O Que John Dee Viu No Espelho Negro?

John Dee realmente existiu. Nasceu em 1527 e morreu em 1608. Sua vida foi tão extraordinária que foram os romancistas que melhor o descreveram em obras de imaginação do que a maior parte de seus biógrafos. Estes romancistas são Jean Ray e Gustav Meyrink. Matemático distinto, especialista nos clássicos, John Dee inventou a idéia de um meridiano de base: o meridiano de Greenwich. Levou à Inglaterra, tendo-os encontrado em Louvain, dois globos terrestres de Mercator, assim como instrumentos de navegação. E foi assim o início da expansão marítima da Inglaterra.

Pode-se dizer, dessa forma – não participo dessa opinião – que John Dee foi o primeiro a fazer espionagem industrial, pois levou à Inglaterra, por conta da Rainha Elizabeth, quantidade enorme de segredos de navegação e fabricação. Foi certamente um cientista de primeira ordem, ao mesmo tempo que um especialista dos clássicos, e manifesta a transição entre duas culturas que, no século XVI, não eram, talvez, tão separadas como o são agora.

Foi também muitas outras coisas, como veremos. No curso de seus brilhantes estudos em Cambridge, pôs-se, infelizmente para ele, a construir robôs entre os quais um escaravelho mecânico que soltou durante uma representação teatral e que causou pânico. Expulso de Cambridge por feitiçaria, em 1547, foi para Louvain. Lá, ligou-se a Mercator. Tornou-se astrólogo e ganhou a vida fazendo horóscopos, depois foi preso por conspiração mágica contra a vida da Rainha Mary Tudor. Mais tarde, Elizabeth libertou-o da prisão e o encarregou de missões misteriosas no continente.

Escreveu-se com freqüência que sua paixão aparente pela magia e feitiçaria seriam uma “cobertura” à sua verdadeira profissão: espião. Não estou totalmente convencido disto.

Em 1563, numa livraria de Anvers, encontrou um manuscrito, provavelmente incompleto, da Steganographie de Trithème. Ele a completou e pareceu ter chegado a um método quase tão eficaz quanto o de Trithème.

Publicando a primeira tradução inglesa de Euclides, e estudando para o exército inglês a utilização de telescópios e lunetas, continuou suas pesquisas sobre a Steganographie. E em 25 de maio de 1581, elas superaram todas as suas esperanças.

Um ser sobre-humano, ou ao menos não-humano, envolto em luz, apareceu-lhe. John Dee chamou o anjo, para simplificar. Esse anjo deixou-lhe um espelho negro que existe ainda no Museu Britânico. É um pedaço de antracite extremamente bem polido. O anjo lhe disse que olhando naquele cristal veria outros mundos e poderia ter contato com outras inteligências não-humanas, idéia singularmente moderna. Anotou as conversações que teve com seres não-humanos e um certo número foi publicado em 1659 por Meric Casaubon, sob o título “A true and faithfull relation of what passed between Dr. John Dee and some spirits”.

Um certo número de outras conversações é inédito e os manuscritos se encontram no Museu Britânico.

A maior parte das notas tomadas por John Dee e dos livros que preparava, foram, como veremos, destruídos. Entretanto, restam-nos suficientes elementos para que possamos reconstituir a língua que esses seres falavam, e que Dee chamou a Língua Enochiana.

É a primeira linguagem sintética, a primeira língua não-humana de que se tem conhecimento. É, em todo caso, uma língua completa que possui um alfabeto e uma gramática. Entre todos os textos em língua enochiana que nos restam, alguns concernem à ciência matemática mais avançada do que ela estava no tempo de John Dee.

A língua enochiana foi a base da doutrina secreta da famosa sociedade Golden Dawn, no fim do século XIX.

Dee percebeu logo que não poderia lembrar-se das conversações que tinha com os visitantes estrangeiros. Nenhum mecanismo para registrar a palavra existia. Se dispusesse de um fonógrafo ou de um magnetóide, o seu destino, e talvez o do mundo, estariam mudados.

Infelizmente, Dee teve uma idéia que o levou a perder-se. Entretanto, tal idéia era perfeitamente racional: encontrar alguém que olhasse o espelho mágico e mantivesse conversações com os extraterrestres, enquanto ele tomaria nota das conversas. Em princípio, tal idéia era muito simples. Infelizmente, os dois visionários que Dee recrutou, Barnabas Saul e Edward Talbot, revelaram-se como grandes canalhas. Desvencilhou-se rapidamente de Saul, que parecia ser espião a soldo de seus inimigos. Talbot, ao contrário, que trocou seu nome pelo de Kelly, agarrou-se. E agarrou-se tanto que arruinou Dee, seduziu sua mulher, levou-o a percorrer a Europa, sob o pretexto de fazer dele um alquimista, e acabou por estragar sua vida. Dee morreu, finalmente, em 1608, arruinado e completamente desacreditado. O Rei James I, que sucedera a Elizabeth, recusou-lhe uma pensão e ele morreu na miséria. A única consolação que se pode ter é de pensar que Talbott, aliás, Kelly, morreu em fevereiro de 1595, tentando escapar da prisão de Praga. Como era muito grande e gordo, a corda que confeccionara rompeu-se e ele quebrou os braços e as pernas. Um justo fim a um dos mais sinistros crápulas que a história conheceu.

Apesar da proteção de Elizabeth, Dee continuou a ser perseguido, seus manuscritos foram roubados assim como uma grande parte de suas anotações.

Se estava na miséria, temos que reconhecer que parcialmente a merecera. Com efeito, após ter explicado à Rainha Elizabeth da Inglaterra que era alquimista, solicitara um amparo financeiro. Elizabeth da Inglaterra disse-lhe, muito judiciosamente, que se ele sabia fazer o ouro, não precisava de subvenções, pois teria suas próprias. Finalmente, John Dee foi obrigado a vender sua imensa biblioteca para viver e, de certo modo, morreu de fome.

A história reteve sobretudo os inverossímeis episódios de suas aventuras com Kelly, que são evidentemente pitorescos. Vimos aparecer aí, pela primeira vez, a troca de mulheres que, atualmente, é tão popular nos Estados Unidos.

Mas essa estatuária de Epinal obscureceu o verdadeiro problema, que é o da língua enoquiana, a dos livros de John Dee que nunca chegaram a ser publicados.

Jacques Sadoul, em sua obra “O Tesouro dos Alquimistas”, conta muito bem parte propriamente alquimista das aventuras do Dr. Dee e de Kelly. Recomendo-a ao leitor.

Voltemos à linguagem enoquiana e ao que se seguiu. E falemos primeiro da perseguição que se abateu sobre John Dee, desde que começou a dar a entender que publicaria suas entrevistas com “anos” não-humanos. Em 1597, em sua ausência, desconhecidos excitaram a multidão a atacar sua casa. Quatro mil obras raras e cinco manuscritos desapareceram definitivamente, e numerosas notas foram queimadas. Depois a perseguição continuou, apesar da proteção da Rainha da Inglaterra. Foi, finalmente, um homem alquebrado, desacreditado, como o seria mais tarde Madame Blavatsky, que morreu aos 81 anos de idade. Em 1608, em Mortlake. Uma vez mais a conspiração dos Homens de Preto parece ter vencido.

A excelente enciclopédia inglesa Man, Mith and Magic observou muito oportunamente em seu artigo sobre John Dee: “Apesar de os documentos sobre a vida de John Dee serem abundantes, fez-se pouca coisa para explicá-lo e interpretá-lo. Isto é verdadeiro.

Ao contrário, as calúnias contra Dee não faltam. Nas épocas de superstição afirmava-se que ele faria magia negra. Em nossa época racionalista pretendeu-se que seria um espião, que fazia alquimia e magia negra para camuflar suas verdadeiras atividades. Tal tese é notadamente a da enciclopédia inglesa que citamos acima.

Entretanto, quando examinamos os fatos, vemos primeiro um homem bem dotado, capaz de trabalhar 22 horas ao dia, leitor rápido, matemático de primeira ordem. Ademais, ele construiu autômatos, foi um especialista de óptica e de suas aplicações militares, da química.

Que foi ingênuo e crédulo, é possível. A história de Kelly o mostra. Mas que fez uma importante descoberta, a mais importante, talvez, da história da humanidade, não está totalmente excluso. Parece-me possível contudo, que Dee tenha tomado contato, por telepatia ou clarividência, ou outro meio parapsicológico, com seres não-humanos. Era natural, dada a mentalidade da época, que ele atribuísse a esses seres uma origem Angélica, em vez de fazê-los vir de outro planeta ou de outra dimensão. Mas comunicou-se bastante com eles para aprender uma língua não-humana.

A idéia de inventar uma língua inteiramente nova não pertencia à época de John Dee e nem de sua mentalidade. Foi muito depois que Wilkins inventou a primeira linguagem sintética. A linguagem enoquiana é completa e não se parece com nenhuma língua humana.

É possível, evidentemente, que Dee a tenha tirado integralmente de seu subconsciente ou inconsciente coletivo, mas tal hipótese é tão fantástica quanto a da comunicação com seres extraterrestres. Infelizmente, a partir da intervenção de Kelly, as conversações estão visivelmente truncadas. Kelly inventa-as e faz dizer aos anjos ou espíritos o que lhe convinha. E do ponto de vista de inteligência e imaginação, Kelly era pouco dotado. Possui-se notas sobre uma conversação onde pede a um dos “espíritos” cem libras esterlinas durante quinze dias.

Antes de conhecer Kelly, entretanto, Dee publicara um livro estranho: A Mônada Hieroglífica. Trabalhou nesse livro sete anos, mas após ter lido a Steganographie, terminou-o em doze dias. Um homem de Estado contemporâneo, Sir William Cecil, declarou que: “os segredos que se encontram na Mônada Hieroglífica são da maior importância para a segurança do reino.”

Certamente, quer-se ligar tais segredos à criptolografia, o que é bastante provável. Mas quando se quer relacionar tudo em John Dee com a hipótese de espionagem, isto me parece excessivo, pois os alquimistas e os magos utilizavam muito a criptografia, sob as formas mais complexas que não eram usadas pelos espiões. Tenho tendência a tomar Dee ao pé da letra e pensar que, por auto-hipnose produzida pelo seu espelho, ou por outras formas, ele ultrapassou uma barreira entre os planetas ou entre outras dimensões.

Por desgraça, ele era, por própria confissão, desprovido de todos os dons paranormais. Foi mal aceito pelos “médiuns” e isto terminou em desastre.

Desastre aliás provocado, explorado, multiplicado pelos “Superiores” que não queriam que ele publicasse às claras o que disse em código na Mônada Hieroglífica. A perseguição de Dee começou em 1587 e só parou com sua morte. Exerceu-se aliás também no continente, onde o rei da Polônia e o Imperador Rodolfo II foram advertidos contra Dee por mensagens “vindas dos espíritos”, e onde, a 6 de maio de 1586, o número apostólico entregou ao imperador um documento acusando John Dee de necromancia.

Foi um homem acovardado que chegou à Inglaterra, renunciando a publicar, e que morreu como reitor do Colégio de Cristo, em Manchester, posto que teve de 1595 à 1605, e que, ao que parece, não lhe deu satisfação.

Resta ainda, a respeito desse posto, uma problema não resolvido. Na mesma época o tzar da Rússia convidou John Dee para ir até Moscow, a título de conselheiro científico. Ele deveria receber um salário de duas mil livras esterlinas ao ano, quantia alta correspondente a um pouco mais de duzentas mil libras hoje, com moradia principesca e uma situação, que, de acordo com a carta do tzar, “faria dele um dos homens mais importantes da Rússia”. Entretanto, John Dee recusou. Elizabeth da Inglaterra teria se oposto? Teria ele recebido ameaças?

Não se sabe, os documentos são vagos. Em todo caso, as diversas calúnias segundo as quais Dee, completamente dominado por Kelly, percorrera o continente espoliando príncipes e ricos, uns após outros, perdem sua razão de ser quando se considera essa recusa. Talvez temesse que o tzar o obrigasse a empregar segredos que havia descoberto e tornasse, assim, a Rússia dominadora do mundo.

O que quer que seja, Dee se apresenta a nós como um homem que recebeu visitas de seres não-humanos, que aprendeu sua linguagem e procurou estabelecer com eles uma comunicação regular. O caso é único, sobretudo quando se trata de um homem do valor intelectual de John Dee.

Infelizmente, não se pode deduzir nada, a partir do que Dee nos deixou, do lugar onde habitariam tais seres, ou a natureza psíquica deles. Disse, simplesmente, que são telepatas e que podem viajar no passado e no futuro. É a primeira vez, que eu saiba, que aparece a idéia de viajar no tempo.

Dee esperava aprender desses seres tudo sobre as leis naturais, tudo sobre o desenvolvimento futuro da matemática. Não se tratava nem de necromancia nem de espiritualidade. Dee tinha a posição de um sábio que queria aprender segredos de natureza essencialmente científica. Ele mesmo descreve-se, a todo instante, como filósofo matemático.

A maior parte das notas desapareceu no incêndio de sua casa, outras foram destruídas em outras oportunidades e por pessoas diferentes. Restam-nos algumas alusões contidas em “A verdadeira relação de Casaubon”, e em certas notas que ainda existem. Tais indicações são extremamente curiosas. Dee afirma que a projeção de Mercator não é senão uma primeira aproximação. Segundo ele, a Terra não é exatamente redonda, e seria composta de várias esferas superpostas alinhadas ao longo de uma outra dimensão.

Entre essas esferas haveria pontos, ou antes, superfícies de comunicação, e assim é que a Groenlândia se estende ao infinito sobre outras terras além da nossa. Por isso, insiste Dee nas várias súplicas à Rainha Elizabeth, seria bom que a Inglaterra se apoderasse da Groenlândia de maneira a ter em suas mãos a porta para outros mundos.

Outra indicação: as matemáticas não estão senão no começo e pode-se ir além de Euclides, que Dee, lembramos, foi o primeiro a traduzir para o inglês. Dee teve razão ao afirmar isso, e as geometrias não-euclidianas que apareceriam mais tarde, confirmam seu ponto de vista.

É possível, diz igualmente Dee, construir máquinas totalmente automáticas que fariam todo o trabalho do homem. Isto, acrescenta, já foi realizado por volta de 1585 – gostaríamos muito de saber onde.

Insiste, igualmente, na importância dos números e na considerável dificuldade da aritmética superior. Uma vez mais, teve razão. A teoria dos números revelou-se como sendo o ramo mais difícil das matemáticas, bem mais que a álgebra ou a geometria.

É muito importante, notou John Dee, estudar os sonhos que revelam, ao mesmo tempo, nosso mundo interior e mundos exteriores. Esta visão, à moda de Jung, é muito avançada para a sua época. É essencial, notava ainda, esconder da massa segredos que possam ser extremamente perigosos. Encontra-se, ainda aí, uma idéia moderna. Como se encontra outra com relação a esse tema no jornal particular de Dee: saber que se pode tirar do conhecimento da natureza poderes perfeitamente naturais e ilimitados, mas que é necessário empregar muito dinheiro nessa pesquisa.

Foi para ter esse dinheiro que procurou a proteção dos grandes, e a fabricação do ouro. Nenhuma nem outra foram conseguidas. Se pudesse encontrar um mecenas, o mundo estaria bem mudado.

Entre todos os que encontrou, conheceu William Shakespeare (1564-1616)? Creio que sim. Um certo número de críticos shakespereanos estão acordes ao admitir que John Dee é o modelo do personagem Próspero, em “Tempestade”. Ao contrário, não se encontrou, ainda, que eu saiba, anti-shakespereanos bastante loucos para imaginar ser John Dee o autor das obras de Shakespeare. Entretanto, Dee me parece ser melhor candidato a esse título que Francis Bacon.

Não posso resistir ao prazer de citar esta teoria do humorista inglês A. A. Milne. Segundo ele, Shakespeare escreveu não só suas próprias obras como também o Novum Organum para o Conde de Francis Bacon, que era completamente iletrado! Tal teoria levantou em ira os baconianos, isto é, aqueles que pretendem ter sido Francis Bacon o autor das obras de Shakespeare.

Passando para outra lenda, John Dee jamais traduziu o livro maldito Necronomicon, de Abdul Al-Azred, pela simples razão que tal obra jamais existiu. Mas, como bem disse Lin Carter, se o Necronomicon tivesse existido, Dee seria, evidentemente, o único homem a poder encontrá-lo e traduzi-lo!

Infelizmente, esse Necronomicon foi inventado inteiramente por Lovecraft, que me confirmou esse fato por carta. Que lástima!

A pedra negra, vinda de outro universo, após ter sido recolhida pelo Conde de Peterborough, depois por Horace Walpole, encontra-se, agora, no Museu Britânico. Este não autoriza, nem que se possa usá-la, nem que se faça nela qualquer tipo de análise. Isto é lamentável. Mas se as análises do carvão de que é feita essa pedra dessem um composto isótopo que não o do carvão da Terra, provando que essa pedra teria origem fora dela, todo mundo ficaria fortemente embaraçado.

A Mônada Hieroglífica de Dee pode ser encontrada ou obtida por fotocópia. Mas sem as chaves que correspondem aos diversos códigos da obra, e sem os outros manuscritos de John Dee queimados em Mortlake ou destruídos sob as ordens de James I, ela não pode servir para grande coisa. Entretanto, a história do Dr. John Dee não acabou e dois capítulos ser-me-ão necessários para continuá-la.

por Jacques Bergier

Postagem original feita no https://mortesubita.net/enoquiano/o-que-john-dee-viu-no-espelho-negro/

Manuscrito Voynich

O Manuscrtio Voynich entrou para a história como um misterioso livro ilustrado com figuras desconhecidas e um conteúdo incompreensível. Imagina-se que tenha sido escrito há aproximadamente 400 anos por um autor misterioso que se utilizou de um sistema de escrita não-identificado e uma linguagem ininteligível.

Este livro por si só inflamou a mente de todos que se dedicaram a tentar descobrir o que seu texto diz ou de onde vieram suas gravuras, alguns afirmam que o manuscrito é apenas a brincadeir ade alguém, uma brincadeira extremamente bem elaborada com mais de 200 páginas, outros chegam ao outro extremo dizendo que as figuras retratadas nele assim como a língua e alfabetos utilizados não são meramente “alienígenas” eles de fato reproduzem e possivelmente vem de outro planeta ou outra dimensão. Alguns acreditam que o texto não passa de descrições de plantas imaginárias, outros encontram em seu conteúdo evidências de que a ciência na época de Roger Bacon já permitia ao homem observar as estrelas e as células, alguns inclusive afirmam que o livro traz um conhecimento tão poderoso que a existências da raça humana depende de que ele permaneça desconhecido, inclusive com agências obscuras tratando de lidar com qualquer um que consiga decifrar seu código.

O fato é que nem mesmo com a tecnologia e conhecimentos contemporâneos alguém foi capaz de decifrar o segredo que suas páginas escondem. E não apenas isso, sua história permanece um retalho de especulações que vão do fantástico ao impensável. Mas o que existe por trás deste livro que já atingiu um valor de mercado de U$ 160.000,00 dólares e hoje se encontra disponível a todos na universidade de Yale? Muito de sua história o tornaria um irmão caçula do Necronomicon, com a diferença do Manuscrito Voynich estar à disposição de qualquer um que desejar encontrá-lo.

Para tentar responder algumas dessas perguntas a Morte Súbita Inc. reuniu neste estudo os mais recentes exames forenses realizados para tentar solucionar este mistério, especulações de estudiosos, teorias sobre sua origem e uma biografia detalhada do homem que o trouxe à luz no século XX. Quem o escreveu, por que foi escrito, quem o manipulou? Nenhuma resposta é certa, mas várias portas para responder a estas questões foram e continuam sendo abertas.

O objetivo da Morte Súbita Inc. não é apenas disponibilizar uma cópia completa das páginas deste tomo misterioso, mas apresentar um estudo completo e meticuloso inédito sobre tudo o que pode ser dito sobre o seu conteúdo e origem.

Antes de tudo

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ÍNDICE

Postagem original feita no https://mortesubita.net/lovecraft/manuscrito-voynich/

Magia Adimensional

“Coincidência nunca faz com que o peso de papel fique pairando no ar a sete centímetros do tampo de sua mesa”
LöN Plo

 

Lovecraftiando As Regras do Ocultismo Moderno.

 

Índice

Livro 1: Para a Esquerda e Para a Direita, Para Sempre e Para Trás

Capítulo 1: Equilíbrio e Harmonia

Capítulo 2: Sanidade

Capítulo 3: Magia e poder

 

Livro 2: All You Need Is Love(craft)

Capítulo 1: O Nome Impronunciável do Jogo

Capítulo 2: Tomos da Insanidade

Capítulo 3: Elementos da Magia

Capítulo 4: Conclusões?!

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Livro 1: Para a Esquerda e Para a Direita, Para Sempre e Para Trás

 

Capítulo 1: Equilíbrio e Harmonia

 

OS ANCIÃOS lançaram as bases para os trabalhos de magia com a criação e batismo das divindades, semi divindades e outras entidades místicas, conhecidas. Com a associação dos nomes teve início o agrupamento de diferentes tipos mágicos e a descrição detalhada se tornou o véu do mistério do anonimato, favorecendo o dualismo e o moralismo da personificação.

 

ESTRUTURA não é sinônimo de Ordem. Estrutras extremas não resultam em equilíbrio nem em harmonia – como podemos ver de maneira clara em sistemas de governo rigorosos como a Alemanha Nazista, a Cuba Castrista e outros “governos” sul americanos e orientais.

 

O adversário da ESTRUTURA é o CAOS.

 

CAOS, diferente do que vem sendo difundido na mente das pobres almas que vagam por este planeta, NÃO é o oposto de ORDEM.

 

Enquanto todas as coisas tem em sua essência uma medida tanto de Caos quanto de Ordem, a linguagem – nossa ferramenta de comunicação – é atraída muito mais para a esfera da Ordem do que para a do Caos, assim qualquer representação da mera idéia do Caos através da linguagem ou do uso dos padrões que formam a imaginação da raça humana é falha. Imagens individuais são estruturadas. Seria um erro imaginar que podemos nos utilizar da Ordem para representar sua contraparte. De fato, o mais próximo que podemos chegar de descrever o Caos é nos utilizando de palavras que descrevam sua sombra que existe dentro da Ordem, a Estrutura.

 

DESORDEM não é sinônimo de Caos.

 

Casos extremos de DESORDEM indicam uma falata de equilíbrio e harmonia. Isso fica claro em processos naturais que foram manipulados pelos tentáculos do poder.

 

O nêmesis da desordem é a ORDEM.

 

Nós temos uma idéia da sombra da Ordem que existe dentro do Caos, e esta idéia é representada em nossa linguagem estruturada através de uma de nossas palavras: desordem. Enquanto ela não passa de um reflexo da sombra real da Ordem, serve como exemplo para expor os padrões fundamentais que dão tanto à Ordem quanto ao Caos suas identidades dentro de uma cultura intelectual atraída pela Ordem.

 

Sem a força desestabilizadora do Caos, nós nos estagnaríamos intelectualmente, psicologicamente em todos os aspectos da vida. Nossa imaginação, a habilidade de criar novos padrões de imagens com os blocos básicos daquilo que é compreendido, não existiria sem a instabilidade temporária que os artistas e magos aprendem a controlar.

 

A disciplina da Ordem EQUILIBRA a flexibilidade do Caos, trazendo a HARMONIA da Manifestação Unificadora.

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Capítulo 2: Sanidade

 

SANIDADE é a harmonia de um indivíduo com o Cosmos.

 

Tanto Ordem quanto Caos devem ser aceitos para se atingir o equilíbrio psíquico necessário para o crescimento. Os Anciãos compreendiam as armadilhas das palavras e dos nomes. Eles conseguiram enxergar as marés intelectuais de estrutura desequilibrada e seus produtos estagnados de conhecimento e moralidade.

 

Os Anciãos criaram a Magia Cthulhiana para se assegurarem do equilíbrio da sanidade através da preservação das Sementes do Caos.

 

Os SERVOS DE CTHULHU aguardam até que a estrutura atinja um ponto além dos limites da tolerância cósmica e então agem para promover a causa da desordem. Eles ensinam as limitações da Senda da Mão Direita e a irresponsabilidade da Senda da Mão Esquerda.

 

Mesmo assim, a maior parte dos Magos que adquiriram o conhecimento sobre os aspectos negativos de um desequilíbrio da Ordem não compreendem o erro de uma estrutura levada ao extremo. Eles simplesmente substituem o Caos pela Ordem e mantém estritamente as mesmas abordagens à Magia usadas pelos Magos Brancos que seguem a senda da mão Direita, em seu forma igualmente desequilibrada.

 

Aqueles que adoram os SÁBIOS DA ORDEM não são nem um pouco mais sãos do que aqueles que adoram os DEMÔNIOS DO CAOS.

 

A função de Cthulhu não é ser um objeto de adoração, mas uma ferramenta, uma inspiração, uma força iniciática, trazendo equilíbrio entre a flexibilidade do Caos e a estabilidade da Ordem.

 

A SENDA ADIMENSIONAL (S.A.) é o Caminho dos Anciãos.

 

Cthulhu garante a instabilidade necessária para combater os métodos fleumáticos e imperturbáveis da Ordem “estruturada”. Cthulhu não é o foco equilibrado, mas uma força de equilíbrio do cosmos. Assim é possível se atingir o equilíbrio através de uma exposição a Cthulhu ao invés da simples devoção aos princípios ou a promoção do Caos acima e além da Ordem.

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Capítulo 3: Magia e poder

 

A maior SEDUÇÃO da Magia é a promessa de PODER, e a fuga da subordinação, da ineficácia e da total falta de controle.

 

O auto-engrandecimento tem uma raiz simples e básica: a insegurança pessoal.

 

A Magia permite que a pessoa se torne a CAUSA que cria mudanças no mundo. Tanto a Magia Branca – Senda da Mão Direita – quanto a Magia Negra – Senda da Mão Esquerda – se focam nos resultados como sendo a justificativa para seu uso. A primeira tem como objetivo a realização dos desejos do conjurador e de outros, enquanto a segunda tem como objetivo a realização dos desejos do conjurador, geralmente em detrimento de e apesar dos desejos dos outros.

 

MAGIA BRANCA é a manifestação da Ordem através do mago.

 

Cura e a coordenação de energias grupais são as principais atividades do Mago Branco. Ele busca promover a harmonia através da estrutura, um médoto baseado na Ordem, expulsando as forças do Caos de tudo que o cerca.

 

O problema com a Magia Branca é que ela busca o desequilíbrio da Ordem SOBRE o Caos, uma situação compreendida pelos Anciãos como de grande opressão e miséria.

 

A manifestação direta do Caos através do mago é a MAGIA NEGRA.

 

Como já foi mencionado, assim como os Brancos, magos Negros buscam promover a harmonia através da estrutura.

 

Contudo o mago Negro deseja usar a estrutura como um instrumento para manifestar o Caos e possivelmente dominar outros seres.

 

As atividades do mago Negro se focam na manifestação direta de energias caóticas, incluindo os pórpios Servos de Cthulhu. O mago Negro não percebe a impossibilidade de manter a estrutura como médoto de controle quando a Ordem é subjugada pelo Caos. A estrutura simplesmente se dissolve, juntamente com a harmonia que o mago busca. O problema, então, com a Magia Negra, é que ela busca o desequilíbrio do Caos sobre a Ordem, uma situação compreendida pelos Anciãos como de grande impotência e miséria.

 

 

 

 

Livro 2: All You Need Is Love(craft)

 

Capítulo 1: O Nome Impronunciável do Jogo

 

LOVECRAFT compreendeu os perigos da Magia Negra e os objetivos dos Servos de Cthulhu também. Desta forma escrevia como se todos os magos fossem de certa forma Negros e os asseclas das Ordens religiosas de alguma forma melhores ou moralmente superiores aos que servem ao Caos.

 

O embate teve início, mas ele foi lançado como um onde o BEM luta contra o MAL e a ORDEM combate o CAOS. Como resultado, isso apenas entrincheirou ainda mais o desequilíbrio dentro da Magia Branca da Ordem, aumentando exponencialmente a rejeição completa de Cthulhu, sem que percebessem o valor de seu ser.

 

Os Anciãos deixaram a BUSCA PELO EQUILÍBRIO conosco, e nos deixaram sinais, como placas de sinalização, na forma de Cthulhu e dos Sentinelas.

 

O jogo de Cthulhu então pode ser exatamente como Lovecraft nos descreveu, mas raramente ele descreveu a perspectiva equilibrada do mago – um com a disciplina para manter controle sobre a sanidade quando os encontrava. A Ordem era tida como superior e isso constantemente minava toda a Operação. Para atingirmos nosso propósito devemos rever essa tendência para que o objetivo se torne claro e A SENDA ADIMENSIONAL então revelará seu verdadeiro valor.

 

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Capítulo 2: Tomos da Insanidade

 

PERGAMINHOS E FEITIÇOS derivados tanto da ORDEM quando do CAOS que são lidos e compreendidos colocam em perigo a sanidade de uma pessoa.

Assim tomos como O Necronomicon, que descreve a Magia Negra e acreditasse ser derivado de criaturas do Caos são tão perigosos quanto tomos de Magia Positiva, que descrevem a Magia Branca Estruturada, aparentemente derivados dos Sentinelas. Um catálogo de grimórios se torna importante se o mago deseja manter um equilíbrio constante em si.

 

Ao que tudo indica, no momento presente a maioria absoluta dos LIVROS PERIGOSOS do Caos desapareceram. Embora ainda existam cultos em diversas partes do globo terrestre que sem dúvida ainda promovem a adoração e buscam estabelecer Contato. Trabalhos clássicos de literatura da Ordem deveriam ser inclusos neste catálogo, Oriente e Ocidente, contando que se qualifiquem como base para promover as causas da Ordem de uma forma extrema – como exemplo “O Livro dos Rituais”, por Kung Fu Tzu, “O Livro Vermelho”, por Mao Tse Tung e talvez os livros de Aristóteles, Orígenes e Marx.

 

Porquanto a natureza da prática Mágica sempre envolve o risco da sanidade, a Magia Negra é muito mais perigosa, graças ao seu foco inerente na AQUISIÇÃO DE PODER, negligenciando toda e qualquer consequência. Já, a Magia Branca, embora também focada em se obter poder, não compartilha a flagrante falta de compaixão e, portanto, oferece apenas metade do risco. Caso não seja assim, o jogo de Cthulhu parece proceder como nós esperamos.

 

Já que a Magia Negra irá, em algum ponto, trabalhar com a destruição, é sensato supor que será ela justamente empregada de maneira efetiva contra os Servos de Cthulhu, já que esta forma é a que se mostrou mais eficaz em atingir o sucesso no passado (assim como em forçar o mago a ir além dos limites da própria sanidade o atirando em um estado mental deformado e caótico permanente).

 

Todos os feitiços que envolvem UM PRATICANTE como fonte desta CAUSA, ou como algo fundamental para o trabalho, representam uma provação para a sanidade deste praticante, não importando se Brancos ou Negros, independente do objetivo. A Magia que inclui em si o foco no desenvolvimento em um aumento da consciência ou uma cura grupal apresentam um perigo muito menor para a sanidade.

Existe apenas uma Magia que promove a sanidade: A MAGIA DA SENDA ADIMENSIONAL (S.A.)!

Magia S.A. é característica do Caminho, harmoniosa com o Estar Superior. Se o mago é capaz de desenvolver sua própria intuição, ou sentido-Tao, o progresso pode ser realizado, mas é um progresso extremamente complexo. A idéia de que alguém pode evoluir linearmente dentro da S.A. é falsa. A pessoa se torna, a pessoa não evolui. A pessoa entra em sintonia, a pessoa não se forja. A pessoa permite, a pessoa não faz. O Tao mantém o tecido da realidade coeso e torna possível a manifestação coordenada. Aqueles de grande harmonia podem ocasionalmente receber um “insight”, inspiração para agir ou uma breve compreensão do Drama Cósmico, o Grande Trabalho, do Tao.

 

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Capítulo 3: Elementos da Magia

 

Sendo doutrinadas na Ordem desde sua concepção, a maioria das pessoas são ensinadas que a magia é forjada na estrura do dogma e da superstição. As variáveis são padronizadas e generalizadas para que o aprendizado se torne mais fácil. Dado o estudo e/ou a instrução, aquele que busca pode determinar que estrutura pode ser descartada e onde variações podem ocorrer (em termos de alcance, intensidade, duração, etc.).

 

Existem 4 CATEGORIAS DE FEITIÇOS, organizadas por origem e alvos dos efeitos do feitiço.

 

1- Apenas o Mago

2- O Mago e energia/objetos

3- O Mago e outras pessoas

4- O Mago e seres alienígenas

 

1- Apenas o Mago:

1.1. Cura (física e psíquica)

1.2. Alteração de forma/aparência (uso de feitiços, disfarces)

1.3. Extender/alterar sensações (precognição, clarividência)

 

2- O Mago e energia/objetos

2.1. Produção (infusões, pós, pergaminhos, etc.)

2.2. Proteção (barreiras, reflexões)

2.3. Aperfeiçoamento de objetos (trancar portas, endurecer o solo)

2.4. Alterar o momentum (telecinese, teleporte pessoal, viagens dimensionais)

 

3- O Mago e outras pessoas

3.1. Cura ou Ataque (física, psíquica)

3.2. Comunicação (telepatia)

3.3. Cooperação (gestalt, teleporte grupal)

 

4- O Mago e seres alienígenas

4.1. Contato

4.2. Chamado

4.3. Convocação

4.4. Restrição/Amarração

4.5. Sigilo Mais Antigo (selar, lacrar)

4.6. Portal

Obs. Curar outras pessoas é o últimos dos feitiços exclusivamente Brancos. De Ataque ao Portal a Magia Negra se torna possível.

 

~oOOo~

 

Capítulo 4: Conclusões?!

A maioria dos feitiços colocam em risco a sanidade do mago, já que exigem um único foco e o domínio de quantidades absurdas de poder. Magia realmente poderosa é rara nos dias de hoje e, como já foi notado, o uso da Magia Negra oferece muitos riscos. Os feitiços usados tanto pelos magos Brancos quanto Negros são os segundos mais perigosos, seguidos por aqueles usados apenas pelos Magos Brancos (tais como curas grupais ALTRUÍSTICAS).

 

O Microcosmo do Mago corresponde diretamente ao Macrocosmo do CONTINUUM UNIVERSAL. Conforme o Caos e a Ordem se equilibram, um potencial maior é atingido, maximizando a eficiência e a flexibilidade em um grande jogo de prazer pessoal e cósmico. Desta forma, o Jogo Inominável é um ritual simbólico, uma tentativa de nos desequilibrar enquanto oscilamos entre os extremos. A maioria dos Magos aceita apenas uma das facções da maré, contribuindo para o desequilíbrio geral, mas quando o objetivo é o equilíbrio ao invés da supremacia da Ordem, esse erro se tornará claro.

 

A Magia, analizada sob este contexto, é uma ferramenta necessária utilizada para retardar a mudança rápida da Ordem para o Caos para a Ordem… Embora possa causar interrupções temporárias da sanidade, ela acaba compensando a longo prazo quando usada contra um poder que certamente irá CORROSIVAMENTE NOS DISSOLVER.

~oOOo~

Este material foi proibido por Deus.

 

Por LöN Fucking Plo

Postagem original feita no https://mortesubita.net/lovecraft/magia-adimensional/

Lovecraft: O Jogo de Bar

lovecraft

Tendo sido um abstêmio, Howard Phillips Lovecraft, está provavelmente se debatendo no caixão; mas não pudemos evitar. O jogo é bastante simples e pode ser jogado por qualquer entusiasta dos mitos de cthulhu que aprecie encher a cara de forma ciclópica, ancestral e medonhamente imemorial.

Basicamente tudo o que você precisa é um livro de Lovecraft e quantidades hediondas de bebida. Você pode jogar sozinho ou com alguns amigos, neste caso apenas um dos presentes deve fazer a leitura. Escolha um dos muitos contos curtos de Lovecraft, para começar sugerimos “Dagon” se desejar um jogo rápido e “Nas Montanhas da Loucura” para quem quiser pegar mais pesado. O jogo segue com as regras abaixo enumeradas e termina quando você ou demais participantes atingirem o desejável estado alcóolico de [in]consciência.

Um dos pontos fortes do jogo é que quem quer que esteja lendo, deve também beber. O vocabulário desafiador de Lovecraft aumentará gradualmente a dificuldade e graça do jogo.

As Regras

1 – Beba um gole a cada vez que Lovecraft:

  • Usar mais de um adjetivo na mesma frase: ex: Moldado pela morte cerebral de um pesadelo híbrido, não poderia tal vaporoso terror ser em toda sua desprezível e requintada verdade, o gritante inominável?
  • Usar uma descrição propositalmente vaga: ex: terror indizível, impronunciável, etc.
  • Referir-se a algum local misterioso: ex: Sarnath, Kadath, etc… “À Procura De Kadath” vai te colocar debaixo da mesa fácil fácil.
  • Referir-se a uma entidade pelo nome próprio. (Dica, Cthulhu e Nyarlathotep são nomes próprios, mas Mi-Go e shoggoth não são; são tipos de entidades.)
  • Fizer qualquer declaração racistam sexista, facista ou politicamente incorreta. Esta regra faz de ‘Horror em Red Hook’ um desafio dificil de superar. Não perca tempo debatendo o que é ou não racista ou sexista… quando em dúvida, beba.
  • Colocar um personagem dentro de um templo ou igreja
  • Mencionar um livro ‘proibido’ na história. Isso inclui o De Vermis Mysteris, o Unaussprechlichen Kulten, e, é claro, O Necronomicon, entre outros.

2 – Beba dois goles sempre que alguma desta palavras aparecer (incluindo suas variações):

  • Sobrenatural
  • Ciclópico
  • Balbuciar
  • Escamoso

3 – Vire o copo sempre que uma destas situações ocorrer:

  • Aparecerem pinguins albinos subterraneos gigantes na história, ou qualuqer animal albino. (“Nas Montanhas da Loucura”)
  • O protagonista perceber que não pode piscar. (“A Sombra sobre Innsmouth”)
  • Canibalismo (“Ratos nas Paredes” e “A Estampa da Cada Maldita”)
  • A história se repetir de forma resumida. (“Re-animator”, que foi lançada originalmente em partes e precisava lembrar o leitor o que já tinha acontecido.)
  • Gatos gordos aparecerem após algum ser humano sumir. (“Os Gatos de Ulthar”)
  • Algum personagem percebe que foi catapultado milhares de ano para o futuro ou passado. (as crônicas de Randolph Carter)

 

Bônus de Encerramento

Depois de terminar uma história, confira se alguém na mesa ainda consegue citar o parágrafo inicial de “O Chamado de Cthulhu” sem consultar o livro. Cada vez que alguém citar uma frase corretamente, os demais devem beber um copo. Cada vez que errar a frase é a pessoa que bebe. Para referência, esta é a citação, embora idealmente ninguém deverá ser capaz de recitar nada de memória a esta altura do jogo:

“A coisa mais misericordiosa no mundo, eu acho, é a inabilidade da mente humana em correlacionar todos seus conteúdos. Nós vivemos em uma plácida ilha de ignorância no meio de um oceano negro infinito, e não era para que pudéssemos navegar para longe. As ciências, cada um esticando a corda em sua própria direção, têm nos causado pouco mal até agora; mas algum dia esse mosaico de conhecimento dissociado nos legará um terrível panorama da realidade e de nossa amedrontadora posição neste lugar, tão terrível, que ou bem nós ficaremos loucos diante da revelação ou fugiremos covardemente da luz mortal para a paz e a segurança de uma nova Idade Negra”.

Caso ninguém conseguir acertar nenhuma parte da citação. O próximo e ultimo passo é verificar quem consegue repetir os famosos versos do Necronomicon: “Não está morto o que pode eterno jazer, e em era estranhas até a morte pode morrer.” Cada vez que alguém acertar, todos os demais bebem mais um copo. Termina quanto ninguém conseguir falar ou ler mais.

Postagem original feita no https://mortesubita.net/lovecraft/lovecraft-o-jogo-de-bar/

Lovecraft e os 13 Portais do Necronomicon

Por Donald Tyson

Howard Phillips Lovecraft rolaria em seu caixão no histórico Cemitério de Swan Point, em Providence, Rhode Island, se soubesse o que as pessoas em todo o mundo estão fazendo com sua ficção. Milhões de fãs não estão apenas lendo-o para puro prazer, eles estão levando-o a sério!

Isto é algo que a Lovecraft nunca pretendeu. Ele era um materialista convicto e um ateu cuja filosofia de vida pode ser resumida em poucas palavras: a vida é sofrimento sem sentido, e a morte a única libertação. Embora Lovecraft fosse um homem genial para se encontrar e conversar, alguém de quem quase todos os que o conheciam gostavam, sua compreensão do universo e de nosso lugar nele teria levado Nietzsche à depressão suicida.

Quando os fãs lhe escreviam, perguntando se Cthulhu era real, ele lhes dizia que não sabia nada sobre o ocultismo, que não se importava com ele e que não queria ouvir falar sobre isso – que todo esse assunto era um puro disparate.

O que levanta um pouco de mistério. Por que um homem passaria toda sua vida obsessivamente escrevendo sobre o estranho, o horripilante, o esotérico, o bizarro, se ele não tivesse interesse nestes assuntos?

A resposta a este enigma encontra-se nos sonhos e pesadelos de Lovecraft. Sua vida onírica era invulgarmente vívida, e ele tinha a capacidade de lembrar mais dela do que a maioria de nós consegue. Às vezes, ele tomava consciência de si mesmo enquanto ainda sonhava, e descobria que podia direcionar sua atenção para diferentes aspectos do sonho, e até mesmo mover-se de lugar em lugar dentro dele. Hoje conhecemos isso como sonho lúcido, mas o termo não estava em uso quando Lovecraft sonhou com Cthulhu, Nyarlathotep, Yuggoth e o Necronomicon.

Lovecraft sempre ria quando alguém lhe sugeria que seus sonhos eram mais do que trivialidades, mas no fundo de sua mente deve ter havido algumas dúvidas, pois muitas vezes ele escreve em suas cartas que, se não soubesse melhor, juraria que tinha vivido uma cena de uma vida passada. Ele era tão obcecado com o passado e com o velho como era com seus sonhos. Ele acreditava ser um homem nascido fora de sua idade natural – ele se via como um cavalheiro inglês do século 18.

A verdade é que Lovecraft vivia aterrorizado com seus pesadelos. Ele não suportava reconhecer seu poder sobre ele, por isso zombava deles e negava sua importância, mesmo para si próprio. Como uma forma de exorcizar seus sonhos e ganhar controle sobre eles, ele os escreveu na forma de histórias.

Ele se recusou a considerar a possibilidade de que ele pudesse ser uma velha alma deslocada no tempo a partir do século 18 até nossa era moderna. Ele negou isso pela mesma razão que se recusou a considerar que seus sonhos pudessem ter algum significado esotérico – ele precisava desesperadamente que o mundo fosse ordeiro e mundano.

Seu maior pavor era a loucura. Ambos os pais enlouqueceram, primeiro seu pai, e depois sua mãe. Ao longo de sua vida, desde a infância, ele sofreu uma série de colapsos nervosos, alguns maiores e outros menores. Ele estava interiormente certo de que um dia ele mesmo enlouqueceria e precisava que o mundo fosse o mais chato e previsível possível para manter sua sanidade intacta. Foi por esta razão que ele ignorou resolutamente qualquer coisa a ver com o sobrenatural ou paranormal, e recusou-se até mesmo a reconhecer que tais coisas poderiam existir.

Os magistas modernos estão aprendendo a olhar além do materialismo e do ateísmo ostensivos de Lovecraft, a fim de examinar o conteúdo e a qualidade de suas histórias para seu significado esotérico. Quando fazemos isso, descobrimos que o universo mitológico que ele criou não tem semelhança a nenhum outro, e que possui uma coerência interna e uma plausibilidade perturbadoras.

Lovecraft sonhou com um mundo no qual a espécie humana vive na feliz ignorância das muitas raças de criaturas alienígenas, antigas e inimaginavelmente poderosas, que habitaram este globo em eras passadas distantes, e que ainda mantêm uma presença aqui, invisível e insuspeita pela maioria de nós. No mundo do Lovecraft, a magia é a ciência alienígena, uma espécie de potente geometria transdimensional que pode ser acessada por qualquer pessoa com as devidas chaves simbólicas, e os demônios do mundo pagão são seres alienígenas adorados por cultos degenerados que sobrevivem nas terras bárbaras e nos recantos longínquos de nosso planeta.

O único Deus para Lovecraft em seus sonhos era o idiota cego Azathoth, que se senta em seu trono negro no centro do turbilhão do caos do universo, babando ao som de flautas frenéticas. Ele não tem moralidade, nenhuma virtude, nenhum propósito. Ele espera pacientemente que o universo seja engolido no vórtice caótico que é seu reino, para que então ele passe mais uma vez para o nada de onde saiu.

No mito do Lovecraft, a própria Terra é uma espécie de deusa que caiu ou fugiu de algum estado espiritual superior. Os Antigos foram enviados para limpar sua superfície da infestação de vida biológica antes de usar sua ciência mágica para arrancá-la de sua órbita e devolvê-la à sua exaltação anterior através da porta dimensional do Yog-Sothoth, que é o guardião universal por cujas portas todos nós devemos passar quando morremos.

Tudo isso e muito mais é sugerido nas páginas do Necronomicon, um livro de loucura e horror escrito pelo poeta árabe louco do Iêmen, Abdul Alhazred, em seus meses finais de vida, pouco antes de um demônio invisível o ter arrancado do mercado de Damasco e o consumido, pelo menos da visão de olhos mortais. Só um louco poderia escrever um livro tão insano, e lê-lo é enlouquecer. O que é obliquamente referido em suas páginas é que Alhazred aprendeu com as coisas que rastejam e deslizam por cavernas e túneis abaixo do grande deserto da Arábia, a terra dos gênios que sem remorsos odeiam todos os seres humanos.

O livro não existe – pelo menos, não nesta vida. Lovecraft o viu e ouviu seu nome em sonhos, assim como sonhou com Nyarlathotep e Shub-Niggurath, os Abissais e os Antigos, os Mi-go e a Grande Raça de Yith. Os mágicos afirmam que estes seres têm pelo menos tanta realidade quanto os deuses e deusas do Egito e da Grécia, para não falar do pálido Deus dos cristãos. Eles começaram a usar o mito do Lovecraft para trabalhos de magia prática. De fato, quando usado desta forma, ele forma um sistema coerente de imensa potência.

O principal objetivo do livro “The 13 Gatesof Necronomicon” é reunir todo o material de ficção e poesia do Lovecraft que pode ser explorado com utilidade prática por mágicos modernos que trabalham no campo do mito do Necronomicon. É um texto fonte, um compêndio das raças alienígenas, criaturas monstruosas, mundos estranhos e dimensões alternativas, cidades antigas e poderosos feiticeiros e bruxas que habitaram os sonhos do Lovecraft. Os rituais mágicos aos quais Lovecraft fez referência são expostos e explicados. Os livros de magia que ele escreveu, tanto os que são materiais como os que são astrais, estão lá documentados.

Este pode ser o único livro que reúne todas as partes esotéricas do mito do Lovecraft em um só lugar, e os apresenta de uma forma facilmente acessível aos mágicos que trabalham. Este material reunido representa os blocos de construção para os futuros sistemas de magia do mythos.

Aproveitei a oportunidade proporcionada pela publicação deste livro para apresentar também um sistema de treze portões esotéricos, que chamei de portões estelares porque cada um deles está ligado a uma das treze constelações zodiacais atuais. Isso mesmo, existem treze constelações na faixa do zodíaco, não doze. Muitas pessoas não sabem disso, porque todos nós estamos muito familiarizados com os doze signos da astrologia moderna.

Cada porta no céu está ligada a uma porta na cidade do Necronomicon – uma porta que leva a um tópico separado e distinto tratado no mito por Lovecraft. Para fins ocultos, é útil pensar no Necronomicon como uma cidade murada, com muitas ruas estranhas e habitantes curiosos, e com treze entradas principais. Desta forma, cada uma das treze áreas do mito pode ser examinada e controlada individualmente, através de seu próprio portal estelar.

Os treze portões estelares, que podem ser entrados pelo Sol ou pela Lua, são projetados para servir como uma estrutura ritual geral para vidência, encantamentos, viagem astral, invocações e evocações. Eles podem até ser adaptados para uso por aqueles que talvez não tenham vontade de trabalhar a magia do mito do Lovecraft. Quando acoplado ao dispositivo de uma cidade murada de treze portões separados, cada um levando a uma ala diferente da cidade, torna-se uma potente técnica mnemônica de visualização, e uma forma de categorizar e organizar elementos deste sistema oculto.

Tudo isso teria sido um anátema para Lovecraft, que queria, em nome de sua própria sanidade, acreditar que seus sonhos não tinham significado superior e que o universo era um lugar muito seguro e previsível. Mas em seu coração, Lovecraft sabia que esse não era o caso, e nós sabemos que as coisas não são assim. O universo é mais estranho do que até mesmo Lovecraft poderia imaginar, embora ele tenha chegado mais perto do que ninguém na captura da sensação de  estranheza em sua ficção. O que Lovecraft sonhou e negou, os mágicos modernos abraçaram e procuraram manifestar em seus trabalhos rituais. As 13 Portas do Necronomicon foi projetado para ser um livro fonte para eles em sua busca para explorar todo o potencial dos sonhos de Lovecraft.

***

Fonte: TYSON, Donald. Lovecraft and the 13 Gates of the Necronomicon. The Llewellyn’s Journal, 2010. Disponível em: <https://www.llewellyn.com/journal/article/2122>. Acesso em 8 de março de 2022.

COPYRIGHT (2010). Llewellyn Worldwide, Ltd. All rights reserved.

Texto adaptado, revisado e enviado por Ícaro Aron Soares.

Postagem original feita no https://mortesubita.net/lovecraft/lovecraft-e-os-13-portais-do-necronomicon/

Lovecraft Country: racismo, spoilers e papel higiênico

Critica e resenha do livro Lovecraft Country de Matt Ruff que está sendo adaptado pela HBO e ainda em sua primeira temporada.

29 de janeiro de 1839, Darwin propõe casamento a sua prima Emma que aceita o pedido. Pouco mais de dois meses antes ele fez uma lista em seu diário pessoal contabilizando os prós e contras de se assumir tal compromisso. Na lista dos motivos pró casamento ele deixou registrado pérolas tais como “uma companhia constante (& uma amiga na velhice) que se interessará por mim – alguém para amar e brincar – melhor do que um cachorro, de qualquer forma”. Na lista dos contra ele expôs “ter que trabalhar por dinheiro – adeus aos livros – perda de tempo – menos dinheiro para comprar livros – não poderei ler durante as tardes”. O homem que, querendo ou não, matou Deus, de uma forma mais brutal do que Nietzsche, chorando por causa de livros. Pense a respeito sobre isso por um instante.

Comecei o ano de 2020 com a publicação de “O Caso de Charles Dexter Ward” da editora Hedra, lançado em 2014. Acredito que, em parte, a culpa disso tenha se originado no fato de a última leitura do ano de 2019 tenha sido a coletânea “À Procura de Kadath” da editora Iluminuras, publicada em 2002. Termine um ano com Lovecraft e inicie o próximo com Lovecraft. Acho que foi por isso que minha escolha de primeira leitura oficial do ano tenha sido “Lovecraft Country (Território Lovecraft)“, escrito por Matt Ruff em 2016.

Foi no fim em 1982, quando eu contava com meus 12 anos, que meu nariz foi quebrado pela primeira vez. Era um jantar de ano novo, me ofereceram uma taça de Champagne para comemorar e eu, no auge da maturidade que apenas uma criança de 12 anos recém completados, respondi algo como “Ta maluco? Vovô diz que vinho é coisa de viado!” Minha mãe, sentada ao meu lado, apenas esticou o braço com um golpe certeiro, resultado de anos praticando boxe. “Querido, se não vai falar algo inteligente, cale a boca. E coloque o guardanapo no nariz, você vai pingar sangue em toda a mesa.” A ceia prosseguiu, eu não consegui comer mais nada, estava assustado, estava sentindo dor, humilhação, raiva… mas não deixei meu sangue pingar na toalha.

Desde pequeno me agradava a companhia de livros. Às vezes nem os lia, apenas gostava de sentir o peso na mão, mas em grande parte do tempo os devorava. De Monteiro Lobato às aventuras americanas dos detetives juvenis d’Os Hardy Boys – escritas por uma miríade de escritores fantasmas que assinavam Franklin W. Dixon. Guardava debaixo da cama um bloco maciço formado por mais de quinhentos livros, todos trazendo meu ex-libris carimbado na contra capa. Ainda não possuía nenhum método ou organização. Conheci Frank Belknap Long e Robert Bloch antes de ser apresentado a Lovecraft. Anos separaram Dejah Thoris, Princesa de helium, de John Clayton II, Visconde de Greystoke – apesar de terem nascido na mente do mesmo homem. Lia sobre homens sendo cimentados vivos atrás de paredes e sobre corcéis indomados em ilhas desertas. Esta época eu chamo, com certa nostalgia, de a época de minha inocência literária. A inocência que terminou naquela noite em que permaneci sentado na mesa, segurando o choro, enquanto todos comiam animados e eu segurava um guardanapo molhado de encontro ao nariz.

Eu sentia o peso do livro nas mãos. A arte das capas e o papel usado na impressão remetendo à época em que escrevia e às revistas que publicavam suas histórias. Revistas Pulp, baratas – ao contrário do livro que no Brasil está sendo vendido a mais de R$70,00, com sorte você encontra uma edição nova por R$55,00 ou R$60,00. E, em janeiro de 2020, comecei a ler sobre Atticus Turner e sua busca para encontrar o pai desaparecido em 1954. Atticus era, assim com seu tio e tia e aparentemente a maior parte de sua família, um fã ferrenho de ficção científica e de literatura fantástica. Ele, assim como sua família, era negro – ou afro descendente como o pudor nos faz dizer hoje. Uma semana depois e eu fechava o livro. Em minha melhor época, ler essas 400 páginas me custaria 3 dias, 4 no máximo, mas a responsabilidade de hoje faz com que as leituras acabem me tomando mais tempo, o que não acho nem um pouco desagradável, para ser sincero. O que achei desagradável foi a história escrita pelo senhor Ruff. Não sabia se ficava mais nervoso em ter gastado o dinheiro com o livro – ao invés de comprar dois ou três obras diferentes – ou de ter perdido uma semana lendo aquilo. Se existe algo que eu levo muito a sério, mais do que na época da inocência, é o que alguém deixa impresso em uma brochura.

Naquela noite de fim de ano minha mãe se sentou ao meu lado na cama e disse “aguente firme”. Com um movimento rápido ela fez meu nariz estalar, um jorro de dor quente brotar atrás de meus olhos e então eu comecei a sangrar de verdade. “Pronto, está de volta no lugar”, ele disse como alguém que apenas constata um serviço que sabe estar bem feito.

Eu estava encarando o vazio, tentando não chorar de novo – desta vez por causa da dor – quando, com um dedo dobrado segurando meu queixo, ela m e fez encarar seus olhos.

“Seu avô nunca disse aquilo que você falou na mesa. Dizer aquilo daquela forma é uma falta de respeito com ele, com o que ele diz e o pior: com as ideias dele. Para alguém que passa tanto tempo lendo você deveria ser o primeiro a respeitar as ideias de alguém. Mas você só aprende a respeitar as ideias de alguém quando aprende a ouvir realmente o que dizem.”

Ela jogou com delicadeza meu queixo para um lado e depois para o outro, examinando meu nariz.

“Às vezes fico pensando se você está lendo mesmo esses livros ou se só fica repetindo as palavras dentro de uma cabeça oca. Quando você lê, ouve um eco entre as orelhas?”

Eu pretendia ficar quieto, achei que era parte das perguntas retóricas que normalmente compõe um sermão, mas vi os olhos dela. Balancei a cabeça de um lado para o outro, sentindo meu rosto latejando enquanto fazia isso.

“Ótimo. Então eu proponho que você aprenda a ler de verdade antes de continuar perdendo seu tempo com esses livros, porque pelo que disse hoje parece mesmo que só fez perder seu tempo.”

Ela colocou uma cópia de Alice no País das Maravilhas no meu colo. Não sei de onde havia saído o livro, não a vi carregando ele.

“Pegue este livro e o leia. Depois releia e leia mais três, quatro, dez vezes. Só pare de ler quando tiver aprendido a ler o que está aqui. Eu não pegaria mais nenhum outro livro até ter certeza que está aprendo a ler mesmo. Entendeu?”

Fiz que sim com a cabeça.

Ela ia se levantar da minha cama quando olhou para mim e me fez encarar novamente seus olhos.

“Querido, você sempre será amado por todos nós. Somos uma família, certo? Esse amor é incondicional. Mas para ser respeitado você precisa crescer. Não seja burro, não seja alguém que diz coisas só por dizer. O mundo está cheio de idiotas assim, que não sabem ouvir algo, que não sabem interpretar algo, que não querem pensar e que dizem qualquer coisa que lhes vem ao que chamam de mente e eu não quero meu filho seguindo esse caminho. Se seguir, continuará sendo meu filho, entende? Mas não é o que quero para você e com certeza não é o que você irá querer para você também. Boa noite.”

Obviamente o nome Lovecraft está na capa como isca. Ele ou qualquer referência à sua obra são citadas de forma casual apenas um punhado de vezes. Se a ideia era criar um clima Lovecraftiano para a história Ruff falhou lamentavelmente, a história curta de Borges ‘There Are More Things…’ publicada na coletânea Livro de Areia consegue em sua dezena de páginas criar uma ambientação que literalmente explode no clímax. Obviamente não estou comparando Ruff com Borges, seria o mesmo que colocar um cadeirante no ringue para lutar 15 rounds com Muhamed Ali ou Rocky Marciano. Minha sugestão seria apenas que o primeiro lesse o conto do segundo e, quando percebesse que não teria a capacidade de criar algo próximo, desistisse de associar seu livro com o testamento literário do escritor da Nova Inglaterra. O texto em si é insosso e as histórias – sim, existe mais de uma – vão ficando cada vez mais previsíveis e parecem todas carecer de um clímax, mesmo que todas estejam conectadas pela trama principal acabam sendo versões fracas de diferentes estilos de contos de ficção científica, de terror ou de fantasia. Não existe um vilão que você queira ver vencido, não existe uma personagem cujo carisma se mantenha quando você não está lendo sobre ela – e algumas nem enquanto lê apresentam o carisma. Se minha ideia era ter em mão uma releitura contemporânea do gênero que Lovecraft criou, moldou e apadrinhou, ler o livro foi como receber um novo murro no nariz. A leitura superficialmente é insossa tal qual uma tigela de caldo de pedra. Mas poderia haver alguma complexidade mais profunda?

Durante aquela semana li e reli o livro que contava as aventuras de Alice, ficando cada vez mais frustrado. No segundo dia perguntaram se eu não pretendia sair do quarto para comer, disse que não tinha fome.

“Claro que tem fome, está com o orgulho ferido e por isso não quer sair do quarto, desça agora”, e assim minha mãe pôs fim a minha greve de fome.

O que aquele livro tinha demais? Chegou o momento em que eu conseguia recitar algumas passagens de cor, mas não era o que eu queria. Resolvi começar a escrever uma resenha do livro, logo havia escrito cinco. Era uma metáfora que mostra que quando crescemos perdemos também a inocência? Que somos obrigados a viver em um mundo louco e sem sentido? Confrontamos adultos com regras que aparentemente são loucas para uma criança, mas temos que obedecê-las? Tudo fazia sentido, tudo era óbvio, nada me agradava. Não levei um murro na cara por causa disso. Quem

Escreveu o livro era um padre inglês, isso eu sabia, e ele inventava a história para entreter uma garotinha, a Alice do livro. Pedofilia? Uma versão real de Lolita? Ou seria simplesmente uma história sem sentido com o único objetivo de entreter uma criança de 10 anos? A cada dia meu humor azedava mais e mais.

Casualmente numa tarde particularmente irritante, fechei o livro. Meu irmão mais novo estava sentado no chão, rabiscando algo em folhas de papel – provavelmente tentando resolver algum problema ou charada. Antes de perceber o que estava fazendo o chamei:

“Leroy, me diz se isso faz sentido.”

E li para ele um trecho do livro:

“Vou experimentar para ver se sei tudo que sabia antes. Deixe-me ver: quatro vezes cinco é doze, e quatro vezes seis é treze, e quatro vezes sete é… ai, ai! deste jeito nunca vou chegar a vinte!”

“Claro que não, esse livro está deixando você com miolo mole!”

Naquele momento eu senti toda a angústia dos últimos dias subir pela minha garganta e se destilar em ódio. Fiquei de pé, joguei o livro longe e marchei com passos duros em direção ao caçula. Os punhos doíam pela força com que os estava fechando. Parei na frente dele e…

Não sabia se o que ele tinha falado era besteira ou não. De fato sentia como se o livro estivesse amolecendo meus miolos. Estava com raiva de ler e sentia que aquilo seria a desculpa para não pegar em mais nenhuma porcaria de livro pelo resto da vida e foi então que reparei nos olhos de Leroy. Ele não havia saído correndo – imaginou que ia apanhar, deve ter pensado que merecia e apenas ficou lá para levar o castigo pela piada impensada – mas então vi algo que até então apenas havia lido a respeito.

Os olhos de Sherlock Holmes, em algumas das histórias escritas por Sir Arthur Conan Doyle, são descritos como particularmente afiados e penetrantes, imbuídos de um olhar distante e introspectivo quando sua mente passava a funcionar a pleno poderes e como ele tinha a capacidade de desconectar em grau extraordinário sua mente sempre que precisava.

Naquele dia fui testemunha de algo semelhante. A mente de Leroy não se desconectou por vontade própria, foi como se ela percebesse algo e o deixasse catatônico, enquanto a consciência de seus olhos era tragada para o fundo de sua psiquê. Num momento ele me encarava com medo e apreensão quando, de repente, não havia mais nada ali, primeiro seus olhos se apagaram e depois de instantes passaram a brilhar.

“Pera…” Ele disse, começando devagar e ficando agitado “repete, como é? Quatro vezes cinco é doze? Quatro vezes seis é treze?”

Enquanto eu corria para pegar o livro para abrir na página ele continuou.

“Isso… e ele falou quanto era quatro vezes sete?”

“Não.” Eu respondi, olhando para ele e sabendo que não ouvia o que eu dizia.

“Bom… quatro vezes sete então seria catorze, seguindo a lógica. E quatro vezes oito igual a 15. Isso faz sentido!” E começou a rabiscar no papel. “Nossa, isso é brilhante e muito engraçado! Que livro é esse?”

Eu mostrei a capa.

“Quem escreveu isso gosta de matemática, tem mais contas? Ou charadas?”

Eu disse que assim que acabasse de ler lhe emprestaria o livro e pedi para explicar o que era brilhante.

Ele olhou para mim irradiando de felicidade. Leroy gostava de números, muito. Isso significa que ele nunca teve muito com quem conversar – além de um tio nosso. Quando alguém precisava resolver um problema falava com ele, mas raramente pedia explicação. Alguém se interessar pelos números dele e querer entendê-los era algo que o deixava extático.

“Olha, é assim. A gente escreve e pensa em uma base decimal, certo? A gente usa 10 números: 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9 para escrever qualquer número, e dividimos os números em casas decimais, a casa das unidades, das dezenas, centenas…” Ele ergueu os olhos do papel onde desenhava pequenos quadrados e me encarou “Muito chato?”

“Não… nem um pouco… continua, finge que eu sou burro, pode explicar bem devagar.”

Ele riu e se animou mais.

“Então, quando a gente conta até nove chegamos no limite das unidades, por isso que quando vamos para dez colocamos um zero no lugar das unidades e um número um no lugar das dezenas. Ai cabem mais nove unidades e mais do que isso são duas dezenas. Mais do que nove dezenas vira uma centena e assim vai. Certo? Então. Quando fazemos quatro vezes cinco, terminamos com vinte unidades, ou duas dezenas. Marcamos dois e zero, assim: 20. Agora, e em outro sistema diferente? Tipo num sistema de base onze cabem dez unidades na casa das unidades e só uma na casa dos onze aqui. Então em um sistema onze teríamos um número assim: 1-10 como resultado para 4 vezes 5. Agora não podemos colocar um 10 aqui, porque são dois números, mas a ideia é que do lado direito é o número mais alto, como o nosso 9, então em base onze quatro vezes cinco seria igual a 19. Se vamos subindo a base, base doze, base treze, base quinze… o resultado vai diminuindo. Em base 18 quatro vezes cinco é igual a doze.”

“E quatro vezes seis é treze?” Perguntei entusiasmado.

“Não. E ai é que fica genial. Quatro vezes seis só é 13 se usarmos base 21. Quatro vezes sete é 14 em um sistema de base 24. Legal né?”

Eu começava a enxergar algo por trás da história. “Sim” Eu concordei boquiaberto.

“Agora fica genial. Se aumentarmos as bases de 3 em 3, como ele parece estar fazendo, olha só. Em base 27 quatro vezes oito é igual a 15. Em base 30, quatro vezes nove é igual a 16. A gente vai subindo a base em três, multiplicamos quatro por um número mais alto e o resultado sobe de um em um, rumo a vinte, viu? Só que ele disse que assim nunca vai chegar a vinte, olha. Na base 39, quatro vezes doze é igual a 19. A próxima base seria 42. Mas o produto não dá igual a vinte, porque cabe muito mais unidades antes da base 42 se encher duas vezes. Então ele nunca vai chegar a vinte mesmo seguindo essa tabela. Insano né?”

Fiquei olhando para Leroy pensando que genial era alguém conseguir enxergar isso de forma tão rápida e achar graça ainda. Agradeci e peguei o livro e resolvi pesquisar a vida de Lewis Carrol antes de continuar lendo.

Duas semanas depois estava no sofá da sala, lendo da forma mais casualmente escancarada que era fisicamente possível para mim um livro de William Blatty. Escolhi aquele livro não pelo assunto, mas porque a capa vermelha chamava a atenção a quadras de distância – ou assim esperava. Se passaram algumas horas até ouvir a voz da minha mãe do outro lado da capa.

“Livro novo?”

“Não. Foi escrito há mais de dez anos.”

“Leitura nova?” A voz dela curiosa, intrigada pela piada.

“Sim.”

Silêncio. O tique-taque do relógio da parede ficando mais alto, os taques parecendo ficar mais distantes dos tiques.

“Acabou de ler Alice?”

“O livro protesto que o Reverendo Dodgson escreveu porque a matemática estava virando uma coisa extremamente abstrata e perdendo qualquer laço com o mundo real? Terminei. Leroy está lendo ele lá no quarto.”

Meus dedos estavam gelados e fazia força para evitar que meus braços tremessem. Meu nariz começou a latejar sem motivo algum aparente.

“Matemática?” Veio a questão do outro lado da capa do livro, eu ainda não tinha tido coragem de encará-la, sentias as bochechas pegando fogo.

“Parece que sim” minha voz saia casual como minha postura, ou assim eu esperava “Alice não passa de uma euclidiana sensível, tentando desesperadamente manter a calma e a sanidade enquanto o mundo das Maravilhas era a faculdade em Oxford, onde Dodgson vivia e os habitantes eram provavelmente seus colegas, discutindo a nova matemática abstrata da época. Antes ele fazia contas com maçãs, agora ele nano sabia como calcular a raiz quadrada de menos uma maçã. Dai o livro.”

Acho que não estava mais respirando, tomei coragem e abaixei a capa do livro. Lá estava o sorriso dela olhando de volta para mim. Tive vontade de chorar, mas me mantive firme.

“Entendeu agora?” Ela perguntou?

“Eu não sei” respondi com voz trêmula.

“Se você vai viver com a cabeça entre as capas de um livro, faça isso direito. Se vai viver consertando carros, faça isso direito, se vai viver fazendo algo, faça como se sua vida dependesse disso, ou então ela vai ser uma vida fútil e você vai estar estragando a única coisa que tem algum valor, o que tem aqui dentro.”

Ela se aproximou e beijou minha testa.

“Veja seu irmão mais novo e como ele vive com os números dele. Faça a mesma coisa com seus livros, com suas histórias. O mundo está cheio de imbecis, não vire um deles. Vou continuar te amando se você for um imbecil, mas você não. Nunca se contente só com o que existe na superfície, mergulhe, veja se exista algo no fundo e brigue com esse algo. A vida é muito curta para você se contentar em só amar algo ou alguém. Entende? Tudo o que vale a pena é profundo, tem complexo, misterioso. São essas coisas abismais que te fazem mudar e crescer. Não pare de crescer nunca. E a maior lição é que você e seus irmãos juntos podem se tornar algo inquebrantável. Nunca se satisfaça com a mediocridade do mundo e nunca se contente com o que boia, vá atrás do que se esconde no fundo.”

A assim mergulhei no livro de Ruff para, primeiro, saber se possuía alguma profundidade e então ver se havia algo de valor ali.

Daqui em diante o livro será exposto como a fotógrafa O do romance de Anne Desclos, se não quiser surpresas reveladas pare de ler aqui e continue no final caso se interesse pela avaliação do material.

NOTAS SENSORIAIS

  • VISÃO

– A apresentação do livro é sensacional. Arte da capa e material remetem a Lovecraft e às revistas Pulp que publicavam seus contos. Até o papel impresso cria uma ambientação fenomenal, o cheiro de jornal velho, você sente o material áspero se esfarelar minimamente em contato com os dedos. Parece algo saído do passado. A arte gasta, a impressão reticulada e o destaque ao nome de Lovecraft maior do que o nome do próprio autor, talvez uma indicação do que viria.

  • AROMA

– Primeira decepção. O autor não consegue manter uma linguagem lovecraftiana em seus textos. O livro, inclusive, não conta apenas uma história, mas várias, cada capítulo uma pseudo homenagem a um estilo de história diferente do universo terror e ficção científica – atenção aqui:

a) “pseudo homenagem” porque não homenageia na verdade, apenas faz uso da ambientação o que torna cada capítulo um mero clichê

b) “a um estilo de história” porque o autor não tem o talento ou a capacidade de incorporar no que narra o estilo dos textos originais, os vícios de linguagem, os maneirismos, os adjetivos. A história de fantasmas não tem a alma gótica, a história de ficção científica não tem o espírito fantástico do inimaginável. É sempre o mesmo tom, o mesmo ritmo a mesma linguagem insossa e sem graça.

Também decepcionante quando se percebe que o nome de Lovecraft não é um título, é apenas mais uma isca para atrair leitores desavisados, se você é fã do escritor de Providência não se deixe levar pelo nome com que esta obra foi batizada, dele ela não tem nada além de algumas menções e de nomes de títulos emprestados para alguns dos capítulos.

Fraco, muito fraco. Fraco e chato.

  • PALADAR

Como o livro é composto por diferentes histórias com uma espinha dorsal que as une, vou dar minha breve opinião sobre cada “capítulo”.

– Lovecraft Country (País de Lovecraft)

A primeira história é de longe a “melhor do pacote”. Talvez o clima que vá se criando, e o fato de você ainda não saber que o livro seria ruim, ajude muito com isso. Ela é que dá nome ao livro. 1954, Atticus é um militar negro que recebeu dispensa e está decidindo o que fazer com a vida quando recebe uma carta misteriosa de seu pai. A partir dai parte em uma jornada que mudará sua vida.

– Dreams of the witch house (sonhos na casa da bruxa)

Uma das melhores histórias de Lovecraft vira título de um capítulo com a única intenção de… de nada além de se usar um título do autor. Típica história da casa mal assombrada, claro que o fantasma é branco e racista e a nova proprietária da casa uma mulher negra. Um conto fraca cujo ápice é a piada que surge quando o fantasma tenta matar a protagonista e acreditem que se esta descrição pareceu interessante, ela não é.

– Abdullah’s book (o livro de Abdula)

Uma sugestão de semelhança com o Necronomicon de Lovecraft, dai atribuírem o livro a um nome árabe. Desta vez um ramo negro da maçonaria se envolve com o ramo branco da Ordem que tem como membros figuras poderosas da sociedade – chefes de polícia irlandeses, prefeitos, ricaços. O conto não gira em torno da criação do livro, ou de sua história, apenas como os maçons conseguirão driblar uma armadilha sobrenatural que tem em seu interior o livro mágico – que não foi escrito, nunca pertenceu e nem foi lido por Abdullah.

– Hippolyta disturbs the universe (Hipólita perturba o universo)

Típico conto de ficção científica e o segundo conto com personagem feminina. Hippolyta acaba com uma chave nas mãos que a leva para um observatório que serve como portal para infinitos mundos. Desde criança ela idolatra astronomia e o conto tem o sabor de destino pré fabricado – como uma personagem batizada de Magnus se tornar um vilão chamado Magneto que controla o magnetismo, ou alguém batizado Otto Octavius terminar com tentáculos no corpo com o nome de Dr. Octopus. A criança que nunca pôde ingressar na astronomia por ser mulher, negra e pobre, acaba vivendo a maior aventura galática de todas. Mas ao ler você não sente o gosto do fantástico, do absurdo, daquilo que é alienígena, nem a surpresa e o maravilhamento de alguém realizando os sonhos de criança.

Hyppolita com certeza viveria uma aventura uito mais memorável se fosse parar em uma dimensão paralela onde os brancos fossem alvo do racismo e o mundo oriental fosse dominado pelos negros. Mas ela apenas vai para uma casa pré fabricada que tem um forno que produz comidas misteriosas de forma aleatória.

– Jekyll in Hyde Park (Jeckyll no parque Hyde)

Contos que trazem por título trocadilhos de obra de Stevenson por si só mereceriam ser ignoradas, mas tais trocadilhos parecem ser populares não apenas em literatura ruim, mas em música, curtas animados, etc…

Na obra de Stevenson o médico manso e gentil dr. Jekyll, faz pesquisas para entender os impulsos e os sentimentos humanos mais profundos, a acaba por criar uma droga que libera seus aspectos mais primitivos, é a deixa para surgir Sr. Hyde (do verbo hide, esconder, ocultar). Então o aceito socialmente se torna um monstro.

Ruff inverte aqui os papéis sociais e uma poção mágica transforma Ruby – mulher negra para quem nada dá certo – em uma mulher branca e ruiva que pode fazer o que quiser. Aqui o “monstro” se torna o que é aceito e desejado socialmente. O único objetivo deste conto é nos mostrar o que é a Ordem e quais os planos de Caleb para ela.

– The narrow house (A Casa Estreita)

Outro trocadilho sutil, já que “casa estreita” em inglês tem o significado poético de cova, sepultura – pense a respeito você entenderá. O título seria interessante se o conto fosse bom. Desta vez ao invés de trazer fantasmas para nosso mundo o pai de Atticus acaba indo parar em uma casa fantasma, agora são os vivos que assombram os mortos. Não sei como mas o autor conseguiu criar uma história monótona e chata. Já que fantasmas não sentem mais nada se alimentam de emoções. “Conte uma história e você pode ir”.

Não há momentos de perigo, não há reviravoltas, não há nada fantástico. Apenas usam um fantasma para contar como pode ser horrível para um branco viver um casamento interracial e ainda por cima ser burro. Um conto linear sem surpresas que tem como único objetivo mostrar que um vivo pode negociar com um morto.

– Horace and the devil doll (Horácio e o boneco satânico)

A promessa de um conto na linha do clássico Além da Imaginação. Será que o que está acontecendo é real? É ilusão? É loucura? Poderia ser Contos Fantásticos em seu ápice. Com certeza melhor do que os contos anteriores, mas o autor falha em personificar a criança protagonista da história, nos parece apenas um adulto que não sabe agir. Tudo o que caracterizaria uma criança, a inocência, o medo do desconhecido, o pânico que o terror causa, a suave ignorância dos primeiros anos são tratados de forma artificial, a visão de um adulto que não sabe escrever através de mãos infantis.

– The mark of Cain (A marca de Caim)

O climax une um pouco do que foi exposto em cada conto anterior. Quando um personagem não adquire uma experiência que o motive ou que lhe dê sabedoria ele ganha uma bugiganga mágica como uma varinha mágica com um desenho de libélula que tem o mesmo efeito do beliscão nevrálgico vulcano em seus inimigos.

Tudo, obviamente termina bem para os protagonistas, qualquer associação ou lealdade que uma personagem de cor tenha com uma branca é desfeita e termina a história principal.

  • FINALIZAÇÃO

É um livro que deixa um gosto ruim na boca.

Termino de ler o livro e a impressão clara é a da tentativa de se criar um texto onde o sobrenatural é ofuscado pelo racismo – o ódio irracional humano é pior do que qualquer monstro que nossa mente possa conjurar.

Ao mesmo tempo fechei o livro pensando que ele não passava de um pré roteiro para alguma nova série infanto juvenil de suspense e sobrenatural.

O mais engraçado é um homem branco de nossa época escrever sobre o racismo da década de 1950 e isso parece ser uma tendência da literatura. Victor Lavalle, outro escritor branco, escreveu “Tha Ballad of Black Tom: uma revisão do conto O Horror de Redhook de Lovecraft onde o protagonista é negro. Esse tipo de literatura Mea Culpa deveria ser vendida junto com livros de auto ajuda para quem se identifica com esse tipo de material.

Tudo isso somado a um escritor que não conseguiu adicionar brilho ou profundidade ao que escreveu, muito pelo contrário, na última história a personagem que se transforma na personagem ruiva acaba sendo subjulgada pela tia de Aticus, um dos homens que ambas haviam amarrado pisca para ela e diz “é isso o que ganha tentando ajudar os negros” apenas para receber um cala boca de ambas as mulheres, a negra e a negra no corpo branco.

Geralmente, escritores que se enveredam pela senda do sobrenatural, do fantástico e do horror possuem uma receita que visa, durante o desenrolar da história, criar uma dualidade moral tremenda. Uma criatura que representa o mal, a amoralidade, tudo o que é errado, e ela tem poderes e força muito maior do que a daquele (ou daquela) que a vai enfrentar. Cria-se assim a eterna síndrome bíblica de um David enfrentado um Golias armado de um simples pedregulho e vencendo o gigante no final.

Este tipo de roteiro geralmente é fraco, mas as pessoas se afeiçoam dele – acredito eu – porque o mal é sempre exposto como algo tão repulsivo que não tem outro destino cabível a não a aniquilação total, e ficamos aliviados quando ela finalmente chega.

No livro de Ruff a personagem Caleb Braithwhite deveria ser esse antagonista supremo, mesmo que velado durante a obra, alguém cuja presença devesse ser aturada, mas não suportada por muito tempo. O problema é que durante o desenrolar do livro ele não atinge esse status.

Ele salva Aticus e seu pai, seu tio e sua amiga Letitia – todos os quatro seriam mortos. No processo Atticus coloca uma “amiga” de Caleb em coma – com o tempo vemos que eles eram mais do que amigos. Caleb ainda paga para a família o salário que calculam ser devido a sua antepassada que trabalhou como escrava. Dá à irmã de Letitia, Ruby, uma chance de fazer o que desejar com a vida e num golpe final acaba com todos que tinham motivo para acabar com a familia e os amigos de Atticus. E como pagamento disso e mais é traído, tem seus poderes apagados, é expulso da cidade, fica sem dinheiro, sem influência e termina com todos os outros protagonistas rindo dele e das advertências que ele faz – não ameaças. Não sei qual a intenção de Ruff, mas terminei de ler o livro com as palavras do capanga amarrado ecoando em minha mente:

“é isso o que ganha tentando ajudar os negros”

Um erro grotesco do escritor, a não ser que ele suponha que como todas as outras personagens são intrinsecamente boas, o que fazem é intrinsecamente correto. Mas não é porque o racismo é a base moral de uma novela que tudo o que aqueles que sofrem do racismo fazem é justificável. Se Caleb era de fato alguém que merecia ser neutralizado e humilhado o autor falha em mostrar isso e criar um clima indigesto por lidar de um assunto tão delicado e fundamental: a ignorância humana e o desprezo que ela gera a tudo que nos parece diferente, a nossa tendência estúpida de diminuir e tirar valor de tudo aquilo que aparentemente é diferente de nós.

Além disso a forma como o autor coloca o universo da ficção científica preenchendo alguns vazios deixa a impressão de ter tentado pintar como seria alguém de cor gostar de ficção científica em mundo onde até hoje, para a maioria, Jesus Cristo é loiro de olhos claros.

Se o objetivo era mostrar a uma pessoa branca como era ser negro na época, ele faz isso da maneira mais tosca e despreocupada. Isso seria uma visão tão linda para ser trabalhada, mas lhe falta talento para desenvolvê-la, acaba deixando um fim suspenso no ar sem significado nenhum além do gosto tonto da traição.

Eu sinto dor em meu coração por todas as árvores que morreram para serem transformadas em papel e ter impressa em seus cadáveres as palavras que formam este volume.

MINHA AVALIAÇÃO

Papel higiênico usado

(está cheio de merda, o lugar dele é no lixo mas teve uma utilidade prática)

Mas… apesar de todo o desgosto… o prazer que as personagens tem por obras clássicas da fantasia e da ficção científica despertaram algo em mim e servirão de norte para as leituras que pretendo realizar este ano. Ray Bradbury, Edgar Rice Burroughs, planetas distantes, futuros improváveis… mutantes… 2020 ficará marcado como o ano do fantástico e esses serão os livros que surgirão aqui nas próximas postagens.

Bônus

Uma dica para quem gostaria de ver a proposta de racismo extremamente bem desenvolvida em uma história de ficção científica:

Kindred: Laços de Sangue de Octavia E. Butler

Publicado pele aditora Morro Branco, e com o título “Kindred – laços de sangue”, esta é a primeira obra de Octavia lançada no Brasil. O livro foi escrito por uma mulher negra que nasceu na década de 40. Ela sabe sobre o que está escrevendo. O livro narra a história de uma mulher negra que viaja de volta no tempo e tem que salvar a vida do escravagista que irá se tornar seu antepassado.

Octavia era uma mestra das palavras. Sua narrativa única, suas histórias um murro na carra do leitor. Este livro é uma obra prima que merece ser lida.

Bônus 2: Trailler da Série

Excelente review, ‘bem vidos de volta, Mortesubitos’!

Postagem original feita no https://mortesubita.net/lovecraft/lovecraft-country-racismo-spoilers-e-papel-higienico/

Howard Phillips Lovecraf e os Mitos de Cthulhu

Resumo

O texto começa por dar algumas informações biográficas sobre Lovecraft, como alguns aspectos mais importantes da sua vida e da sua personalidade. Lovecraft foi um escritor de histórias de temática fantástica que viveu entre 1890 e 1937. É dado algum destaque a Lovecraft enquanto criança, porque se considera importante para a compreensão do seu carácter. Discutem-se diversas influências à sua obra assim como outros factores que o poderão ter marcado. Tenta-se seguidamente dar uma imagem geral dos Mitos de Cthulhu, que é a designação que se adopta para o conjunto de histórias desenvolvidas por este e outros autores que o seguiram. Fala-se sobre o “Círculo de Lovecraft”, conjunto de escritores que seguiram o seu estilo e trocavam grandes volumes de correspondência entre si. For fim aborda-se a questão dos Mitos de Cthulhu depois de Lovecraft e na actualidade.

Introdução

“As a foulness shall ye know Them. Their hand is at your throats, yet ye see Them not; and Their habitation is even one with your guarded thresold.”

– Necronomicon

 

O texto que se segue pretende dar uma ideia geral do trabalho literário de Howard Phillips Lovecraft e do contexto que envolveu esse mesmo trabalho. Criador de um estilo único de literatura, que mistura de uma forma inconfundível ficção científica e terror cósmico, Lovecraft deixou uma obra que ainda hoje em dia inspira muitos autores. Sem pretender deixar de fora os outros escritores que integravam o Círculo de Lovecraft nem tirar mérito ao seu trabalho, utilizo o nome do seu mentor em representação de todo o estilo que ele desenvolveu e que vários seguiram.

Utilizando palavras do próprio Lovecraft, as efabulações sobre temas mundanos e o lugar-comum não satisfazem as mentes mais criativas e sequiosas de novos estímulos. O trabalho de Lovecraft não serve para agradar às massas nem ao cidadão comum, mas apenas a um grupo mais restrito de admiradores que não se contentam com os enredos banais do dia-a-dia. Abdicando do lucro fácil que certamente teria atingido se utilizasse o seu génio na produção de romances comerciais, Lovecraft deixou-nos um legado espantoso de visões fantásticas e universos assombrosos.

Informação Biográfica

“A mais antiga e poderosa emoção da raça humana é o medo, e o mais antigo e poderoso medo é o medo do desconhecido.”

H. P. Lovecraft

Howard Phillips Lovecraft é conhecido na actualidade pelo trabalho que produziu no campo dos contos de ficção e terror. Escreveu durante o seu não muito longo tempo de vida cerca de 65 contos pequenos, 3 romances (um deles incompleto), dezenas de artigos e ensaios para revistas científicas e outras de ficção como Weird Tales, algumas centenas de poemas e sonetos e mais de 100 mil cartas. A sua vasta correspondência será discutida mais adiante na secção que trata do “Círculo de Lovecraft”.

Nasceu no ano de 1890 em Providence, Rhode Island, no seio de uma família abastada mas em clara decadência financeira. Desde cedo mostrou o seu interesse por ciência e pela ficção. Escreveu “The Little Glass Bottle”, o seu primeiro conto, com apenas 6 anos. Cerca de 5 anos mais tarde publicava e distribuia de porta em porta jornais científicos como “The Scientific Gazette” e “The Rhode Island Journal of Astronomy”. Atormentado desde muito cedo por sonhos estranhos e delirantes, tinha uma saúde frágil e problemas nervosos que o impediam de frequentar a escola regularmente. Continuou a escrever ficção ao longo de toda a sua infância e publicou o seu primeiro conto aos 15 anos. No fim da adolescência foi-lhe dito que não tinha talento, deixando de escrever por uns anos. Voltou à actividade com a publicação de “The Transition of Juan Romero” na revista Weird Tales.

Com a morte do seu pai e mais tarde da sua mãe em 1921 num sanatório, a família de Lovecraft atingiu a ruína financeira e viu-se obrigada a vender a maior parte dos seus bens, o que foi para ele um grande choque. Necessitando de ganhar dinheiro para a sua subsistência, Lovecraft viu-se confrontado com um dilema comum a muitos artistas: manter-se fiel à estética artística que persegue ou optar pela vulgaridade e lucro fácil. Tendo sido o seu trabalho sistematicamente rejeitado pelos principais editores, vê-se obrigado a escrever contos de má qualidade para escritores consagrados, segundo ideias por eles fornecidas. Este tipo de actividade era conhecida por ghost-writing. Um dos seus clientes foi Harry Houdini.

A sua ficção, demasiado avançada para a época, atraiu um grupo restrito mas fiel de admiradores, alguns deles escritores consagrados que o impeliam a continuar a escrever. Formou-se aquilo que viria a ser conhecido como Lovecraft Circle, um grupo de escritores de ficção que trocavam correspondência e escreviam dentro de um estilo definido à partida pelo próprio Lovecraft. Foi um dos elementos deste grupo, August Derleth, que mais se empenhou na publicação do trabalho de Lovecraft depois da sua morte, sendo um dos principais responsáveis pela divulgação que tem hoje em dia.

Lovecraft casou-se e foi viver com a sua esposa para Nova Iorque em 1924, mas terminou o casamento dois anos mais tarde, regressando a Providence. Aí viveu o resto da sua vida na companhia de duas tias. Terá, segundo a opinião de alguns críticos produzido os seus melhores trabalhos durante esta época. Tinha como hobbie viajar em busca de vestígios do mundo antigo, fazendo-o na medida em que a sua fraca condição financeira o permitia. Dizia quem o conheceu que era um indivíduo bastante estranho mas muito marcante. Possuidor de um espírito científico e filosófico, era extremamente hipocondríaco e comportava-se como sendo mais velho do que era na realidade. Morreu com 46 anos em 1937 vítima de um cancro súbito e violento, sem nunca conhecer o sucesso.

Sendo desde cedo um leitor ávido, Lovecraft sofreu a influência de muitos outros escritores na sua obra. O seu autor favorito era Edgar Allen Poe, que claramente imitou em “The Outsider”. Além dos escritores que constituíam o Lovecraft Circle, também Robert N. Chambers, Arthur Machen e o jornalista e autor de histórias fantásticas Ambrose Bierce o inspiraram no seu trabalho. Lord Dunsany foi claramente o autor que o influenciou a escrever histórias oníricas e a criar as suas “Dreamlands”, e Algenon Blackwood a recorrer às lendas do índios norte-americanos. Além das influências humanas, e talvez de forma ainda mais marcante, Lovecraft inspirava-se nos seu conhecimentos científicos, astronómicos e filosóficos, assim como nos seu sonhos. Algumas das suas criações mais fantásticas surgiram pela primeira vez na sua mente enquanto dormia.

Os Mitos de Cthulhu

“Todos os meus contos partem da fundamental premissa de que as leis, interesses e emoções humanas não possuem nenhuma validade ou significância na grande imensidão do universo.”

H. P. Lovecraft

August Derleth viria a designar o conjunto do trabalho produzido por Lovecraft e pelos escritores que seguiram o seu estilo como ele próprio por “Mitos de Cthulhu”. Cthulhu é uma criação do próprio Lovecraft de que falarei mais adiante, e que aparece naquele que é provavelmente o seu conto mais conhecido, “Call of Cthulhu”. Cada conto escrito por Lovecraft e seus seguidores constitui mais uma peça para enriquecer a imagem geral do que são os Mitos. A melhor forma de os conhecer é obviamente pela leitura desses mesmo contos, mas tentarei dar uma ideia geral.

É constante ao longo de todas as histórias a ideia de que a humanidade e o nosso planeta são uma “concha” de sanidade mental, imersa num universo completamente alienado, povoado por criaturas e raças poderosas, deuses estranhos e regido por leis completamente insondáveis e divergentes das leis naturais que conhecemos. Um homem exposto a esta realidade tem tendência a enlouquecer. A sanidade mental é vista como uma cortina que nos protege da realidade, permitindo que as sociedades humanas subsistam coma as conhecemos, alheias à estranheza do universo que as rodeia. A personagem principal nas histórias de Lovecraft é tipicamente um cientista, investigador ou professor universitário que se vê confrontado das mais diversas formas com esta terrível realidade.

Outra ideia de base importante é a de que a maioria dos cultos e religiões humanas das mais diversas épocas e regiões do globo, sendo aparentemente dispersas, representem imagens distorcidas e por vezes complementares da verdadeira natureza do cosmos. Segundo a Mitologia de Cthulhu, diversas raças e entidades superiores terão habitado a terra antes do Homem, e diversas o farão depois da Humanidade desaparecer. Algumas destas entidades superiores (como o próprio Cthulhu), dado o seu ciclo de vida inimaginavelmente longo, e a sua supremacia física e intelectual sobre o Homem, são facilmente confundíveis com Deuses. Cultos primitivos terão aparecido para adorar estes pseudo-Deuses. Muitas das histórias dos Mitos especulam sobre a subsistência desses cultos na actualidade, as suas actividades obscuras e as suas motivações incompreensíveis, criando um ambiente extremamente tenso e paranóico.

As histórias originais de Lovecraft têm na sua maioria como cenário os Estados Unidos dos anos 20 e início dos anos 30. Trata-se de uma época de grandes injustiças sociais, em que a classe baixa vivia na miséria e oprimida pela burguesia, enquanto que a classe alta usufruía de um estilo de vida luxuoso. A segregação racial era intensa e a lei seca encontrava-se em vigor, motivando o aparecimento de crime organizado em volta do tráfico de bebidas espirituosas. A terrível realidade dos Mitos de Cthulhu contrasta de uma forma bastante brutal e sugestiva com a futilidade dos interesses da classe alta.

Seguidamente irão ser descritos alguns elementos-chave dos Mitos. Não sendo uma lista de forma alguma exaustiva, pretende apenas dar uma ideia geral do ambiente. Nas descrições que se seguem, e por comodidade, factos completamente fictícios irão ser descritos como reais.

Deuses Exteriores

No panteão dos Mitos, os Deuses Exteriores ocupam o topo da hierarquia. De natureza claramente sobrenatural, governam o universo segundo princípios, desígnios e motivações incompreensíveis para a Humanidade. Tão pouco eles se parecem interessar por ela, sendo-lhes o seu destino indiferente. Não estão limitados pelo espaço ou pelo tempo, conseguindo visitar qualquer local e qualquer era. Percorrem também os diversos planos de existência, sem excluir as Dreamlands.

Azathoth

Origem do Nome: do árabe Izzu Tahuti, que significa “poder de Tahuti”, provavelmente uma alusão à divindade egípcia Thoth.

Azathoth é o “Sultão Demoníaco”, o mais importante dos Deuses Exteriores. Fisicamente é uma massa gigantesca e amorfa de caos nuclear, sendo incrivelmente poderoso mas completamente desprovido de inteligência. A sua “alma” é Nyarlathotep, o mensageiro dos Deuses. Azathoth passa a maior parte do tempo no centro do universo, dançando ao som de Deuses Menores flautistas. A maior parte das suas aparições em locais diferentes deste estão relacionadas com catástrofes gigantescas, como é o caso da destruição do quinto planeta do Sistema Solar, que é hoje a cintura de asteróides.

Nyarlathotep

Origem do Nome: do egípcio Ny Har Rut Hotep, que significa “não existe paz na passagem”.

Nyarlathothep é a alma e o mensageiro dos Deuses Exteriores. É o único deles que tem vindo a travar contactos com a Humanidade, mas os seus objectivos são imperscrutáveis. Possui um inteligência inimaginável e um sentido de humor mórbido. Consegue adoptar centenas de formas físicas distintas, podendo parecer um homem vulgar ou uma monstruosidade gigantesca. Especula-se que um faraó obscuro da IV Dinastia do Egipto Dinástico fosse Nyarlathotep “em pessoa”. A própria Esfinge será uma representação em tamanho natural de uma outra forma de Nyarlathotep.

Great Old Ones – Os Gandes Antigos

Muitas vezes confundidos com Deuses Menores, os Great Old Ones são provavelmente seres vivos incrivelmente poderosos, com ciclos de vida espantosamente longos. Especula-se sobre se pertencerão todos a uma ou várias raças cujos elementos se encontram dispersos pelo universo. A variedade do seu aspecto parece excluir a possibilidade de pertencerem todos à mesma raça. Os seus propósitos são mais compreensíveis do que os dos Deuses Exteriores, estando interessados em colonizar planetas. É frequente um Great Old One liderar um povo de uma raça menos poderosa. Na terra existem cultos dispersos a vários destes seres, principalmente Cthulhu.

Cthulhu

Origem do Nome: Deterioração pelos gregos da palavra árabe Khadhulu, que significa “aquele que abandona”. No Corão existe a seguinte passagem: 25:29 – “Para a Humanidade Satan é Khadulu”.

O mais conhecido dos Great Old Ones e das criações de Lovecraft, Cthulhu é um ser gigantesco e vagamente humanóide, com asas e tentáculos de polvo na boca. Chegou à terra milhões de anos antes do aparecimento do Homem e povoou-a com a sua raça de Deep Ones, seres humanóides anfíbios. Construiu a gigantesca cidade de R’lyeh algures onde é hoje o Oceano Pacífico. Daí comandou o seu império, até ao dia em que as estrelas atingiram um alinhamento que o obriga a entrar em letargia. Cthulhu dorme na sua cidade entretanto submersa por água, aguardando o dia em que a posição das estrelas lhe permita voltar à vida e de novo reinar sobre a Terra. Cthulhu é capaz de comunicar por sonhos enquanto dorme, influenciando alguns seres humanos mais sensíveis durante o sono. Diversos cultos tentam apressar o seu regresso, mas ele próprio não parece ter muita pressa. Especula-se que esta longa hibernação seja uma característica normal do seu estranho ciclo biológico.

Necronomicon

Constituindo uma verdadeira “Bíblia” dos Mitos, o Necronomicon foi originalmente escrito por Abd Al-Azrad, um árabe louco e visionário de cuja vida pouco se sabe, excepto que terá visitado alguns dos lugares mais desolados do globo terrestre. Escrito originalmente em árabe, o Necronomicon foi mais tarde traduzido para grego (onde ganhou o seu nome actual), latim e inglês. Na actualidade não existirão mais do que duas ou três cópias deste livro, supondo-se que uma delas se encontra no Museu Britânico. Revelando alguns dos mais terríveis segredos dos Mitos, a sua leitura provoca graves perdas de sanidade mental a quem o lê.

Arkham

“…The changeless, legend-haunted city of Arkham, with its clustering gambrel roofs that sway and sag over attics where witches hid from the King’s men in the dark olden days of province.”
H. P. Lovecraft

Trata-se de uma pequena cidade universitária perto de Boston, na Nova Inglaterra. Atravessada pelo rio Miskatonic, é nela que vivem muitos dos heróis das histórias de Lovecraft. Fundada por pioneiros ingleses da colonização do contiente americano, Arkham é assombrada pelas memórias do tempo das bruxas e dos ritos sombrios. Alguns dos sotãos desta cidade ocultam ainda hoje segredos terríveis.

Yuggoth

Ainda antes da descoberta oficial de Plutão, o último planeta do Sistema Solar, já Lovecraft escrevia sobre Yuggoth, um pequeno planeta sólido com a sua órbita exterior à de Neptuno. Yuggoth é a terra natal de uma raça de criaturas terríveis, os Fungos de Yuggoth, que são seres insectóides da dimensão de um homem com a capacidade de voar através do vácuo inter-planetário, e donos de uma tecnologia incrivelmente avançada. Os Fungos de Yuggoth vagueiam por todo o Sistema Solar, incluindo a Terra, com propósitos desconhecidos.

Existe bastante polémica sobre se os Mitos de Cthulhu podem ser considerados uma verdadeira mitologia, ou mesmo uma pseudo-mitologia. Tendo todas as características de uma qualquer outra mitologia, desde um panteão de Deuses a um conjunto de lendas (os contos de Lovecraft e outros), foram criados de uma forma perfeitamente artificial e intencional por um conjunto restrito de escritores. Não tiveram a sua génese nas tradições e crenças de uma civilização, como seria normal numa mitologia.

August Derleth, autêntico embaixador da obra de Lovecraft e defensor da ideia de considerar os Mitos de Cthulhu uma mitologia, tentou de certa forma a sua sistematização. Procurou determinar que contos de Lovecraft e outros pertenciam aos Mitos, e esclarecer aspectos focados de uma forma vaga e imprecisa nessas histórias. Chegou a pretender associar algumas entidades dos Mitos com os quatro elementos naturais: ar, água, terra e fogo.

Lin Carter, no seu ensaio “Deamon-Dreaded Lore”, considera que este tipo de sistematização é negativa na medida em que faz desaparecer o factor que considera mais importante nas histórias de Lovecraft: o medo do desconhecido e do incompreensível. Na sua opinião Lovecraft descreve de forma vaga muitos aspectos dos Mitos propositadamente, para criar uma aura de mistério e tensão. Os contos de Lovecraft abordam frequentemente o confronto de seres humanos com realidades e desígnios totalmente alienígenas, e que não para eles compreensíveis.

De forma um pouco marginal ao núcleo central do seu trabalho, e sob a influência de Lord Dunsany, Lovecraft escreveu algumas histórias oníricas, passadas numa dimensão de sonhos, as Dreamlands. A história central deste ciclo é “The Dream-Quest of the Unknown Kadath” e narra as aventuras de Randolph Carter, um homem que quando sonha se vê transportado para um outro plano de existência, semelhante a uma terra medieval povoada de criaturas fantásticas. As Dreamlands são aparentemente um lugar de paz e tranquilidade, habitado por criaturas próprias do imaginário infantil. Este sonho pode por vezes transformar-se em pesadelo, dando lugar aos mais horríveis monstros e criaturas. Embora de uma forma algo dispersa, Lovecraft estabelece algumas relações entre estas Dreamlands e o corpo central dos Mitos.

Existem alguns paralelismos que podem ser traçados entre a vida de Lovecraft e alguns aspectos dos Mitos. Desde muito pequeno que Lovecraft gostava de ler as “Mil e Uma Noites”, fascinando-o especialmente um personagem árabe misterioso. A analogia com o Necronomicon e Abd Al-Azrad é inevitável. A sua repulsa por peixe e comida marinha faz lembrar “The Shadow Over Innsmouth”, onde a decadente população da cidade pesqueira de Innsmouth tem estranhas relações com os Deep Ones, anfíbios humanóides que imitem um repugnante odor a peixe. Lovecraft é atormentado por sonhos desde pequeno, e a sua mais famosa criação, Cthulhu, tem a capacidade de influenciar os sonhos dos humanos. Além disto temos ainda um ciclo inteiro de histórias dedicadas às suas terras de sonhos, as Dreamlands. Os pais de Lovecraft morreram ambos internados no mesmo sanatório, e também as suas personagens sofrem vulgarmente de perturbações mentais, muitas vezes resultante dos seus contactos com os Mitos. Por fim, alguns atribuem a sua obsessão por raças alienígenas terríveis a uma acentuada xenofobia, defeito comum na época e local em que vivia. Tudo isto obviamente é discutível, e não passa de especulação…

O Círculo de Lovecraft

“Slumber, watcher, till the spheres,
Six and twenty thousand years
Have revolv’d, and I return
To the spot where now I burn.
Other stars anon shall rise
To the axis of the skies;
Stars that soothe and stars that bless
With a sweet forgetfulness:
Only when my round is o’er
Shall the past disturb thy door.”
-Polaris

H. P. Lovecraft

O trabalho de Lovecraft atraiu um grupo considerável de escritores, que se começaram a corresponder com ele e entre si. Nascia o Lovecraft Circle, “fundado” pelo próprio Lovecraft e dois escritores consagrados: Clark Ashton Smith e Robert E. Howard (criador de Conan – o Bárbaro). Jovens e talentosos escritores como August Derleth, Frank Belknap e Robert Bloch (que viria a escrever mais tarde o conto que inspirou o filme “Psycho”) juntam-se também ao círculo, e todos contribuem com o seu trabalho para enriquecer os Mitos de Cthulhu.

Os vários autores dos Mitos seguiam um acordo tácito de criar nas suas histórias um ou dois Deuses Exteriores, um Great Old One, um tomo arcano e uma cidade assombrada por cultos obscuros e lendas sombrias. Com pequenas variações, os diversos elementos do Círculo cumpriam as “regras do jogo” ao escrever para os Mitos de Cthulhu. A título de exemplo segue-se uma tabela com informação de alguns livros dos Mitos e o seu criador (assim como o seu autor imaginário).

Era muito frequente os membros do Circulo “brincarem” uns com os outros colocando referências a outros autores dos mitos de uma forma mais ou menos explícita nas suas histórias. Em 1935 Robert Bloch pediu autorização a Lovecraft para o utilizar como personagem principal num conto. Lovecraft concorda e Bloch torna-o o herói em “The Shambler >From the Stars”, matando-o no fim da história às mãos de um monstro alienígena. Lovecraft obtém a sua vingança “matando” Robert Blake, um alter-ego de Bloch em “The Haunter of The Dark”. O autor do tomo “Cultes des Goules” imaginado por Bloch, Comte D’Erlette, é uma alusão clara a August Derleth. O nome Klarkash-Ton, de alto-sacerdote da Atlântida num conto de Lovecraft, constitui uma paródia a Clark Ashton Smith. Vários outros exemplos poderiam ser citados…

Edmund Wilson criticou e ridicularizou mesmo Lovecraft por este usar muita adjectivação na sua escrita. Era considerado que um bom conto de ficção não deveria socorrer-se de muita adjectivação, mas que os próprios acontecimentos e descrições é que deviam sugestionar o leitor. Se uma visão é horrível, o próprio leitor deveria aperceber-se disso, nunca deveria explicitamente ser dito: “a visão é horrível”. O que é facto é que tanto Lovecraft como diversos dos seus seguidores mantiveram sempre o uso de adjectivação muito rica, o que se tornou uma característica distintiva dos contos dos Mitos. Em sua defesa Robert Price considera que estes adjectivos podem ter um efeito quase hipnótico no leitor, despertando a sua própria noção dos conceitos que encerram e inflamando a sua imaginação.

A morte de Lovecraft constituiu um choque para os elementos do Círculo, assim como uma surpresa, visto que este não lhes tinha dado qualquer indicação na sua correspondência de que estivesse doente. Este acontecimento causou uma quebra temporária no trabalho relacionado com os Mitos. Citando Robert Block, “o jogo tinha perdido toda a piada”. Nos anos 40 e 50, Robert Block, James Wade e August Derleth continuaram a escrever histórias dos Mitos. Em 1964 Ramsey Campbell, um jovem escritor britânico, dá a sua contribuição com o apoio de Derleth.Em 1971 ainda outro britânico, Brian Lumley, junta-se ao grupo. O Círculo de Lovecraft não morrera verdadeiramente com Lovecraft, subsistindo de uma forma dispersa até aos dias de hoje.

Lovecraft na Actualidade

“That is not dead which can eternal lie,
And with strange aeons death may die.”

-Necronomicon

Muitos escritores de ficção e terror da actualidade sofrem a influência de Lovecraft, como assume o conhecido autor Stephen King. Sendo hoje considerado um marco da literatura norte-americana, Lovecraft não conheceu qualquer sucesso no seu tempo de vida, e muito pouco nos anos seguintes. August Derleth esforçou-se até muito tempo depois da sua morte por divulgar a sua obra, com algum êxito. Não foi no entanto pela via literária que alcançou a notoriedade de que goza hoje em dia.

No início dos anos 80 apareceu um jogo de personagem (no estilo de Dungeons&Dragons), criado por Sandy Peterson e intitulado “Call of Cthulhu”. Indo buscar o nome a um dos contos mais famosos de Lovecraft, Call of Cthulhu obteve grande popularidade nos Estados Unidos, e mais tarde na França, na Inglaterra e em outros países da Europa. Este estilo de jogo, que é praticamente desconhecido em Portugal, goza de grande popularidade nos Estados Unidos.

Nas décadas de 50 e 60 foram feitas algumas versões cinematográficas de contos de Lovecraft, como “The Strange Case of Charles Dexter Ward” e “Herbert West – The Reanimator”. Não existe, no entanto, nenhuma adaptação mais recente, exceptuando eventualmente o filme “At the Mouth of Madness”. Este filme inspira-se claramente no trabalho de Lovecraft, sendo até a semelhança do seu título com “At the Mountains of Madness” disto indicadora, mas não assume essa influência.

Mais recentemente surgiram alguns jogos de computadores baseados nos Mitos de Cthulhu, como “Alone In The Dark”, “Shadow of the Comet” e “Prisioner of Ice”. Apareceu até um jogo de cartas intitulado “Mythos”. A empresa de entretenimento “Chaosium” está envolvida em quase todas estas iniciativas, incluindo o já mencionado Call of Cthulhu.

Existem três traduções de trabalhos de Lovecraft para português: “O Caso de Charles Dexter Ward” – “The Strange Case of Charles Dexter Ward”, “Nas Montanhas da Loucura” – “At the Mountains of Madness” e “Os Demónios de Randolph Carter”. Esta última é uma compilação de várias histórias do ciclo das Dreamlands, nomeadamente “The Quest for the Unknown Kadath”. Aconselha-se no entanto a leitura das versões em inglês, uma vez que como é normal, as traduções limitam bastante a riqueza inicial dos textos.

Bibliografia

Lovecraft, H. P., “At the Mountains of Madness”, Harper Collins, 1994

Lovecraft, H. P., “Dagon and Other Macabre Tales”, Harper Collins, 1994

Lovecraft, H. P., “The Haunter of the Dark and Other Tales”, Harper Collins, 1994

Petersen, S. e Willis, L., “Call of Cthulhu – horror roleplaying in the worlds of H. P. Lovecraft”, Chaosium, 1995

Bloch, R., “Mysteris of the Worm”, Chaosium, 1995

Postagem original feita no https://mortesubita.net/lovecraft/howard-phillips-lovecraf-e-os-mitos-de-cthulhu/

Austin Osman Spare, H.R.Giger e Rosaleen Norton: Três Artistas Malditos

Se a arte visionaria brota dos íntimos refolhos assombrados da consciência, não nos surpreende que alguns artistas também sejam magos. Sua arte se torna uma espécie de invocação, um chamado uterino ‘as energias arquetipicas a “presenças” que povoam a imaginação. Para esses artistas, as imagens que conjuram provêem uma espécie de espiada ‘as profundas – e talvez mais ameaçadoras – realidades que se acotovelam alem dos limites de nossa consciência conhecida.  É mágico como artistas dessa estirpe  nos “relembram”  de potencialidades visionarias que filtram através do psíquico, como ecos do Grande Vazio. Os três artistas que vamos tratar aqui são exemplos exponenciais desses gênios criativos e excêntricos; artesãos visuais que, de alguma forma, conseguiram explorar estas realidades inomináveis, mantendo-se no contexto da cultura ocidental do século XX e, sobretudo, preservando a sua sanidade.  Os três podem ser considerados “marginais”, ou alternativos. E somente um, o suíço H.R.Giger, conseguiu atrair a si considerável notoriedade do establishment, alem de ser o único ainda vivo: Austin Osman Spare morreu abandonado em Londres em 1956 e Rosaleen Norton – a Bruxa de King Cross – deixou esta vida em um hospício de Sidney, Austrália, em 1979.  Mas o que especificamente nos desperta o interesse nestes três artistas? Penso que o trio consubstancia justamente o conceito de Arte como Magia, de artista como mago. Eles nos mostraram, através de suas imagens fantásticas, que o Universo realmente é algo misterioso, milagroso e ‘às vezes, aterrorizante, e que a nossa consciência existe e transita em vários níveis. O artista-mago é pois, por definição, um avatar de diversos mundos paralelos.

Austin Osman Spare

O visionário do transe britânico Austin Osman Spare (1886-1956) nos legou exemplos intrigantes da fusão  criativa da Magia com a Arte. Valendo-se de um sistema todo seu de encantamentos e civilizações (mandingas), ele era capaz de focar determinada e controladamente a sua consciência, que evocava energias primais poderosas de sua psique, na técnica que ele cunhou de ressurgencias atavistica.  Ele foi alem dos conhecidos rituais práticos da Magia, ao ponto de suas peças-de-arte representarem uma desapaixonada confrontação com o próprio Universo – ou, como ele próprio gostava de descrever o ato, “roubavam o fogo dos céus”.  Inspirado nos deuses egípcios clássicos e também em sua ligação intima com uma velha bruxa chamada apenas de Sra. Paterson – e com uma entidade dos círculos interiores apelidada de Águia Negra – Spare evoluiu rapidamente de uma arte figurativa conhecida para um estilo inspirado de surrealismo mágico.  Sua carreira iniciou-se de um modo impressionante, mas ortodoxo, quando ele conseguiu uma bolsa para estudar no famoso Colégio Real de Arte, com apenas 16 anos de idade.  Admirado por Augustus John, George Bernard Shaw e John Sargent, ele foi considerado um prodígio artístico e foi logo depois contratado para ilustrar uma porção de livros expressivos, inclusive “Atrás do Véu”, de Ethel Wheeler (1906) bem como um livro de aforismos intitulado “Lodo Queimado nas Estrelas” (1911).

No inicio dos anos 20 ele já era o co-editor de um excelente jornal literário ilustrado, O Golden Hind (Corça de Ouro), junto com Clifford Bax, que atingiu oito números quadrimestrais (1922-24), estampando artigos de verdadeiros papas da cultura de então, como Aldous Huxley, Alex Waugh e Havelock Ellis.  Os desenhos de Spare para o jornal eram em sua maioria de mulheres nuas e suntuosas, apenas levemente insinuando todo o mundo mágico que já começava a inspirá-lo. Se ele tivesse continuado no metier, trafegando meio aos círculos literários convencionais, certamente que se tornaria bem mais conhecido como artista – pelo menos ao nível de outro notado ilustrador, Edmund J.Sullivan, autor das imagens que embelezava O Rubaiyat de Omar Khayyam e cujo estilo gráfico assemelhava-se ao estilo inicial de Spare.  Mas Spare já estava decidido a auto-publicar seus escritos e desenhos, que lidavam com a exploração da consciência mágica. Na verdade, suas inclinações esotéricas  o encaminharam mesmo foi  para longe do mainstream cultural.  Sua cosmologia é complexa, mas instrutiva. Ele acreditava na Reencarnação e afirmava categoricamente que todas as suas pretéritas vidas, seja humana ou até animal, estiveram igualmente imersas na mente subconsciente.  O propósito místico do homem seria justamente rastrear todas essas existências até  ‘a sua fonte primal, e isto poderia ser feito num estado de transe, no qual estaria se sujeito a ser possuído pelos atavismos de algumas dessas vidas.  Ele chegou a nomear essa fonte primal e universal do ser como “Kia” e se referia ao corpo humano como “Zos”. Para ele, este era o veiculo ideal para a manifestação das energias espirituais e ocultas desse universo que, em assim não sendo, permaneceria “oculto”.  Considerava este nível mental como “a epítome de toda experiência e maravilhamento, encarnações passadas como homem, animal, passaro, vida vegetal…tudo o que existe, existiu ou existira´  Sua técnica para fazer aflorar essas imagens primais – a ressurgencia atavistica – envolvia focar sua vontade ferrenhamente em sigilos mágicos que ele própria criava – um simples anagrama gráfico composta por letras de uma sentença que manifestava uma vontade.  Atingido o ponto maximo da sigilizaçao, Spare então fechava seus olhos e concentrava-se tanto no sigilo quanto na vontade a ele associada. De acordo com seu amigo e colega ocultista Kenneth Grant, o efeito era dramático: quase que imediatamente ele percebia a “resposta interior”. Sentia então uma tremenda efusão de energia a percorrer o seu corpo, as vezes com a força até de uma ventania a dobrar uma vara de bambu. Com um esforço supremo, ele se mantinha firme e conseguia canalizar essa energia ao seu objetivo.  Spare visitou o Egito durante a Primeira Guerra e ficou sensivelmente impressionado pelo magnetismo imanado dos deuses clássicos ali representados por esculturas monumentais. Para ele, os egípcios da antiguidade já demonstravam um grande conhecimento da complexa mitologia da mente subconsciente: “Eles simbolizaram este conhecimento em um grande monumento, a Esfinge, a qual retrata pictograficamente o homem evoluindo de uma existência animal”.  Seus numerosos deuses, todos parcialmente animal, passaro, peixe…constatam a totalidade de seus conhecimentos da ordem evolucionaria, os complexos processos iniciados apenas num simples organismo”.

Para Spare, lembranças e até impressões de encarnações previas bem como todos os impulsos míticos, podiam ser despertados da mente subconsciente:” Todos os deuses já viveram na Terra, sendo nos próprios” – escreveu – ” e quando mortos, suas experiências, ou Karma, comandam nossas açoes em parte”.  O artista aprendeu sua técnica de atavismo ressurgente da Sra. Paterson, que por sua vez creditava uma ligação intima com o Culto das Bruxas de Salem.  Ele também começou a fazer “desenhos automáticos” em transe, através da mediunidade de uma manifestada presença que ele chamava de Águia Negra e que tomava a forma de um índio americano.. Afirmava que o via muitas vezes, e até que já vivia em um mundo perceptual em que  se misturavam a realidade circundante, as alucinações e o mundo do transe.  Certa vez, viajando num  ônibus de dois andares, ele afirmou se ver cercado de repente por um grupo de passageiros imaginários, uma turma de bruxas indo para um Sabbath.  A sua atração pela idosa Sra. Paterson era compreensível se levarmos em conta o contexto mágico da relação do casal. Para Spare, ela era capaz de transformar-se perceptualmente de uma encarquilhada feiticeira a uma atraente sereia. Sua concepção de mulher sem uma forma fixa, finita, lhe era de grande apelo – e a Deusa Universal era, acima de tudo, um aspecto central de sua cosmologia mágica. E não abria mão de sua crença de que essa deusa não podia ser limitada nem cultural nem miticamente e nem também nomeada como Astarte, Isis, Cybele, Kali, Nuit, já que, em assim procedendo, estaríamos desviando-nos do “caminho” e,  idealizar um conceito tão sagrado seria falso porquanto incompleto, irreal porquanto temporal.   Spare usou diversas técnicas para entrar em estados de transe; algumas vezes, a exaustão absoluta, como um meio para lhe “abrir o estado de vácuo total”; outras, o orgasmo, para atingir a mesma espécie de êxtase místico. Acreditava que a sigilizaçao, a mandinga, representando um ato de vontade consciente, podia ser plantada como uma semente na mente subconsciente durante estes estados de pico do êxtase, momentos especiais quando o ego e o espírito universal se fundem: “Nesse momento, o qual ocorre a geração do Grande Desejo “ – escreveu – “ a inspiração flui livremente da fonte do sexo da deusa primordial , que existe no coração da matéria…a inspiração vem sempre do grande momento do vazio”.  Diversos dos desenhos mágicos de Spare exibem a Dama Divina guiando o artista pelo labirintico mundo da magia. Um dos seus mais importantes e singulares trabalhos, “ A Ascençao do Ego do Êxtase ao Êxtase” – o qual foi incluso em sua obra-prima auto-publicada , “O Livro dos Prazeres”, em 1913 – mostra a Deusa dando as boas vindas ao próprio artista que, na ocasião,  era apropriadamente provido de asas brotadas de sua cabeça.  Seu ego, ou identidade pessoal, e´ mostrada emergindo na forma de uma encarnação primal animalesca e as duas formas transcendem a si mesmas conjuradas numa caveira atávica – união com Kia.  Em outro  trabalho igualmente importante , “Agora pela Realidade”, a Dama aparece novamente, levantando o véu que revela a misteriosa realidade alem. No primeiro plano, pululam toda forma de criatura – uma coruja, um rato do mato, um diabo com chifres – mas, claramente, a realidade esta´ alem, nas regiões inferiores reveladas pela Deusa.  Indubitavelmente, um dos principais intentos de Spare ao usar os seus transes era liberar energias as quais ele acreditava serem a fonte de genialidade. E ele próprio comentava “ êxtase, inspiração, intuição e sonho…cada estado destampa memórias latentes e as apresenta na imagética de suas respectivas linguagens”. O  gênio, de acordo com ele, era justamente  experimentar diretamente o “atavismo ressurgente” durante” o êxtase da Serpente de  Fogo do Kundalini.

Rosaleen Norton

Nascida na Nova Zelândia e criada na Austrália, a artista Rosaleen Norton (1917-1979) e´ uma das poucas a  fazerem par com Austin Spare. Boemia, excêntrica e extraordinariamente talentosa, ela marcou indelevelmente o folclore urbano de Sidnei como “ a Bruxa de Kings Cross”, por suas pinturas sobrenaturais, prenhas de satanismo e pornografia, numa presumida era de conservadorismo social moralistico, nos anos 50. Mas este era apenas um julgamento estreito que a cercou e que, infelizmente, a perseguiu durante toda a vida.  Seu pai foi um capitão da marinha mercante e primo do compositor Vanghan Williams, que emigrou com a família para a maior cidade da Austrália em 1925. Enquanto eles  comungavam de crenças religiosas ortodoxas, a jovem Rosaleen já fazia seus primeiros contatos com o mundo da magia.

Seu talento para o desenho se revelou precoce, pois aos 3 anos já rabiscava fantasmas com cabeças de animais e aos cinco jurou ter visto um dragão brilhante voando na cabeceira de sua cama.  Mais tarde, na escola secundaria, ilustrou “Dança Macabra” do conjunto Saint Saens, completo com vampiros, lobisomens e gárgulas.  Sua orientação pagã  foi logo notada pela direção da escola que não tardou em expulsá-la, sob a alegação de que “sua natureza depravada poderia corromper as outras garotas inocentes”.  Na adolescência, depois de curta temporada como escritora do Semanario Smith, Rosaleen estudou arte com o famoso escultor Rayner Hoff,  se tornou a primeira artista australiana de rua e começou a saltar de trabalho em trabalho – desenhista para uma industria de brinquedos, “assistente” em clubes noturnos, e até recepcionista e modelo. E foi nessa época que começou a se interessar e pesquisar Psicologia, Magia e Metafísica, indo fundo nas obras de Carl Gustav Jung, William James e ocultistas como Eliphas Levi, Madame Helena Blavatsky, Dion Fortune e Aleister Crowley.  Também descobriu técnicas para elevar a sua percepção artística: através da auto-hipnose, por exemplo, aprendeu a transferir voluntariamente a sua atenção para “planos interiores de excitamento místico”. Esses experimentos, como escreveu mais tarde, “produziram um numero de resultados peculiares e inesperados…e culminaram num período de percepção extra-sensorial  mesclado a uma prolongada serie de visões simbólicas”.  A seguir, algumas passagens de uma entrevista de Rosaleen ao psicologo L.J.Murphy, conduzida na Universidade de Melbourne em 1949, que  provê fascinante insight de sua exploração visionaria de estados alterados da consciência.

“Eu decidi experimentar o transe auto-induzido com o fito de atingir um estado anormal de consciência e poder manifestá-lo, representá-lo de alguma forma, de preferência, desenhando. Queria ir fundo nesses estados da mente subconsciente, explorá-la totalmente e se possível ir ainda mais alem. Tinha a sensação, mais intuitiva que intelectual , de que em algum lugar das profundezas do inconsciente, o individuo contem, em essência, todo o conhecimento acumulado da humanidade; da mesma forma que o nosso corpo manifesta o somatório de nossas experiências como raça, na forma de instintos e de reação automática a estímulos.  No sentido de” contatar” essa fonte hipotética do saber, decidi aplicar estímulos psíquicos ao subconsciente; estímulos que a razão consciente poderia rejeitar, mas que apelaria aos instintos enterrados há gerações, e os quais, eu esperava, causariam reflexos psíquicos automáticos (cultos religiosos usam rituais, incensos, musicas etc,como mesmo objetivo).   Conseqüentemente juntei uma variedade grande de “instrumentos” como folhas, vinho,  uma pata mumificada, etc…e um fogareiro , todas potentes estímulos a parte do inconsciente que eu desejava invocar. Deixei o quarto no escuro, foquei meus olhos na pata, esmaguei as folhas, bebi algum vinho e tentei exaurir minha mente de todo e qualquer pensamento. Assim foi o começo de tudo – e eu fiz varias outras experiências progressivamente bem sucedidas.  Seguindo uma corrente de curioso excitamento, meu cérebro ficou limpo de todo pensamento consciente e, de olhos fechados, comecei simplesmente a desenhar na folha de papel branco a minha frente…me senti liberada do mundo a minha volta, para um estado onde não havia tempo, experimentei uma considerável intensificação de minhas faculdades intelectuais, criativas e intuitivas, e comecei a ver coisas com muito mais clareza e encantamento do que no “meu normal”.

Quando eu próprio entrevistei Rosaleen Norton em 1977, ela me contou que seus visionários encontros com as criaturas mágicas que passaram a povoar as suas pinturas eram extremamente reais. Mesmo sendo entidades como Zeus, Júpiter e Pan, usualmente associados a mitos e lendas da mitologia, portanto bem “longínquos” da realidade da maioria das pessoas, para ela eles representavam forças sobrenaturais, passiveis inclusive de casualidades, não eram simplesmente uma projeção da mente subconsciente ou da imaginação criativa.  Rosaleen inclusive veio a ter uma especial reverencia ao Grande Deus Pan, ao qual ela considerava ” a totalidade de todo o ser , o verdadeiro Deus do Mundo e o Super-Deus do Equilíbrio da Natureza”. Haviam outros também, Lúcifer, Bafomet, Ecate e até  Júpiter, mas de acordo com ela, esses somente se manifestavam em suas visões de transe ao seu próprio bel prazer. “Não atendiam a qualquer invocação ou aceno de qualquer um”, explicou .  Também haviam as chamadas “forças menores”  na sua hierarquia do oculto, incluindo certo numero de demônios, seres espirituais e formas astrais. Algumas das entidades mágicas que apareciam em seus trabalhos artísticos parecem representar híbridos atávicos – metade humano, metade animal, quase sempre nus –  revelando os aspectos primevos da evolução espiritual da humanidade.

Certa vez, como Austin Spare, Rosaleen Norton começou a considerar sua arte como um veiculo para apresentar uma realidade alternativa e potencialmente muito mais impressionantes do que o mundo de aparências familiares. Numa de suas primeiras citações em seu diário oculto, ela chegou a marcar: “ Há sentidos, formas de arte, atividades e estados de consciência que não tem nenhum paralelo na experiência humana…verdadeiro cataclismo envolvente tanto do auto-conhecimento  como do conhecimento universal, presentes (quase sempre em forma alegórica) em todo e quaisquer aspectos concebíveis..metafísico, matemático, cientifico, simbólico…. Compõem um desconcertante espectro de experiências, cada uma completa em si própria, embora ainda assim interdependentes em significância com todas as outras facetas.  Uma experiência dessas poderia ser comparada a assistir e simultaneamente tomar parte de uma peça teatral em que todas as formas de arte estão presentes, a musica, o drama, os rituais cerimonialisticos, formas, sons e padrões, tudo formando um todo sinergistico  Grande parte da arte de Rosaleen foi influenciada pelas escolas cubistas e modernistas, mas detêm uma imagética visionaria muito forte e singular.  Suas imagens foram publicadas inicialmente em 1952, num volume controverso intitulado “A Arte de Rosaleen Norton”, de co-autoria do poeta Gavin Greenles.  Embora atualmente seus desenhos não pareçam tão “confrontacionais”, na época causaram furor nos meios tradicionais e tradicionalistas dos anos 50, já que seu editor, Wally Glover, chegou a ser convocado as barras da Lei e processado por tornar publico “imagens ofensivas a castidade e decência humanas”.  Examinado atualmente esta situação, fica claro que a admitida arte pagan de Rosaleen atingiu fundo toda a estreita e reacionária sensibilidade  judaica-crista de então  O que e´ indubitável e´que  seu melhor trabalho  emanava todo um poder arquétipo e próprio. Nos estudos esotéricos, por exemplo, um demônio furioso olha com lascívia a partir de uma realidade Qliptica, contrabalançado por uma forma de diamante de radiante brilho, enquanto que em Individualização, somos confrontados com um ser mítico resultado de uma fusão de elementos humano, animal e divino.  Similarmente, suas representações de Gebura´ – um vortex de poder dinâmico da Cabala – mostra um poderoso torso humano com uma cabeça alada de um falcão. Esse deus tem ainda um rabo de escorpião e patas  providas de garras, emanando uma agressividade crua e guerreira. Segura uma esfera em sua destra, que bem poderia ser o débil globo terrestre – envolvido pelo seu domínio.  Como Austin Spare, Rosaleen Norton foi uma adepta da exploração de estados alterados de consciência nos quais ela teria seus visionários encontros com deuses. Quando morreu em 1979, entrou para a lenda, embora por razoes errôneas. Em seus dias, perseguida por acusações de obscenidade – e também de “manipular massas negras” em seu abrigo da rua Kings Cross – Rosaleen Norton foi considerada uma marginal pagã e sua arte julgada bizarra e pornográfica.  Mas hoje podemos reavaliar seu trabalho sobre uma nova luz.  Sua imagistica nos parece querer escapar de nossos parcos limites, dar forma a realidades visionarias e arquetipicas que, para a maioria das pessoas, não pertencem a estados conscientes. Talvez foi esta a característica que fez sua arte tão chocante nos anos 50: ela ousou trazer a luz imagens vindas das camadas mais profundas do nosso psíquico, imagens que, para a maioria de nos, seria muito melhor que fossem reprimidas ou esquecidas.

H.R.Giger

hrgiger.jpgMais conhecido por ser o criador do Alien, O Oitavo Passageiro, Han-Ruedi Giger é nativo de Chur, na  Suíça, onde veio ao mundo em 1940.   Diferente de Spare e de Rosaleen,  não desenvolveu inicialmente sua arte visionaria a partir de um tradicional  conhecimento esotérico consciente.   Ao invés disso, as formas artísticas evocadas de sua psique e´ que o guiaram crescentemente em direção a realidade mágica.  As imagens conjuradas por Giger freqüentemente tomam forma sob uma iluminação nebulosa e etérea, levando o observador a cavernas de pesadelo ou espaços mágicos de onde não há nenhum meio tangível de se escapar.  Nos últimos anos, Giger vem se transformando num mago de grande intuição, com sua arte provendo  um assombrado testemunho das potentes energias que nascem do mais profundo da psique.

Quando criança, Giger costumava construir esqueletos de papelão, arame e gesso e tinha “um considerável mal gosto por e vermes e serpentes” – repugnância esta que até  hoje se manifesta em sua pintura. Depois, já aluno da Escola de Artes Aplicadas de Zurique, ele começou a ficar fascinado por imagens de tortura e terror – um fascínio estimulado pela precoce visão de fotografias tétricas do cadáver do Imperador da China, assassinado em 1904,   e ainda pelas lendas de Vlad, o Impalador – a figura histórica na qual Drácula, o Príncipe das Trevas, foi baseado  Mais tarde, o artista foi impressionado indelevelmente pelos textos macabros de H.P;Lovecraft, especialmente seu Mito de Cthulhu e o Necronomicon.  Parte desse apelo, como ele mesmo admite, e´ que o Necronomicon,  clamava ser “…um livro de magia  que ocasionaria grande sofrimento a humanidade se caísse em mãos erradas. Isso inclui a lenda de grandes deuses de nomes impronunciáveis, como Cthulhu e Yog-Sothoth,  adormecidos nas profundezas da terra e dos oceanos, esperando o alinhamento de certas estrelas para despertarem e tomarem posse de seus domínios, o nosso mundo”.  O amigo e mentor de Giger, Sergius Golowin, foi quem sugeriu mais tarde justamente o titulo de Giger´s Necronomicon ao seu primeiro livro de arte,  uma coleção de suas imagens visionarias e esotéricas, inicialmente publicado pela Basle, em 1977 – e depois com outras edições na Inglaterra.  Muitas das mais distintas pinturas de Giger retratam sua modelo principal, a linda atriz Li Tobler, com quem ele se encontrou em 1966, quando ela tinha 18 anos e vivia com outro homem. Giger foi morar no apartamento de sótão dela e se tornaram amantes. Ele recorda que ela “tinha enorme vitalidade e um grande apetite pela vida” e que ela também desejava “uma  vida curta, mas intensa”.  Li Tobler e´ o protótipo para as muitas mulheres torturadas, mas etéreas, que habitam suas pinturas, fazendo par atormentado a serpentes, agulhas e sufocantes cavernas-prisão formada por estruturas ósseas – já prenunciando seu estilo “biomecânico” que o tornou famoso mais tarde.  O próprio e belo corpo jovem e voluptuoso de Li serviu varias vezes de tela aos aerógrafos de Giger e existem diversas fotos mostrando a posando nua, como uma mulher misteriosa emergindo de um pesadelo que possuiu a sua alma.  Infelizmente, a vida de Li Tobler foi realmente curta. Atormentada por uma estressante vida de viagens com seu grupo de teatro por todo o pais e perturbada emocionalmente pela sucessão de outros amantes, ela interrompeu tragicamente sua vida numa segunda-feira de 1975, com um tiro de revolver.  Quando eu encontrei Giger em sua casa de Zurique  em 1984, para filmar uma seqüência ao documentário de TV “A Experiência do Oculto”, ficou claro para mim o quanto ele ainda estava assombrado por Li Tobler: a simultânea agonia e trabalho de viver com ela, contribuiu para impingir  uma dinâmica de medo e transcendência   em suas pinturas, como um legado perene da tumultuada relação que mantiveram.

Giger vive hoje numa atmosfera que evoca simultaneamente um senso de magia e de paranóia. A sala principal de escadarias em sua casa de dois andares e terraço, tem as paredes cobertas por telas impressionantes, exibindo  mulheres tipo Medusa, de peles fantasmagoricamente alvas, cabelos de serpente e com seres estranhos se enroscando em volta de seus voluptuosos corpos.  Garras, agulhas, metralhadoras, espinhas e outras estruturas ósseas também constituem o aspecto central da iconografia visual de Giger.  No meio da mesa monumental que ocupa o seu living, esta´ gravado um pentagrama, bruxuleantemente iluminados pela luz de velas compridas  de um conjunto de castiçais próximos.  Uma fileira de altíssimas estantes em um canto, revela um amontoado de crânios, caveiras e até autenticas cabeças encolhidas e mumificadas de uma tribo canibal.  Uma prateleira exibe o Oscar que premiou H.R. Giger  pelos efeitos especiais de Alien, num verdadeiro tributo a sua bizarra imaginação.  Escada acima e chegamos ao seu estúdio, verdadeiro caos de tintas, pinceis e trabalhos inacabados e descartados.  Aqui, ele experimenta suas técnicas de aerografia, espreiando tinta através de grades e peças de metal funcionando como mascaras –  para obter padrões repetidos de design, luz e sombra, e texturas, tonica de sua imagistica biomecanoide tão característica.  Ao final de uma comprida sala toda aberta existe uma enorme mesa negra, sustentada por pernas em bulbo, com tampo de impressionante polimento, quase um espelho. Modelada em plástico pesado, ela e´ ladeada por cadeiras altas, decoradas com caveiras e construídas para darem a impressão de vértebras distorcidas. Na cabeceira, a cadeira principal, cor cinza grafite, esta sim, construída de ossos verdadeiros.  Pairando sobre todo o cenário, um grande painel apresentando um demônio com chifres, um pentagrama prateado e muitas serpentes negras e hostis.  Indagado sobre suas “afiliações com o ocultismo” ele confirmou que, embora tenha estudado os escritos de Aleister Crowley, não pratica rituais nem se envolve com invocações de espíritos.  De toda forma ninguém poderia encontrar um templo para pratica de magia melhor que esta sala de Giger e os seres astrais que habitam suas pinturas compõem por si mesmos verdadeira legião de demônios.  Parece na verdade e´que Giger pratica a magia espontânea .  “Eu tento ir o mais próximo possível da minha imaginação” expressa o artista em seu inglês gaguejante. “Tenho alguma coisa na mente e tento trabalhar isto, numa espécie de exorcismo”.  E´ quando o débil véu que cobre sua mente e´ levemente descortinado que supitam as visões tempestuosas e impressionantes, como se os deuses da escuridão mais uma vez emergissem dos pesadelos de seu passado.

Conclusão

Como destacado desde o inicio, existe distintivos paralelismos entre Austin Osman Spare e Rosaleen Norton. Ambos foram influenciados por feitiçaria e tradições ocultas da magia oriental, ambos valeram-se de estados de transe e ambos acreditavam que o mundo dos deuses tem a sua própria intrínseca existência – servindo o artista apenas como veiculo de manifestação das energias arquetipicas, um canal inspirado. E e´ interessante que ambos empregaram técnicas de enfoque mental – usando mandingas e objetos físicos específicos para induzir o estado de transe. Como nas tradições de meditação oriental,  que utiliza um enfoque centralizado da mente e  da consciência numa intenção, como uma valorosa pratica para liberar energias psíquicas armazenadas.  H.R.Giger por sua vez,  nos prove com uma orientação de alguma forma diferente. Sua arte não deriva de estados transe  per si, mas flui de toda forma, de um tipo de exorcismo da alma.  Na Introdução a uma recente coleção de trabalhos de Giger publicada em 1991, o guru do LSD Timothy Leary confirmou o impacto da arte evocativa do pintor suíço: “ Giger, você retalha com navalha partes do meu cérebro e os molda, ainda pulsantes, sobre suas telas…Gostemos disto ou não, nos somos todos alienígenas insetóides encravados dentro de nossos corpos urbanóides. Seus cenários, seus slides microscópicos, são sinais para mutação”.

Nota: este é um trecho traduzido de  “Echoes from the Void: Writings about Magik, Visionary Art and the New Counsciousness”. Shadowplay zine – Austrália
Cortesia: www.alanmooresenhordocaos.hpg.com.br

Por Nevill Drury, Tradução: José Carlos Neves

Postagem original feita no https://mortesubita.net/magia-do-caos/austin-osman-spare-h-r-giger-e-rosaleen-norton-tres-artistas-malditos/

H.P. Lovecraft: Visionário do Vazio

“As ciências cada uma se esforçando em sua própria direção, tem nos atrapalhado um pouco; mas um dia todas as peças dessa sabedoria dissociada juntas abrirão algumas visões terríveis da realidade, e da nossa verdadeira posição ali, dai poderemos enlouquecer com a revelação ou fugir da luz fatal para a paz e a segurança de uma nova idade das trevas”.

-H.P. Lovecraft, o Chamado de Cthulhu

 

Howard Philips Lovecraft (1890 – 1937) retratava os acontecimentos mais bizarros da sua vida através da ficção. Colin Wilson tipifica-o como um ‘intruso’, e não há muita informação biográfica para apoiar este ponto de vista. Lovecraft certamente sentiu-se como um ‘intruso’, na América do início do século XX. Tendo perdido seus pais em tenra idade, ele foi criado por duas tias solteironas, que o incentivaram a não sair de casa, dizendo-lhe que ele era “horrível”. Ele retirou-se para o mundo da ficção, tornando-se um leitor prodigioso de fantasias.

Lovecraft gostava de ver a si mesmo como um “cavalheiro Inglês” – uma persona que se tornou tão fixa que influenciou grande parte de sua atitude para com a vida diária. Ele sentia-se muito fora de sintonia com o ritmo da América moderna – o que possivelmente explica por que muitos de seus protagonistas são estudiosos de antiguidades ou reclusos. Os principais temas subjacentes no restante do trabalho de Lovecraft não são focados nos medos claustrofóbicos tradicionais de morte e decadência, assombrações fantasmagóricas, etc.; mas sim no medo agorafóbico de abismos incomensuráveis ​​no espaço; os infinitos abismos escuros do cosmos, onde a mente humana, de repente, percebendo muito espaço, é esticada ao limite até que se encaixe . A sensação de estar sozinho em um vasto deserto de dimensão cósmica é encapsulada na afirmação de Lovecraft de que a humanidade é “uma ilha em um mar de caos – e não estava destinada a navegar tão longe.” O biógrafo de Lovecraft, L.Sprague de Camp, chamava essa ideia de pessimismo cósmico de Lovecraft. “Futilitarismo’ , na filosofia pessoal de Lovecraft, como em seus Mitos de Cthulhu , a humanidade era totalmente insignificante no grande esquema do cosmos”.

A inspiração de Lovecraft para seus escritos vinha de seus sonhos, e suas cartas (ele mantinha uma volumosa correspondência com alguns colegas escritores) mostram que ele teve um pesadelo cada noite de sua vida. No seguinte extrato de uma carta, ele descreve um pesadelo sobre Nyarlathotep, um dos Grandes Antigos:

“Enquanto eu era tirado do abismo, emitia um grito retumbante e a imagem cessou. Eu estava com muita dor – testa batendo e zumbido nos ouvidos – eu tinha apenas um impulso automático – para escrever e preservar a atmosfera de medo sem precedentes; e antes que eu percebesse, eu já tinha puxado a luz e estava rabiscando desesperadamente. … Quando totalmente acordado lembrei-me de todos os incidentes, mas havia perdido a emoção requintada de medo -. A sensação real da presença hedionda do desconhecido”

Os escritos de Lovecraft apareciam regularmente nas paginas da revista Weird Tales, editada por Farnsworth Wright. Weird Tales publicou também muitos dos trabalhos de amigos correspondentes de Lovecraft, como Robert E. Howard, (o criador de Conan o bárbaro) Frank Belknap Long, and Clark Ashton Smith.  Estes, e outros escritores foram se correspondendo com Lovecraft, comentando os trabalhos uns dos outros, e o desenvolvimento de mecanismos ficcionais uns dos outros e o desenvolvimento de dispositivos ficcionais uns dos outros. Logo outros seres e conceitos foram sendo adicionados ao conjunto original de seres Cthulhuoides de Lovecraft.

A biblioteca mitológica de “livros proibidos” estava se expandindo – Clark Ashton Smith escreveu o ‘O Livro de Eibon’, por exemplo.

 

Os Grandes Antigos

 

No Panteão de Entidades Mitológicas de Lovecraft, Os Grandes Antigos, são os seres pan-dimensionais de pesadelo que continuamente ameaçam a Terra com destruição. Eles estão imersos “no sonho de morte” selados no fundo do oceano, ou além das estrelas. Eles podem ser invocados , quando as estrelas “estão alinhadas”, e pode entrar no mundo humano através de uma série de portais – pontos de poder, lentes mágicas, ou, como no caso de “O Horror de Dunwich”, através de ritos de congresso sexual entre aliens & Humanos.

Os Grandes Antigos são servidos por várias seitas humanas e não- humanas, em lugares selvagens e desolados, desde degenerados moradores do pântano , até os inumeráveis incestos de Whateley da região fictícia de Dunwich. Esses cultos estão continuamente se preparando tanto para trazer Antigos de volta, como para silenciar quem tropeçar em todo o terrível segredo da existência dos Antigos. O retorno dos Antigos envolve, como Wilbur Whateley coloca em O Horror de Dunwich, a “limpeza” da Terra, ou seja, a destruição da humanidade, exceto de alguns adoradores e escravos. Esta referência apocalíptica pode ser afirmada como metafórica, ou como se referindo a uma real catástrofe física – holocausto nuclear, talvez? Talvez Lovecraft quisesse enfatizar que os Grandes Antigos não dariam mais atenção a aniquilar humanos do que poderíamos dar para limpar água sobre uma mesa. Exatamente por isso os Antigos nunca desejam retornar para a Terra é claro, mas pode-se supor que, para eles, a Terra está perto dos bares e convenientemente nas rotas dos ônibus!

Lovecraft é cuidadoso ao apontar que muitos dos antigos são, de fato burros, ou “deuses idiotas”. Somente aqueles que já são loucos ou degenerados pode adorá-los com sinceridade. Apenas a Nyarlathotep, o Caos Rastejante, é dada uma aparência humana de inteligência. Os Grandes Antigos não formam um panteão distinto, e no original de Lovecraft , não correspondem á elementais ou á qualquer noção de bem contra o mal – essas modificações da Mitologia vieram de August Derleth. Em resumo, os Grandes Antigos são enormes, horríveis, e famintos. Pouco se sabe sobre eles, uma vez que uma boa olhada é geralmente mais do que qualquer ser humano pode suportar, e a maioria dos encontros são inevitavelmente terminais na ficção de Lovecraft – para o protagonista e inocentes transeuntes (a quem as criaturas muitas vezes consomem como aperitivo, antes de fazer do narrador o prato principal).

Os críticos do estilo de Lovecraft se queixaram de que seus narradores parecem ser um pouco densos, quando se trata de reconhecer o que está acontecendo ao seu redor. Eles leem as cartas de parentes desaparecidos, ou talvez o Necronomicon, enquanto à sua volta, seres monstruosos estão caçando desordenadamente pelo distrito e comendo pessoas, e depois rondando a casa do narrador causando efeitos estranhos que ele geralmente descarta como subsidência, ou anomalias atmosféricas. Depois de ler alguns contos, o leitor sabe o que esperar, e pode facilmente tornar-se impaciente com o narrador. Mas esta é uma fórmula realista do comportamento humano. Quando confrontado com a possível realidade de existirem monstros que estão lá fora à espera para nos comer, em seguida, assumir a nossa aparência, quem pode não procurar explicações alternativas? O pobre ocultista que salta e diz: “é tudo o trabalho dos sapos do lodo venusiano” será no mínimo taxado de ridículo, se não for internado num hospício, deixando os sapos lodo venusianos para realizar seus planos malignos.

Diante do exposto anteriormente, não é surpreendente que os ocultistas contemporâneos tenham se interessado pelos Mitos de Cthulhu .Os Rituais lovecraftianos serviram de inspiração para escritores como Anton LaVey (os rituais satânicos), Michael Aquino (chefe do Templo de Set), e Peter Carroll (Illuminates of Thanateros). Kenneth Grant, em sua progressão de obras ‘Typhoniana’ fez muito uso das imagens de Lovecraft em suas interpretações da obra de Aleister Crowley e de Austin Osman Spare. Michael Bertiaux, chefe do La Coulvoire Noir, a ordem de Voodoo-gnóstico, também incorporou elementos dos Mitos de Cthulhu em sua obra. Após a tentativa de August Derleth para condensar os Mitos de Cthulhu em uma cosmologia identificável, vários ocultistas (nomeadamente Kenneth Grant) tentaram classificar os Grandes Antigos em um sistema de “identificação” de um tipo ou de outro.

Embora tais tentativas exibam a propensão dos ocultistas ocidentais para a edificação metaestruturas simbólicas , sinto que tal sistematização dos Grandes Antigos é um desvio do sentido original que Lovecraft deu á eles . Sua própria natureza  eles são “primais e indimensionaveis ” – eles mal podem ser percebidos e para sempre ‘espreitam’ na borda da consciência . As energias mais potentes são aqueles que não podem ser nomeadas – isto é, elas não podem ser claramente apreendidas ou concebidas . Eles permanecem intangíveis e tênues. Muito parecido com a sensação de despertar de um pesadelo aterrorizado, mas incapaz de se lembrar o porquê. Lovecraft entendeu isso muito bem, provavelmente porque a maioria de seus escritos  evoluiu a partir de seus sonhos. Lovecraft Negou o significado objetivo dos sonhos , incluindo o seu próprio ,  a maioria dos estudiosos de sua obra sugeriram  que não há fundamento nas reivindicações exóticas feitas pelos intérpretes Ocultistas da obra de Lovecraft – e para ser justo, Lovecraft negou positivamente crença nas doutrinas irracionalistas com a qual ele era associado por ocultistas e místicos .

Os Grandes Antigos ganharam seu poder pela indefinição e intangibilidade . Uma vez que eles são formalizados em símbolos e sistemas  e relacionados com metasistemas intelectuais, algo de sua intensidade primal é perdida. William Burroughs coloca desta forma :

“Assim que você nomeia algo, retira o seu poder … Se você pudesse olhar a morte de frente ela perderia o poder de matá-lo. Quando você pergunta a morte por suas credenciais, seu passaporte é por tempo indeterminado.”

 

O Lugar dos Caminhos Mortos

 

Uma forte ocorrência ao longo da escrita de Lovecraft é a rejeição da modernidade. Muitas vezes existe um conflito de crença entre cidadãos “civilizadas” que desconsideram a superstição e folclore, e camponeses que estão mergulhados na sabedoria dos Grandes Antigos, mas de alguma forma degenerados e decadentes. Lovecraft alude continuamente a natureza ‘degenerada’ dos adoradores de Cthulhu, provavelmente refletindo suas atitudes à raça e realização intelectual. Mas há também uma consciência de que a degeneração das práticas de culto com a influência dos Antigos diminui no mundo, devido à propagação do materialismo e a decadência das comunidades rurais. Alguns comentaristas acusaram Lovecraft de atitudes racistas, mas eu sinto que seria mais correto dizer que na ficção de Lovecraft, nenhum indivíduo ou grupo pode escapar de sua sensação de desgraça; cientistas, em algum momento se deparam com os segredos terríveis do universo, enquanto camponeses, eslavos e ilhéus  vão  se degenerar em mutantes não-humanos. Feiticeiros que convocam os Grandes Antigos, em algum momento pagam o preço da sanidade ou morte. Todo mundo tem como premio a loucura terrível do “o que está lá fora, esperando” á apenas um passo de distância. Depois de ter passado para a esfera dos Antigos, não há como voltar atrás…

Não há espaço para conceitos dualistas de “bem” e “mal” na mitologia de Lovecraft. Não há ‘“forças da luz “, que podem ser invocadas para nos salvar do horror dos Antigos. Eles podem, ocasionalmente, serem enganados, mas isso é mais uma questão de pura sorte do que qualquer habilidade ou capacidade da parte dos seres humanos. Mesmo se um dos protagonistas de Lovecraft sobreviver a um encontro com os Grandes Antigos, ele carregará para sempre  o conhecimento do que se esconde “lá fora”.

Alguns intelectuais, entusiasmados pelas visões de Lovecraft, tentaram colocar seus mitos dentro de uma perspectiva Nietzschiana – dizendo que os Grandes Antigos representam as forças do Super homem que se destaca para além do bem e do mal, consciente apenas dos desejos primitivos e paixões. Lovecraft deixa claro que os Grandes Antigos não são meramente um reflexo da moralidade tradicional – que eles têm sobre tanto interesse em nós, quanto temos pelos bovinos. Mais cedo ou mais tarde, mesmo um adorador devoto de Cthulhu será dobrado sob a faca.

A visão de Lovecraft, seu “futilitarianismo” – é particularmente apropriado para a nossa época atual, em que os pensadores pós-modernistas afirmam ter destruído o futuro e saqueado o passado em uma busca incessante de ‘chutes’ de um tipo ou outro. Cada vez mais, estamos ecoando a declaração de Hassan I Sabbah que “nada é verdadeiro” – ou, talvez mais precisamente, nada pode ser confiável. Vivendo como nós, em uma sociedade que está rapidamente transformando-se por meio de computadores, filmadoras e TV a cabo; em que os homens podem andar na Lua, enquanto outros vendem seus filhos para os traficantes de órgãos; onde os mistérios da vida são detectados durante a manipulação de DNA e as realidades da morte de outras pessoas servidas no horário nobre da televisão, é fácil ser cínico, e difícil, para qualquer conceito de verdade,  permanecer inviolável e essencial.

Em uma cultura onde as bordas da atualidade estão desmoronando no futuro a uma taxa que é muitas vezes difícil de compreender, o senso de conexão com o tempo histórico é vaga, para dizer o mínimo. As contradições do pós-capitalismo fragmentaram realidade consensual a um ponto onde a alienação e impotência são endêmicos em nossa cultura. Ocultismo oferece uma alternativa: um senso de conexão, talvez, para o tempo histórico em que o mundo era menos complicado, em que os indivíduos eram mais ’em contato’ com o seu ambiente, e, tinham maior controle sobre suas vidas. Os subgêneros ocultos mantém-se um espelho da realidade consensual.

Os ocultistas prontamente zombam das religiões escravagistas e depois entram êxtase na compra de um genuíno conjunto de meias que pertenceram á Aleister Crowley. Fala-se muito do mago como um rebelde perigoso ou anarquista da alma por pessoas que tomam por “legítima” a sua posição, acenando com suas patentes, certificados e copyrights.

 

 

por Phil Hine – Trad. Giuliana

Postagem original feita no https://mortesubita.net/lovecraft/h-p-lovecraft-visionario-do-vazio/

H.P. Lovecraft e suas Tendências Xamanistas

Os sonhos de Lovecraft desempenharam um papel importante em sua ficção. HPL transformou vários de seus sonhos em histórias. Por exemplo,  “O Depoimento de Randolph Carter”  recontou um dos sonhos de HPL. Nesse sonho, ele fez o papel de Randolph Carter, enquanto seu amigo, Samuel Loveman, fez o papel de Harley Warren.

 Após a morte de Lovecraft, o grito de Lovecraft para a ficção foi tão grande que Bernard Austin Dwyer, um discípulo de HPL, publicou um dos relatos dos sonhos do autor como  “O Clerigo Maligno”.

Além das histórias que eram supostamente seus sonhos, os sonhos também tinham lugar proeminente como dispositivos de enredo nas narrativas de HPL.

Às vezes, Howard colocava seu sonho dentro de uma história. Em outros casos, o sonho contado era uma releitura do esboço de um sonho real em um conto. Por exemplo, em  “O chamado de Cthulhu” , o sonho de Henry Anthony Wilcox com um monólito feito em barro fresco, esculpido em baixo-relevo, é levado para um professor da Universidade para sua interpretação, representando em substância, senão em detalhes, uma parte de um sonho de Lovecraft.

No entanto, não se deve saltar para a conclusão de que todos os contos da ficção de Lovecraft vieram de seus sonhos. Em Lovecraft, o autor WH Pugmire observou:

Lovecraft produziu um mundo que fundiu prontamente com os muitos mundos de seus sonhos e fantasias, mas seus sonhos não eram, ao contrário de uma crença que se espalhou entre seus leitores, completamente traduzidos na ficção”.

Não importa o quão as imagens de seus sonhos eram fantásticas, eles eram difíceis de serem encaixados em um enredo coerente com um clímax.

Neste artigo, vamos explorar três questões que cercam os sonhos de Lovecraft:

1) Será que os sonhos fantásticos de Lovecraft provam, já que alguns ocultistas afirmam, que ele era um ocultista no armário? 

2) Quais os fatores que permitiram HPL acessar as fabulosas ilhas do sonhos (“dreamscapes”, referidos em seus contos), e que não estão disponível para dormentes comuns?

3) O que Timothy Leary, os nativos americanos, a Medicina Popular e os sonhos de Lovecraft têm em comum?

  • O fantástico mundo dos sonhos e as reivindicações do Ocultismo de Lovecraft.

Com base na fabulosa vida dos sonhos de Lovecraft e sua utilização do lendário  Necronomicon , alguns entusiastas ocultistas pintam Lovecraft como um ocultista de armário ou um feiticeiro secreto.

No entanto, ao longo da vida, Howard argumentou contra a aceitação da magia e do sobrenatural.O Ateísmo e materialismo de HP Lovecraft foram exaustivamente documentados. Por exemplo, Lovecraft proclamou:

“Tudo o que eu digo é que eu acho estupidamente improvável que qualquer coisa como uma “vontade fundamental cósmica”, um mundo espiritual, ou uma sobrevivência eterna da personalidade, possam existir. Essas suposições são as mais absurdas e injustificadas de todas as suposições que podem ser feitas sobre o universo, e eu não posso fingir que eu não considero-nas como insignificantes. Em teoria, eu sou agnóstico, mas enquanto aguardo o surgimento de evidências radicais que devem ser classificadas, de forma prática e provisoriamente, eu me mantenho como um ateu “. [H.P. Lovecraft’s Letter to Robert E. Howard, August 16, 1932]

Apesar do ateísmo declarado de Lovecraft, alguns ocultistas ainda implicam que Howard viveu uma vida dupla – e seu lado oculto é o de um praticante da alta magia.

Com certeza, algumas das opiniões de Lovecraft evoluíram ao longo do tempo. Por exemplo, as relações de HPL com os judeus – Seu casamento com Sonia Greene (uma mulher judia) e sua amizade ao longo da vida com Samuel Loveman – desafiou elementos de seu viés racial. Esse amolecimento pode ser refletido na maneira diferente que ele via estrangeiros como em sua descrição empática dos Antigos  em  “Nas Montanhas da Loucura”  (1931):

“Não tinham sido sequer selvagens… pois, na verdade, o que tinham feito? Aquele horrível despertar no frio de uma época desconhecida… talvez um ataque dos quadrúpedes peludos, que latiam com frenesi, e uma defesa atônita contra eles e contra os igualmente frenéticos símios brancos com estranhos envoltórios e equipamentos… Pobre Lake, pobre Gedney…. e pobres Antigos! Cientistas até o fim… o que haviam feito que não faríamos em seu lugar? Deus, que inteligência, que persistência! Com que denodo haviam enfrentado o inacreditável, da mesma forma como aquelesparentes e ancestrais esculpidos haviam enfrentado coisas só um pouco menos inacreditáveis! Radiados, vegetais, monstruosidades, progênie das estrelas… não importa o que tivessem sido, eram homens!”.

Surge a pergunta: “Ao longo dos anos, teria o severo ateísmo de Lovecraft se atenuado da mesma forma?”

  • Será que o uso de Lovecraft do Necronomicon provaria seu Ocultismo?

Uma lenda urbana sugere que a iniciação esotérica de Lovecraft veio através de sua esposa, Sonia Greene.

Sra. Greene supostamente teve um caso antes com um assistente notório, Aleister Crowley:

“Em 1918, Crowley estava em Nova York. Como sempre, ele estava tentando estabelecer sua reputação literária, e estava contribuindo para a Feira Internacional da Vaidade. Sonia Greene era uma emigrante judia enérgica e ambiciosa, com ambições literárias, e ela se juntou a um jantar e palestra em um clube chamado ‘Walker’s Sunrise Club’; foi lá que ela encontrou pela primeira vez Crowley, que havia sido convidado para dar uma palestra sobre poesia moderna … Crowley não perdeu tempo na medida em que se preocupava com mulheres; eles se encontraram de forma irregular por alguns meses “. [The Necronomicon Anti-FAQ, “Why did the novelist H.P. Lovecraft claim to have invented the Necronomicon?” by Colin Low, 1995].

Fora a suposta conexão entre Greene-Crowley, Lovecraft adquiriu conhecimento do temido livro. Alguns ocultistas cibernautas que acreditam que “se está na internet, deve ser verdade”, acabam espalhando esta idéia.

Mais tarde, a fonte da lenda “Crowley-Greene-Lovecraft-Necronomicon” desmentiu a história:

“Apesar de muitas tentativas de mostrar que o  Necronomicon é nada mais do que invenção literária de Lovecraft, um grupo de autores proeminentes e ocultistas alegou fornecer a confirmação da parte da reivindicação de Lovecraft … essa explicação [onde Lovecraft adquiriu o  Necronomicon ] (promovido pela autor em um momento prolongado de maldade), que a mulher de Lovecraft Sonia Greene associada com o ocultista famoso e poeta Aleister Crowley durante sua residência em Nova York, em 1918, é completamente plausível e coerente com ambos os personagens, mas inteiramente falsa “.

Ainda assim, os teóricos do Necronomicon inventam outros meios para provar a existência do Grimório da temida fábula. Para ser justo, Lovecraftianos gostam de especular se o  Necronomicon  teve sua base na realidade.

Um escritor comparou o Necronomicon de Lovecraft com a sacada de mestre de Orsons Wells:

“O Necronomicon de Lovecraft  é equivalente a transmissão de rádio Orson Wells de “Guerra dos Mundos” em 1938, onde todos acreditaram ser uma invasão alienígena real. Como o próprio Lovecraft escreveu: “Nenhuma história estranha pode realmente produzir terror se não for planejada com todo o cuidado e verisimilitude de uma farsa real ‘”[Dr. John Dee, the Necronomicon & the Cleansing of the World – A Gnostic Trail”, by Colin Low, 2000].

Assim, a existência muito debatida do ficcional Necronomicon fornece nenhuma evidência da noção igualmente fictícia que Lovecraft se envolveu com o ocultismo.

  • Ainda assim, o Ateísmo impede a crença no sobrenatural?

Algumas pessoas, no mesmo passo que são ateus estridentes em relação aos deuses tradicionais, começam a crer em uma infinidade de crenças New Age.

O Sistema New Age muitas vezes favorece o subjetivo sobre o objetivo. A experiência supera evidências. Se algo parece verdadeiro, é, mesmo que você não possa descobrir isso. A intuição substitui intelecto. O que se sente verdadeiro torna-se um fato funcional.

A velha declaração de Arquivo X que a “Verdade está lá fora”, em vez de estar entre suas orelhas, simboliza essa ética.

Em contraste com o dualismo metafísico, Lovecraft manteve-se intratável sobre o tema do paranormal ao longo de sua vida. Quando ele veio para o sobrenatural com o uso de ocultismo em suas histórias, HPL declarou:

“Não. Eu nunca li ou usei o jargão de” ocultismo ” na escrita formal … O “estranho” é mais eficaz, pois ele evita as superstições vulgares e fórmulas populares de culto. Eu sou … um materialista absoluto … não ponho um pingo de credibilidade em qualquer forma de sobrenaturalismo, espiritualismo, transcendentalismo, psicose, ou imortalidade. Pode ser, porém, que eu pudesse obter os germes de algumas boas idéias do tamborilar atual da orla lunática psíquica; E eu tenho frequentemente pensado de obter alguma idéia do lixo vendido em uma loja ocultista de livros na 46th St. O problema é que isso custa muito no meu estado atual. Quanto custou o folheto que você acabou de ler? Se qualquer um desses cultos de “crack cerebral” tem livretos gratuitos e “literatura” com uma matéria descritiva sugestiva, eu não me importaria de ter o meu nome em suas listas de ‘otário’. A idéia de que a magia negra existe em segredo hoje, ou que os ritos antigos infernais ainda sobrevivem na obscuridade, é a que eu tenho trabalhado… “[H.P. Lovecraft’s Letter to Clark Ashton Smith, October 9, 1925].

No máximo, Howard usou referências a livros como o  Necronomicon e seu panteão de Antigos como adereços para suspender a descrença a quem lesse sua ficção.

É preciso ter cuidado em tirar conclusões precipitadas. Por exemplo, só porque alguém conhece o  Necronomicon não faz dessa pessoa um ocultista.

  • O Xamanismo “acidental”:

Em seguida, eu gostaria de explorar as facetas do estilo de vida de Lovecraft que espelham as práticas ascéticas de um xamã. Como HPL seguiu disciplinas de um xamã, ele inconscientemente despertou os motivos inconscientes para que visões xamânicas tradicionais surgissem.

A palavra “acidental” é de primordial importância em nossa discussão. Como já observamos, Lovecraft não tinha mais espaço para o xamanismo do que para qualquer prática espiritual em sua sã consciência em vigília. E eu sinto que qualquer artigo sobre Lovecraft deva respeitar suas crenças declaradas.

No entanto, algumas excentricidades do estilo de vida de HPL fornecem terreno fértil para os seus sonhos xamânicos. Essas tendências são:

1) A privação do sono. 

2) Jejum. 

3) O celibato. 

4) Isolamento.

  • 1#Tendência Xamânica: A privação do sono.

Primeiro, Lovecraft era um insone completo.

Em tenra idade, HPL experimentou os terrores noturnos, uma série de pesadelos vívidos especialmente quando uma pessoa acorda rapidamente do sono profundo em um estado apavorado. O jovem Howard teria sido perseguido por aquilo que ele chamou de “Night Gaunts” – criaturas enormes aladas como morcegos sem rosto – que agarravam-lhe pelo estômago, levantando-o a alturas vertiginosas, em seguida, soltando-o sobre a terra abaixo. HPL tomou medidas para evitar o sono, desde que o sono representou a porta de entrada para as bestas escuras de seu inconsciente.

Na idade adulta, Lovecraft era conhecido por ficar sem dormir em muitas de suas viagens para se encontrar com seus correspondentes. Às vezes HPL passou três dias sem dormir. Para ser justo com Lovecraft, ele passou longo tempo sem noites de sono para maximizar o tempo e tirar o máximo proveito de suas viagens. Suas excursões para descobrir a arquitetura de antiquário foram uma das paixões de HPL. Os passeios pela arquitetura em êxtase muitas vezes deixava-o com os pés doloridos.

Um biógrafo observou: “Embora todas as suas queixas sobre a falta de energia, Lovecraft, quando passeava, ultrapassava a resistencia de seus companheiros” [Lovecraft: A Biography, by L. Sprague de Camp, 1976, p. 385.]

Hart Crane, um conhecido de Lovecraft, escreveu sobre a capacidade de HPL em ficar sem dormir, em uma carta para sua mãe no dia 14 de setembro de 1924:

“… Howard Lovecraft, (o homem que visitou Sam em Cleveland num verão quando Galpin também estava lá) manteve Sam perambulando ao redor das favelas e ruas do cais até as quatro da manhã à procura de exemplares da arquitetura colonial, até que Sam me disse que ele gemeu com fadiga e implorou para que fossem para o metrô! [Ibid., p. 237].

Edgar Hoffman Price também lembrou que um dos passeios sem dormir de Lovecraft:

No ano seguinte, [1933], HPL e eu nos encontramos em Providence, em 66 College Street. Sra. Gamwell, foi, então, no hospital, de modo que não havia ninguém para nos convencer a manter-lo em sãs horas. Minha lembrança é que desta vez, estávamos em viagem por 34 horas … “[ Ibid., p. 403].

Lovecraft reforçou a sua capacidade de ficar sem dormir com café. Ele bebeu grandes quantidades de Java – café cujos grãos são produzidos na ilha de Java na Indonésia – atado com grandes quantidades de açúcar – até quatro colheres por xícara.

Um detalhe auxiliar a práticas de sono de Lovecraft era que ele dormia durante o dia e ficou acordado até tarde da noite.

Os ritmos circadianos em humanos regulam a temperatura do núcleo do corpo, a atividade das ondas cerebrais, a produção de hormônios, a regeneração celular, secreções endócrinas e outras atividades biológicas. Um dos ritmos circadianos é modulado em ciclos de 24 horas de luz solar e trevas.

O rompimento de padrões de sono leva à interrupção do sono REM – o período do sono em que ocorrem os sonhos. Quando os sonhos são negados em uma tomada inconsciente, eles buscam expressões conscientes. Assim, as alucinações podem ocorrer.

Que efeito teve um curto-circuito dos ritmos circadianos sobre Lovecraft? Talvez a pergunta deva ser: “Onde termina o sonho do sono, e o sonhar acordado começa?”

  • #2 Tendência Xamânica: O jejum.

Em segundo lugar, Lovecraft praticou uma severa medida de jejum.

HPL foi, em grande parte, indiferente aos alimentos em geral. Ele não era tentado pelos gourmets, e se gabava de quão pouco custava-lhe comer.

Exceto para os dois anos em que ele viveu com Sonia Green, onde o peso de Lovecraft inchou de seu ideal aristocrático, HPL mal comia o suficiente para se manter vivo.

A idiossincrasia de alimentos não promovia sua saúde. A desnutrição causada pela dieta espartana de Howard, levou a um colapso em seu sistema imunológico que promoveu o câncer oportunista que depois o matou.

Mas Howard acreditava que seu cérebro funcionava melhor quando era um pouco desnutrido. Ele experimentou sua dieta frugal para aumentar a freqüência e a intensidade de seus sonhos misteriosos.

  • #3 Tendência Xamânica: O celibato .

Em terceiro lugar, Lovecraft praticou o celibato sexual. Os benefícios ascéticos de celibato em tradições esotéricas e religiosas são discutíveis. Além do casamento de Howard com Sonia Greene, a partir de minha leitura de vários biógrafos, Lovecraft viveu os costumes sexualmente repressivos engendrados por uma forte ética vitoriana.

Mais que o reconhecimento, a sexualidade de Lovecraft parece ser como a mancha de tinta de Rorschach – o que cada pessoa vê depende da orientação que pretende encontrar.

Em um nível prático, como muitos intelectuais: “Lovecraft focou suas atenções e esforços em atividades mentais, em vez de físicos, e, simplesmente, não tinha fortes interesses sexuais em tudo” [“H.P. Lovecraft Misconceptions”, by Donovan K. Loucks,http://www.hplovecraft.com/, May 14,  2011].

Da mesma forma, a abstinência de Lovecraft de beber e fumar também permitiu-lhe uma perseguição indivisada ou não diluída de seus interesses acadêmicos.

  • #4 Tendência Xamânica: Isolamento.

Em quarto lugar, Lovecraft ironicamente às vezes se comparou a um asceta ou eremita. Mais uma vez, HPL não viu seu ascetismo surgir a partir de uma noção religiosa ou espiritual.

No entanto, períodos de isolamento físicos e psicológicos foram marcantes na vida de Lovecraft.

Em algum nível, Lovecraft sentiu como se estivesse fora de passo com a vida. Ele sentiu-se um estranho em seu próprio mundo. Às vezes, HPL vivia como um eremita. Entre 1908-1914, Howard se retirou da vida social, devido a um colapso nervoso relatado. Em casos contrários, apesar do estereótipo, Howard envolvia-se socialmente, através de seu grande círculo de amigos literáriose e suas freqüentes viagens para visitá-los.

Apesar de seu compromisso com a vida, Lovecraft muitas vezes sentiu-se estranho, devido às suas limitações financeiras, a incapacidade de mudar as circunstâncias, a sua predisposição para a depressão, entre outros fatores. HPL falou de seus sentimentos na terceira pessoa, que muitas vezes é um sinal de sentimento distanciado da vida:

No entanto, posso garantir-vos que este ponto de vista é associado a uma das mais simples  e, mais discretamente, antiquada personalidade a se aposentar um dia: a do velho eremita e asceta que ainda não conhece o tempo contemporâneo que lhe cerca com festas e atividades joviais, e que durante o próximo inverno, provavelmente, não irá resistir as suas sentenças consecutivas: salvo por duas tias idosas!” [H.P. Lovecraft’s Letter to August Derleth: November 21, 1930].

  • O Efeito Sinérgico do Ascetismo acidental de Lovecraft

Quais são os efeitos que as práticas xamânicas acidentais de Lovecraft induzem?

Um dos resultados da privação de sono prolongada inclui vários tipos de psicoses. Lovecraft ficou muitas vezes em dias sem dormir. Um estudo relata que um total de 80% das pessoas, que passaram longas crises de insônia, também sofrem alucinações visuais [Can Sleep Deprivation Cause Hallucinations? Seeing Things May Occur with Extreme Sleep Loss” By Brandon Peters, M.D., About.com, September 01, 2011.]

O comportamento alcança seu limite quando uma pessoa experimenta um estado de sonho ou alucinação que parece tão real quanto se o evento realmente ocorresse.

Lovecraft afirmou que seus sonhos eram tão genuínos que ao acordar, a impressão de sua “verdade” o atormentava:

Eu tenho relacionado isso em detalhes, porque me impressionou muito vividamente. Isto não é um romance sobre reencarnação de Co [abreviação para Ira A. Cole] , você vai ver que esse sonho não tem clímax ou ponto, mas era muito real … Neste ponto você me perguntará de onde vêm estas histórias! Eu respondo de acordo com o seu pragmatismo que o sonho era tão real quanto a minha presença nesta mesa, com a caneta na mão! Se a verdade ou a falsidade de nossas crenças e impressões são imateriais, então eu sou, ou era, na verdade, e, indiscutivelmente, um espírito sem carroçaria pairando sobre uma cidade muito singular, muito silenciosa, e muito antiga em algum lugar entre cinzentas colinas mortas. Eu pensei que estava na hora, então o que mais importa? Você acha que eu era tão verdadeiro em espírito como estou agora como HP Lovecraft? Eu não “[H.P. Lovecraft’s Letter to Maurice W. Moe, May 15, 1918].

Para recapitular, os elementos do estilo de vida de Lovecraft incluíram:

1) Perturbação Ritmo circadiano porque HPL dormia de dia e percorriam as ruas de noite. 

2) Uma auto-imposta privação de sono que durou três dias, muitas vezes ao mesmo tempo. 

3) Jejum que lhe abstia de clareza mental e valorizava seu sonho. 

4) A abnegação em áreas – sexo, fumo e bebida forte – que se concentravam suas energias na criatividade.

5) Os períodos de isolamento físico e emocional que fomentaram o sentimento de separatividade.

Como Lovecraft viveu esses fatores, o lado esquerdo do cérebro intelectual agitou acidentalmente os motivos inconscientes para as visões xamânicas tradicionais surgirem.

HPL descreveu a escala de suas visões imaginativas:

“… Como meros fios, essas fantasias misturadas não valem a pena; mas sendo sonhos de boa-fé, eles são bastante pitorescos. Dá uma sensação de experiência estranha, fantástica, sobrenaturalde ter visto estas coisas estranhas, aparentemente, com o olho visual. Eu sonhei assim desde que eu era velho o suficiente para lembrar dos sonhos, e provavelmente serei até eu descer ao Averno … Na verdade, eu viajei para lugares estranhos que não estão sobre a terra ou em qualquer planeta conhecido. Tenho sido um piloto de cometas, e um irmão para as nebulosas … “[H.P. Lovecraft’s Letter to Rheinhart Kleiner, May 21, 1920]

  • Sonhos Caleidoscópicos e Visões Psicodélicas:

O que os xamãs modernos, como Timothy Leary e xamãs mais velhos, como os nativos americanos, têm em comum?

Ambos usaram drogas para lançar chaves químicas em seus cérebros que levaram-lhes em suas viagens vibrantes e visões. Dr. Leary usou LSD, enquanto algumas pessoas costumavam se dirgir até a Medicina mescalina. Quando numa dessas viagens psicodélicas foi utilizado o elemento químico certo, LSD, o que se procede é algo assim:

“… Altera profundamente e expande a consciência, soltando ou apagando completamente os filtros normais e telas entre sua mente consciente e o mundo exterior. Com estes filtros para baixo, mais informações correm para dentro. Você sente mais, pensa mais. Você se torna consciente das coisas normalmente filtradas por sua mente – visuais, auditivas, sensoriais e emocionais. Os intrincados detalhes em superfícies, a riqueza de som, o brilho das cores, e a complexidade de seus próprios processos mentais são todos trazidos para o primeiro plano de sua consciência. Em doses mais elevadas, a pressa de informação torna-se uma inundação e os seus sentidos, na verdade, começam a se fundir e se sobrepõem … até que você pode ver sons ou cheirar cores “. [LSD Effects”, The GoodDrugsGuide.Com]

LSD também altera o sentido do tempo e da percepção visual:

Efeitos primários do LSD são visuais. As cores parecem mais fortes e as luzes parecem mais brilhantes. Os objetos que são estáveis podem parecer se mover ou ter um halo de luz em torno deles. Às vezes, os objetos têm trilhas de luz provenientes deles ou parecem menores ou maiores do que realmente são. Usuários de LSD muitas vezes veem padrões, formas, cores e texturas. Às vezes parece que o tempo está correndo para trás, ou se movendo muito rapidamente ou lentamente. Em ocasiões muito raras … tropeços podem causar sinestesia – uma confusão de sensações entre diferentes tipos de estímulos. Algumas pessoas descreveram isso como ver cores quando ouvem sons específicos “[How LSD Works”, by Shanna Freeman,]

Eu nunca usei uma droga psicodélica, então eu não posso descrever um LSD ou mescalina a partir da experiência pessoal. É por isso que eu incluí descrições de como um agente alucinógeno afeta a percepção e as sensações de uma pessoa.

O que eu proponho é o seguinte: Como Lovecraft praticou os estilos de vida com traços de xamanismo acidental, ele tropeçou nas mesmas chaves químicas do cérebro que outros precisariam usar alucinógenos para ativar.

O resultado foi que os sonhos e a imaginação de Lovecraft expressavam a mesma experiência de outro mundo de alguém que usou drogas psicodélicas. Tristan Eldritch primeiro comparou os escritos de Lovecraft para experiências psicodélicas. No entanto, a pesquisa não explorou o estilo de vida ascético de Lovecraft como contribuindo para a psicodélica magnitude de sonhos e prosa de HPL.

Além da semelhança em experiências fantasmagóricas, gostaria de salientar a percepção de distorção de tempo que Lovecraft procurou esteticamente e a perturbação de tempo em uma viagem alucinógena.

Lovecraft procurou êxtases estéticos:

“… Que … invariavelmente implica uma derrota total das leis de tempo, espaço, matéria e energia, ou melhor, uma independência individual dessas leis da minha parte, em que eu possa navegar através dos universos variados de espaço-tempo como um invisível vapor que possa perturbar … nenhum deles, no entanto, é superior aos seus limites e formas locais de organização material “[H.P. Lovecraft’s Letter to August Derleth, December 25, 1930]

Observe que Lovecraft buscava um estado de ser, que incluiu um senso de independência das leis da época. A descrição de HPL corresponde à distorção de tempo que faz parte de uma experiência psicodélica:

… Às vezes parece que o tempo está correndo para trás, ou se movendo muito rápido ou devagar …”[ “How LSD Works,” by Shanna Freeman]

  • Houve uma predisposição genética para as “Dreamscapes” de Lovecraft?

Antes de prosseguir, gostaria de afirmar que Lovecraft também poderia ter sido geneticamente predisposto ao mundo fantástico dos sonhos.

Existem semelhanças entre as alucinações visuais e sensoriais de esquizofrenia e paisagens oníricas vívidas de Lovecraft.

Eu acredito que a ligação genética poderia ter sido materna. Embora o pai de Lovecraft morreu em uma instituição mental, sua loucura foi, provavelmente, devido a complicações de uma doença – sífilis. Por outro lado, Susie Lovecraft, em seus últimos anos, experimentou alucinações visuais envolvendo figuras sombrias. As alucinações pareciam ser de natureza orgânica.

Lovecraft experimentou surtos de doença mental, embora ele pensasse ser em grande parte depressão bipolar. No entanto, o racismo irracional do HPL, apesar de sua racionalidade, ocorreu de forma delirante e orgânica.

Da mesma forma, quando as telas genéticas habituais – aquelas que diminuem os estímulos conscientes recebidos para uma realidade gerenciável – são defeituosas, experiências sensoriais de uma pessoa assumem o caráter de viagens psicodélicas.

Telas de Howard, por falta de uma melhor metáfora, podem ter sido poucas e com defeitos. Isso não significa que as faculdades do HPL eram deficientes cada momento de cada dia. Mas elas eram suficientemente menores, e ainda mais enfraquecidas por suas tendências ascéticas, por transformar seus sonhos em titânicas visões ciclópicas de outros mundos e outras épocas.

Essa facilidade imperfeitamente semelhante permitiu Vincent Van Gogh ver cores brilhantes em torno de cenas naturais prosaicas que os outros não vêem, e despejou-as em suas telas assombrando os admiradores. Talvez Lovecraft viu coisas em seus sonhos e nas vigílias de suas crises de imaginação, devido a uma disfunção similar de algumas de suas acuidades mentais.

  • Para queimar a mente do leitor com uma grandeza cósmica

Eu acredito que existia uma constelação de fatores – tanto comportamentais e orgânicos – predispostos em Lovecraft para acessar mundos de sombras imaginativas. Lovecraft, assim como outros grandes artistas, era um indivíduo único na história. De nenhuma maneira podemos traçar todos os fatores ilusórios que vieram a ser concretizadas nos momentos criativos quando HPL escreveu grandes nomes como “Nas Montanhas da Loucura”.

Espero que tenhamos sugerido algumas razões para Lovecraft ter produzido os contos impressionistas que queimavam a mente do leitor com sua grandeza cósmica.

 

 

Por: John de laughter em LovecraftZine. Tradução: Nathalia Claro

Postagem original feita no https://mortesubita.net/lovecraft/h-p-lovecraft-e-suas-tendencias-xamanistas/