar a vida querendo o que é impossível possuir, sempre é abdicar da vida e aceitar a eternidade da morte.

AXIOMA VII

Quanto mais a vontade supera obstáculos, mais se fortalece. É por isso que Cristo glorificou a pobreza e a dor.

AXIOMA VIII

Quando a vontade é consagrada ao absurdo, é reprovada pela eterna razão.

AXIOMA IX

A vontade do homem justo é a vontade do próprio Deus, e é a lei da natureza.

AXIOMA X

É pela vontade que a inteligência vê. Se a, vontade é sã, a visão é justa. Deus disse: Que seja a luz! e a luz é; a vontade disse: Que o mundo seja como eu o quero ver! e a inteligência o vê como a vontade quis. É o que significa a expressão assim seja, que confirma os atos de fé.

AXIOMA XI

Quando alguém cria fantasmas, põe no mundo vampiros, e será preciso alimentar esses filhos de um pesadelo voluntário com seu sangue, sua vida, sua inteligência e sua razão, sem nunca saciá-los.

AXIOMA XII

Afirmar e querer o que deve ser é criar; afirmar e querer o que não deve ser é destruir.

AXIOMA XIII

A luz é um fogo elétrico colocado pela natureza a serviço da vontade: ilumina os que dela sabem servir-se, queima os que dela abusam.

AXIOMA XIV

O império do mundo é o império da luz.

AXIOMA XV

As grandes inteligências cuja vontade equilibra-se mal assemelham-se aos cometas, que são sóis abortados.

AXIOMA XVI

Nada fazer é tão funesto quanto fazer o mal, mas é mais covarde. O mais imperdoável dos pecados mortais é a inércia.

AXIOMA XVII

Sofrer é trabalhar. Uma grande dor sofrida é um progresso realizado. Os que sofrem muito vivem mais do que os que não sofrem.

AXIOMA XVIII

A morte voluntária por abnegação não é um suicídio; é a apoteose da vontade.

AXIOMA XIX

O medo é apenas uma preguiça da vontade, e é por isso que a opinião desencoraja os covardes.

AXIOMA XX

Consegui não temer o leão, e o leão vos temerá. Dizei à dor: Quero que tu sejas um prazer, e ela se tornará até mais do que um prazer, uma felicidade.

AXIOMA XXI

Uma corrente de ferro é mais fácil de quebrar que uma corrente de flores.

AXIOMA XXII

Antes de declarar um homem feliz ou infeliz, sabei como o fez a direção de sua vontade: Tibério morria todos os dias em Capri, enquanto Jesus provava sua imortalidade e sua divindade no Calvário e na cruz.

CAPÍTULO II

O poder da palavra

É o verbo que cria as formas, e as formas, por sua vez, reagem sobre o verbo para modificá-lo e terminá-lo.

Toda palavra de verdade é o começo de um ato de justiça.

Pergunta-se se o homem algumas vezes pode ser necessariamente impelido para o mal. Sim, quando ele tem o julgamento falso e, por conseguinte, o verbo injusto.

Mas alguém é tão responsável por um julgamento falso como por uma má ação.

O que falseia o julgamento são as vaidades injustas do egoísmo.

O verbo injusto, não podendo realizar-se pela criação, realiza-se pela destruição. É preciso que mate ou morra.

Se pudesse permanecer sem ação seria a maior de todas as desordens, uma blasfêmia duradoura contra a verdade.

Tal é a palavra ociosa da qual Cristo disse que se prestará conta no juizo final. Um gracejo, uma tolice que recreia e que faz rir não é uma palavra ociosa.

A beleza da palavra é um esplendor de verdade. Uma palavra verdadeira é sempre bela, uma bela palavra é sempre verdadeira.

É por isso que as obras de arte são sempre santas quando são belas.

Que me importa que Anacreonte cante Batylle, se, em seus versos, ouço as notas da divina harmonia que é o hino eterno da beleza? A poesia é pura como o sol: ela estende seu véu de luz sobre os erros da humanidade. Ai daquele que quisesse erguer o véu para perceber fealdades.

O Concílio de Trento disse que é permitido às pessoas sábias e prudentes lerem os livros dos antigos, mesmo obscenos, por causa da beleza da forma.

Uma estátua de Nero ou de Heliogábalo feita como as obras-primas de Fídias não seria uma obra absolutamente bela e absolutamente boa? E os que gostariam de vê-la destruída por representar um monstro não mereceriam as vaias do mundo inteiro?

As estátuas escandalosas são as estátuas malfeitas; e a Vênus de Milo seria profanada se fosse exposta ao lado das Virgens que ousam expor em algumas igrejas.

Aprende-se o mal nos livros de moral tolamente escritos, bem mais do que nas poesias de Catulo ou nas engenhosas alegorias de Apuleio.

Não há maus livros senão os livros malpensados ou malfeitos.

Todo verbo de beleza é um verbo de verdade. É uma luz formulada em palavra.

Porém, é preciso uma sombra para que a mais brilhante luz produza-se e torne-se visível; e a palavra criadora, para tornar-se eficaz, necessita de contraditores. É preciso que suporte a prova da negação, do sarcasmo, depois aquela ainda bem mais cruel da indiferença e do esquecimento. “É preciso”, dizia o Mestre, “que o grão apodreça para germinar.”

O verbo que afirma e a palavra que nega devem casar-se, e de sua união nascerá a verdade prática, a palavra real e progressiva. É a necessidade que deve constranger os trabalhadores a escolherem por pedra angular a que inicialmente fora desconhecida e rejeitada. Que a contradição nunca desencoraje, pois, os homens de iniciativa. O arado necessita de uma terra e a terra resiste porque trabalha. Ela defende-se como todas as virgens, concebe e dá à luz lentamente como todas as mães. Vós, pois, que quereis semear uma planta nova no campo da inteligência, compreendei e respeitai as resistências pudibundas da experiência limitada e da razão tardia.

Quando uma palavra nova vem ao mundo, necessita de laços e cueiros; foi o gênio que a concebeu, mas é a experiência que deve alimentá-la. Não receeis que seja desamparada e morra; o esquecimento para ela é um repouso favorável e as contradições são uma cultura. Quando um sol desponta no espaço, cria ou atrai mundos. Uma única fagulha de luz fixa promete ao espaço um universo.

Toda a magia está numa palavra, e essa palavra, pronunciada cabalisticamente, é mais forte que todos os poderes do céu, da terra e do inferno. Com o nome de Jod he van he domina-se: os reinos são conquistados em nome de Adonai, e as forças ocultas que compõem o império de Hermes são totalmente obedientes àquele que sabe pronunciar segundo a ciência o nome incomunicável de Agla.

Para pronunciar segundo a ciência as grandes palavras da Cabala, é preciso pronunciá-las com uma inteligência inteira, com uma vontade que nada detenha, com uma atividade que nada rejeite. Em magia ter dito é ter feito; o verbo começa com letras, termina com atos. Só se quer realmente algo quando se quer com todo o coração, a ponto de por isso ferir as mais caras afeições; com todas as forças a ponto de expor a saúde, a fortuna e a vida.

É pela devoção absoluta que a fé se prova e se constitui. Mas o homem armado de semelhante fé poderá remover montanhas.

O inimigo mais fatal de nossas almas é a preguiça. A inércia possui uma embriaguez que nos adormece; mas o sono da inércia é a corrupção e a morte. As faculdades da alma humana são como as ondas do oceano: necessitam, para conservarem-se, do sal e do amargor das lágrimas; necessitam das tormentas do céu e da agitação das tempestades.

Quando, ao invés de caminharmos na rota do progresso, queremos ser carregados, estamos dormindo nos braços da morte; é para nós que é dito, como ao paralítico do Evangelho: Carregai vossa cama e andai! Somos nós que devemos carregar a morte para precipitá-la na vida.

Segundo a magnífica e terrível expressão de São João, o inferno é um fogo que dorme. É uma vida sem atividade e sem progresso; é enxofre em estagnação: stagnum ignis et sulphuris.

A vida que dorme é análoga à palavra ociosa e é disso que os homens terão de prestar contas no dia do juízo final.

A inteligência fala e a matéria agita-se; só descansará depois de ter tomado a forma dada pela palavra. Vede o verbo cristão há dezenove séculos trabalhando o mundo. Que combates de gigantes! Quantos erros experimentados e rechaçados! Quanto cristianismo desiludido e irritado no fundo do protesto, desde o século XVI até o século XVIII! O egoísmo humano, desesperado com suas derrotas, amotinou sucessivamente todas as suas estupidezes. Revestiram o Salvador do mundo com todos os andrajos e todas as púrpuras derrisórias: depois de Jesus o Inquisidor, fez-se o Jesus Revolucionário. Se fordes capaz, medi quantas lágrimas e quanto sangue correram, ousai prever quanto ainda correrá antes que se chegue ao reino messiânico do Homem-Deus, que subjuga ao mesmo tempo todas as paixões aos poderes e todos os poderes à justiça!

ADVENIAT REGNUM TUUM! Eis o que setecentos milhões de vozes repetem noite e dia em toda a superfície da terra, há quase mil e novecentos anos, enquanto os israelitas continuam a esperar o Messias. Ele falou, e ele voltará; veio para morrer, e prometeu retornar para viver.

CÉU É A HARMONIA DOS SENTIMENTOS GENEROSOS.

INFERNO É O CONFLITO DOS INSTINTOS COVARDES.

Quando a humanidade, a poder de experiências sangrentas e dolorosas, tiver compreendido bem essa dupla verdade, abjurará do inferno do egoísmo para entrar no céu da abnegação e da caridade cristã.

A lira de Orfeu desbravou a Grécia selvagem, e a lira de Anfião construiu a misteriosa Tebas. É que a harmonia é a verdade. A natureza inteira é harmonia, mas o Evangelho não é uma lira: é o livro dos princípios eternos que devem regular e que regularão todas as liras e todas as harmonias vivas do universo.

Enquanto o mundo não compreender estas três palavras: verdade, razão, justiça, e estas: dever, hierarquia, sociedade, a divisa revolucionária, liberdade, igualdade, fraternidade, será apenas uma tríplice mentira.

CAPÍTULO III

As influências misteriosas

Não há meio-termo possível. Todo homem é bom ou mau. Os indiferentes, os mornos não são bons, são, pois, maus, e os piores de todos os maus, pois são imbecis e covardes. O combate da vida assemelha-se a uma guerra civil, os que permanecem neutros traem igualmente os dois lados e renunciam ao direito de serem contados dentre os filhos da pátria.

Todos nós respiramos a vida dos outros e de algum modo insuflamo-lhes uma parte de nossa existência. Os homens inteligentes e bons são, sem saberem, os médicos da humanidade, os homens tolos e maus são envenenadores públicos.

Existem pessoas perto de quem sentimo-nos melhores. Vede esta jovem senhora da alta sociedade, ela conversa, ri, adorna-se como todas as outras, por que, então, tudo nela é melhor e mais perfeito? Nada mais natural que sua distinção, nada mais franco e mais nobremente despretensioso que sua conversa. Perto dela tudo deve achar-se à vontade, exceto os maus sentimentos, mas eles são impossíveis perto dela. Ela não encontra os corações, prende-os e os instrui, não embriaga, encanta. O que toda sua pessoa prega parece ser uma perfeição mais aprazível do que a própria virtude; é mais graciosa que a graça, suas ações são fáceis e inimitáveis como a bela música e os belos versos. Era dela que uma encantadora mundana, muito amiga para ser rival, dizia depois de um baile: Pareceu-me ver a Sagrada Bíblia em movimento. Vede ao contrário esta outra mulher, afeta a mais rígida devoção e se escandalizaria ao ouvir os anjos cantarem, mas sua fala é malévola, seu olhar é altivo e desdenhoso; quando fala sobre virtude poderia provocar o amor ao vício. Para ela Deus é um marido ciumento que ela tem o grande mérito de não enganar; suas máximas são desoladoras, as ações mais vãs que caridosas e poder-se-ia dizer após a ter encontrado na igreja: Vi o diabo orando a Deus.

Ao deixar a primeira, senti-vos cheio de amor por tudo o que é belo, por tudo o que é bom e generoso. Estais feliz por lhe terdes dito tudo o que ela vos inspirou de bem e por terdes sido por ela aprovado; dizei-vos que a vida é boa, uma vez que foi dada por Deus a semelhantes almas, estais cheio de coragem e de esperança. A outra vos deixa enfraquecido, rejeitado, ou talvez, o que é pior, estimulado a fazer o mal; vos faz duvidar da honra, da piedade e do dever; perto dela só escapais ao tédio pela porta dos maus desejos. Falastes mal de alguém para agradá-la, diminuíste-vos para adular seu orgulho, ficais descontente com ela e convosco mesmo.

O sentimento vivo e certo dessas diversas influências é próprio dos espíritos justos e das consciências delicadas, e é precisamente o que os antigos escritores ascéticos chamavam graça do discernimento dos espíritos.

Sois cruéis consoladores, dizia Jó a seus pretensos amigos. De fato, os seres viciosos sempre afligem ao invés de consolarem. Têm um tato prodigioso para encontrar e escolher as mais desesperadoras banalidades. Chorais um afeto perdido, como sois ingênuo! Zombavam de vós, não vos amavam. Com dor confessais que vosso filho é coxo, amigavelmente vos fazem ver que ele é corcunda. Ele tosse e inquietai-vos, suplicam-vos ternamente que tomeis cuidado, pois talvez esteja tuberculoso. Vossa mulher está doente há muito tempo, consolai-vos, pois ela morrerá.

Espera e trabalha, eis o que o céu nos diz pela voz de todas as boas almas; desespera e morre, eis o que o inferno nos grita em todas as palavras, todos os movimentos, todas as amizades e todos os afagos dos seres imperfeitos ou degradados.

Qualquer que seja a reputação de uma pessoa e quaisquer que sejam os testemunhos de amizade que ela vos dá, se, ao deixá-la, sentivos menos amigo do bem e menos forte, ela é perniciosa para vós: evitai-a.

Nossa dupla imantação produz em nós duas espécies de simpatias. Temos necessidade de, alternadamente, absorver e irradiar. Nosso coração gosta dos contrastes, e existem poucos exemplos de mulheres que tenham amado sucessivamente dois gênios.

Repousamo-nos pela proteção dos cansaços da admiração, é a lei do equilíbrio; mas por vezes também as naturezas sublimes surpreendem-se em caprichos de vulgaridade. O homem, disse o abade Gerbet, é a sombra de um Deus no corpo de um animal: existem os amigos do anjo e os complacentes para com o animal. O anjo atrai-nos, mas, se não tomamos cuidado, é a besta que nos leva: ela deve mesmo fatalmente levar-nos quando se trata de asneiras, isto é, das satisfações desta vida nutriz da morte, que na linguagem das bestas chama-se vida real. Em religião, o Evangelho é um guia seguro, o mesmo não sendo em negócios, e muitas pessoas, quando se tratasse de estabelecer a sucessão temporal de Jesus Cristo, se entenderiam melhor com Judas Iscariotes do que com São Pedro.

Admiram a probidade, disse Juvenal, e não lhe dão o que lhe cabe. Se, por exemplo, tal homem célebre não tivesse escandalosamente mendigado a riqueza, alguém teria pensado em recompensar sua velha musa? Alguma herança lhe teria caído do céu? A virtude toma nossa admiração, nossa bolsa, portanto, nada lhe deve, essa grande dama é bastante rica sem nós. Preferimos dar ao vício, ele é tão pobre!

“Não gosto dos mendigos e dou apenas aos pobres vergonhosos”, dizia um homem inteligente. “Mas o que lhes dais, se não os conheceis?” “Dou-lhes minha admiração e minha estima, e não preciso conhecê-los para isso.” “Como necessitais de tanto dinheiro”, foi perguntado a outro, “se não tendes filhos nem encargos?” “Tenho meus pobres vergonhosos a quem não me posso impedir de dar muito.” “Apresente-os a mim, talvez dê-lhes também.” “Oh! certamente já conheceis alguns. Tenho sete deles, que comem excessivamente, e um oitavo que come mais do que os outros sete: os sete são os sete pecados capitais; o oitavo é o jogo.”

“Senhor, dai-me cinco francos, estou morrendo de fome.” “Imbecil! estás morrendo de fome e queres que te encoraje a prosseguir em tão mau caminho! Morres de fome e tens a imprudência de confessá-lo! Queres tornar-me cúmplice de tua incapacidade, nutriz de teu suicídio! Queres um prêmio pela miséria? Por quem me tomas? Acaso sou um traste da tua espécie…”

“Meu amigo, preciso de um milhão de escudos para seduzir uma mulher honesta.” “Ah! isso é mau; mas não sei recusar nada a um amigo. Toma, e quando tiveres conseguido dá-me o endereço dessa pessoa.” Eis o que se chama, na Inglaterra e em outros lugares, agir como um perfeito cavalheiro.

“O homem honrado sem trabalho rouba, e não mendiga!”, respondeu um dia Cartouche a um transeunte que lhe pedia esmola. É enfático como a palavra emprestada a Cambronne; e, na realidade, talvez o célebre ladrão e o grande general tenham ambos respondido do mesmo modo.

Foi esse mesmo Cartouche quem de outra feita ofereceu, por iniciativa própria e sem que lhe fosse pedido, vinte mil libras a alguém falido. Entre irmãos é preciso saber viver.

A assistência mútua é uma lei da natureza. Ajudar nossos semelhantes é ajudar a nós mesmos. Mas acima da assistência mútua eleva-se uma lei maior e mais santa: é a assistência universal, é a caridade.

Todos admiramos e amamos São Vicente de Paulo, mas quase todos temos também um fraco secreto pela habilidade, pela presença de espírito e, sobretudo, pela audácia de Cartouche.

Os cúmplices confessos de nossas paixões podem repugnar-nos humilhando-nos; saberemos, sujeitando-nos aos perigos, resistir-lhes por orgulho. Mas que pode haver de mais perigoso para nós que nossos cúmplices hipócritas e ocultos? Seguem-nos como o desgosto, esperam-nos como o abismo, envolvem-nos como a vertigem. Nós os desculpamos para desculparmo-nos, os defendemos para defendermo-nos, os justificamos para justificarmo-nos e os suportamos em seguida porque é preciso, porque não temos força para resistir a nossas inclinações, porque não desejamos isso.

Apossaram-se de nosso ascendente, como diz Paracelso, e onde quiserem conduzir-nos iremos.

São nossos maus anjos, sabemo-lo no fundo de nossa consciência; mas os poupamos, pois fizemo-nos seus servidores, a fim de que eles também nos sirvam.

Nossas paixões, aduladas e poupadas, tornaram-se servas-senhoras; e os complacentes para com nossas paixões são valetes que se tornaram nossos mestres.

Respiramos nossos pensamentos e aspiramos os dos outros impressos na luz astral, tornada sua atmosfera eletromagnética: assim, a companhia dos maus é menos funesta para as pessoas de bem do que a dos seres vulgares, covardes e mornos. Uma forte antipatia adverte-nos facilmente e salva-nos do contato com os vícios grosseiros; não é assim com os vícios disfarçados, diminuídos de certo modo e tornados quase amáveis. Uma mulher honesta sentirá apenas repulsa em companhia de uma moça perdida; mas tem tudo a recear das seduções de uma doidivanas.

Sabemos que a loucura é contagiosa; mas os loucos são mais particularmente perigosos quando são amáveis e simpáticos. Entramos pouco a pouco em seu círculo de idéias, chegamos a compreender seus exageros compartilhando seus entusiasmos, habituamo-nos à sua lógica excepcional e transviada, chegamos a pensar que não são tão loucos quanto acreditávamos no início. Daí a acreditar que são os únicos a ter razão não há muita distância. Nós os amamos, os aprovamos, estamos loucos como eles.

As afeições são livres e podem ser racionalizadas; mas as simpatias são fatais e muito freqüentemente desarrazoadas; dependem das atrações mais ou menos equilibradas da luz magnética, e agem sobre os homens do mesmo modo que sobre os animais. Divertiremo-nos tolamente com uma pessoa que nada tem de amável porque estamos misteriosamente atraídos e dominados por ela. Freqüentemente, essas simpatias estranhas começaram por vivas antipatias; os fluidos repeliam-se no início, equilibrando-se depois.

A especialidade equilibrante do mediador plástico de cada pessoa é o que Paracelso chama seu ascendente, e denomina flagum ao reflexo particular das idéias habituais de cada um na luz universal.

Chega-se ao conhecimento do ascendente de uma pessoa pela adivinhação sensitiva do flagum, e por um direcionamento perseverante da vontade vira-se o lado ativo do próprio ascendente para o lado passivo do ascendente do outro, quando se quer apoderar-se do outro e dominá-lo.

O ascendente astral foi adivinhado por outros magistas, que o chamaram turbilhão.

É, dizem eles, uma corrente de luz especializada, reproduzindo sempre um mesmo círculo de imagens, e, por conseguinte, de impressões determinadas e determinantes. Esses turbilhões existem para os homens como para as estrelas. “Os astros”, diz Paracelso, “respiram sua alma luminosa e atraem a irradiação uns dos outros. A alma da terra, cativa das leis fatais da gravitação, desprende-se especializando-se e passa pelo instinto dos animais para chegar à inteligência do homem. A parte cativa dessa alma é muda, mas conserva por escrito os segredos da natureza. A parte livre não pode mais ler essa escritura fatal sem perder instantaneamente sua liberdade. Só se passa da contemplação muda e vegetativa ao pensamento livre e vibrante mudando de meios e de órgãos. Daí vem o esquecimento que acompanha o nascimento e as reminiscências vagas de nossas intuições doentias, sempre análogas às visões de nossos êxtases e de nossos sonhos.”

Essa revelação do grande mestre da medicina oculta lança uma enorme luz sobre todos os fenômenos do sonambulismo e da adivinhação. Aí está, também, para quem souber encontrá-la, a verdadeira chave das evocações e das comunicações com a alma fluídica da terra.

As pessoas cuja influência perigosa se faz sentir num único contato são as que fazem parte de uma associação fluídica; ou que dispõem, quer voluntariamente, quer sem saberem, de uma corrente de luz astral desviada. Aquelas, por exemplo, que vivem no isolamento e na privação de toda comunicação humana e que estão diariamente em relação fluídica com animais reunidos em grande número, como estão normalmente os pastores, esses estão possuídos pelo demônio a que se denomina legião, e, por sua vez, reinam despoticamente sobre as almas fluídicas dos rebanhos confiados à sua guarda: desse modo sua benevolência ou sua malevolência faz prosperar ou morrer o rebanho; podem exercer essa influência de simpatia animal sobre mediadores plásticos humanos mal defendidos por uma vontade fraca ou uma inteligência limitada.

Assim explicam-se os encantamentos operados habitualmente pelos pastores e os fenômenos ainda muito recentes do presbitério de Cideville.

Cideville é um pequeno vilarejo da Normandia onde, há alguns anos, produziram-se fenômenos semelhantes aos que se produziram, depois, sob a influência do senhor Home. Mirville estudou-os cuidadosamente e Gougenot Desmousseaux repetiu todos seus detalhes num livro publicado em 1854 e intitulado: Costumes e Práticas dos Demônios. O que há de notável nesse último autor é que ele parece adivinhar a existência do mediador plástico ou do corpo fluídico. “Com certeza não temos duas almas”, diz ele, “mas talvez tenhamos dois corpos.” Com efeito, tudo o que ele conta pareceria provar essa hipótese. Trata-se de um pastor, cuja forma fluídica infestava um presbitério e que foi ferido à distância pelos golpes desfechados à sua larva astral.

Aqui perguntaremos aos senhores Mirville e Gougenot Desmousseaux se eles tomam esse pastor pelo diabo e se, de perto ou à distância, o diabo, tal como o concebem, pode ser arranhado ou ferido. Na Normandia, até então, quase não eram conhecidas as doenças magnéticas dos médiuns e o infeliz sonâmbulo, que fora preciso tratar e curar, foi rudemente maltratado e até agredido, segundo se diz, não em aparência fluídica, mas em sua própria pessoa, pelo próprio pároco. Aí está, convenhamos, um singular gênero de exorcismo! Se realmente essas violências aconteceram, e se são imputáveis a um eclesiástico que dizem, e que pode ser, credulidade à parte, muito bom e respeitável, reconheçamos que escritores como Mirville e Gougenot Desmousseaux tornam-se de certo modo seus cúmplices.

As leis da vida física são inexoráveis e, em sua natureza animal, o homem nasce escravo da fatalidade; e é à custa de lutas contra os instintos que ele pode conquistar a liberdade moral. Duas existências diferentes, portanto, nos são possíveis na terra: uma fatal, a outra livre. O ser fatal é o joguete ou o instrumento de uma força que ele não dirige: ora, quando os instrumentos da fatalidade se encontram e se chocam, o mais forte destrói ou domina o mais fraco; os seres verdadeiramente libertos não temem nem as bruxarias nem as influências misteriosas.

Dir-nos-ão que o encontro de Caim pode ser fatal para Abel. Sem dúvida; mas semelhante fatalidade é uma felicidade para a santa e pura vítima, é uma infelicidade apenas para o assassino.

Assim como entre os justos existe uma grande comunidade de virtudes e méritos, existe entre os maus uma solidez absoluta de culpabilidade fatal e castigo necessário. O crime está nas disposições do coração. As circunstâncias quase sempre independentes da vontade fazem sozinhas a gravidade dos atos. Se a fatalidade tivesse feito de Nero um escravo, ele se teria tornado um histrião ou um gladiador e não teria incendiado Roma: seria preciso agradecer-lhe por isso?

Nero era cúmplice de todo o povo romano e os únicos responsáveis pela fúria desse monstro eram os que a deveriam ter impedido. Sêneca, Burro, Tráseas, Corbulão, eis os verdadeiros culpados desse reino terrível: grandes homens egoístas ou incapazes! Souberam apenas morrer. Se um dos ursos do Jardim Zoológico escapasse e devorasse algumas pessoas, seria ele ou seus vigias quem deveria prestar contas? Todo aquele que se liberta dos erros comuns deve pagar um resgate proporcional à soma desses erros: Sócrates responde por Anito, e Jesus teve que sofrer um suplício que se igualou em horrores a toda a traição de Judas.

É assim que, ao pagar as dívidas da fatalidade, a liberdade conquistada compra o império do mundo; é a ela que compete ligar ou desligar: Deus entregou-lhe as chaves do céu e do inferno.

Homens que abandonais as bestas a si mesmas, quereis que elas vos devorem.

As multidões escravas da fatalidade só podem gozar da liberdade pela obediência absoluta à vontade dos homens livres; elas devem trabalhar para eles, porque eles respondem por elas.

Mas, quando a besta governa as bestas, quando o cego conduz os cegos, quando o homem fatal governa as massas fatais, o que se deve esperar? Terríveis catástrofes, e elas nunca faltarão.

Ao admitir os dogmas anárquicos de 89, Luís XVI lançara o Estado num declive fatal. A partir desse momento todos os crimes da Revolução pesaram unicamente sobre ele; apenas ele faltara a seu dever. Robespierre e Marat haviam feito o que deviam fazer. Girondinos e Montanheses fatalmente mataram-se uns aos outros e suas mortes violentas foram apenas catástrofes necessárias; houve nessa época apenas um grande e legítimo suplício, verdadeiramente sagrado, verdadeiramente expiatório: o do rei. O princípio da realeza devia cair se esse príncipe demasiado fraco tivesse sido absoluto. Mas era impossível uma transação entre a ordem e a desordem. Não se herda dos que são assassinados, eles são poupados, e a Revolução reabilitou Luís XVI ao assassiná-lo. Após tantas concessões, fraquezas, indignas vilezas, esse homem sagrado uma segunda vez pela desgraça pôde ao menos dizer, ao subir ao cadafalso: a Revolução está julgada, e eu continuo sendo o rei da França!

Ser justo é sofrer por todos os que não o são, mas é viver; ser mau é sofrer por si mesmo sem conquistar a vida, é enganar-se, agir mal e morrer eternamente.

Resumindo: as influências fatais são as da morte, as influências salutares são as da vida. Conforme sejamos mais fracos ou mais fortes na vida, atraímos ou repelimos o malefício. Esse poder oculto não é senão demasiado real; mas a inteligência e a virtude terão sempre os meios de evitar suas obsessões e seus ataques.

CAPÍTULO IV

Mistérios da perversidade

O equilíbrio humano compõe-se de dois atrativos; um pela morte, o outro pela vida. A fatalidade é a vertigem que nos atrai para o abismo; a liberdade é o esforço racional que nos eleva acima das atuações fatais da morte.

O que é um pecado mortal? É uma apostasia de nossa liberdade; é um abandono de nós mesmos às leis materiais da gravidade; um ato injusto é um pacto com a injustiça: ora, toda injustiça é uma abdicação da inteligência. Caímos, então, sob o império da força, cujas reações sempre esmagam tudo o que se afasta do equilíbrio.

O amor pelo mal e a adesão formal da vontade à injustiça são os últimos esforços da vontade expirante. O homem, não importa o que faça, é mais forte que o bruto e não pode, como este, abandonar-se à fatalidade. É necessário que escolha e que ame. A alma desesperada que se acredita apaixonada pela morte está ainda mais viva do que uma alma sem amor. A atividade para o mal pode e deve reconduzir o homem ao bem por contragolpe e reação. O verdadeiro mal sem remédio é a inércia.

Aos abismos da perversidade correspondem os abismos da graça. Freqüentemente Deus fez de celerados santos; nunca fez nada de mornos e de covardes.

Sob pena de reprovação, é preciso trabalhar, é preciso agir. A natureza, aliás, provê para isso, e se não queremos, com toda nossa coragem, ir em direção à vida, ela nos precipita com todas as suas forças para a morte. Os que não querem caminhar, ela os arrasta.

Um homem que poderia ser chamado o grande profeta dos ébrios, Edgar Poe, esse alucinado sublime, esse gênio da extravagância lúcida, descreveu com uma realidade assustadora os pesadelos da perversidade…

“Matei este velho porque era estrábico. Fiz isso porque não deveria ser feito.”

Eis a terrível contrapartida do Credo quia absurdum, de Tertuliano.

Desafiar Deus e injuriá-lo é um último ato de fé. “Os mortos não te louvam, Senhor”, diz o salmista; e poderíamos acrescentar, se ousássemos: “Os mortos não te blasfemam.”

“Oh! meu filho!”, dizia um pai inclinado sobre o leito do filho, caído em letargia após um violento acesso de delírio; “insulta-me; batame, morda-me; sentirei que ainda vives… Mas não fiques para sempre neste silêncio medonho da tumba!”

Um grande crime sempre protesta contra uma grande tepidez. Cem mil padres honestos teriam podido, através de uma caridade mais ativa, prevenir o atentado daquele miserável Verger. A Igreja deve julgar, condenar, punir um eclesiástico escandaloso; mas não tem o direito de abandoná-los aos frenesis do desespero e às tentações da miséria e da fome.

Nada é tão assustador quanto o nada; e se se pudesse jamais formular sua concepção, se fosse possível admiti-lo, o inferno seria uma esperança.

Eis por que a própria natureza procura e impõe a expiação como um remédio; eis por que o suplício suplica, como tão bem o compreendeu esse grande católico chamado conde Joseph de Maistre; eis por que a pena de morte é o direito natural e nunca desaparecerá das leis humanas. A mácula do homicídio seria indelével se Deus não absolvesse o cadafalso; o poder divino abdicado pela sociedade e usurpado pelos celerados pertencer-lhes-ia sem contestação. O assassinato, então, transformar-se-ia em virtude quando exercesse as represálias da natureza ultrajada. As vinganças particulares protestariam contra a ausência da expiação pública, e com os restos do gládio quebrado da justiça a anarquia fabricaria punhais para si.

“Se Deus suprimisse o inferno, os homens fariam outro para desafiá-lo”, dizia-nos um dia um bom padre. Tinha razão; e é por isso que o inferno deseja tanto ser suprimido. Emancipação! tal é o grito de todos os vícios. Emancipação do homicídio pela abolição da pena de morte; emancipação da prostituição e do infanticídio pela abolição do casamento; emancipação da preguiça e do roubo pela abolição da propriedade… Assim gira o turbilhão da perversidade até que chegue a esta fórmula suprema e secreta: Emancipação da morte pela abolição da vida!

É pelas vitórias do trabalho que se escapa às fatalidades da dor. O que chamamos morte é somente o parto eterno da natureza. Ininterruptamente, ela reabsorve e retoma em seu seio tudo o que não nasceu do espírito. A matéria inerte por si mesma só pode existir pelo movimento perpétuo, e o espírito naturalmente volátil só pode durar fixando-se. A emancipação das leis fatais pela adesão livre do espírito ao verdadeiro e ao bem é o que o Evangelho denomina nascimento espiritual; a reabsorção na morada eterna da natureza é a segunda morte.

Os seres não-emancipados são atraídos para essa segunda morte por uma gravidade fatal, arrastam-se uns aos outros, como o divino Michelangelo tão bem nos faz ver em sua grande pintura sobre o juízo final; são invasores e tenazes como pessoas que se afogam, e os espíritos livres devem lutar energicamente contra eles para não serem por eles retidos em seu vôo e rebaixados fatalmente ao inferno.

Essa guerra é tão antiga quanto o mundo; os gregos representavam-na sob os símbolos de Eros e Anteros, e os hebreus pelo antagonismo de Caim e Abel. É a guerra dos titãs e dos deuses. Os dois exércitos estão em toda a parte, invisíveis, mas disciplinados e sempre prontos ao ataque ou à represália. As pessoas ingênuas dos dois partidos, surpresas com as resistências súbitas e unânimes que encontram, acreditam em vastos complôs, sabiamente organizados, das sociedades ocultas e todo-poderosas. Eugène Sue inventa Rodin; pessoas da Igreja falam de iluminados e de maçons; Wronski sonha com seus bandos místicos, e o que há de verdadeiro e sério no fundo de tudo isso é apenas a luta necessária entre a ordem e a desordem, os instintos e o pensamento; o resultado dessa luta é o equilíbrio no progresso e o diabo contribui sempre, contra a sua vontade, para a glória de São Miguel.

O amor físico é a mais perversa de todas as paixões fatais. É o anarquista por excelência; não conhece nem leis, nem deveres, nem verdade, nem justiça. Faria a moça passar por cima do cadáver de seus pais. É uma embriaguez irresistivel, uma loucura furiosa, uma vertigem da fatalidade que procura novas vítimas; a embriaguez de Saturno que quer ser pai para ter crianças a quem devorar. Vencer o amor é triunfar sobre toda a natureza. Submetê-lo à justiça é reabilitar a vida devotando-a à imortalidade; assim, as maiores obras da revelação cristã são a criação da virgindade voluntária e a santificação do matrimônio.

Enquanto o amor é apenas um desejo e um gozo, ele é mortal. Para eternizar-se é preciso que se torne um sacrifício, pois torna-se, então, uma força e uma virtude. É a luta de Eros e Anteros que faz o equilíbrio do mundo.

Tudo o que superexcita a sensibilidade conduz à depravação e ao crime. As lágrimas chamam o sangue. Existem grandes emoções que são como licores fortes, usá-las habitualmente é abusar. Ora, todo abuso das emoções perverte o sentido moral; buscamo-las por elas mesmas, sacrificamos tudo para obtê-las. Uma mulher romanesca se tornará facilmente uma heroína de Tribunal do Júri, chegará talvez ao deplorável e irreparável absurdo de suicidar-se para admirar-se e enternecer-se consigo mesma vendo-se morrer.

Os hábitos romanescos levam as mulheres à histeria e os homens à depressão. Manfred, Renê, Lélia são tipos de perversidade muito mais profunda por racionalizarem seu orgulho doentio e poetizarem sua demência. Perguntamo-nos aterrorizados que monstro poderia nascer do casamento de Manfred e Lélia!

A perda do sentido moral é uma verdadeira alienação; um homem que não obedece à justiça antes de tudo não se pertence mais, caminha sem luz na noite de sua existência, agita-se como num sonho vítima do pesadelo de suas paixões.

As correntes impetuosas da vida instintiva e as fracas resistências da vontade formam um antagonismo tão distinto que os cabalistas acreditaram no embrionato das almas, isto é, a presença num mesmo corpo de várias almas que o disputam entre si e freqüentemente tentam destruí-lo, mais ou menos como os náufragos da Medusa, que no momento em que disputavam a jangada muito estreita, tentavam fazê-la soçobrar.

É certo que alguém ao se tornar servo de uma corrente qualquer de instintos, ou mesmo de idéias, aliena sua personalidade e torna-se escravo desse gênio das multidões que o Evangelho chama Legião.

Os artistas sabem algo sobre isso. Suas freqüentes evocações da luz universal enervam-nos. Tornam-se médiuns, isto é, doentes. Quanto mais o sucesso os faz crescer junto à opinião pública, mais sua personalidade enfraquece; tornam-se sujeitos a acessos, absurdos, invejosos, coléricos; não admitem que outro mérito, mesmo de ordem diferente, possa produzir-se ao lado do seu, e desde que se tornam injustos eximem-se até de serem polidos. Para escapar a essa fatalidade os verdadeiros grandes homens isolam-se de toda camaradagem liberticida e salvam-se dos atritos da vil multidão por uma impopularidade orgulhosa: se Balzac, quando vivo, tivesse sido um homem de conventículo ou de partido, não teria permanecido, após sua morte, o grande universal de nossa época.

A luz não ilumina as coisas insensíveis nem os olhos fechados, ou pelo menos só as ilumina em proveito dos que vêem. A palavra do Gênesis, Que se faça a luz!, é o grito de vitória da inteligência triunfante sobre as trevas. Essa palavra é sublime porque exprime com simplicidade a maior e mais sublime coisa do mundo: a criação da inteligência por si mesma quando, convocando seus poderes, equilibrando suas faculdades, ela diz: Quero imortalizar-me vendo a verdade eterna, que seja a luz! E a luz é. A luz eterna como Deus começa todos os dias para os olhos que se abrem. A verdade será eternamente a invenção e como que a criação do gênio: ele grita: Que seja a luz, e ele próprio é porque ela é. Ele é imortal porque compreendera eterna. Ele contempla a verdade como sua obra porque ela é sua conquista, e a imortalidade como seu triunfo porque ela será sua recompensa e sua coroa.

Mas nem todos os espíritos vêem com justeza porque nem todos os corações querem com justiça. Existem almas para as quais a verdadeira luz parece nunca dever existir. Contentam-se com visões fosforescentes, abortos de luz, alucinações do pensamento, e, apaixonadas por esses fantasmas, temem o dia que os faria fugirem porque sentem que, não sendo o dia feito para seus olhos, voltariam a cair numa profunda escuridão. Assim é que os loucos, no início, temem, depois caluniam, insultam, perseguem e condenam os sábios. É preciso compadecer-se deles e perdoá-los, não sabem o que fazem.

A verdadeira luz repousa e satisfaz a alma, a alucinação, ao contrário, cansa-a e atormenta-a. As satisfações da loucura assemelham-se aos sonhos gastronômicos das pessoas famintas que aguçam sua fome sem nunca saciá-la. Daí nascem as irritações e as perturbações, os desencorajamentos e os desesperos. “A vida sempre nos mentiu”, dizem os discípulos de Werther, “eis por que queremos morrer!” Pobres crianças, não é a morte que vos seria preciso, é a vida. Desde que estais no mundo morreis todos os dias, é à cruel volúpia do nada que deveis pedir o remédio do nada de vossas volúpias? Não, a vida nunca vos enganou, pois não vivestes ainda. O que tomais por vida são as alucinações e os sonhos do primeiro sono da morte!

Todos os grandes criminosos são alucinados voluntários, e todos os alucinados voluntários podem ser fatalmente levados a tornarem-se grandes criminosos. Nossa luz pessoal especializada, concebida, determinada por nossa afeição dominante é o germe de nosso paraíso ou de nosso inferno. Cada um de nós de algum modo concebe, põe no mundo e alimenta seu bom anjo ou seu mau demônio. A concepção da verdade faz nascer em nós o bom gênio; a percepção desejada da mentira é uma incubadora e uma criadora de pesadelos e de vampiros. Cada um deve alimentar seus filhos, e nossa vida consome-se em proveito de nossos pensamentos. Felizes os que reencontram a imortalidade nas criações de sua alma! Ai dos que se exaurem para alimentar a mentira e engordar a morte, pois cada um gozará o fruto de suas obras.

Existem alguns seres inquietos e atormentados cuja influência é turbulenta e a conversa, fatal. Perto deles sentimo-nos irritados e ao deixá-los sentimo-nos encolerizados; entretanto, por uma perversidade secreta, nós os procuramos para afrontar a perturbação e gozar as emoções malévolas que eles nos dão. São doentes contagiosos do espírito de perversidade.

O espírito de perversidade sempre tem por móvel secreto a sede da destruição e por fim o suicídio.

O assassino Eliçabide, segundo suas próprias declarações, não só experimentava uma necessidade selvagem de matar seus parentes e amigos, como também gostaria, se isso fosse possível, e disse-o com suas próprias palavras diante do tribunal, de fazer o globo saltar como uma castanha cozida. Lacenaire, que passava seus dias combinando assassínios para obter meios de passar as noites em ignóbeis orgias, ou nos frenesis do jogo, vangloriava-se abertamente de ter vivido. Chamava a isso viver! E cantava um hino à guilhotina, que chamava sua bela noiva! E o mundo estava repleto de imbecis que admiravam esse celerado! Alfred de Musset, antes de aniquilar-se na embriaguez, desperdiçou um dos primeiros talentos de seu século em contos de fria ironia e desgosto universal; o infeliz fora enfeitiçado pelo respir de uma mulher profundamente perversa, que, após tê-lo morto, acocorou-se sobre seu cadáver como um vampiro e rasgou seu sudário. Perguntávamos um dia a um jovem escritor dessa escola o que provava sua literatura. “Prova”, respondeu-nos franca e ingenuamente, “que é preciso desesperar e morrer.” Que apostolado e que doutrina! Mas eis as conclusões necessárias e rigorosas do espírito de perversidade. Aspirar incessantemente ao suicídio, caluniar a vida e a natureza, invocar todos os dias a morte sem poder morrer, é o inferno eterno, é o suplício de Satã, esse avatar mitológico do espírito de perversidade; a verdadeira tradução da palavra grega diabolos, ou diabo, é o perverso.

Eis um mistério de que os pervertidos não desconfiam. É que só se pode gozar os prazeres da vida, mesmo os materiais, pelo sentido moral. O prazer é a música das harmonias interiores; os sentidos são apenas seus instrumentos, instrumentos que desafinam ao contato com uma alma degradada. Os maus nada podem sentir, porque nada podem amar: para amar, é preciso ser bom. Para eles, portanto, tudo é vazio, e parece-lhes que a natureza é impotente, porque eles próprios o são, duvidam de tudo porque nada sabem, blasfemam contra tudo porque de nada gostam; se afagam, é para emurchecer; se bebem, é para embriagar-se; se dormem, é para esquecer; se acordam, é para entediar-se mortalmente: assim viverá, ou antes, assim morrerá todos os dias aquele que se liberta de toda lei e de todo dever para tornar-se escravo de suas fantasias. O mundo e a própria eternidade tornam-se inúteis para quem se torna inútil para o mundo e para a eternidade.

Nossa vontade, ao agir diretamente sobre nosso mediador plástico, isto é, sobre a porção de luz astral que se especializou em nós e que serve para a assimilação e configuração dos elementos necessários à nossa existência; nossa vontade, justa ou injusta, harmoniosa ou perversa, configura o mediador à sua imagem e dá-lhe aptidões conforme os nossos atrativos. Assim, a monstruosidade moral produz a fealdade física, pois o mediador astral, esse arquiteto interior de nosso edifício corporal, modificado incessantemente segundo nossas necessidades verdadeiras ou factícias. Ele faz crescer o ventre e os maxilares do glutão, crispa os lábios do avarento, torna impudentes os olhares da mulher impura e venenosos os do invejoso e do mau. Quando o egoísmo prevaleceu numa alma, o olhar torna-se frio, os traços duros; a harmonia das formas desaparece e, segundo a especialidade absorvente ou irradiante desse egoísmo, os membros dessecam-se ou ficam comprometidos por uma excessiva gordura. A natureza, ao fazer de nosso corpo o retrato de nossa alma, garantiu tal semelhança para sempre, e retoca-o incansavelmente. Lindas mulheres que não sois bondosas, estai certas de não permanecerdes belas por muito tempo. A beleza é um adiantamento que a natureza faz à virtude: se a virtude não está pronta para o acerto da dívida, a emprestadora recuperará impiedosamente seu capital.

A perversidade, ao modificar o organismo cujo equilíbrio ela destrói, cria ao mesmo tempo a fatalidade das necessidades que impele à destruição do próprio organismo e à morte. Quanto menos o perverso desfruta, mais sede de prazer tem. O vinho é como água para o ébrio, o ouro derrete nas mãos do jogador; Messalina cansa-se sem ficar saciada. A volúpia que lhes escapa transforma-se para eles num longo desejo irritado. Quanto mais seus excessos são homicidas, mais parece-lhes que a suprema felicidade se aproxima… Mais uma golada de licor forte, mais um espasmo, mais uma violência contra a natureza… Ah! finalmente, o prazer! a vida… e seu desejo, no paroxismo de sua insaciável fome, extingue-se para sempre na morte!

QUARTA PARTE

OS GRANDES SEGREDOS PRÁTICOS OU AS REALIZAÇÕES DA CIÊNCIA

Introdução

As altas ciências da Cabala e da magia prometem ao homem um poder excepcional, real, efetivo, realizador, e deve-se encará-las como vãs e mentirosas se não o dão.

Vós julgareis os doutores por suas obras, dizia o mestre supremo, e essa regra de julgamento é infalível.

Se quereis que eu acredite no que sabeis, mostrai-me o que fazeis.

Deus, para elevar o homem à emancipação moral, esconde-se dele e de certo modo abandona-lhe o governo do mundo. Deixa-se adivinhar pelas grandezas e harmonias da natureza, a fim de que o homem se aperfeiçoe progressivamente, sempre ampliando a idéia que faz de seu autor.

O homem conhece Deus apenas pelos nomes que dá a esse Ser dos seres e só o distingue pelas imagens que dele tenta traçar. Assim, ele é de certo modo o criador daquele que o criou. Acredita-se o espelho de Deus e, ampliando indefinidamente sua própria miragem, acredita poder esboçar no espaço infinito a sombra daquele que é sem corpo, sem sombra e sem espaço.

CRIAR DEUS, CRIAR-SE A SI PRÓPRIO, TORNAR-SE INDEPENDENTE, IMPASSÍVEL E IMORTAL: aí está com certeza um programa mais temerário do que o sonho de Prometeu. Pois bem, esse programa é paradoxal apenas na forma que empresta a uma falsa e sacrílega interpretação. Num sentido ele é perfeitamente razoável, e a ciência dos adeptos promete realizá-lo e dar-lhe uma perfeita execução.

O homem, com efeito, cria um Deus conforme à sua própria inteligência e à sua própria bondade, não pode elevar seu ideal mais alto do que lhe permite seu desenvolvimento moral. O Deus que ele adora é sempre seu próprio reflexo aumentado. Conceber o que seja o absoluto em bondade e em justiça é ser ele próprio muito justo e muito bom.

As qualidades do espírito, as qualidades morais são riquezas, e as maiores de todas as riquezas. É preciso adquiri-las pela luta e pelo trabalho. Objetar-nos-ão a desigualdade das aptidões e as crianças que nascem com uma organização mais perfeita. Mas devemos crer que tais organizações são o resultado de um trabalho mais avançado da natureza e que as crianças delas dotadas adquiriram-nas, senão por seus próprios esforços, ao menos pelas obras solidárias dos seres humanos a quem sua existência está ligada. É um segredo da natureza, que nada faz ao acaso; a propriedade das faculdades intelectuais mais desenvolvidas como a do dinheiro e das terras constitui um direito imprescritível de transmissão e de herança.

Sim, o homem é chamado a terminar a obra de seu Criador, e cada um dos instantes por ele empregados para tornar-se melhor ou perder-se é decisivo para toda uma eternidade. É pela conquista de uma inteligência para sempre reta e de uma vontade para sempre justa que ele se torna vivo para a vida eterna, pois que nada sobrevive à injustiça e ao erro, a não ser a pena por sua desordem. Compreender o bem é querê-lo, e, na ordem da justiça, querer é fazer. Eis por que o Evangelho nos diz que os homens serão julgados segundo suas obras.

Nossas obras tanto nos fazem o que somos, que, como já dissemos, nosso corpo sofre modificação com nossos hábitos e, algumas vezes, transformação total de sua forma.

Uma forma conquistada ou suportada torna-se para toda a existência uma providência ou uma fatalidade. Essas figuras estranhas que os egípcios davam aos símbolos humanos da divindade representam as formas fatais. Tífon, por sua boca de crocodilo, está condenado a devorar incessantemente para encher seu ventre de hipopótamo. Assim, por sua voracidade e sua fealdade, é consagrado à destruição eterna.

O homem pode matar ou vivificar suas faculdades pela negligência ou pelo abuso. Pode criar para si faculdades novas pelo bom uso das que recebeu da natureza. Freqüentemente se diz que as afeições não podem ser comandadas, que a fé não é possível a todos, que não se refaz o caráter, e todas essas asserções são verdadeiras apenas para os preguiçosos ou os perversos. Alguém pode se tornar crente, piedoso, amante, devoto, quando sinceramente o quer. Pode-se dar a calma da justeza ao espírito como a onipotência da justiça à vontade. Pode-se reinar no céu pela fé, e na terra pela ciência. O homem que sabe comandar a si próprio é rei de toda a natureza.

Vamos mostrar, neste último livro, por que meios os verdadeiros iniciados tornaram-se mestres de vida comandando a dor e a morte; como operam em si mesmos e nos outros as transformações de Proteu; como exercem as adivinhações de Apolônio; como fazem o ouro de Raimundo Lúlio e de Flamel; como possuem, para renovar sua juventude, os segredos de Postel, o Ressuscitado, e do fabuloso Cagliostro. Vamos dizer, enfim, a última palavra da magia.

CAPÍTULO I

Da transformação. A vara de Circe.

O banho de Medéia. A magia vencida por suas próprias armas.

O grande arcano dos jesuítas e o segredo de seu poder

A Bíblia conta que o rei Nabucodonosor, no auge de seu poder e orgulho, foi repentinamente transformado em besta.

Fugiu para lugares selvagens, pôs-se a pastar a relva, deixou crescer a barba, os cabelos e todo o pêlo do corpo, bem como as unhas, e permaneceu nesse estado durante sete anos.

Em nosso Dogma e Ritual da Alta Magia, dissemos o que pensamos dos mistérios da licantropia, ou seja, da metamorfose dos homens em lobisomens.

Todos conhecem a fábula de Circe e compreendem sua alegoria.

O ascendente fatal de uma pessoa sobre outra é a verdadeira vara de Circe.

Sabe-se que quase todas as fisionomias humanas portam alguma semelhança com um animal, isto é, a assinatura de um instinto especializado.

Ora, os instintos são balanceados pelos instintos contrários e dominados por instintos mais fortes.

Para dominar os carneiros, o cão explora o medo do lobo.

Se vós sois cão, e se quereis que uma linda gatinha vos ame, tendes apenas uma medida a tomar: metamorfosear-vos em gato.

Como? Pela observação, imitação e imaginação. Pensamos que se compreende aqui nossa linguagem figurada, e recomendamos essa revelação a todos os magnetistas; aí está o mais profundo de todos os segredos de sua arte.

Eis sua fórmula em termos técnicos:

“Polarizar sua própria luz animal, em antagonismo equilibrado com um pólo contrário.”

Ou então:

Concentrar em si mesmo as especialidades absorventes para dirigir as irradiantes para uma morada absorvente; e vice-versa.

Esse governo de nossa polarização magnética pode ser feito com o auxílio das formas animais de que falamos, e que servirão para fixar a imaginação.

Demos um exemplo:

Quereis agir magneticamente sobre uma pessoa polarizada como vós, o que sabereis no primeiro contato, se fordes magnetizador; porém, ela é um pouco menos forte que vós: é um rato, sois uma ratazana. Fazei-vos gato, e tomá-la-eis.

Num dos admiráveis contos que não inventou, mas que narrou melhor do que ninguém, Perrault põe em cena um mestre gato que, por seus ardis, induz um ogro a metamorfosear-se em rato; mal ele acabara de fazê-lo, foi devorado pelo gato. Os contos da Mamãe Gansa seriam, como o Asno de Ouro, de Apuleio, verdadeiras lendas mágicas, e ocultariam, sob a aparência pueril, os formidáveis segredos da ciência?

Sabe-se que os magnetizadores dão à água pura, apenas com a imposição das mãos, isto é, de sua vontade expressa por um sinal, as propriedades e o sabor do vinho, dos licores e de todos os medicamentos possíveis.

Sabe-se também que os domadores de animais ferozes subjugam os leões fazendo-se eles mesmos mental e magneticamente mais fortes e mais ferozes que os leões.

Jules Gérard, o intrépido matador de leões da África, seria devorado se tivesse medo. Mas, para não ter medo de um leão, é preciso, por um esforço de imaginação e de vontade, fazer-se mais forte e mais selvagem que o próprio animal; é preciso dizer a si mesmo: O leão sou eu, e este animal diante de mim é apenas um cão que deve sentir medo.

Fourier sonhara os antileões: Jules Gérard realizou essa quimera do sonhador falansteriano.

Mas, para não temer os leões, basta ser um homem corajoso e ter armas, dirão.

Não, isso não basta. É preciso, por assim dizer, conhecer de cor seu leão, calcular as investidas do animal, adivinhar seus ardis, evitar suas garras, prever seus movimentos, numa palavra, ser mestre na profissão de leão, como diria o bom La Fontaine.

Os animais são os símbolos vivos dos instintos e das paixões dos homens. Se tornais um homem temeroso, vós o transformais em lebre; se, ao contrário, impeli-o à ferocidade, fazeis dele um tigre. A vara de Circe é o poder fascinador da mulher; e os companheiros de Ulisses transformados em porcos não são uma história apenas daquele tempo.

Mas nenhuma metamorfose se opera sem destruição. Para transformar um gavião em pomba, é necessário primeiro matá-lo, depois cortá-lo em pedaços, de modo a destruir até o menor vestígio de sua primeira forma, depois fervê-lo no banho mágico de Medéia.

Vede como os hierofantes modernos procedem para realizar a regeneração humana; como fazem, por exemplo, na religião católica para transformarem um homem mais ou menos fraco e apaixonado num estóico missionário da Companhia de Jesus.

Aí está o grande segredo dessa ordem venerável e terrível, sempre desconhecida, freqüentemente caluniada e sempre soberana.

Lede atentamente o livro intitulado os Exercícios de Santo Inácio e vede com que mágico poder esse gênio opera a realização da fé.

Ele ordena a seus discípulos que vejam, toquem, cheirem, degustem as coisas invisíveis; quer que os sentidos sejam exaltados na oração até a alucinação voluntária. Meditais sobre um mistério da fé, Santo Inácio quer primeiramente que construais um lugar, que o sonheis, vejais, toqueis. Se é o inferno, ele vos faz tatear rochas ardentes, nadar em trevas espessas como o pez, coloca em vossa língua enxofre líquido, enche vossas narinas de um abominável mau cheiro; mostra-vos atrozes suplícios, vos faz ouvir gemidos sobre-humanos; diz à vossa vontade para criar tudo isso através de exercícios persistentes. Cada um o faz a seu modo, mas sempre da forma mais capaz de impressioná-lo. Não é mais a embriaguez do haxixe servindo à fraude do Velho da Montanha; é um sonho sem sono, uma alucinação sem loucura, uma visão racional e intencional, uma criação verdadeira da inteligência e da fé. Daí em diante, ao pregar, o jesuíta poderá dizer: É o que vimos com nossos olhos, o que ouvimos com nossos ouvidos, o que nossas mãos tocaram, é isso o que vos anunciamos. O jesuíta assim formado comunga com um círculo de vontades exercitadas como a sua: desse modo, cada um dos padres é forte como a sociedade, e a sociedade é mais forte que o mundo.

CAPÍTULO II

Como se pode conservar e renovar a juventude. Os segredos de Cagliostro.

A possibilidade da ressurreição. Exemplo de Guilherme Postel, dito

o Ressuscitado. De um operário taumaturgo, etc.

Sabemos que uma vida sóbria, moderadamente laboriosa e perfeitamente regular geralmente prolonga a existência. Mas é pouco, a nosso ver, a prolongação da velhice; temos o direito de pedir à ciência que professamos outros privilégios e outros segredos.

Ser por muito tempo jovem, ou mesmo voltar a sê-lo, eis o que pareceria, com razão, desejável e precioso para a maioria dos homens. É possível? É o que vamos examinar.

O famoso conde de Saint-Germain morreu, não duvidamos disso; mas nunca o viram envelhecer. Aparentava sempre quarenta anos, e no auge de sua celebridade afirmava ter mais de oitenta.

Ninon de l’Enclos, tendo atingido uma idade avançada, era ainda uma mulher jovem, bela e sedutora. Morreu sem ter envelhecido.

Desbarrolles, o célebre quiromante, há muito tempo é para todo o mundo um homem de trinta e cinco anos. Sua certidão de nascimento diria outra coisa, se ousasse mostrar-se; mas ninguém acreditaria.

Cagliostro sempre foi visto com a mesma idade, e não apenas pretendia possuir um elixir que devolvia aos idosos, por um instante, todo o vigor da juventude, como também gabava-se de operar a regeneração física por meios que detalhamos e analisamos em nossa História da Magia.

Cagliostro e o conde de Saint-Germain atribuíam a conservação de sua juventude à existência e ao uso da medicina universal, inutilmente procurada por tantos sopradores e alquimistas.

Um iniciado do século XVI, o bom e sábio Guilherme Postel, não afirmava possuir o grande arcano da filosofia hermética; e no entanto, após o terem visto velho e alquebrado, viram-no novamente com uma tez vermelha e sem rugas, barba e cabelos negros, corpo ágil e vigoroso. Seus inimigos pretenderam que ele se maquiava e que tingia os cabelos; pois os zombeteiros e os falsos sábios necessitam de uma explicação qualquer para fenômenos que não compreendem.

O grande meio mágico para conservar a juventude do corpo é impedir a alma de envelhecer, conservando-lhe preciosamente o frescor original de sentimentos e pensamentos que o mundo corrompido denomina ilusões, e a que chamaremos miragens primitivas da verdade eterna.

Acreditar na felicidade da terra, na amizade, no amor, numa Providência materna que conta todos os nossos passos e recompensará todas as nossas lágrimas é ser perfeitamente ingênuo, dirá o mundo corrompido; e não vê que o ingênuo é ele, que se acredita forte privando-se de todas as delícias da alma.

Acreditar no bem da ordem moral é possuir o bem: e é por isso que o Salvador do mundo prometia o reino do céu aos que se tornassem semelhantes às criancinhas. O que é a infância? É a idade da fé. A criança ainda nada sabe da vida; desse modo, resplandece de imortalidade confiante. Como poderia duvidar da dedicação, da ternura, da amizade, do amor, da Providência, quando está nos braços de sua mãe?

Fazei-vos crianças de coração e permanecereis jovens de corpo.

As realidades de Deus e da natureza superam infinitamente em beleza e bondade toda a imaginação dos homens. Assim, os empedernidos são pessoas que nunca souberam ser felizes; e os desiludidos provam, por seus dissabores, que beberam apenas em fontes lamacentas. Para gozar os prazeres, mesmo sensuais, da vida, é preciso ter o sentido moral; e os que caluniam a existência certamente deles abusaram.

A alta magia, como provamos, reconduz o homem às leis da mais pura moral. Vel sanctum invenit, vel sanctum facit, disse um adepto; pois ela nos faz compreender que, para ser feliz, mesmo neste mundo, é preciso ser santo.

Ser santo! é fácil dizer; mas como dar-se a fé, quando não se acredita mais? Como reencontrar o gosto da virtude num coração tornado insípido pelo vício?

Trata-se aqui de recorrer aos quatro verbos da ciência: saber, ousar, querer e calar-se.

É preciso impor silêncio aos dissabores, estudar o dever e começar por praticá-lo como se o amasse.

Vós sois incrédulo, por exemplo, e gostaríeis de tornar-vos cristão.

Fazei os exercícios de um cristão. Orai regularmente, servindo-vos das fórmulas cristãs; aproximai-vos dos sacramentos supondo a fé, e a fé virá. Aí está o segredo dos jesuítas, contido nos exercícios espirituais de Santo Inácio.

Por exercícios análogos, um tolo, se o quisesse com perseverança, tornar-se-ia um homem inteligente.

Mudando-se os hábitos da alma, mudam-se certamente os do corpo: já o dissemos e explicamos como.

O que contribui, sobretudo, para envelhecer-nos tornando-nos feios são os pensamentos rancorosos e amargos, os julgamentos desfavoráveis que fazemos dos outros, nossas raivas por orgulho ferido e paixões malsatisfeitas. Uma filosofia benevolente e doce evitar-nos-ia todos esses males.

Se fechássemos os olhos aos defeitos do próximo, levando em conta apenas suas boas qualidades, encontraríamos o bem e a benevolência em toda a parte. O homem mais perverso tem seu lado bom e abranda-se quando se sabe abordá-lo. Se nada tivésseis em comum com os vícios dos homens, nem mesmo os perceberíeis. A amizade e as dedicações que ela inspira encontram-se até nas penitenciárias e nas prisões de forçados. O horrível Lacenaire devolvia fielmente o dinheiro que lhe haviam emprestado, e várias vezes teve atos de generosidade e beneficência. Não tenho dúvidas de que na vida criminosa de Cartouche e Mandrin tenha havido lances de virtude capazes de tirar lágrimas dos olhos. Nunca houve ninguém totalmente mau nem totalmente bom. “Ninguém é bom, a não ser Deus”, disse o melhor dos mestres.

O que tomamos em nós por zelo da virtude é freqüentemente apenas um secreto amor-próprio dominador, um ciúme dissimulado e um instinto orgulhoso de contradição. “Quando vemos desordens manifestas e pecadores escandalosos”, dizem os autores da teologia mística, “cremos que Deus os submete a maiores provas do que nós, que certamente, ou pelo menos muito provavelmente, não as merecemos, e que faríamos bem pior em seu lugar.”

A paz! a paz! Tal é o bem supremo da alma, e foi para nos dar esse bem que Cristo veio ao mundo.

Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens que desejam o bem!, clamavam os espíritos do céu quando o Salvador acabava de nascer.

Os antigos pais do cristianismo contavam um oitavo pecado capital: a tristeza.

De fato, o próprio arrependimento para o verdadeiro cristão não é uma tristeza, é um consolo, uma alegria e um triunfo. “Queria o mal e não o quero mais, estava morto e estou vivo. O pai do filho pródigo matou o novilho gordo porque seu filho voltou, que pode fazer o filho pródigo? Chorar, um pouco de confusão, mas sobretudo de alegria!

Existe apenas uma coisa triste no mundo, é a loucura e o pecado. Visto que estamos livres, riamos e gritemos de alegria, pois estamos salvos e todos os mortos que nos amam regozijam-se no céu!

Todos trazemos em nós um princípio de morte e um princípio de imortalidade. A morte é a besta, e a besta sempre produz a tolice. Deus não ama os tolos, pois seu espírito divino denomina-se espírito de inteligência. A tolice expia pela dor e escravidão. O bastão é feito para as bestas.

Um sofrimento é sempre uma advertência, tanto pior para o que não sabe compreender. Quando a natureza puxa a corda é porque estamos andando de lado, quando bate é porque o perigo urge. Ai, então, de quem não reflete!

Quando estamos maduros para a morte, deixamos a vida sem pesar e nada nos faria retornar; mas quando a morte é prematura a alma lamenta a perda da vida, e um taumaturgo hábil poderia chamá-la de volta ao corpo. Os livros sagrados indicam-nos o procedimento que se deve, então, adotar. O profeta Elias e o apóstolo São Paulo empregaram-nos com sucesso. Trata-se de magnetizar o defunto colocando os pés sobre seus pés, as mãos sobre suas mãos, a boca sobre sua boca, depois reunir toda a vontade e chamar a si longamente a alma evadida com todas as benevolências e carinhos mentais de que se é capaz. Se o operador inspira à alma defunta muita afeição, ou um grande respeito, se no pensamento que lhe comunica magneticamente o taumaturgo pode persuadi-la de que a vida lhe é ainda necessária e que dias felizes lhe estão ainda prometidos aqui embaixo, ela certamente retomará, e para os homens de ciência vulgar a morte aparente terá sido apenas uma letargia.

Foi após uma letargia semelhante que Guilherme Postel, chamado de volta à vida pelos cuidados da mãe Joana, reapareceu com uma juventude nova e passou a chamar-se Postel, o Ressuscitado, Postellus restitutus.

No ano de 1799, havia no subúrbio de Santo Antônio, em Paris, um ferrador que se fazia passar por adepto da ciência hermética, chamava-se Leriche e passava por ter operado, pela medicina universal, curas milagrosas e até mesmo ressurreições. Uma dançarina da ópera, que acreditava nele, um dia foi procurá-lo em lágrimas e disse-lhe que seu amante morrera. O senhor Leriche acompanhou-a à casa mortuária. Quando entrava, uma pessoa que saía disse-lhe: “É inútil o senhor subir, ele morreu há seis horas.” “Não importa”, disse o ferrador, “já que eu vim, vou vê-lo.” Subiu, encontrou um cadáver com o corpo todo gelado, exceto na cavidade do estômago, onde ele acreditou sentir ainda um pouco de calor. Mandou acender um grande fogo, operou fricções em todo o corpo com toalhas quentes, esfregou-o com medicina universal diluída em álcool (sua pretensa medicina universal devia ser um pó mercurial análogo ao quermes das farmácias), enquanto isso a amante do morto chorava e chamava-o à vida com as mais ternas palavras. Após uma hora e meia de semelhantes cuidados, Leriche pôs um espelho diante do rosto do paciente e achou-o levemente embaçado. Os cuidados foram redobrados e logo houve um sinal de vida mais acentuado; colocaram-no, então, num leito bem aquecido e poucas horas depois ele retomara inteiramente à vida. Esse ressuscitado chamava-se Candy, viveu, desde então, sem nunca adoecer. Em 1845, vivia ainda e morava na praça Chevalier-du-Guet, n° 6. Contava sua ressurreição a quem quisesse ouvir, e provocava o riso dos médicos e dos membros do conselho profissional de seu bairro. O bom homem consolava-se à maneira de Galileu e respondia-lhes: “Oh! riam o quanto quiserem. Tudo o que sei é que o médico-legista tinha vindo, que a inumação estava permitida, que dezoito horas mais tarde iam me enterrar e que aqui estou.”

CAPÍTULO III

O grande arcano da morte

Entristecemo-nos com freqüência ao pensar que a mais bela vida deve terminar, e a aproximação deste terrível desconhecido a que se denomina morte faz com que nos enfastiemos com todas as alegrias da existência.

Por que nascer, se se deve viver tão pouco? Por que educar com tantos cuidados crianças que morrerão? Eis o que pergunta a ignorância humana em suas mais freqüentes e mais tristes dúvidas.

Eis também o que vagamente se pode perguntar o embrião humano ao aproximar-se o nascimento que vai lançá-lo num mundo desconhecido, despojando-o de seu invólucro protetor. Estudemos o mistério do nascimento e teremos a chave do grande arcano da morte.

Lançado pelas leis da natureza no ventre de uma mulher, o espírito encarnado acorda aí lentamente, e com esforço cria em si órgãos indispensáveis mais tarde, mas que, à medida que crescem, aumentam seu mal-estar na situação presente. O tempo mais feliz da vida do embrião é aquele em que, sob a simples forma de uma crisálida, estende à sua volta a membrana que lhe serve de abrigo e que nada com ele num fluido nutriente e conservador. Ele é, então, livre e impassível, vive da vida universal e recebe o cunho das lembranças da natureza que determinarão, mais tarde, a configuração de seu corpo e a forma dos traços de seu rosto. Essa idade feliz poderia chamar-se a infância do embrião.

A seguir vem a adolescência, a forma humana torna-se distinta e o sexo determina-se, um movimento opera-se no ovo materno semelhante aos vagos devaneios da idade que sucede à infância. A placenta, que é o corpo externo e real do feto, sente germinar em si algo de desconhecido que já tende a escapar-se, rompendo-a. A criança, então, entra mais distintamente na vida dos sonhos, seu cérebro, invertido como um espelho de sua mãe, reproduz com tanta força as imaginações desta, que comunica sua forma aos próprios membros. Sua mãe, então, é para ele o que Deus é para nós, é uma providência desconhecida, invisível, a que ele aspira a ponto de identificar-se em tudo com o que ela admira. Está preso a ela, vive através dela e não a vê, nem mesmo pode compreendê-la, e se pudesse filosofar talvez negasse a existência pessoal e a inteligência dessa mãe que para ele ainda é apenas uma prisão fatal e um aparelho conservador. Pouco a pouco, no entanto, essa sujeição incomoda-o, agita-se, atormenta-se, sofre, sente que sua vida vai terminar. Chega uma hora de angústia e convulsão, seus liames desprendem-se, sente que vai cair no abismo do desconhecido. Está feito, ele cai, uma sensação dolorosa oprime-o, um frio estranho invade-o, solta um último suspiro que se transforma num primeiro grito; morreu para a vida embrionária, nasceu para a vida humana!

Na vida embrionária, parecia-lhe que a placenta era seu corpo, e de fato era seu corpo especial embrionário, corpo inútil para uma outra vida e que deve ser rejeitado como uma imundície no instante do nascimento.

Nosso corpo na vida humana é como um segundo invólucro inútil para a terceira vida e é por isso que o rejeitamos no instante de nosso segundo nascimento.

A vida humana comparada à vida celeste é um verdadeiro embrionato. Quando as más paixões nos matam, a natureza aborta e nascemos antes do tempo para a eternidade, o que nos expõe à dissolução terrível a que São João chama segunda morte.

Segundo a tradição constante dos extáticos, os abortos da vida humana permanecem nadando na atmosfera terrestre que eles não podem ultrapassar e que aos poucos os absorve e os afoga. Têm a forma humana, mas sempre imperfeita e truncada: a um falta a mão, a outro um braço, este já tem só o tronco, este último é uma cabeça pálida que rola. O que os impediu de subirem ao céu foi um ferimento recebido durante a vida humana, ferimento moral que causou uma disformidade física e, por esse ferimento, pouco a pouco toda sua existência se vai.

Logo, sua alma imortal ficará nua e, para esconder sua vergonha criando a qualquer preço um novo véu, será obrigada a arrastar-se nas trevas exteriores e a atravessar lentamente o mar morto, isto é, as águas adormecidas do antigo caos.

Essas almas feridas são as larvas do segundo embrionato, alimentam seu corpo aéreo com o vapor do sangue propagado e temem a ponta das espadas. Freqüentemente ligam-se aos homens viciados e vivem de sua vida como o embrião vive no seio da mãe; podem, então, tomar as mais horríveis formas para representar os desejos desenfreados dos que as alimentam, e são elas que aparecem sob a forma de demônios aos miseráveis operadores das obras sem nome da magia negra.

Essas larvas temem a luz, sobretudo a luz dos espíritos. Um clarão de inteligência basta para fulminá-las e precipitá-las nesse mar morto que não se deve confundir com o lago Asfaltite, na Palestina. Tudo o que aqui revelamos pertence à tradição hipotética dos videntes e só pode ser afirmado diante da ciência em nome dessa filosofia excepcional que Paracelso chamava a filosofia da sagacidade, philosophia sagax.

CAPÍTULO IV

O grande arcano dos arcanos

O grande arcano, isto é, o segredo indizível inexplicável, é a ciência absoluta do bem e do mal.

“Quando tiverdes comido o fruto desta árvore, sereis como deuses”, diz a serpente.

“Se comerdes, morrereis”, responde a sabedoria divina.

Assim, o bem e o mal frutificam numa mesma árvore e brotam de uma mesma raiz.

O bem personificado é Deus.

O mal personificado é o diabo.

Saber o segredo ou a ciência de Deus é ser Deus.

Saber o segredo ou a ciência do diabo é ser o diabo.

Querer ser ao mesmo tempo Deus e diabo é absorver em si a antinomia mais absoluta, as duas forças contrárias mais tensas; é querer abrigar um antagonismo infinito.

É beber um veneno que apagaria os sóis e que consumiria mundos.

É vestir a túnica devorante de Dejanira.

É votar-se à mais pronta e mais terrível de todas as mortes.

Ai daquele que quer saber demais! Pois se a ciência excessiva e temerária não o matar o tornará louco!

Comer o fruto da árvore da ciência do bem e do mal é associar o mal ao bem e assimilá-los um ao outro.

É cobrir com a máscara de Tífon o rosto irradiante de Osíris.

É erguer o véu sagrado de Ísis, é profanar o santuário.

O temerário que ousa olhar o sol sem sombra torna-se cego e, então, para ele o sol é negro!

É proibido contarmos mais, terminaremos nossa revelação pela figura de três pentáculos.

Essas três estrelas dizem o bastante, pode-se compará-las àquelas que desenhamos no início de nossa história da magia, e reunindo as quatro será possível chegar a entrever o grande arcano dos arcanos.

Primeiro Pantáculo, a estrela branca

A estrela dos Três Magos

Segundo Pantáculo, a estrela negra

A má estrela

Terceiro Pentáculo, a estrela vermelha

Pentagrama do divino Paracleto

Agora, para completar nossa obra, resta-nos dar a grande chave de Guilherme Postel.

Essa chave é a do tarô. Vêem-se aí os quatro naipes, paus, copas, espada, ouros ou círculo, que correspondem aos quatro pontos cardeais do céu e aos quatro animais ou signos simbólicos, os números e as letras dispostos em círculo, depois os sete signos planetários com a indicação de sua tríplice repetição expressa nas três cores, para significar o mundo natural, o mundo humano e o mundo divino, cujos emblemas hieroglíficos compõem os vinte e um grandes trunfos de nosso jogo atual de tarô.

No centro do anel, vê-se o duplo triângulo formando a estrela ou selo de Salomão, é o ternário religioso e metafísico análogo ao ternário natural da geração universal na substância equilibrada.

c

s

t

n h v k t n h k t

a

h

,

n h v k t s n t h u

s u t h t h u s u t h t h

Em volta do triângulo está a cruz que divide o círculo em quatro partes iguais, assim os símbolos da religião reúnem-se às linhas da geometria, a fé completa a ciência e a ciência dá a razão da fé.

Com o auxílio dessa chave pode-se compreender o simbolismo universal do antigo mundo e comprovar suas surpreendentes analogias com nossos dogmas. Reconhecer-se-á assim que a revelação divina é permanente na natureza e na humanidade; sentir-se-á que o cristianismo não trouxe senão a luz e o calor ao templo universal ao fazer descer nele o espírito de caridade que é a vida do próprio Deus.

A Chave do Grande Arcano

EPÍLOGO

Graças vos sejam dadas, meu Deus, porque vós me chamasses a essa admirável luz. Sois a inteligência suprema e a vida absoluta desses números e dessas forças que vos obedecem para povoar o infinito com uma criação inesgotável. As matemáticas vos provam, as harmonias vos cantam, as formas passam e vos adoram!

Abraão conheceu-vos, Hermes adivinhou-vos, Pitágoras calculou vossos movimentos, Platão aspirava a vós em tolos os sonhos de seu gênio; mas um único iniciador, um único sábio vos revelou aos filhos da terra, um único pôde dizer de vós: Meu pai e eu somos apenas um; glória seja, pois, para ele, pois que toda sua glória é para vós!

Pai, vós o sabeis, aquele que escreve estas linhas muito lutou e sofreu; suportou a pobreza, a calúnia, a proscrição odiosa, a prisão, o abandono dos que amava, e, no entanto, nunca se julgou infeliz, porque restava-lhe por consolo a verdade e a justiça!

Vós sois o único santo, Deus dos corações verdadeiros e das almas justas, e sabeis se algum dia acreditei estar puro diante de vós; fui como todos os homens o joguete das paixões humanas, depois venci-as, ou antes, venceste-as em mim, e destes-me, para que aí repousasse, a paz profunda dos que buscam e ambicionam a vós somente.

Amo a humanidade porque os homens, enquanto não são insensatos, nunca são maus a não ser por erro ou fraqueza. Amam naturalmente o bem e é por esse amor, que lhes destes como um sustentáculo em meio a suas provações, que devem ser reconduzidos cedo ou tarde ao culto da justiça pelo amor da verdade.

Que meus livros vão agora onde Vossa Providência os enviar. Se contiverem as palavras de vossa sabedoria, serão mais fortes que o esquecimento, se ao contrário contiverem apenas erros, sei ao menos que meu amor pela justiça e pela verdade lhes sobreviverá, e que assim a imortalidade não pode deixar de recolher as aspirações e os votos de minha alma que criastes imortal!

Eliphas Levi

FIM

Postagem original feita no https://mortesubita.net/alta-magia/a-chave-dos-grandes-misterios/

A Clássica Paternidade: Venom

Prélude: Um bocado de História

Trata-se dalgo salutar e corriqueiro principiar qualquer estudo a partir das  causas daquilo o qual se falará. Portanto, arranja-se natural começar-se a  série de escritos e apreciações musicais entorno do que, hoje, convencionou-se nomear Black Metal a partir de sua teórica origem.

Contudo, a tarefa  genealógica não se assoma tão fácil quanto um pressado entusiasta ou leviano interessado no gênero imaginam. Fora do Senso Comum histórico e “enciclopédico” do gênero existe uma infinidade de leituras e perspectivas possíveis,cada uma delas pavoneando-se saber a insofismável verdade do primum movens [primeiro motor;causa primeira] do estilo. Cada uma destas posturas  detém suas próprias justificativas, atináveis provas e pungentes argumentos para estipularem aqui ou acolá o ponto primeiro de surgimento do “Metal Negro”. Dessarte,desvela-se cousa natural que, nessa breve e introdutória apresentação histórica, atenha-se a expor as prncipais “linhas-de-pensamento” neste sentido para que a posteriori o leitor seja compelido a extrair suas próprias conclusões e posturas face o exposto.

Abaixo, partir-se-á à exposição da cogitação majoritária nesse campo musical-historiográfico: Aquela que posta a banda inglesa “Venom” como o autêntico e genuíno progenitor do Black Metal.

Aula 1: A Clássica “Paternidade”:“ Venom

No final da década de 1970 uma cousa far-se-ia certa de inferir quando se tratava da, então infante, cena  Heavy Metal: O Diabo  era  um fortíssimo e presente elemento estético, porém como figura ambígua. Vide,por exemplo, os seguintes versos retirados  da canção Black Sabbath lançada em  lp pelos homônimos e incontestáveis criadores do Heavy Metal:

“Big black shape with eyes of fire
Telling people their desire
Satan’s sitting there,he’s smiling
Watch those flames get higher and higher
Oh no,no,please God help me!

“Enorme e negra forma com olhos de fogo
Às pessoas dizendo seus desejos
Acolá Satã se senta,sorrindo
Vede aquelas chamas ardendo mais e mais
Óh!não,não,por favor Deus,me ajude!”
(tradução nossa)

Aqui, claramente, o que está em jogo é uma perspectiva de Satã como um mero e inevitável “Senhor de Todo-Pecado e Malevolência”, sempre corporalmente desviando  à Humanidade de sua “senda natural” a qual no fundo está direcionada a Deus. Decerto, pode-se argumentar que a sombria tessitura musical, vocais desesperados de Ozzy Osbourne (vocalista da banda, então) e aparente inexorabilidade do Mal nas letras levar-nos-iam a conceber que o grupo faz-se pessimista e, larga medida, articulado a uma perspectiva diabólica da imanência. Porém, mesmo que se aceite esta ótica a qual tende a instilar os primeiros álbuns setentistas do “Black Sabbath” com tais tonalidades de pessimismo e “gnosticismo” naquilo que visualizam de assombrado na Existência,de forma indubitável Satã ainda é encarado na disposição mosaica e repugnante que o Cristianismo construiu-lhe ao longo dos séculos, principalmente, durante à Idade Média .

Capturado por este cenário do nascente Heavy Metal e atração estética pelo satanismo imagético, a tríade inglesa composta pelo baixista/vocalista “Cronos” (Conrad Thomas Lant), guitarrista “Mantas”(Jeffrey Dunn) e o baterista “Abaddon” (Anthony Bray) fazem seu primeiro lançamento oficial com o nome de “Venom” (anteriormente, a banda chamava-se “Guillotine”): “Welcome to Hell”.

Apesar de toda filiação  Heavy Metal e seu apreço comum pelos primeiros conjuntos do gênero,o “Venom” radicalizou e inverteu alguns paradigmas na época vigentes dentro do gênero. Uma das principais inversões estéticas, acontece justamente na relação lírica com o satanismo. A própria graça de seu debut, “Welcome to Hell”(1981), já dá o tom desta a citada inversão. O inferno, a dimensão de abrigo de Satã e sua corte pecaminosa, apresenta-se dando às boas-vindas, a saudar o Homem que defronte deste desvela-se. Tal saudação, entretanto, não se constitui algo de jocoso ou apto a carregar um afeto pessimista. O inferno saúda seus orgulhosos  Sons of Satan [Filhos de Satã], aqueles que, como se infere na música homônima a qual abre o álbum,desejam Satã como força positiva e apaziguadora da desesperação espiritual :

“Put away all your virtues,
Stop your climbing the walls,
Just sign your name on the paper,
We’ll have ourselves a ball.

“Livra-te de todas tuas virtudes,
Cessa tua desesperada inquietação,
Apenas assina teu nome no papel,
Uma culminância dar-nos-emos.”
(tradução nossa)

Como mesmo desvelam os versos  excertados,“vender sua alma” [sign your name on the paper] representa o fim da angústia  metafísica[stop your climbing the walls], purgar-se das sufocantes “virtudes” cristãs [put away all your virtues] e celebrar o si-próprio [we’ll have ourselves a ball]. Logo, enredar-se nas ditas forças das trevas,na ótica do “Venom”,traduz-se num festejo e aceitação de si, daquilo que lhe constitui em oposição ao ascetismo e sofrimento espiritual inventado do Cristianismo. Destarte, a aproximação com os impulsos estéticos ditos macabros da Existência, como no caso do “Black Sabbath”, descortina-se igualmente inalienável e tergivesado duma aguda imanência, todavia o modo de manifestação destes arranja-se distinto. O satânico não é mais motivo de uma reação, um sofrimento daquele que é mero paciente, surdina-se em ação secundária, re-age à Vida sinistra. Ora, potencializa-se no Homem a chance de agir,pôr-se agente duma atitude primária e afirmativa numa vivência diabólica. Esta sorte de pendor existencial satânico-afirmativo, o qual se perpetuaria por todos os lançamentos do trio em sua fase clássica (1981-1986), significou um novo fitar sobre Satã e temas correlatos dentro do Heavy Metal. Músicas como a dita “Sons of Satan”, “Leave me in Hell”, “In League with Satan”, “At War with Satan” e tantas outras desta época de maior furor criativo do “Venom” viriam a moldar a postura lírica de grã parte da vindoura cena blackster com sua afetividade de afirmação em Satã e no que lhe é próprio.

Importante elemento outro trazido à baila pelo “Venom”, quiçá pela prima vez  no cenário metálico,arranja-se o uso de pseudônimos infernais e pagãos para os componentes de uma banda.

  • Jeffrey Dunn assume o epíteto de “Mantas” – Grafia incorreta da divindade etrusca “Mantus”,a qual se punha consorte de Mania e regente do Submundo na Eneida do romano poeta Virgílio.
  • Anthony Bray se auto-nomeia “Abaddon” – Segundo o 9:1-11 do Apocalipse  de João,comporta-se o rei dos gafanhotos e o anjo do Poço Sem-Fundo. Portanto,comumente associado na demonologia como um “demônio destrutor”.
  • Por fim, Conrad Thomas Lant é  “Cronos” – Ortografia  equivocada para o titã e tirano heleno “Cronus”, personificação dos efeitos devastadores do Tempo.

Com tais macabros nomes infernais e pagãos, o trio logra toda sua vida artística gerando,desta maneira, uma sensação de apartamento dessa face às suas vidas prosaicas, como se dalgum modo suas produções artísticas representassem um outro nível de experimentação vital, um “duplo-infernal”. Em uma analítica mais perfunctória, os pseudônimos servem também ao modo de apresentação e amostração imediata do que se trata a proposta estética e “ideológica” da horda.

Este “auto-batismo demoníaco” exerce,dentro da historiografia ulterior do Black Metal, um fascínio porventura maior do que Dunn, Bray ou Lant imaginaram ao se declararem demônios e deidades sombrias. Bandas, hoje coletivamente tidas como  blacksters, perpetuaram esta prática do “Venom” tornando-a um lugar-comum e apanágio  do gênero conforme seus componentes passaram a assumir graças sinistras e infernais para si, como, por exemplo, ícones como “Euronymous” do “Mayhem” e “Fenriz” do “Darkthrone”.

A contribuição por certo mais propalada, inquestionável e penetrante do “Venom” à formação do Black Metal, parece ter vindo de modo nominal. Em seu segundo álbum,“Black Metal”(1982),a banda marca de modo irresilível a historiografia do Heavy Metal dando ao nascente gênero mais satânico da música pesada uma graça,classificação que se perpetuaria até os dias de hoje.

Instrumental e liricamente o conjunto manteve neste álbum as mesmas bases e adjetivos do seu primeiro e anterior lp, mas, desta feita, a música crua, afirmativo-demoníaca  e, como diz a letra de  Black Metal, “contra todos os modismos” [against the odds]  musicais ganha, pela prima vez, uma definição  que, com o tempo, torna-se um novo conceito para grupos ainda mais extremos musicalmente falando.

À parte dos citados e fortes pontos de influência na gênese do  Black Metal,verdade seja dita,“Venom” teve pouco mais a ver, principalmente nosquesitos músico-instrumental e vocal, com o nascente gênero. Seu som assemelhava-se mais a um Motörhead mais sujo ou a uma mais violenta abordagem do NWOBHM [New Wave of British Heavy Metal], e, como atesta o apreço de bandas, então jovens, como  “Metallica” e “Slayer” pelo “Venom”, seu tom punha-se mais no  recém-surgido Thrash Metal do que  naquilo depois entendido como  Black Metal. As  decerto espetaculares e vanguardistas inovações executivas de “Cronos” com o baixo-elétrico ao dispor o instrumento mais como uma guitarra do que um mero baixo de quatro cordas propriamente dito,por exemplo, exerceu parco impacto no desvelar primal do  Black Metal. Desconstruções executivo-instrumentais como as causadas por Lant, tiveram muito mais penetração no novo tratamento dispendido ao mesmo instrumento em grupos Thrash, os quais, com mais técnica e racionalidade, souberam lapidar a idéia original de  desterritorializar o baixoelétrico para pô-lo num novo destaque e encerro.

No entanto, não se tratou do vocal pouco distorcido e monstruoso de “Cronos”, o cabelo louro picotado de “Mantas” ou o instrumental mais thrasher do “Venom” que causou sua derrocada. O duro e irrecuperável golpe sofrido pelo conjunto na segunda metade da década de 1980, adveio com uma série de litígios internos durante a composição de seu quarto álbum, “Possessed”(1985), e subseqüente  dissolvição da “satânica trindade original” posposta a turnê de promoção do lp. A partir disto, o “Venom” tornou-se uma banda tão-só contingente e não mais a “infernal máquina” necessária como se postou de 1981 a 1986. Num espaço muito curto de tempo, o  “Venom” pôs-se um grupo insosso e  incapaz de manter uma sólida formação por muito Delta-Tempo. A própria reunião da formação original para uma série de espetáculos, dos quais um deles foi registrado em áudio e vídeo no pack “Second Coming” (1996) e um álbum de estudio, “Cast in Stone”(1997), provou-se um procedimento contrafeito, efêmero e tomado pelo  comercialismo que pairava entre antigas bandas de Metal com seus hipotéticos “regressos” de formações originais ou ditas “clássicas” na segunda metade da década de 1990 e início do século XXI. O “Venom” provou-se uma, espetacularmente valiosa, relíquia no fantástico “Museu do  Heavy Metal”, inalienável participante ativo na confecção daquilo hoje entendido por Black Metal e,acima de tudo,uma triste história de efemeridade estético-criativa.

Lição de Casa

Apreciar a discografia recomendada antes da próxima aula.  Deixe nos comentários desta página suas percepções sobre estas obras:

1981 – “Welcome to Hell.” – O álbum foi relançado em 2002 pela Castle Music/Sanctuary com onze incríveis  bonus tracks da fase áurea da banda.Entre elas,fabulosas versões demo e alternativas de suas músicas,bem como B’sides raros.

 

1982 – “Black Metal.” – O álbum foi relançado em 2009 pela Sanctuary com onze extraordinárias bonus tracks da fase áurea da banda. Entre elas,fabulosas versões alternativas de suas músicas, bem como B’sides raros.Para tornar ainda mais atrativo tal lançamento,um considerável número de cópias vinha com um  dvd como bônus contendo um impressionante  show da banda em 1984 (“The 7th Date of Hell – Live at Hammersmith Odeon” ) e três promo videos de entonces.


1984 – “At War With Satan.”  – O álbum foi relançado em 2002 pela Castle Music/Sanctuary com oito estupendas bonus tracks da fase áurea da banda.Entre elas,fabulosas versões alternativas de suas músicas,bem como B’sides raros.

 

1985 – “Possessed.” – O álbum foi relançado em 2002 pela Castle Music/Sanctuary com seis estupendas  bonus tracks da fase áurea da banda.Entre elas,fabulosas versões ao vivo e alternativas de suas músicas,bem como B’sides raros.

1986 – “Eine Kleine Nachtmusik.” – Gravado ao vivo em dois espetáculos distintos da turnê do “Possessed” (1985-1986) com a formação original.

Autor:R.C.Zarco – Escola de Black Metal

[…] Postagem original feita no https://mortesubita.net/musica-e-ocultismo/a-classica-paternidade-venom/ […]

Postagem original feita no https://mortesubita.net/musica-e-ocultismo/a-classica-paternidade-venom/