A aurora de Malévola (parte final)

« continuando da parte 1

Face a face

O período em que Aurora cresce em meio a floresta encantada, sendo cuidada, de forma oculta, por Malévola e seu corvo fiel, é na minha opinião o ponto alto do filme. Elas chegam a se encontrar quando Aurora ainda é criança, mas é na cena em que Malévola se revela, ainda que de forma relutante, para Aurora, que chegamos a um dos grandes momentos da história.

Malévola está escondida nas sombras dentre as árvores, enquanto Aurora está sob a luz que penetra mesmo naquele canto sombrio da floresta. Lembremos aqui que a própria floresta vai se tornando sombria na medida em que Malévola, sem suas asas e nutrindo o seu ódio pelo rei larápio, vai se tornando mais e mais reclusa. Ora, a única coisa que impede que Malévola se torne definitivamente a bruxa má, e deixe de ser uma fada, é a presença de Aurora, a quem ela chama de “peste” mas, ainda assim, nutre uma afeição crescente e verdadeira.

Neste encontro entre as duas, Malévola supõe que seria Aurora quem teria medo dela, mas é Aurora quem indaga se Malévola tinha receio em se revelar, e em seguida diz, “Eu sei quem é você, você é a sombra que sempre esteve por perto, cuidando de mim, você é a minha fada madrinha”. Para compreender a profundidade deste encontro, devemos lembrar do que dizia Joseph Campbell, grande estudioso de mitologia do século XX [1]:

Há uma velha história que ainda é válida. A história da busca. Da busca espiritual… Que serve para encontrar aquela coisa interior que você basicamente é. Todos os símbolos da mitologia se referem a você. Você enfrentou o seu monstro interior? Você renasceu? Você morreu para a sua natureza animal e voltou à vida como uma encarnação humana?

Ora, sob este ponto de vista podemos notar que Aurora assume um papel duplo na história. Enquanto numa camada mais superficial ela continua sendo a Bela Adormecida, numa camada mais profunda desta releitura do mito, ela é a própria Malévola; ou melhor, ela é a essência mais pura, a alma de fada de Malévola, enquanto que a bruxa má é a sombra ressentida, a carcaça do ego que se afundou no ódio ao mundo que a violentou.

E por que Malévola tinha ao mesmo tempo, tanto amor e tanta raiva de Aurora, tanto ódio e tanto medo? Para compreender, nada melhor do que ouvir as palavras do grande Alan Moore, ocultista e roteirista de quadrinhos britânico [2]:

Muitos dos magos como eu entendem que a tradição mágica ocidental é uma busca do Eu com “E” maiúsculo. Esse conhecimento vem da Grande Obra, do ouro que os alquimistas buscavam, a busca da Vontade, da Alma, a coisa que temos dentro que está por trás do intelecto, do corpo e dos sonhos. Nosso dínamo interior, se preferir assim. Agora, esta é, particularmente, a coisa mais importante que podemos obter: o conhecimento do verdadeiro Eu.

Assim, parece haver uma quantidade assustadora de pessoas que não apenas têm urgência por ignorar seu Eu, mas que também parecem ter a urgência por obliterarem-se a si próprias. Isto é horrível, mas ao menos vocês podem entender o desejo de simplesmente desaparecer, com essa consciência, porque é muita responsabilidade realmente possuir tal coisa como uma alma, algo tão precioso. O que acontece se a quebra? O que acontece se a perde? Não seria melhor anestesiá-la, acalmá-la, destruí-la, para não viver com a dor de lutar por ela e tentar mantê-la pura?

Creio que isto explica muito bem todo o medo que Malévola tinha de encarar sua alma, sua aurora, face a face. Mas este é o tortuoso caminho que todos nós temos de percorrer, sejamos fadas, duendes ou seres humanos, pois que é somente ao nos reconciliarmos com nossa essência mais íntima que poderemos enfim transformar o mundo – primeiro dentro de nós, e em seguida, também lá fora.

Voltando a história…

A história do filme prossegue, e Aurora está prestes a completar 16 anos e sucumbir a terrível maldição, quando encontra um cavaleiro que passava pela floresta encantada, perdido e procurando o caminho para o castelo do rei larápio.

Aurora, que nunca havia saído da floresta, mesmo assim aponta o caminho correto, e os dois combinam de um dia se reencontrar… É preciso lembrar que este jovem cavaleiro é o único ser humano (não faérico) além de Aurora a perambular pela terra das fadas. Como ele poderia estar lá, se não fosse por se tratar de uma alma pura, como a própria Aurora?

Neste momento fica subentendido que seria este jovem aquele quem daria o “beijo de amor verdadeiro” para livrar Aurora da maldição, mas esta releitura do mito transcorrerá de forma bem mais interessante…

A fuga de Aurora

Por um descuido das “tias fadas”, Aurora acaba sabendo que, na realidade, era filha do rei larápio. Nesta altura, o desejo dela era morar “para sempre” na floresta encantada, então ela vai encontrar mais uma vez com Malévola, quando acaba descobrindo que ela era quem havia proferido a terrível maldição que selaria o seu destino. Aurora e Malévola brigam e a jovem foge para as terras do rei larápio, buscando se apresentar como sua filha.

É preciso lembrar que antes desta briga Malévola chega a tentar desfazer a sua maldição. Porém, como ela “não poderia ser desfeita por nenhum poder na terra, além do beijo de amor verdadeiro”, ela acaba falhando.

Ao encontrar sua filha, o rei larápio, já paranoico e extremamente insensível, apenas manda que a deixem trancada nalguma torre do castelo. Ele planeja atacar a floresta encantada com todo o seu exército.

Enquanto isso, o jovem cavaleiro acaba retornando a terra de Malévola, em busca de Aurora. Ao se aperceber disso, o corvo de Malévola a convence a tentar levar o rapaz até o castelo, para desfazer a maldição com o seu aguardado beijo. Prontamente, Malévola faz o rapaz dormir com um feitiço e começa a jornada até o castelo do rei.

O misterioso amor verdadeiro

Pouco antes de adentrarem o castelo, Malévola sente que a maldição profetizada havia se consumado: Aurora havia encontrado “todos os teares do reino” escondidos nos calabouços do castelo e, quase que hipnotizada pela maldição, espeta seu dedo num fuso e cai em seu sono infindável. Esta cena demonstra a inevitabilidade do seu destino, o que é muito comum em se tratando de contos de fadas.

Então chegamos a outra cena grandiosa do filme. Malévola consegue adentrar sorrateira, com o corvo e o jovem cavaleiro em seu sono enfeitiçado, aos aposentos onde se encontra a Bela Adormecida em seu sono sepulcral. A seguir, Malévola e o corvo se escondem num canto e ela desfaz o feitiço, permitindo que o jovem acordasse bem em frente ao leito de Aurora.

No entanto o jovem, muito sabiamente, pergunta se “não seria errado beijar uma jovem em seu sono”… Mas uma das “tias fadas”, que “velavam” a Bela Adormecida, diz algo como, “Vai, pode beijar!”, e o cavaleiro arrisca o seu beijo de amor verdadeiro. E não ocorre absolutamente nada!

Malévola aparece e faz o rapaz dormir novamente, então lamenta profundamente que a sua própria maldição não possa ser desfeita, visto que, como ela imaginava, “não existe o amor verdadeiro”. Ela dá então um beijo na testa da Bela Adormecida e, quando já se preparava para ir embora, Aurora desperta e diz, “Oi, fada madrinha”.

Quão misterioso é, afinal, o amor verdadeiro! Não algo que pode surgir do nada, de um encontro casual entre dois jovens, por mais puros que sejam; não algo que surja a primeira vista, mas algo que pulsa e pulsa, em nosso interior mais íntimo, nos recônditos da eternidade!

Reencontrar o amor verdadeiro faz com que Malévola se reconcilie com sua alma e com seu passado, e deixe definitivamente de ser a bruxa má, para voltar a ser a fada. Agora, não mais uma fada inocente e inexperiente, mas uma fada que viu o quão grosseiro pode ser o mundo fora de sua floresta encantada, e que ainda assim consegue manter a conexão com a sua essência eterna.

O retorno das asas

Na sequencia da história, enquanto tentavam fugir do castelo sem serem vistas, Malévola é pega numa armadilha com uma rede de ferro (o contato com o ferro fere gravemente as fadas – a alquimia explica), e então precisa combater o rei larápio e os seus guardas.

A batalha ia muito mal para Malévola (mesmo com seu corvo transformado num assombroso dragão), mas é então que Aurora, em sua fuga da batalha, acaba encontrando as asas trancafiadas de Malévola. Ela derruba a caixa de vidro onde elas estavam, e elas saem voando em direção a Malévola, unindo-se novamente ao seu corpo.

A essa altura já deve ter ficado clara a simbologia de toda a cena: as asas retornam quando Malévola consegue se reconciliar com sua essência, e transformar o seu ódio novamente em amor pelo mundo. Mas ainda faltava o rei larápio…

Ao tentar fugir voando, o antigo amigo de Malévola consegue se engalfinhar em suas pernas com o auxílio de uma arma de corrente, e os dois acabam lutando no topo de uma das torres do castelo. Em dado momento, Malévola poderia o ter enforcado até a morte; mas ela desiste, e diz, “Acabou!”.

De fato, para ela havia acabado o ódio, ela finalmente o havia perdoado. Perdoar não significa relevar o ocorrido, nem exatamente esquecer, mas reconhecer que o ódio e o ressentimento são apenas represas para o amor, e o amor, o amor verdadeiro, uma vez encontrado, deseja romper todas as represas, deseja inundar o mundo todo… Não há ressentimento que resista a tamanho milagre!

Infelizmente não foi a conclusão a qual o rei larápio chegou… Tentando atingi-la por trás, ele acaba caindo da torre e morrendo.

Depois, no final do filme, ficamos sabendo que Aurora e o jovem cavaleiro iriam se casar, e que a floresta encantada voltara a ser como era antes, na infância de Malévola. E assim, todos viveram felizes para sempre.

Joseph Campbell também dizia que “o mito é algo que não existe, mas que existe sempre”. Os mitos são, afinal, os fatos da alma e da mente humana encenados no mundo externo. Por isso são atemporais, pois os assuntos da alma residem na eternidade, e embora não existam na realidade mundana, existem na realidade da imaginação. A única forma de viver feliz para sempre é viver neste caminho que leva a nossa essência mais íntima, a nossa aurora.

***

[1] Trecho de O Poder do Mito.

[2] Trecho de The Mindscape of Alan Moore.

Crédito da imagem: Malévola – O filme (Divulgação)

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#Cinema #contosdefadas #Mitologia

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Quando Israel era menino, parte final

« continuando da parte 1

Texto de Mircea Eliade em “História das crenças e das ideias religiosas, vol. I” (Ed. Zahar) – trechos das pgs. 165 a 167. Tradução de Roberto Cortes de Lacerda. Algumas das notas ao final são minhas.

O jardim do Éden, com o seu rio que se dividia em quatro afluentes e levava a vida às quatro regiões da Terra, e as suas árvores que Adão devia guardar e cultivar, lembra o imaginário mesopotâmico. É provável que, também nesse caso, o relato bíblico utilize certa tradição babilônica. Mas o mito de um paraíso original, habitado pelo homem primordial, e o mito de um lugar “paradisíaco” dificilmente acessível aos seres humanos eram conhecidos além do Eufrates e do Mediterrâneo. Como todos os “paraíso”, o Éden [1] encontra-se no centro do mundo, onde emerge o rio de quatro afluentes. No meio do jardim elevavam-se a árvore da vida e a árvore da ciência do bem e do mal (Gênese II:9). Javé deu ao homem o seguinte mandamento: “Podes comer de todas as árvores de jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás de morrer” (II:16-17). Uma ideia, aliás desconhecida, destaca-se dessa proibição: o valor existencial do conhecimento. Em outros termos, a ciência pode modificar radicalmente a estrutura da existência humana [2].

Entretanto, a serpente conseguiu tentar Eva. “Não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal” (III:4-5). Esse episódio deveras misterioso deu lugar a inúmeras interpretações. O cenário lembra um símbolo mitológico muito conhecido: a deusa nua, a árvore milagrosa e seu guardião, a serpente [3]. Mas, em vez de um herói que triunfa e se apodera do símbolo da vida (fruto milagrosos, fonte da juventude, tesouro, etc.), o relato bíblico apresenta Adão como vítima ingênua da perfídia da serpente.

Temos, em síntese, uma “imortalização” malograda, como a de Gilgamesh [4]. Pois, uma vez onisciente, tal como os “deuses”, Adão podia descobrir a árvore da vida (da qual Javé não lhe havia falado) e tornar-se imortal. O texto é claro e categórico: “Depois disse Javé: ‘Se o homem já é como um de nós, versado no bem e no mal, que agora ele não estenda a mão e colha também da árvore da vida, e coma e viva para sempre!’” (III:22) E Deus pôs o casal para fora do paraíso e condenou-os a trabalhar para viver [5].

Voltando ao enredo evocado há pouco – a deusa nua e a árvore milagrosa guardada por um dragão –, a serpente do Gênese afinal teve sucesso no seu papel de “guardiã” de um símbolo de vida ou de juventude. Mas esse mito arcaico foi radicalmente modificado pelo narrador bíblico [6]. O “fracasso iniciatório” de Adão foi reinterpretado como uma punição amplamente justificada: sua desobediência denunciava seu orgulho luciferino, o desejo de assemelhar-se a Deus. Era o maior pecado que a criatura podia cometer contra seu Criador [7]. Era o “pecado original”, noção prenhe de consequências para as teologias hebraica e cristã. Essa visão da “queda” somente podia impor numa religião centralizada na onipotência e no ciúme de Deus. Da forma como nos foi transmitido, o relato bíblico indica a crescente autoridade do monoteísmo javista [8].

Segundo os autores dos capítulos IV-VII do Gênese, esse primeiro pecado não só acarretou a perda do paraíso e a transformação da condição humana, mas tornou-se de algum modo a fonte de todas as desventuras que se abateram sobre a humanidade [9]. Eva deu à luz Caim, que “cultivava o solo”, e Abel, “pastor de ovelhas”. Quando os irmãos ofereceram o sacrifício da gratidão – Caim, produtos do solo, e Abel, as primícias do seu rebanho –, Javé acolheu a oferenda de Abel, mas não a de Caim [10]. Irado, ele “se lançou sobre seu irmão e o matou” (IV:8). Agora, sentenciou Javé, “és maldito e expulso do solo fértil (…) Ainda que cultives o solo, ele não te dará mais seu produto: serás um fugitivo errante sobre a Terra” (IV:11-12)

Pode-se ver nesse episódio a oposição entre lavradores e pastores, e, implicitamente, a apologia destes últimos [11]. […] A tradição conservada no relato bíblico reflete a idealização da existência “simples e pura” dos pastores nômades, e a resistência contra a vida sedentária dos agricultores e dos habitantes de cidades. Caim “tornou-se um construtor de cidade” (IV:17) [12] […] O primeiro assassinato é portanto cometido por aquele que, de alguma forma, encarna o símbolo da tecnologia [13] e da civilização urbana. Implicitamente, todas as técnicas são suspeitas de “magia” [14].

***
[1] Nota do autor: Essa palavra foi relacionada pelos hebreus ao vocábulo é’dén, “delícias”. O termo paraíso, de origem iraniana (pairi-daeza), é mais tardio. Imagens paralelas, familiares sobretudo no Oriente Próximo e no mundo egeu, apresentam uma grande deusa ao lado de uma árvore da vida e de uma fonte vivificante, ou uma árvore da vida guardada por monstros e grifos.
Meu complemento: É interessante como ainda hoje, nas práticas de “mentalizações de cenários naturais”, tanto na umbanda quanto no espiritualismo em geral, ainda seja tão comum imaginarmos um jardim paradisíaco – isto é, como qualquer outro jardim onde haja apenas paz –, por onde passa um rio que flui de uma cachoeira – a fonte vivificante. Este tal jardim pode mesmo ter vindo da magia africana, ainda mais antiga do que Israel ou a tradição babilônica, ou mesmo de um lugar ainda mais arcaico, ancestral: nossa própria mente, a mente humana. Por isso, quando Joseph Campbell diz que “o Éden não foi e nem será, o Éden é”, ele realmente está falando sério, muito sério!
[2] O filósofo brasileiro, Mario Sergio Cortella, diz que “o homem é o único animal mortal”. Isto, pois, todos os outros animais (tirando, quem sabe, os elefantes) não tem a ciência da própria mortalidade. Somente o homem, que adquiriu tais conhecimentos (e muitos outros, pois que “conhece o bem e o mal”, isto é, possui razão), é “condenado” a mortalidade – pois sabe que irá morrer um dia.
[3] No processo de “demonização” da Deusa Mãe, e da magia antiga, associou-se Eva ao “pecado original”, e a serpente (o pobre bode expiatório), ao “Demônio”. É sempre interessante lembrar que por toda a mitologia dos povos arcaicos (bem mais antigos que Israel), a serpente é, pelo contrário, um grande símbolo de sabedoria. Aqui, novamente, recomendo consultarem o artigo Serpentes.
[4] Herói e rei sumério semilendário, retratado na Epopéia de Gilgamesh, texto central das mitologias suméria e babilônica.
[5] Eis que o próprio Antigo Testamento já atesta, desde seu início, aquilo que Jesus viria a dizer muito depois: “vós sois deuses”. Mas nem na época da elaboração do AT esta era uma ideia nova, no Antigo Egito já se conhecia, ao menos entre os iniciados, esta frase ancestral: “eu também sou da raça dos deuses”. Porém, seria Javé injusto por haver afastado Adão e Eva do paraíso, e da imortalidade concedida pela árvore da vida? Ou não seria uma justiça ainda maior que desse a oportunidade para que o homem e a mulher alcancem a ciência da árvore da vida por seu próprio mérito? “O Reino está espalhado pela Terra, mas os homens não o veem”.
[6] Antes de condenar o “narrador bíblico”, é preciso lembrar que a principal característica da elaboração de uma nova cultura para um “novo povo” é a supressão da cultura alheia. Nesse sentido, era “função” do “narrador bíblico” exatamente modificar radicalmente alguns mitos antigos, porém sem lhes desviar inteiramente da essência. Pois que os escritores eram suficientemente sábios e cultos para compreender que certas essências mitológicas não podem ser inteiramente suprimidas – pertencem ao espírito humano, e “existem sempre”.
[7] Paradoxalmente, era também exatamente o “pecado” que o Criador já esperava de sua criatura, como fica muito claro em qualquer mitologia sobre o tema.
[8] Nota do autor: O mito da “queda” nem sempre foi entendido de acordo com a interpretação bíblica. Principalmente a partir da época helenística e até os tempos do Iluminismo, inúmeras especulações tentaram elaborar uma mitologia adâmica mais audaciosa e muitas vezes mais original.
[9] De fato, como no mito onde Prometeu rouba o fogo divino e com ele cria a humanidade, o “pecado original” deu origem a própria humanidade, pois sem a ciência da própria nudez, dificilmente Adão e Eva nalgum dia teriam um filho.
[10] Teriam os cristãos radicais, críticos ferozes dos ritos do Candomblé, lido este trecho do Gênese?
[11] Ao menos a quem tem olhos para ver, quase todas as mitologias antigas trazem, num “código meio cifrado”, a própria história dos povos arcaicos. O embate dos caçadores-coletores errantes, ou grandes povos nômades, contra os primeiros agricultores, ou mesmo as primeiras grandes aldeias onde se estocavam grãos, é tema corriqueiro dos mitos de “pós-criação”. Em nosso artigo sobre a mitologia do deus Odin, falamos sobre a guerra entre os vanir (sedentários, agricultores) e os æsir (nômades, caçadores), que essencialmente trata do mesmo tema, só que na região do norte europeu. Enquanto a mitologia nórdica “privilegia” os caçadores nômades (pois foi elaborada por eles), no relato bíblico, da mesma forma, os pastores nômades são exaltados, enquanto que os cultivadores sedentários (representados por Caim) são “banidos”. Nota-se que, neste caso, os pastores hebreus provavelmente entravam em conflito com os agricultores das terras por onde passavam com seu rebanho. A diferença é que os nórdicos æsir venceram a guerra, enquanto que a vida dos pastores hebreus deve ter sido bem mais difícil (de certa forma, o é até hoje: a própria existência do estado de Israel é questionada pelos povos em seu entorno até os dias modernos).
[12] Resta saber qual deus criou a mulher que Caim conheceu na terra de Node (IV:16-17).
[13] Caim também pode significar “ferreiro”. Na época antiga, os ferreiros eram considerados “senhores do fogo”, com o conhecimento de poderes mágicos temíveis. Um dos descendentes de Caim é Tubalcaim, “o pai de todos os laminadores em cobre e ferro”.
[14] “Qualquer tecnologia suficientemente avançada não se distingue de magia” (Arthur C. Clarke)

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Crédito da foto: Robert Recker/Corbis

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#história #Religião #Mitologia #Judaismo #MirceaEliade

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/quando-israel-era-menino-parte-final

14 sabedorias de Joseph Campbell

por André Camargo

Joseph Campbell é o cara que criou aquela história da ‘Jornada do Herói’. É também o cara daquele documentário incrível, ‘O Poder do Mito’. Já ouviu falar?

Eu gosto muito. 🙂

Sabe aquela pilha de livros que você morre de vontade de ler, mas nunca dá tempo? Essa pilha só cresce, né?

Imagina que o cara tava lá, contrariado com as exigências arbitrárias do doutorado, e resolveu largar a coisa toda. Aí, alugou um casebre no meio do mato e passou ali, sozinho, os cinco anos seguintes.

Fazendo o quê?

Lendo.

9 horas por dia, todos os dias.

Segundo ele, o período de estudo e recolhimento foi a base de toda sua vida futura, assim como do conjunto de seu pensamento.

O cara leu todos os livros que ele queria, do jeito que ele queria, no tempo dele.

Uau.

Essa é uma passagem emblemática na biografia do cara. Como você verá, o pensamento de Joseph Campbell é um monumento à coragem de viver a vida nos próprios termos.
[Sugestão de Consumo] Vá com calma. Leia cada citação pelo menos duas vezes, antes de seguir em frente.

__________

(1) “A gente precisa se dispor a abrir mão da vida que planejamos a fim de encontrar a vida que espera por nós.”
Deixar-se guiar pelo próprio coração — e não por planos. Abrir mão do desejo de controle. Destemor e confiança. Abertura. Permitir que o que é vivo em nós se manifeste e nos direcione.

(2) “Qualquer que seja seu destino, o que quer que aconteça, diga: “Isso é o que eu preciso”. Pode parecer devastador, mas olhe para aquilo como uma oportunidade, um desafio. Se você trouxer amor para aquele momento — não desencorajamento — perceberá que existe força naquilo.”
Essa é a filosofia do Amor Fati, de Nietzsche. A Força que vem da aceitação incondicional; render-se incondicionalmente à Vida. Requer uma alta dose de desapego. E, de acordo com a sabedoria oriental, premia com a maior das liberdades.

(3) “Você é o herói (ou heroína) da própria história.”
Na real, acho que a maior parte das pessoas, hoje, vive como coadjuvante da própria história. O que é muito triste e não tem nada de heroico. O desafio é sair da periferia da vida, da posição de vítima das circunstâncias, e tomar a vida nas próprias mãos. O que te faz herói ou heroína é tornar-se a um tempo autor/a e protagonista da própria história.

(4) “A caverna em que você teme penetrar guarda o tesouro que você busca.”
A noite escura da alma, que, dizem, precede o despertar de uma nova consciência. Na linguagem da Jornada do Herói, passamos pela Provação Suprema, o encontro com a Sombra, antes de podermos encontrar o Elixir que cura todas as dores.

(5) “Não acredito que as pessoas estejam buscando pelo sentido da vida, tanto quanto pela experiência de se sentirem vivas.”
O sentido da vida, para ele, não é um tipo de enigma a ser solucionado; o sentido da vida é estar vivo. Estar plenamente vivo dá sentido à existência.

(6) “Siga o que enche seu coração de alegria e o universo abrirá portas onde antes só existiam muros.”
Follow your Bliss. Essa frase é considerada a quintessência do pensamento de Campbell. E bliss é uma palavra danada. Ninguém consegue traduzir direito. Então, eu optei por uma expressão: ‘bliss’ = ‘o que enche seu coração de alegria’. A origem do termo, segundo Campbell, é o sânscrito: ‘ananda’. Que significa êxtase, beatitude ou felicidade suprema.

(7) “O maior privilégio da vida é ser quem você é.”
Sócrates ecoa o Oráculo de Delfos: “Conhece a ti mesmo”. Já ouviu isso? Para os gregos antigos, cumprimos nosso destino humano ao amadurecer as sementes de realização que se manifestam por meio de nossos dons e talentos únicos. Nietzsche reformula: “Torna-te quem tu és”.

(8) “A vida não tem sentido. Cada um de nós tem sentido e nós o atribuímos à vida. É bobagem fazer a pergunta quando você é a resposta.”
Essa é matadora! A vida tem o sentido que a gente dá. Nós mesmos somos a resposta para a questão do sentido da vida… Basta se encarar no espelho.

(9) “A vida é como chegar atrasado ao cinema, ter de sacar o que tava rolando sem perturbar todo mundo com um monte de perguntas, e aí ser inesperadamente chamado de volta antes de descobrir como o filme acaba.”
Adoro essa imagem! Uma metáfora da condição humana simplesmente… cinematográfica.

(10) “O objetivo da vida é sintonizar a batida do seu coração com a batida do universo, sintonizar sua natureza com a Natureza.”
Isso é muito lindo. Como o coração do bebê, que bate no mesmo ritmo que o coração da mãe. Assim é. Assim é.

(11) “Se você de fato segue o que enche seu coração de alegria, você se coloca em um tipo de caminho que sempre esteve lá, à sua espera, e a vida que você deveria estar vivendo é a vida que você está vivendo.”
Como uma semente caída no asfalto. Pode ficar um bom tempo ali, congelada. Se, no entanto, alguma força externa a conduz até um punhado de terra fértil, ela naturalmente se reconecta com a verdade de seu Ser, seu potencial de realização. Ela desabrocha, cresce, floresce, frutifica. Pois aquele solo sempre esteve lá, à sua espera, e a nova vida que ela passa a viver é de fato a vida que ela deveria estar vivendo.

(12) “De repente, você é atirado/a na situação de estar vivo. E a vida é dor, e a vida é sofrimento, e a vida é horror, mas — meu Deus — você está vivo, e isso é espetacular.”
Para Joseph Campbell (assim como na maior parte das filosofias orientais), faz mais sentido substituir a ânsia por saber, essa busca ansiosa por respostas, pela experiência de deslumbramento, de arrebatamento, de assombro e deleite diante do mistério.

(13) “O mundo sem espírito é uma terra devastada. As pessoas têm a ideia de salvar o mundo mudando as coisas de lugar, mudando as regras, e quem está em cima e assim por diante. Não, não! Qualquer mundo é um mundo válido se está vivo. A coisa a fazer é trazer vida a ele, e a única forma de fazer isso é encontrar em si mesmo onde a vida está e tornar-se vivo você mesmo/a.”
A aridez de viver apartado de si! Lembro bem. Sempre me pergunto: como colocar meus dons e talentos, minha pulsação, para fortalecer o que serve à vida —  em qualquer situação?

(14) “Não podemos curar o mundo de seus pesares, mas podemos escolher viver com alegria.”
Um antídoto para a onipotência. Acho que a única maneira de, verdadeiramente, salvar o mundo é salvar a nós mesmos primeiro. Um ser humano plenamente realizado é a mais profunda inspiração para cada um de nós.

#Mitologia

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/14-sabedorias-de-joseph-campbell

Noé – o que merece ser salvo? (parte final)

« continuando da parte 1

O mito moderno

De acordo com Richard Saul Wurman, em seu livro Ansiedade de Informação, uma edição de domingo do jornal The New York Times tem cerca de 12 milhões de palavras e contém mais informação do que aquela que um cidadão do século 17 recebia ao longo de toda a vida. A capacidade de computação mundial aumentou 8 mil vezes nos últimos 40 anos. Com esse ritmo, especialistas calculam que produzimos mais informação na última década do que nos 5 mil anos anteriores. E todo esse acúmulo causa ansiedade.

A velocidade com que a informação viaja o mundo é algo muito recente, com o qual os seres humanos ainda não sabem lidar – e muito menos aprenderam a filtrar. Já foram cunhados até alguns termos para definir a ansiedade trazida pelos novos meios de comunicação: technologyrelated anxiety (ansiedade que surge quando o computador trava, que afeta 50% dos trabalhadores americanos), ringxiety (impressão de que o seu celular está tocando o tempo todo) e a ansiedade de estar desconectado da internet e não saber o que acontece no mundo, que já contaminou 68% dos americanos [1].

Uma outra consequência de tamanha “globalização da informação” é a de que hoje somos prontamente informados de todos os grandes desastres naturais, genocídios e conflitos armados que ocorrem ao redor do globo. Certamente o seu bisavô, por mais bem informado que fosse, não estaria muito preocupado com um acidente de trem na Espanha, um estupro coletivo na Índia ou um ataque de algum esquizofrênico numa universidade americana. E, mesmo as notícias da Primeira Guerra Mundial não eram tão impactantes quanto as notícias das guerras de hoje – na sua época a guerra era descrita em alguns parágrafos de jornal, hoje ela muitas vezes é filmada ao vivo com câmeras de alta definição.

Dessa forma, se no mito de Noé o fim do mundo era um anúncio divino que nem todos levaram a sério (exceto Noé e sua família), nos dias atuais o fim do mundo parece ocorrer de tempos em tempos no noticiário, ao ponto de sermos obrigados a nos tornar, de certa forma, “insensíveis” a tanta desgraça anunciada nas dezenas ou centenas de canais de notícia de nossa TV a cabo e em nossos portais favoritos da web.

Não é que hoje o mundo esteja mais violento do que há milênios atrás, pelo contrário: hoje vamos a um estádio ver jogadores praticando esportes, e não se matando; hoje não há mais escravidão, ao menos oficialmente; hoje as mulheres que apanham de seus maridos têm uma opção de escolha que antes lhes era absolutamente negada. O mundo melhorou fora das zonas de guerra, sem dúvida, mas o problema é que hoje podemos saber de tudo (ou quase tudo) de catastrófico e violento que ocorre nos quatro cantos do globo.

Como sobreviver a essa época tão fluida e tão cheia de atrativos, a esse verdadeiro “dilúvio de informações”? Talvez, quem sabe, a Arca de Noé possa ser uma possibilidade de salvação. Afinal, se a construção de nossa Arca pode ser tão difícil e custosa, ela nos traz um grande consolo, um grande alento, em sua conclusão: teremos, enfim, uma embarcação só nossa, onde guardamos a informação que nos importa de verdade, assim nos livrando de todo um mar revolto de irrelevâncias.

A Arca moderna nada mais é, portanto, do que o pensamento próprio, livre de dogmas de crença ou descrença, livre da enxurrada de informações que nada acrescentam ao nosso autoconhecimento e ao nosso caminho espiritual. Para sobreviver no mundo moderno como um indivíduo de pensamento livre, sem dúvida precisaremos aprender mais acerca das técnicas de construção de Noé.

O que merece ser salvo?

Se o mito pode ser reinterpretado à luz da era moderna, nada nos impede de voltar atrás e interpretá-lo a nossa maneira também no contexto da época bíblica. Afinal, há certamente uma boa parte do mito que se encontra mesmo fora do tempo, que é eterna…

Uma lição que sempre me saltou aos olhos é que o Criador não pediu a Noé para que salvasse alguma relíquia, algum plano de construção de templos, e tampouco algum livro sagrado. Nem ouro, nem prata nem joias – o que havia de mais valioso para ser salvo do Grande Dilúvio era a vida, a vida!

E não somente os seres vivos em si, mas a sua simbologia. Afinal, já na época de Noé os animais eram também símbolos, informações vivas que representavam a Criação. Não bastaria, portanto, salvar somente o elefante macho, era preciso salvar também a fêmea, para que a continuidade da espécie, a continuidade do símbolo “elefante”, fosse garantida.

Nesse sentido, a Arca de Noé era, de certa forma, a Igreja sonhada por nosso querido Francisco de Assis: uma casa não somente de homens e mulheres, mas de vida, de toda a vida.

Quantas vilas, cidades e templos já existiam na época de Noé? Quantas estátuas dedicadas as mais diversas divindades? Quantos manuscritos sagrados e poemas épicos? Nada disso passou do Dilúvio. Nada sobrou, exceto a vida ela mesma…

Aquilo que ultrapassa vidas

Há algo que permeia todos os mitos referentes a um Grande Dilúvio nas mais variadas culturas ancestrais: com Arca ou sem Arca, fato é que somente um herói, ou um casal, ou um grupo muito pequeno de pessoas, sobrevive para repovoar o mundo todo após as águas aplainarem.

Ora, se formos transportar esta metáfora para o conceito de reencarnação, tão antigo quanto as primeiras religiões e mitologias, temos que o Dilúvio, o fim do mundo pelas águas, nada mais é do que a “morte”; e o mundo novo, a espera de ser povoado, nada mais é do que a “próxima vida”.

Nesse contexto, o que seria capaz de cruzar a fronteira entre uma e outra vida, senão tudo aquilo que conseguimos trazer para a nossa Arca?

É bem verdade que a maioria de nós sequer começou a aprender a construir uma Arca – mas quem disse que não somos capazes? Ainda que de início nosso barco seja pequeno e quebradiço, facilmente virado pelas ondas, o que importa é que iniciamos a aprendizagem.

E é precisamente esta aprendizagem, de construção de arcas, aquilo que ultrapassa vidas, a ciência mais preciosa e primordial de toda a existência… Não importa se hoje não acreditamos que seja realmente possível construirmos uma Arca tão grande quanto a de Noé. Não importa se nos parece inverossímil que ela pudesse mesmo carregar todas as espécies não marinhas do planeta. Pois há algo de sobrenatural nesta ciência, algo que escapa a lógica usual de todas as ciências…

Tudo é natural, e assim está bom. Mas há algo que salta por sobre, que ultrapassa as maiores barreiras; algo que é capaz de vencer até mesmo a morte; algo atemporal, eterno, infinito.

É precisamente esta Arca de Amor a única coisa que realmente possuímos, a única coisa que realmente importa, a única coisa que vale a pena construir… E cada martelada, cada tábua posta no lugar, cada gota de suor a escorrer de nossa testa, terão valido a pena.

Até que ela, a Grande Arca, consiga abarcar o mundo todo. De modo que o mundo todo será nossa Arca, e nossa Arca será todo o mundo. E somente assim poderemos, de verdade, estabelecer nossa Aliança com o Tudo. Somente assim poderemos ser carregados pelas marés internas da alma até atracarmos, um dia, nas praias do Reino de Deus:

“Senhor, árdua foi a construção da minha Arca, e longa foi a minha navegação; mas eu cheguei, eu finalmente cheguei!”

***

[1] Os dois primeiros parágrafos desta parte do artigo foram retirados de Sobre a ansiedade, por Karin Hueck para a Revista Superinteressante (Novembro de 2008).

Bibliografia: Guia Ilustrado Zahar de Mitologia (Philip Wilkinson e Neil Philip); Enciclopédia de Mitologia (Marcelo Del Debbio); O Poder do Mito (Joseph Campbell e Bill Moyers)

Crédito da imagem: Noé – O filme (Divulgação)

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Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/no%C3%A9-o-que-merece-ser-salvo-parte-final

A Metáfora, por Joseph Campbell

Joseph Campbell é foda! É meu autor favorito, cuja leitura considero obrigatória para qualquer pessoa que deseje ter um mínimo de conhecimentos sérios sobre ritualística e simbologia. E, sem estas duas ferramentas, é simplesmente impossível tornar-se um ocultista sério.

Deixe-me começar, explicando a historia de meu impulso para colocar a metáfora no centro de nossa exploração da espiritualidade ocidental.

Quando o primeiro volume do meu Historical Atlas of World Mythology:

The Way of Animal Powers foi publicado, os editores me enviaram numa turnê publicitária. É o pior tipo de turnê possível porque você tem de se encontrar, sem a menor vontade, com locutores de rádio e repórteres, eles próprios indispostos a ler o livro sobre o qual devem conversar com o entrevistado, para gerar visibilidade.

A primeira pergunta que me faziam era sempre:

“O que é um mito?”

É um bom começo para uma conversa inteligente.

Em uma cidade, porém, entrei numa estação de rádio para um programa de meia hora, ao vivo, em que o entrevistador era um jovem com ar de astuto e que imediatamente me alertou:

“Sou difícil, já vou lhe avisando. Sou um cético.”

A luz vermelha acendeu e ele começou, argumentativo:

“A palavra ‘mito’ significa ‘uma mentira’. Mito é uma mentira”.

Repliquei com a minha definição de mito.

“Não, mito não é uma mentira.

Uma mitologia completa é uma organização de imagens e narrativas simbólicas, metafóricas das possibilidades de experiência humana e da realização de determinada cultura em certo momento”.

“É uma mentira”, ele retrucou.

“É uma metáfora”.

“É uma mentira”.

Isso continuou por uns vinte minutos.

Quatro ou cinco minutos antes do fim do programa, percebi que o entrevistador não sabia o que era uma metáfora. Resolvi tratá-lo da mesma maneira como estava sendo tratado.

“Não”, eu disse.

“Eu lhe digo que algo é meta­fórico. Dê-me um exemplo de metáfora.”

Ele respondeu.

“Dê-me você um exemplo”.

Eu resisti.

“Não, agora eu estou fazendo a pergunta”.

Eu não tinha lecionado por trinta anos à toa.

“E eu quero que você me dê um exemplo de metáfora”.

O entrevistador ficou totalmente pasmo e chegou a dizer:

“Vamos chamar um professor.”

Finalmente, depois de um minuto e meio, ele se recompôs e disse:

“Vou tentar. Meu amigo John corre muito. Dizem que ele corre como um veado. Isso é uma metáfora”.

Enquanto se passavam os últimos segundos da entrevista, eu repliquei.

“Isso não é metáfora. A metáfora seria: John é um veado”.

Ele revidou: “Isso é uma mentira”.

“Não”, eu disse. “É uma metáfora”.

E o programa terminou.

O que esse incidente sugere sobre a nossa compreensão de metáfora?

Ele me fez refletir que metade da população mundial acha que as metáforas de suas tradições religiosas, por exemplo, são fatos.

E a outra metade afirma que não são fatos, de forma alguma.

O resultado é que temos indivíduos que se consideram fieis porque aceitam as metáforas como fatos, e outros se julgam ateus porque acham que as metáforas religiosas são mentiras.

#Mitologia

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/a-met%C3%A1fora-por-joseph-campbell

Reflexões místicas com Joseph Campbell (parte 2)

Arte de Android Jones

Uma entrevista com Joseph Campbell, por Tom Collins
Originalmente publicada na revista The New Story (1985)

Tradução de Gabriel Fernandes Bonfim; Revisão de Rafael Arrais

« continuando da parte 1

2. O mito como a dinâmica da vida

[Tom] Para citar suas próprias palavras novamente, “Um mito é a dinâmica da vida. Você pode ou não conhecê-lo, e o mito que você pode estar respeitosamente adorando no domingo pode não ser aquele que realmente está trabalhando em seu coração, e nem aquele que está lá fora, de acordo com a visão dos eclesiásticos.”

[Joseph] Sim. Eu diria que é uma afirmação correta, então eu ainda diria isso hoje.

[Tom] Como você une essas duas dinâmicas?

[Joseph] Colocando a ênfase em sua própria dinâmica interna, e em seguida, filtrando e extraindo da sua herança de tradições aqueles aspectos que lhe dão suporte em sua própria vida interior. Isto significa não estar preso a esta, aquela, ou a qualquer outra tradição, mas estar aberto a uma comparação geral entre todas elas… Veja, eu me dedico bastante a estudos comparativos de mitologia. Eu acho que um dos problemas de hoje é que a sociedade se encaminhou para um relacionamento multicultural, que torna arcaico esses sistemas mitológicos presos a cultura – como a cristã, a judaica e a hinduísta.

Ou seja, ao conhecer o seu próprio sistema, que lhe impulsiona por dentro em suas vivências espirituais, e reconhecer estas imagens simbólicas que realmente lhe tocam a alma, você pode buscar ajuda para – poderíamos dizer – universalizar e solidificar esta mitologia pessoal em si mesmo; e então, você passa a estar apto a buscar mais ajuda nas outras mitologias da cultura humana.

Nota do revisor: este trecho é particularmente complexo, mas passa a ser mais compreensível ao estudarmos a teoria do Monomito de Campbell, segundo a qual todos os mitos da cultura humana são, em sua essência mais íntima, parte de uma mesma mitologia. Por isso ele crê que, não importa qual o sistema simbólico ou mitologia pessoal que adotemos, ele deve funcionar se for capaz de lhe tocar a alma – e, da mesma forma, se não lhe tocar a alma, provavelmente a sua vivência espiritual será comprometida. Por “buscar ajuda”, penso que ele queira se referir a algo como “buscar o aconselhamento dos que já estão mais avançados no caminho” (alguns chamam a estes de “mestres” ou “gurus espirituais”); mas também pode estar se referindo, simplesmente, ao estudo (intelectual) dos mitos.

[Tom] Quais são os propósitos do mito?

[Joseph] Há quatro deles. Um místico. Um cosmológico: o universo inteiro como agora o entendemos se torna, como era no início da criação, uma revelação da dimensão do mistério. O terceiro é sociológico: tomar conta da sociedade que nos cerca. Mas nós não sabemos o que esta sociedade é, ela mudou tão rapidamente. Meu Deus! Nos últimos 40 anos tem havido tal transformação nos costumes, que é impossível falar sobre eles. Finalmente, há o pedagógico, que é orientar um indivíduo através das inevitabilidades de uma vida. Mas, mesmo isto se tornou impossível, porque não sabemos mais o que é inevitável no decorrer de uma vida. Estas coisas estão mudando a todo momento.

Antigamente, havia apenas um número limitado de carreiras disponíveis para o homem. E para a mulher, o normal era ser uma dona de casa ou uma freira ou algo parecido. Agora, o panorama de possibilidades e possíveis vidas e como elas mudam de década para década tornou-se impossível de mitificar. O indivíduo segue sua vida sem preparação alguma. É como correr com a bola numa brecha aberta num campo de futebol americano – não há regras, e muitos podem vir lhe derrubar. Você precisa estar muito atento a sua volta até o final da corrida. Tudo o que você pode aprender é o que a sua essência íntima é, e tentar permanecer fiel a ela.

[Tom] Como você aprendeu isso?

[Joseph] Eu não sei. Algumas pessoas aprendem cedo; alguns nunca aprendem.

[Tom] Que tipo de mitologia nós temos hoje? Que tipo deveríamos ter?

[Joseph] Eu não vou dizer que tipo de mitologia nós temos, porque eu não acho que tenhamos uma mitologia funcionando de forma geral. Eu diria que nos termos dos aspectos sociológicos da mitologia (e talvez isto esteja além de nossa capacidade sentimental) deveríamos ver o todo – a sociedade global como a comunidade a ser estudada.

[Tom] Eu pensei que os mitos sempre fossem vinculados a um grupo ou lugar específico.

[Joseph] Isso mesmo. Mas quando você pode voar de Nova York a Tóquio em um dia, você não pode mais ficar limitado a um pequeno grupo de pessoas e se referir a elas como uma unidade, pois hoje os pensamentos e crenças também viajam rapidamente através do globo. O planeta é a sociedade. E, de fato, economicamente já funcionamos assim.

[Tom] Eu acho interessante que algumas pessoas começaram a combinar a sabedoria antiga com ideias modernas – pessoas como Jean Houston, Michael Harner, Joan Halifax e Elizabeth Cogburn.

[Joseph] Se faz sentido, o que isto me parece sugerir é que necessitamos harmonizar nossas vidas com a ordem da natureza.

[Tom] Muitas dessas pessoas também estão interessadas ​​na criação de rituais. Qual é o papel que os rituais desempenham na mitologia?

[Joseph] Um ritual é a encenação de um mito. E através dessa encenação o ritual traz à mente as implicações do ato da vida que você atualmente vivencia. Agora, as pessoas me perguntam, quais rituais nós temos atualmente? A minha resposta é: o que você tem feito? O que é importante em sua vida? O que é importante, eles dizem, é ter um jantar com seus amigos. Isto é um ritual.

Este é o sentido da peça A festa dos coquetéis de Thomas Stearns Eliot. A festa é um ritual. Dessa forma, tem uma função religiosa, e aquelas pessoas estão engajadas em um relacionamento humano. Essa é a ideia chinesa, a ideia de Confúcio, de que as relações humanas são a maneira de você experienciar o Tao. Perceba o que você está fazendo quando está dando uma festa. Você está realizando um ritual social. Você o está conduzindo quando se senta para comer uma refeição, você está consumando um ato da vida.

Quando você está comendo alguma coisa, isto é algo muito especial de se fazer. E você deveria ter esse pensamento tanto ao comer uma cenoura, como ao comer um animal, assim eu penso. Mas você não sabe o que está fazendo, a menos que você pense sobre isso. Isso é o que um ritual faz. Ele lhe dá uma oportunidade de perceber o que você está fazendo, para que possa compreender a sua relação com essa inevitável energia da vida em seus momentos de interação. Para isso que os rituais servem; você faz as coisas com intenção, e não apenas de maneira animalesca, vorazmente, sem ter consciência alguma do que está realizando.

Isso também é verdade para o sexo. As pessoas que apenas praticam sexo como um jogo divertido, ou algo emocionante como isto, não entendem o que estão fazendo. Então você não tem a sacramentalização. E a grande razão de o casamento ser sagrado, é que ele permite que você saiba o que diabos é correto e o que não é, e o que está acontecendo ali. Um macho e uma fêmea que se juntam, com a possibilidade de que uma outra vida surja desta interação – este é um grande ato.

» Na próxima parte da entrevista, a transcendência dos mitos…

***

Crédito da imagem: Android Jones

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Reflexões místicas com Joseph Campbell (parte 1)

Joseph Campbell

Uma entrevista com Joseph Campbell, por Tom Collins
Originalmente publicada na revista The New Story (1985)

Tradução de Rafael Arrais

Joseph Campbell talvez seja o acadêmico mais proeminente no estudo da mitologia. Entre os seus diversos livros podemos destacar O herói de mil faces, As máscaras de Deus (série) e o célebre O poder do mito. O entrevistador, Tom Collins, é um escritor e editor de Los Angeles, que já trabalhou com Steven Spielberg.

1. A importância dos mitos

[Tom] O que os mitos fazem por nós? Por que a mitologia é tão importante?

[Joseph] Ela lhe põe em contato com um plano de referência que vai além da sua mente e adentra profundamente o seu próprio ser, até as vísceras. O mistério definitivo do ser e do não ser transcende todas as categorias de pensamento e conhecimento. Ainda assim, isto que transcende toda a linguagem é a própria essência do seu ser; então você está descansando sobre ela, e sabe disso.

A função dos símbolos da mitologia é nos levar a uma espécie de insight, “Aha! Sim, eu sei o que é isto, isto sou eu mesmo”. É disto que se trata a mitologia, e através dessa vivência você se sente em contato com o centro do seu próprio ser, cada vez mais, e todo o tempo. E tudo o que você faz dali em diante pode ser relacionado com tal grau de verdade. No entanto, falar sobre isso como “a verdade” por ser um pouco enganoso, pois quando pensamos na “verdade”, pensamos em algo que pode ser conceitualizado. E tal vivência vai além disso.

[Tom] Heinrich Zimmer disse, “As melhores verdades não podem ser ditas…”

[Joseph] “E as segundas melhores são mal interpretadas.”

[Tom] E então você adicionou alguma coisa ali…

[Joseph] As terceiras melhores fazem parte da conversação usual – ciência, história, sociologia.

[Tom] Por que nos confundimos com estas verdades?

[Joseph] Porque as imagens que precisam ser usadas para falar sobre o que não pode ser dito, as imagens simbólicas, são compreendidas e interpretadas não de forma simbólica, mas de forma empírica, como fatos concretos. É algo natural, mas é também todo o problema com as religiões do Ocidente. Todos os símbolos mitológicos são interpretados como se fossem referências históricas. Eles não são. E acaso fossem, e daí, o que viria a seguir?

[Tom] Vamos tomar cuidado aqui. O que você está chamando de símbolo?

[Joseph] Eu estou chamando de símbolo um signo que aponta para algo além dele mesmo, para um campo de significado e vivência que se encontra unificado com a consciência do observador. O que você está aprendendo na mitologia diz respeito ao sentido de você ser uma parte do ser que preenche o mundo.

Se um mito não lhe toca e não fala sobre você, mas sobre algo lá fora, então ele é um mito superficial; ou que foi interpretado superficialmente. Há esta frase maravilhosa que eu anotei de Karlfried Graf Durkheim, “transparência para o transcendente”. Se uma doutrina bloqueia a transcendência, e lhe corta o acesso à divindade para lhe manter preso ao seu eu mundano, ela lhe transforma num devoto, num adorador, e não lhe encaminha a abrir o mistério que há dentro do seu próprio ser.

[Tom] Você já chamou a isto de “a patologia da teologia”.

[Joseph] É como ainda chamaria hoje.

[Tom] Walter Huston Clark diz que a igreja é como uma vacinação contra a coisa real.

[Joseph] C. G. Jung diz que a religião é uma defesa contra a experiência de Deus. Eu digo que as nossas religiões [igrejas] o são.

[Tom] O que fazer então, se a experiência não é encontrada na religião [igreja]?

[Joseph] Você a encontra no misticismo, e entra em contato com místicos que leem tais formas simbólicas simbolicamente. Místicos são pessoas que não são teólogos; teólogos são pessoas que interpretam o vocabulário das escrituras como se elas se referissem a fatos sobrenaturais.

Há uma pletora de místicos na tradição cristã, mas nós não ouvimos muito sobre eles. Ainda assim, de vez em quando alguns esbarram no misticismo. Mestre Eckhart foi uma pessoa assim. Thomas Merton também experienciou o misticismo, assim como Dante Alighieri e Dionísio, o Aeropagita. João da Cruz alternou momentos de contato com o misticismo com momentos de recaída mundana.

Eu penso que James Joyce é pleno de misticismo, e Thomas Mann também o alcançou na escrita, embora não tão profundamente quanto Joyce. É estranho como, desde a morte de Mann, o misticismo tenha desaparecido da literatura.

» Na próxima parte da entrevista, o mito como a dinâmica da vida…

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Crédito da imagem: Google Image Search/Divulgação (Joseph Campbell)

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Reflexões místicas com Joseph Campbell (parte 3)

Uma entrevista com Joseph Campbell, por Tom Collins
Originalmente publicada na revista The New Story (1985)

Tradução de Gabriel Fernandes Bonfim; Revisão de Rafael Arrais

« continuando da parte 2

3. A transcendência dos mitos

[Tom] O que o termo “transcendente” significa, na frase de Durkheim, “transparência para o transcendente”?

[Joseph] O significado simples do termo é aquilo que vai além de todos os conceitos e conceituações, ou aquilo que está além de toda conceituação.

[Tom] De onde vem esta experiência?

[Joseph] A sua vida é a sua experiência de energias transcendentes, porque você não sabe de onde sua vida vem, mas você pode experimentá-la. Estamos experimentando estas energias bem aqui, apenas por estarmos sentados nelas, sentindo-as borbulhar.

[Tom] Você está usando o “transcendente” como um outro termo para Deus?

[Joseph] Se você quiser personificar o termo. Brahman é a maneira sânscrita de falar sobre isso. Manitou é a forma dos Algonquin, Orinda a dos Iroquois, Owacan é a dos Sioux.

[Tom] Javé?

[Joseph] Javé é a personificação. Ele é isto que está além da conceituação.

[Tom] Não podemos falar o nome, no entanto…

[Joseph] Bem, assim deveria ser, mas sabemos tudo sobre ele, ou ele nos contou tudo sobre si mesmo e como devemos nos comportar. O conceito básico da mitologia é a transcendência da personificação. A personificação é uma concessão à consciência humana, de modo que possamos falar sobre essas coisas.

[Tom] Você quer dizer que, se o infinito se revela para você, sua pequena mente responde dizendo, “Deus falou comigo”, porque ela só pode entender o que aconteceu em seus termos limitados?

[Joseph] Isso mesmo.

[Tom] Eu percebo que você não é um grande amante da Bíblia.

[Joseph] Nem um pouco! É o livro mais excessivamente anunciado do mundo. É muito pretensioso para ser reivindicado como a palavra de Deus, ou ser aceito como tal e perpetuar essa mitologia tribal, justificando todos os tipos de violência a pessoas que não são membros da tribo.

O que eu vejo de mais lamentável no uso que fazem da Bíblia é que, apesar dela tratar de uma mitologia tribal circunscrita a um determinado local do mundo, e de lidar com um determinado povo em um determinado momento, os cristãos ampliaram isto para serem incluídos. Em seguida, tal interpretação coloca esta sociedade contra todas as outras, ao passo que a condição do mundo de hoje é que esta sociedade em particular, que é apresentada na Bíblia, não é nem mesmo a mais importante. Essa coisa é como um peso morto. Ela está nos puxando de volta, porque ela pertence a um período antigo. Não conseguimos nos soltar e nos mover para uma teologia moderna.

Uma das grandes promessas da mitologia é a que o leva a se perguntar: Com qual grupo social eu me identifico? E quanto ao planeta? Agora, afirmar que os membros deste grupo social em particular são a elite do mundo de Deus é uma boa maneira de manter tal grupo unido, mas olhe para as consequências! Acho que o que poderia ser chamado de chauvinismo santificado da Bíblia é uma das maldições do planeta nos dias atuais.

Nota do tradutor: “chauvinismo” é o termo dado a todo tipo de opinião exacerbada, tendenciosa ou agressiva em favor de um país, grupo ou ideia.

[Tom] Há muito material interessante no Antigo Testamento, não é? Por exemplo, ele diz que Deus criou tudo, exceto a água.

[Joseph] Você colocou o dedo na ferida. A água é a deusa, consegue ver? O que acontece no Antigo Testamento é que o princípio masculino permanece personificado e o princípio feminino é reduzido a um elemento. O primeiro verso diz que quando Deus criou, o sopro de Deus pairava sobre as águas. E a água é a deusa.

[Tom] Eu suponho que você não acredite em um real e literal “sete dias da criação”.

[Joseph] Claro que não. Isso não tem nada a ver com a história evolutiva real como agora a entendo.

[Tom] Como você reconcilia esses dois relatos?

[Joseph] Por que alguém deveria se preocupar com isso? Mais do que, por exemplo, em procurar reconciliar a história dos índios Navajos?

[Tom] Eu me lembro de ouvir uma palestra maravilhosa do falecido Louis Leakey em que ele insistiu que não havia conflito entre o relato de Gênesis sobre a criação e o que ele havia descoberto.

[Joseph] Bem, ele pode não ter lido com o cuidado devido. Há dois relatos bíblicos sobre a criação no mesmo Gênesis, um no primeiro capítulo e um no segundo, e eles são muito contrários um ao outro.

Já era tempo de havermos parado com esta ideia de, “Ó, nós temos de acreditar na Bíblia”. Eu teria ido logo trabalhar com a questão dos Navajo, onde eles se elevam através de quatro mundos. Um é vermelho, outro amarelo…

[Tom] Mas se você jogar fora a Bíblia como historia, não é também jogá-la fora como um imperativo moral?

[Joseph] Sim. Eu não acho que a Bíblia seja o imperativo moral de ninguém, a não ser que você queira ser um judeu tradicional. Isso é o que a Bíblia lhe diz.

[Tom] Ela não lhe diz como ser uma boa pessoa?

[Joseph] Não.

[Tom] Muitas pessoas pensam assim.

[Joseph] Basta lê-la. Talvez ela lhe dê algumas dicas, mas a Bíblia também lhe diz para matar todos na terra de Canaã, até mesmo os ratos.

[Tom] Como foi a passagem que você citou para justificar as ideias de exclusividade [dos judeus]?

[Joseph] “Não há Deus em todo o mundo senão em Israel”. Isso deixa todos de fora, exceto os judeus. Esta é uma das interpretações mais chauvinistas da moralidade.

Um dos grandes textos está em Êxodo, quando os judeus são instruídos a matar os cordeiros e colocar o sangue em sua porta para que o anjo da morte não mate nenhum dos seus filhos, e em seu lugar ele deve matar os filhos dos egípcios. E na noite anterior eles saem para pedir aos seus amigos egípcios que lhe emprestem as suas joias, e assim por diante. Então, na noite seguinte, eles fogem com as joias, e o texto diz que assim eles espoliaram os egípcios. Você chama a isto de boa ética?

[Tom] Qual é o enredo de algo como Caim e Abel?

[Joseph] Há um diálogo sumério muito interessante que apareceu cerca de 1.500 anos antes da história de Caim e Abel. Trata-se de um pastor e um agricultor competindo pelo favor da deusa. A deusa escolhe dar preferencia ao agricultor e a sua oferta. Bem, os judeus chegam nesta região, e eles não são agricultores, eles são pastores. E eles não têm uma deusa, eles têm um deus. Então, eles viraram a coisa toda de cabeça para baixo, e fazem Deus favorecer o pastor contra o agricultor.

O interessante é que por todo o Antigo Testamento, é o irmão mais novo que derruba o irmão mais velho em favor de Deus. Acontece diversas vezes. Isto é simplesmente em função do fato de que os judeus chegam aquela região como “o irmão mais novo”. Eles vêm como bárbaros beduínos do deserto, e chegam em áreas agrícolas altamente sofisticadas; e eles estão declarando que, embora os outros sejam os mais velhos – como Caim o era, o fundador das cidades e todas estas coisas –, eles são os preferidos de Deus. É apenas uma outra forma de chauvinismo santificado.

Você consegue entender o ponto de vista das religiões exclusivistas, não consegue? – “Você adora a Deus da sua maneira, eu vou adorar a Deus na maneira dele.”

» Em seguida, na parte final da entrevista, a modernidade e a carência de mitos…

***

Crédito da imagem: Android Jones

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Reflexões místicas com Joseph Campbell (parte final)

Uma entrevista com Joseph Campbell, por Tom Collins
Originalmente publicada na revista The New Story (1985)

Tradução de Gabriel Fernandes Bonfim; Revisão de Rafael Arrais

« continuando da parte 3

4. A modernidade e a carência de mitos
[Tom] Eu entendo que houve uma série de conflitos entre os conceitos religiosos ocidentais e orientais na igreja primitiva. Acho Pelágio [da Bretanha] uma figura fascinante, por exemplo.
[Joseph] O Pelágio do século IV era ou um galês ou um irlandês, eu acho. Ele manteve a tradição ocidental individualista contra o que eu chamaria o tribalismo do Oriente, e foi considerado um herege. Ele expos os principais argumentos contra as doutrinas nas quais Santo Agostinho, seu contemporâneo, era o campeão. Uma delas foi a doutrina do pecado original. Pelágio disse, “Você não pode herdar o pecado de outro. Portanto, o pecado de Adão não é herança de ninguém.”
[Tom] Os pecados do pai não recaem sobre o filho?
[Joseph] Isso é tudo filosofia oriental, não europeia. Outra coisa que Pelágio disse é que você não pode ser salvo pelo ato de um outro. Isto diz respeito a Jesus na cruz, e derruba toda a crença [de que ele veio “pagar nossos pecados”]. Claro que [sua ideia] foi rejeitada. Pelágio estava defendendo a doutrina da responsabilidade individual. Eu não sei de onde vem, mas certamente era típico, eu diria, dos europeus, em oposição aos pontos de vista orientais. Você era um indivíduo, e não apenas o membro de um grupo.
[Tom] Isso soa como aquele trecho na lenda do Rei Arthur…
[Joseph] “Cada cavaleiro adentrou na floresta num ponto que ele havia escolhido, onde ela era mais escura e não se via caminho algum.” – Isto vem de A jornada do Santo Graal [The Quest of the Sangral], de 1215, aproximadamente, na França.
[Tom] Como é que eles esperam encontrar o seu caminho, então?
[Joseph] Se aventurando.
[Tom] E é isso que todos nós fazemos na vida?

[Joseph] Sim. Caso contrário, você iria seguir o caminho de outra pessoa, seguindo por vias já desgastadas com as pegadas de tantos andarilhos. Ninguém no mundo jamais foi você antes, com os seus dons, habilidades e potencialidades. É uma pena desperdiça-los fazendo o que alguém já realizou anteriormente.
[Tom] Você disse certa vez que nenhuma sociedade humana foi encontrada onde os temas mitológicos não eram celebrados – “magnificados em canções e experienciados em êxtases de luz e visões”. O que dizer sobre a nossa sociedade?
[Joseph] O que aconteceu na nossa é que, a nível oficial a tônica recai sobre a economia e as práticas políticas, e tem havido uma eliminação sistemática da dimensão espiritual. Mas ela existe em nossas poesias e artes. Ela existe. Você pode encontrá-la aqui. Está em uma condição recessiva, mas do contrário as pessoas não teriam vida espiritual de maneira alguma.
[Tom] Ela não estaria viva também em algumas fases do movimento ecológico?
[Joseph] Sim. E esse interesse agora no folclore indígena americano, isso não é interessante? O povo brutalizado e rejeitado – e são eles quem trazem a mensagem pela qual este país tem esperado.

Há um provérbio terrível de Spengler, que eu li num de seus livros, “Jahre der Entscheidung”, “ano da decisão”, que são os anos em que vivemos agora. Ele disse, “Quanto a América, é um amontoado de caçadores de dólares, sem passado, sem futuro”. Quando eu li isso na década de 30 eu levei a mal. Eu pensei que era um insulto. Mas no que as pessoas estão interessadas? E então Lenin diz: “Quando estivermos a ponto de enforcar os capitalistas, eles irão competir para nos vender a corda”. E é isso que estamos fazendo. Ninguém está se importando com o que sua cultura representa. Eles estão se perguntando se o agricultor no Centro-Oeste vai votar ou não em você, por você ter vendido o trigo dele para os russos. É uma terrível falta de qualquer outra coisa que não preocupações econômicas, é isto o que estamos enfrentando. Esta é a velhice e a morte; o fim. Esta é a maneira como eu enxergo este assunto. Eu não tenho nada que não julgamentos negativos sobre ele.

Olhe para o que as pessoas estão lendo nos jornais. Você entra no metrô e as pessoas estão lendo todas sobre a mesma coisa – este assassinato, aquele assassinato. Este estupro, este divórcio. Observem os tópicos que não nos saem da cabeça! O foco jornalístico em nossas vidas é o assassinato. Assassinato!
[Tom] Você não vê tal conflito acabar? Não há nenhum tipo de ordem mundial que poderia nos trazer isso?
[Joseph] Ela teria que ser uma ordem mundial, mas então ainda haveria luta dentro dela, assim como há luta dentro de nossa ordem nos Estados Unidos. Nunca me apeguei a nenhuma ideia de revolução, pois já conheci revolucionários demais.

Nota do revisor: Eu penso que Campbell, em sua sabedoria, acreditava que a verdadeira revolução é a que ocorre dentro da alma humana, e não em seu exterior.
[Tom] Se os únicos mitos que existem então são aqueles em que todo o mundo acredita – Cristianismo, Judaísmo, Hinduísmo, Budismo – as pessoas não poderiam criar um novo mito, que atendesse as necessidades de hoje?
[Joseph] Não, porque mitos não vêm a existência dessa forma. Você tem que esperar para que eles apareçam. Mas eu não acredito que nada desse tipo vá acontecer, porque existem muitos pontos de vista dispersos ao redor do mundo. Todos os mitos têm estado até agora dentro de horizontes limitados, e as pessoas têm de estar de acordo com suas dinâmicas de vida, suas experiências de vida.
[Tom] Os gregos antigos foram cercados pela presença de deuses – pelas estátuas e as lembranças desses deuses.
[Joseph] Mas isso não funciona mais. O cristianismo não está movendo a vida das pessoas hoje em dia. O que está movendo a vida das pessoas é o mercado de ações e as pontuações do beisebol. O que tem interessado às pessoas? Há um nível de pensamento totalmente materialista que tomou conta do mundo. Não há mais nem mesmo um ideal pelo qual alguém esteja lutando.

***

Nota de Tom Collins (o entrevistador): Minha vez. Eu gostaria de adicionar meus comentários aos de Joseph Campbell que diz respeito à Bíblia [ver parte 3]. Minha intenção em incluir seus comentários não foi para desmerecer as tradições baseadas na Bíblia em relação a outras tradições importantes, como o hinduísmo ou budismo. Do meu ponto de vista, a literatura sagrada de todas estas tradições foi escrita em uma linguagem da era dos impérios, e está profundamente envolvida com a consciência dos senhores da guerra. Se quisermos avançar, precisamos olhar para estes textos com olhos claros, capazes de ver o chauvinismo tribal, o machismo, o militarismo, etc., pelo que eles são. Só então seremos capazes de traduzir a sabedoria que eles de fato têm, em uma linguagem renovada, adequada para a Era Planetária.

***

Nota do revisor: É sempre reconfortante e esclarecedor tomar contato com a sabedoria de Joseph Campbell, mas penso que o fim desta entrevista ressoou particularmente sombrio. Ocorre que, já nos idos da década de 80, o olhar atento de Campbell sobre a sociedade “sem mitos” já antecipava, ainda que intuitivamente, uma crise de sentido da modernidade (ou pós-modernidade, ou seja lá como queiram chamar) que só se revela em todas as suas nuances e conflitos no século XXI.

Creio que este trecho de uma breve entrevista de Eduardo Galeano aos jovens espanhóis que se manifestavam “contra o sistema que aí está”, na Praça Catalunya, há alguns anos, seja ao menos uma espécie de sinalização para alguma luz que chegará, espero, senão com a Primavera, ao menos com a Alvorada:

“Aqui vejo reencontro, energia de dignidade e entusiasmo. O entusiasmo vem de uma palavra grega que significa “ter os deuses dentro”. E toda vez que vejo que os deuses estão dentro de uma pessoa, ou de muitas, ou de coisas, ou da Natureza, eu digo para mim mesmo: “Isto é o que faltava para me convencer de que viver vale a pena”.

Então estou muito contente de estar aqui, porque é o testemunho de que viver vale a pena. E que viver está muito, muito mais além das mesquinharias da realidade política e da realidade individual, onde só se pode “ganhar ou perder” na vida! E isso importa pouco em relação com esse outro mundo que te aguarda. Esse outro mundo possível.

Este mundo de merda está grávido de um outro!

O mundo a espera de nascer é diferente, e de parto complicado. Mas com certeza pulsa no mundo em que estamos. O mundo que “pode ser” pulsando no mundo que “é”. Eu o reconheço nessas manifestações espontâneas, como as desta praça.

Alguns me perguntam “o que vai acontecer?”; “e depois, o que vai ser?”. Pela minha experiência, eu respondo: “Não sei o que vai acontecer… Não me importa o que vai acontecer, mas o que está acontecendo!”. Me importa o tempo que “é”.”

***

Crédito da imagem: Android Jones

O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do .

Ad infinitum

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#Mitologia

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/reflex%C3%B5es-m%C3%ADsticas-com-joseph-campbell-parte-final

Devoradores de Maçãs

»
Parte final da série “A ciência da inspiração” ver parte 1 | ver parte 2

Metáfora: Figura de linguagem em que há a substituição de um termo ou conceito por outro, criando-se uma dualidade de significado.

Um dos mitos mais conhecidos da humanidade trata de jardim do Éden, onde os primeiros humanos criados por Deus, a sua imagem e semelhança, viviam imortais, ociosos e aparentemente felizes. Isso foi até que eles resolveram comer os frutos (o mito fala em maçãs) da árvore do conhecimento do bem e do mal, da qual Deus havia alertado que eles não deveriam comer, ou conheceriam a morte. E o resto todos já sabem: Deus ficou furioso e os expulsou do Éden apenas com alguns trapos feitos de couro de animais, pois que agora um se envergonhava da nudez do outro. E Adão e Eva povoaram o mundo, muito embora o pecado de Eva tenha nos amaldiçoado por muitos e muito anos, até que Jesus veio pagá-lo para nós.

Joseph Campbell, grande estudioso do assunto, dizia que “o mito é algo que nunca existiu, mas que existe sempre”. Ele provavelmente queria dizer que os mitos tratam de verdades que existem fora do tempo, ou seja, que existem sempre. Todo grande mito da humanidade fundamenta-se em uma ou mais dessas verdades, dessa partícula de essência que emana da eternidade. Foi exatamente por isso que os sábios antigos tiveram o cuidado de popular suas histórias com vários desses mitos. Eles sabiam, certamente, que muitos aldeãos e camponeses ignorantes de sua época iriam interpretar tais histórias ao pé de letra, de forma literal – mas sem dúvida também tinham a esperança de tocar a alma dos outros sábios que viriam a Terra em épocas posteriores.

O mito do Éden é repleto de metáforas. Talvez a mais interessante delas seja exatamente o paradoxo do pecado pelo qual Eva foi condenada. Ora, antes de devorar a maçã, ela era sem dúvida ignorante do conhecimento (seja do bem, seja do mal). Se nunca houvesse comido o fruto proibido, estaria ociosa e imortal, por toda eternidade, em um jardim onde poucas coisas interessantes acontecem – mas seria feliz, acredita-se. Animais ignorantes também são “felizes” vivendo no meio selvagem; Entretanto, as pressões do meio-ambiente nunca os deixaram relaxar: na guerra do sofrimento e da fome, mesmo em meio a sua “felicidade”, presas e predadores lutaram pela sobrevivência por longos e longos anos. Não fosse por essa pressão da natureza, talvez a Terra estivesse até hoje populada por hominídios, ou nem mesmo isso, por roedores e outros pequenos mamíferos…

Pois foi exatamente quando adquiriu à consciência e o conhecimento do bem e do mal que o ser humano se tornou quem é. Por um lado, portanto, a metáfora do fruto proibido é apenas uma história fantasiosa, por outro, é uma explicação surpreendentemente avançada para a época em que foi escrita. Será que os rabinos judeus tinham ideia de que estavam a antecipar um dos grandes mistérios da evolução das espécies? Será que tinham pleno conhecimento daquilo que escreviam talvez guiados pela pura intuição? Acredito que a resposta não esteja nem tanto lá, nem tanto cá. Certamente os sábios antigos tinham noção de que lidavam com assuntos sagrados, e que os estavam passando adiante “cifrados” em metáforas dentro de mitos. Mas da mesma forma eles certamente tinham consciência de que não tinham como saber tudo, e é exatamente por isso que passavam tais símbolos para as gerações futuras – como uma mensagem numa garrafa arremessada no oceano, a espera de alguma praia onde existam seres mais sábios para decifrar seus enigmas.

Nós já ficamos com nós na cabeça ao abordarmos o conceito de programação genética. E, da mesma forma, já consideramos com carinho a possibilidade da mente humana ser o resultado da interseção de módulos mentais (naturalista, técnico e social). Além disso, também falamos sobre como a neurologia compreende a criatividade: o foco mental em novos estímulos e ideias, em fluxo e trocas constantes com as ideias que já dominamos em nossas respectivas artes ou disciplinas… Ora, em posse dessas informações, talvez o processo misterioso dos algoritmos genéticos não seja mais tão insondável.

Vamos falar, por exemplo, de poesia: da mesma forma que gerações de algoritmos se digladiam no meio-ambiente do problema a ser resolvido, todos os estímulos que os poetas enviam para suas mentes – através de seus olhares sempre atentos aos menores detalhes da natureza à volta – nada mais são do que algoritmos em busca da solução de sua próxima poesia. A grande diferença é que, ao contrário dos programadores, os poetas geralmente sequer tem ideia de qual é o problema a ser resolvido – de certa forma, para eles, as soluções chegam junto com os problemas, embora nenhuma solução seja realmente a derradeira, e todos os problemas sejam quase sempre infinitos. Nessa batalha mental travada por estímulos ambíguos e aparentemente sem relação uns com os outros, ninguém sai derrotado, pois o fruto é sempre uma nova legião de metáforas. E estas maçãs são divinas, jamais proibidas… Os poetas são verdadeiros devoradores de maçãs!

Vejamos uma dessas “soluções”, pelo grande poeta místico, Gibran Khalil Gibran:

Na floresta só existe lembrança dos amorosos
Os que dominaram o mundo e oprimiram e conquistaram,
seus nomes são como letras dos nomes dos criminosos
Conquistador entre nós é aquele que sabe amar
Dá-me a flauta e canta!
E esquece a injustiça do opressor
Pois o lírio é uma taça para o orvalho e não para o sangue

Neste belo trecho do poema “A floresta”, é impossível chegar a uma compreensão efetiva do que o poeta quis dizer sem usar ao menos parte de nossa emoção e nossa intuição juntamente com nossa razão… Mesmo assim, ficará sempre aquela dúvida se realmente compreendemos todo o bem e todo o mal deste belo fruto da inspiração de Gibran. O lírio é uma taça para o orvalho, e não para o sangue – quantas e quantas interpretações e conceitos contidos em apenas uma frase.

Há ainda outros poetas que conseguem inserir metáforas dentro de metáforas dentro de ainda outras metáforas… Quando Fernando Pessoa diz que “o poeta é um fingidor, finge ser dor a dor que deveras sente”, ele está nos trazendo para uma análise existencial da qual a solução jamais será algo racional, objetivo, tal qual 2+2=4. Nesse sentido, é possível que os algoritmos genéticos sejam extensões de nossa racionalidade, aplicadas a problemas descobertos por nossos cientistas e matemáticos, e que tudo o que fazem é poupar seus cérebros de rodar trilhões de cálculos, antecipando uma solução que em séculos passados seria inviável. Entretanto, na poesia pode ser mais depressa ainda: a solução chega junto com o problema. A diferença é que na poesia a solução jamais será final, e após termos devorado todas as maçãs do Éden, teremos de sair nós mesmos em busca de mais conhecimento – ainda que o velho barbudo tenha se esquecido de nos expulsar…

Muito do debate acerca da existência de Deus se resume ao ancião das metáforas do antigo testamento bíblico – sim, pois o Deus de Jesus é sempre um coadjuvante, que intervém apenas por emanação de pensamentos, e não de forma “direta”. Esses debates se parecem mais com debates entre crianças que brincam em uma praia – uma delas constrói um castelo de areia e diz que “esta é a cidade de deus”… Enquanto outras crianças com senso crítico mais desenvolvido esperam as ondas da maré chegar e destruir os castelos, e então bradam convictas: “Viram! Não lhes disse que este deus tinha pés de barro?”.

Ora, mas e se o reino de Deus estiver em sua volta? E se ele abarcar não só os castelos de areia, como cada grão de areia da praia, e cada gota de água do mar, e cada nuvem e cada pássaro a planar pelo céu, e cada sol a flutuar pelo Cosmos, e cada partícula a bailar por nosso cérebro e nossa alma?

Einstein dizia que “a ciência sem a religião é manca; a religião sem a ciência é cega”. Ora, um dos grandes cientistas de nosso tempo, em sua maturidade, defendia uma “religiosidade cósmica”, baseada na presença de um poder racional superior, revelado no universo ainda oculto ao conhecimento da ciência. Muitos outros cientistas e filósofos foram teístas, deístas, panteístas, agnósticos, etc. Para quem possuí muita ciência, fica muito difícil apostar que tudo o que há surgiu do nada como numa “passe de mágica cósmico”. No mínimo, é preciso admitir que tal questão não pode ser compreendida hoje, e talvez jamais possa… De qualquer forma, pela lógica, também se faz necessário concordar com Espinosa (como Einstein, aliás, concordou) quando este afirma em sua “Ética” que “uma substância não pode criar a si mesma”…

E se Deus for um grande programador cósmico? E se nós formos parte dos algoritmos divinos que ele inseriu em sua criação? E se no núcleo de cada átomo, nos filamentos de cada DNA, em cada um de nosso neurônios, nas partículas etéreas de nossa alma, não estiverem inscritos códigos sagrados que ditam que este Cosmos nada mais é do que um problema em solução? E se formos nós mesmos os personagens e co-criadores desta poesia infinita? Navegando dentre raios cósmicos e poeira de estrelas, é impossível participar deste problema sem estarmos encharcados de Deus por todos os lados e a todos os momentos…

O reino de Deus sempre esteve a nossa volta. Nós jamais fomos expulsos do Éden. Tudo o que falta é compreendermos isso – que o Éden jaz, antes de mais nada, em nossa consciência… E que Deus ou o Cosmos jamais foram uma solução, jamais uma muleta na qual pudéssemos nos acomodar, mas sim um grandioso problema que vem sendo solucionado passo a passo, inspiração por inspiração. Nós devoramos uma maçã de cada vez…

Na floresta não existe nem rebanho, nem pastor

Quando o inverno caminha, segue seu distinto curso como faz a primavera

Os homens nasceram escravos daquele que repudia a submissão

Se ele um dia se levanta, lhes indica o caminho, com ele caminharão
Dá-me a flauta e canta!

O canto é o pasto das mentes,

e o lamento da flauta perdura mais que rebanho e pastor

Gibran Khalil Gibran, trecho de “A floresta”.

***

Crédito das fotos: [topo] Guto Lacaz (exposição “Einstein no Brasil”); [ao longo] Marcos Homem

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