A Ordem dos Assassinos

Entre os finais do século XI e a metade do XIII, a terrível seita dos ismaelitas, minúscula no universo do Islã, trouxe temor e, por vezes, pânico à região do Oriente Médio.

Tratava-se da Ordem dos Assassinos, assim chamada porque os seus integrantes, antes de praticar os atentados, inalavam um estupefaciente, o Hashishiyun, o haxixe. Seus seguidores caracterizavam-se pela entregada total à missão que lhes era atribuída por seus superiores e por não demonstrarem medo nenhum frente à morte que fatalmente os aguardava após terem praticado suas ações terroristas.

O anúncio da ressurreição“Nada é verdade, tudo é permitido!” Hassan Sabbah.

No ano de 1166, na praça central da fortaleza de Alamut, no alto dos Montes Elburz, no norte do Irã, o Grão-Mestre dos nizarins (como a Ordem dos Assassinos chamava-se oficialmente), Hassan II, uma seita dissidente do Islã, exultava frente aos companheiros e seguidores que ocupavam todo o espaço à sua frente. Ele os convocara para um importante anúncio.

O profeta dos assassinos

Queria dizer-lhes que, enfim, aproximava-se o dia da Qiyamat al Qiyamat, a Ressurreição da Ressurreição, estando muito perto do momento em que, pondo fim àquela época, iniciada há muito tempo por Adão, o Imam oculto finalmente viria liderá-los na renovação de tudo. Dali em diante, assegurou, não haveria mais liturgia, pois a religião tornara-se puramente espiritual, sem templos ou culto. Que se preparassem, portanto, para os novos tempos, concentrando-se todos eles dentro da fortaleza de Alamut, um lugar inexpugnável para os seus inimigos, de onde só sairiam para realizar suas operações de assassinatos seletivos.

A seita, obediente aos extremos rigores do militarismo, havia sido fundada no ano de 1090 d.C., quando o missionário ismaelita Hassan Sabbah (1034-1124 d.C.), encarnação de Deus na Terra, retornara do Egito para a sua Pérsia nativa (ele nascera em Qom). Envolvido nas lutas pelo poder entre a casa real egípcia e de Bagdá, ele decidira fundar uma ordem secreta para enfrentar os seus adversários. Para tanto, se inspirou nos antigos rituais de iniciação adotados pelos gnósticos, com seu gosto pela ciência esotérica – a batanya – e pelo culto aos sinais secretos, só alcançados depois de muita disciplina e dedicação ao estudo. Em pouco tempo verificou-se que Hassan Sabbah, o xeque (título dos soberanos árabes) das montanhas, criou uma teologia totalitária, onde um só deus (Alá) se fazia representar por um só Imam (um líder espiritual), e por um só representante (o próprio Hassan), com autoridade de vida e morte sobre os seus seguidores. Tendo uma visão trágica do mundo, considerando-o perdidamente maculado pela heresia e pelo desacerto dos governantes, ele declarou guerra à religião oficial, o Islamismo sunita, e também às dinastias que reinavam na região, fossem as de raiz árabe ou turca seldjúcida. Líder de uma seita absolutamente minoritária, Hassan Sabbah percebeu que somente poderia impor-se naquelas circunstâncias por meio do terror. Em colocar seus inimigos em permanente pavor de virem a serem assassinados. Ao apoiar um dos governantes chamado Nizan, sua ordem denominou-se dos nizarins.

A estrutura da ordem

Consta que Hassan Sabbah além de um rigoroso exame de admissão dos iniciados, recolhia crianças abandonadas ou as comprava de casais miseráveis para fazer delas o seu exército de fiéis. Carentes de tudo, os jovens aspirantes nizarins viam-no com um deus-pai, dedicando-se integralmente à sua vontade, jamais ousando criticar uma ordem recebida sequer. Tratou também de cultivar uma soberba biblioteca, considerada uma das mais completas daquele tempo, não vendo nenhuma contradição entre harmonizar a alta cultura islâmica com a prática de assombrosos atentados terroristas. Ele gabava-se de ter à sua disposição 70 mil homens e mulheres espalhados por boa parte do Oriente Médio, capazes de executar qualquer missão por ele ordenada, mesmo que isso lhes custasse a vida. Sim porque seus alvos não eram gente comum, mas vizires, sultões, xeques, mulás, ulemás, cavaleiros cruzados, fosse quem fosse importante que, aos olhos do Grão-Mestre dos assassinos, criava impedimentos à sua política.

A mística

Hassan Sabbah apresentava-se com o Hojjat do Imam, aquele que falava e agia em lugar do Imam oculto, que assim se encontrava apenas aguardando o momento apropriado para aparecer. Era inerente à doutrina ismaelita, a crença messiânica segundo a qual, fatalmente, dar-se-ia a Grande Revelação. O salvador, que pairava sobre a sociedade sem mostrar-se, num determinado dia deixaria o mundo das sombras. Os seus seguidores, enquanto esse momento sagrado da Parusia não se dava, usariam os punhais para purificar o ambiente, afastando da paisagem as ervas daninhas e os frutos estragados que poderiam vir a ferir ou envenenar o ar do Imam revelado. Nada mais perfeito para ele do que a sua morada naquela fortaleza isolada do mundo, o Alamut, o ninho de águia, que logo seus inimigos deram a indicar como “o ninho da serpente”, dado o bote traiçoeiro das operações que ele ordenava (*).

(*) A fortaleza de Alamut ficava nos Montes Elburz, pertencente a uma cadeia de montanhas situadas ao Norte do Irã, na margem sul do Mar Cáspio. Área com escasso povoamento por causa da aridez geral.

O método dos assassinos

Apesar de andarem uniformizados na fortaleza de Alamut – trajes brancos com um cordão vermelho enlaçando-lhes a cintura (cores que os cavaleiros templários irão adotar) -, os fadavis, os devotos, quando recebiam uma missão, camuflavam-se. Preferiam misturar-se aos mendigos das cidades da Síria, da Mesopotâmia, do Egito e da Palestina para não despertarem a atenção. Em meio à multidão urbana, eles eram “adormecidos”, levando uma vida comum sem atrair suspeitas, até que um emissário lhes trazia a ordem para “despertar” e atacar. Geralmente eles aproximavam-se da sua vítima em número de três. Se por acaso dois punhais fracassem, haveria ainda um terceiro a completar o serviço. Atuavam esses “anjos da destruição” do Velho da Montanha, como muitos chamavam Hassn Sabbah, em qualquer lugar – nos mercados, nas ruas estreitas, dentro dos palácios e até mesmo no silêncio das mesquitas, lugar por eles escolhido em razão das vítimas estarem ali entregues à oração e com a guarda relaxada. Até o grande sultão Saladino, inimigo de morte deles, eles chegaram a assustar, deixando um punhal com um bilhete ameaçador em cima da sua alcova.

O uso da droga

Capturados, eles nada diziam. Viviam, como se dizia, num estado alheio as coisa do mundo, numa esfera especial amparada pela Lei Divina, mostrando absoluta indiferença pelo seu destino da terra. Seguiam para o cadafalso sem pestanejar, deixando aos executores a terrível sensação de impotência perante aquele fanatismo.

Esse comportamento autista é que contribuía para que acreditassem que eles inalavam haxixe antes de aplicarem as sentenças de morte, advindo daí, por corruptela, a palavra assassino. Alguns historiadores ponderam que a utilização de um estupefaciente tão poderoso como o haxixe não poderia excitar a violência nem a agressividade necessária para praticar um crime a sangue frio.

A droga teria ainda uma outra função. Acreditam, isso sim, que ela fosse usada por Hassan Sabbah nos rituais de iniciação da ordem como uma introdução à ideia do Paraíso, para que os aspirantes tivessem, experimentando a erva que lhes era oferecida num jardim das delícias, uma primeira prova das volúpias imateriais que guarda-los-iam no futuro, quando da sua morte em função da causa. Foi esse o sentido que o poeta Baudelaire captou com o seu Poème du Haschisch (Paraísos artificiais, 1858-60).

Aproximação com os cruzados

Hassan Sabbah e seus sucessores trataram de ocupar a maior parte dos fortes e fortins, numa linha que se estendia do Irã até a Palestina, passando pela Síria, para fazer com que a influência da ordem fosse sentida em todas as paragens e para que os punhais dos devotos provocassem medo em toda a parte. Odiados por turcos e árabes, por sunitas e xiitas, dos quais eram um ramo dissidente, foi inevitável que a Ordem dos Assassinos, num primeiro momento, se aproximasse dos cavaleiros cruzados, tão estranhos na região da terra Santa como eles mesmos se sentiam.

Não só isso. Seguramente foi aquela simbiose entre fé fanática e disciplina militar extremada que fascinou os primeiros nove cavaleiros cristãos, liderados por Hugo de Payens, decidiram-se por fundar a Ordem dos Cavaleiros do Templo, no ano de 1118. A dedicação integral e absoluta dos devotos, a abjuração de tudo, inclusive da vida, a cega obediência e o espírito de ordem monástico-guerreira que os tornavam membros de uma cavalaria espiritual, logo estreitou ainda mais o ideário dos cavaleiros cristãos com dos assassinos.

Assassinos e zelotes

Guardadas as devidas distâncias e motivações, há muita similitude no modus operandi dos assassinos a mando do Velho da Montanha, com as ações e atentados realizados pelos zelotes, militantes da causa judaica anti-romana. Aparecidos no século I a.C. eles reagiram à presença das águias imperiais na Palestina e na Judeia, praticando atentados seletivos, matando não só representantes da autoridade romana, mas fundamentalmente judeus que se mostravam dispostos a colaborar com eles.

Os zelotes tiveram um notável papel no levante antirromano e, seguramente, formavam a maioria dos fanáticos que se refugiaram na fortaleza de Massada, para lá resistirem até o fim, uns mil deles, sem se renderem às legiões do general Silva, que a ocupou no ano de 73 a. C. Por eles portarem ostensivamente suas adagas e facas em público, ameaçando meio mundo, os gregos os chamavam de Sicarii (do grego Sikarion = homem do punhal).

O historiador Arnold Toynbee determinou o comportamento dos povos invadidos daquela região em dois tipos. Chamou de herodianos (do rei Herodes, um monarca judeu colaboracionista), aqueles que não só aceitam o domínio estrangeiro como abertamente colaboram com o ocupante, enquanto que os zelotes eram justamente o contrário. Seriam os que rejeitavam qualquer aproximação ou acordo com os estrangeiros invasores. Os assassinos ismaelitas não se enquadram nessa classificação porque não estavam a serviço de uma causa nacionalista, mas sim de uma ordem religiosa sectária, que repudiara tanto a dinastia Fatímida do Egito quanto a Abássida de Bagdá.

Cavaleiros e poetas

Os templários não só adotaram uma série de preceitos e regulamentos tomados emprestados da Ordem dos Assassinos, como também fizeram suas as cores deles: o branco e o vermelho. Tão próximas foram estas relações que até Luís IX, rei da França, certa vez enviou uma missão diplomática a visitar o castelo de Jebel Nosairi, ocupado por um chefe local da Ordem dos Assassinos.

Frederico II, o Barbarossa, o imperador alemão que participou das cruzadas convidou vários ismaelitas para que o acompanhassem de volta à Europa, dando-lhes copa franca na sua corte.

A atração por sociedades secretas seduziu também aos poetas italianos do Dolce stil nuovo, como Guido Cavalcanti e Dante Alighieri, que, inspirando-se num livro da mística xiita intitulado “Jardim dos Fiéis do Amor” criaram a sua própria irmandade secreta, a dos Fedeli d´Amore.

Portanto, o gosto de muitos europeus por congregarem-se ao redor de lojas esotéricas, com rígidos rituais de iniciação e um ar secretíssimo, hábito tomado na época das cruzadas, provavelmente lhes foi instilado pelos feitos da Ordem dos Assassinos.

O fim da ordem

Protegidos por uma fortaleza tida como inexpugnável, que nenhuma força local poderia tomar de assalto, foi preciso esperar a invasão dos mongóis, no século XIII, para que finalmente o ninho da águia fosse destruído pelos poderosos invasores no ano de 1260, pondo fim a ameaça que a seita dos assassinos representava em todo o Oriente Médio. A legenda que deixaram foi difundida no Ocidente pelos cavaleiros cristãos e pelos monges escribas que os acompanharam, impressionados com a história terríveis a que os devotos estavam associados, símbolos vivos do que era possível fazer com um ser humano, tornado simples objeto maligno ao serviço do fanatismo.

#Islamismo

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/a-ordem-dos-assassinos

A Chave dos Grandes Mistérios

Eliphas Levi

A Chave dos Grandes Mistérios De acordo com Henoch, Abraão, Hermes Trismegisto e Salomão

Eliphas Levi

 

Chave absoluta das ciências ocultas dada por
Guilherme de Postel e completado por Eliphas Levi.

A religião diz: Acreditai e compreendereis. A ciência vem vos dizer: Compreendei e acreditareis. “Então, toda a ciência mudará de fisionomia; o espírito, por muito tempo destronado e esquecido, retomará seu lugar; será demonstrado que as tradições antigas são inteiramente verdadeiras; que o paganismo não passa de um sistema de verdades corrompidas e deslocadas; que basta limpá-las, por assim dizer, e recolocá-las em seu lugar, para vê-las brilhar com todo o esplendor. Em uma palavra, todas as idéias mudarão; e, uma vez que, de todos os lados, uma multidão de eleitos clama em concerto: “Vinde, Senhor, vinde!”, por que reprovaríeis os homens que se lançam nesse futuro majestoso e se glorificam de adivinhá-lo?”

Joseph de Maistre,

Soirées de Saint-Pétersbourg

PREFÁCIO

Os espíritos humanos têm a vertigem do mistério. O mistério é o abismo que atrai, sem cessar, nossa curiosidade inquieta por suas formidáveis profundezas.

O maior mistério do infinito é a existência de Aquele para quem e somente para Ele – tudo é sem mistério.

Compreendendo o infinito, que é essencialmente incompreensível, ele próprio é o mistério infinito e externamente insondável, ou seja, ele é, ao que tudo indica, esse absurdo por excelência, em que acreditava Tertuliano.

Necessariamente absurdo, uma vez que a razão deve renunciar para sempre a atingi-lo; necessariamente crível, uma vez que a ciência e a razão, longe de demonstrar que ele não é, são fatalmente levadas a deixar acreditar que ele é, e elas próprias a adorá-lo de olhos fechados.

É que esse absurdo é a fonte infinita da razão, a luz brota eternamente das trevas eternas, a ciência, essa Babel do espírito, pode torcer e sobrepor suas espirais subindo sempre; ela poderá fazer oscilar a Terra, nunca tocará o céu.

Deus é o que aprenderemos eternamente a conhecer. É, por conseguinte, o que nunca saberemos.

O domínio do mistério é um campo aberto às conquistas da inteligência. Pode-se andar nele com audácia, nunca se reduzirá sua extensão, mudar-se-á somente de horizontes. Todo saber é o sonho do impossível, mas ai de quem não ousa aprender tudo e não sabe que, para saber alguma coisa, é preciso resignar-se-a estudar sempre!

Dizem que para bem aprender é preciso esquecer várias vezes. O mundo seguiu esse método. Tudo o que se questiona em nossos dias havia sido resolvido pelos antigos; anteriores a nossos anais, suas soluções escritas em hieróglifos não tinham mais sentido para nós; um homem reencontrou sua chave, abriu as necrópoles da ciência antiga e deu a seu século todo um mundo de teoremas esquecidos, de sínteses simples e sublimes como a natureza, irradiando sempre unidade e multiplicando-se como números, com proporções tão exatas quanto o conhecimento demonstra e revela o desconhecido. Compreender essa ciência é ver Deus. O autor deste livro, ao terminar sua obra, acreditará tê-lo demonstrado.

Depois, quando tiverdes visto Deus, o hierofante vos dirá: Virai-vos e, na sombra que projetais na presença desse sol das inteligências, ele fará aparecer o Diabo, o fantasma negro que vedes quando não olhais para Deus e quando acreditais ter preenchido o céu com vossa sombra, porque os vapores da terra parecem tê-la feito crescer ao subir.

Pôr de acordo, na ordem religiosa, a ciência com a revelação e a razão com a fé, demonstrar em filosofia os princípios absolutos que conciliam todas as antinomias, revelar enfim o equilíbrio universal das forças naturais, tal é a tripla finalidade desta obra, que será, por conseguinte, dividida em três partes.

Mostraremos a verdadeira religião com caracteres tais que ninguém, crente ou não, poderá desconhecê-la, será o absoluto em matéria de religião. Estabeleceremos, em filosofia, os caracteres imutáveis dessa verdade, que é, em ciência, realidade, em julgamento, razão e, em moral, justiça. Enfim, faremos conhecer estas leis da natureza cujo equilíbrio é o sustento e mostraremos o quanto são vãs as fantasias de nossa imaginação diante das realidades fecundas do movimento e da vida. Convidaremos também os grandes poetas do futuro para refazerem a divina comédia, não mais de acordo com os sonhos do homem, mas segundo as matemáticas de Deus.

Mistério dos outros mundos, forças ocultas, revelações estranhas, doenças misteriosas, faculdades excepcionais, espíritos, aparições, paradoxos mágicos, arcanos herméticos, diremos tudo e explicaremos tudo. Quem pois nos deu esse poder? Não tememos revelá-lo a nossos leitores.

Existe um alfabeto oculto e sagrado que os hebreus atribuem a Henoch, os egípcios a Tot ou a Mercúrio Trismegisto, os gregos a Cadmo e a Palamédio. Esse alfabeto, conhecido pelos pitagóricos, compõe-se de idéias absolutas ligadas a signos e a números e realiza, por suas combinações, as matemáticas do pensamento. Salomão havia representado esse alfabeto por setenta e dois nomes escritos em trinta e seis talismãs e é o que os iniciados do Oriente denominam ainda de as pequenas chaves ou clavículas de Salomão. Essas chaves são descritas e seu uso é explicado num livro cujo dogma tradicional remonta ao patriarca Abraão, é o Sepher Yétsirah, e, com a inteligência do Sepher Yétsirah, penetra-se o sentido oculto do Zohar, o grande livro dogmático da Cabala dos hebreus. As clavículas de Salomão, esquecidas com o tempo e que se dizia estarem perdidas, nós as encontramos, e abrimos sem dificuldade todas as portas dos antigos santuários, onde a verdade absoluta parecia dormir, sempre jovem e sempre bela, como aquela princesa de um conto infantil que espera durante um século de sono o esposo que deve despertá-la.

Depois de nosso livro, ainda haverá mistérios, mas mais alto e mais longe nas profundezas infinitas. Esta publicação é uma luz ou uma loucura, uma mistificação ou um monumento. Lede, refleti e julgai.

Primeira Parte

Mistérios Religiosos

Problemas a resolver

I. Demonstrar de uma maneira certa e absoluta a existência de um Deus e dela dar uma idéia satisfatória para todos os espíritos.

II. Estabelecer a existência de uma verdadeira religião de maneira a torná-la incontestável.

III. Indicar o alcance e a razão de ser de todos os mistérios da religião única, verdadeira e universal.

IV. Transformar as objeções da filosofia em argumentos favoráveis à verdadeira religião.

V. Traçar o limite entre a religião e a superstição e dar a razão dos milagres e dos prodígios.

Considerações preliminares

Quando o conde Joseph de Maistre, este grande lógico apaixonado, disse com desespero: O mundo está sem religião, assemelhou-se àqueles que dizem temerariamente: Deus não existe.

O mundo, com efeito, está sem a religião do conde Joseph de Maistre, assim como é provável que Deus, tal qual o concebe a maioria dos ateus, não exista.

A religião é uma idéia apoiada num fato constante e universal; a humanidade é religiosa: a palavra religião tem, portanto, um sentido necessário e absoluto. A própria natureza consagra a idéia que representa essa palavra e a eleva à altura de um princípio.

A necessidade de crer liga-se estreitamente à necessidade de amar: é por isso que as almas têm necessidade de comungar com as mesmas esperanças e com o mesmo amor. As crenças isoladas não passam de dúvidas: é o laço da confiança mútua que faz a religião ao criar a fé.

A fé não se inventa, não se impõe, não se estabelece por convicção política; manifesta-se, como a vida, com uma espécie de fatalidade. O mesmo poder que dirige os fenômenos da natureza estende e limita, além de todas as previsões humanas, o domínio sobrenatural da fé. Não se imaginam as revelações, elas se impõem, e nelas se crê. Por mais que o espírito proteste contra as obscuridades do dogma, está subjugado pela atração dessas mesmas obscuridades, e freqüentemente o mais indócil dos pensadores coraria em aceitar o título de homem sem religião.

A religião ocupa um espaço bem maior entre as realidades da vida do que pretendem crer aqueles que dispensam a religião ou que têm a pretensão de dispensá-la. Tudo o que eleva o homem acima do animal, o amor moral, a abnegação, a honra são sentimentos essencialmente religiosos. O culto da pátria e do lar, a religião do juramento e das lembranças são coisas que a humanidade jamais abjurará sem se degradar completamente, e que não saberiam existir sem a crença em alguma coisa maior do que a vida mortal, com todas as suas vissicitudes, suas ignorâncias e suas misérias.

Se a perda eterna no nada tivesse de ser o resultado de todas as nossas aspirações às coisas sublimes que sentimos serem eternas, a fruição do presente, o esquecimento do passado e a displicência para com o futuro seriam nossos únicos deveres, e seria rigorosamente verdadeiro dizer, com um sofista célebre, que o homem que pensa é um animal degradado.

Por isso, de todas as paixões humanas, a paixão religiosa é a mais poderosa e a mais vivaz. Produz-se seja pela afirmação seja pela negação, com igual fanatismo, uns afirmando com obstinação o deus que fizeram à sua imagem, outros negando Deus com temeridade, como se tivessem podido compreender e devastar por um único pensamento todo o infinito que está ligado a seu grande nome.

Os filósofos não refletiram suficientemente sobre o fato fisiológico da religião na humanidade: a religião, com efeito, existe além de toda discussão dogmática. É uma faculdade da alma humana, da mesma forma que a inteligência e o amor. Enquanto houver homens, a religião existirá. Considerada assim, ela não é outra coisa que a necessidade de um idealismo infinito, necessidade que justifica todas as aspirações ao progresso, que inspira todas as abnegações, que sozinha impede a virtude e a honra de serem unicamente palavras que servem para iludir a vaidade dos fracos e dos tolos em proveito dos fortes e dos hábeis.

É a essa necessidade inata de crença que se poderia dar o nome de religião natural, e tudo o que tende a diminuir e limitar o impulso dessa crença está, na ordem religiosa, em oposição à natureza. A essência do objeto religioso é o mistério, uma vez que a fé começa no desconhecido e abandona todo o resto às investigações da ciência. A dúvida é, aliás, mortal à fé; ela sente que a intervenção do ser divino é necessária para cobrir o abismo que separa o finito do infinito e afirma essa intervenção com todo o ímpeto de seu coração, com toda a docilidade de sua inteligência. Fora desse ato de fé, a necessidade religiosa não encontra satisfação e transmuta-se em ceticismo e em desespero. Mas, para que o ato de fé não seja um ato de loucura, a razão quer que ele seja dirigido e regulado. Pelo quê? Pela ciência? Vimos que nesse caso a ciência é impotente. Pela autoridade civil? É absurdo. Colocai guardas para vigiar as orações!

Resta, pois, a autoridade moral, única que pode constituir o dogma e estabelecer a disciplina do culto de comum acordo, dessa vez, com a autoridade civil, mas não conforme às suas ordens; é preciso, em uma palavra, que a fé dê à necessidade religiosa uma satisfação real, inteira, permanente, indubitável. Para tanto, é preciso a afirmação absoluta, invariável, de um dogma conservado por uma hierarquia autorizada. É preciso um culto eficaz que dê, com uma fé absoluta, uma realização substancial aos signos da crença.

A religião, assim compreendida, sendo a única que satisfaz a necessidade natural de religião, deve ser chamada de a única verdadeiramente natural. E chegamos por nós mesmos a esta dupla definição: a verdadeira religião natural é a religião revelada, é a religião hierárquica e tradicional, que se afirma absolutamente acima das discussões humanas pela comunhão da fé, da esperança e da caridade.

Ao representar a autoridade moral e ao realizá-la pela eficácia de seu ministério, o sacerdote é santo e infalível, enquanto a humanidade está sujeita ao vício e ao erro. O padre, ao agir como padre, é sempre o representante de Deus. Pouco importam as faltas ou mesmo os crimes do homem. Quando Alexandre VI fazia uma ordenação, não era o envenenador que impunha as mãos aos bispos, era o papa. Ora, o papa Alexandre VI nunca corrompeu nem falsificou os dogmas que o condenavam, os sacramentos que, em suas mãos, salvavam os outros e não o justificavam. Houve sempre e em todos os lugares homens mentirosos e criminosos; mas, na Igreja hierárquica e divinamente autorizada, nunca houve e nunca haverá nem maus papas nem maus padres. Mau e padre são palavras que não se ajustam.

Falamos de Alexandre VI e acreditamos que esse nome baste, sem que nos oponham outras lembranças justamente execradas. Grandes criminosos puderam duplamente desonrar-se, por causa do caráter sagrado de que estavam revestidos; mas não lhes foi dado desonrar esse caráter, que continua sempre radiante e esplêndido acima da humanidade que cai.

Dissemos que não há religião sem mistérios; acrescentemos que não há mistérios sem símbolos. Sendo o símbolo a fórmula ou a expressão do mistério, ele só exprime sua profundidade desconhecida por imagens paradoxais emprestadas do conhecido. Devendo caracterizar o que está acima da razão científica, a forma simbólica deve necessariamente encontrar-se fora dessa razão: daí, a palavra célebre e perfeitamente justa de um Pai da Igreja: Creio, porque é absurdo, credo quia absurdum.

Se a ciência afirmasse o que não sabe, destruiria a si própria. A ciência não pode, portanto, realizar a obra da fé, tanto quanto a fé não pode decidir em matéria de ciência. Uma afirmação de fé com que a ciência tenha a temeridade de ocupar-se será apenas um absurdo para ela, da mesma forma que uma afirmação de ciência que nos fosse dada como artigo de fé seria um absurdo na ordem religiosa. Crer e saber são dois termos que nunca se podem confundir.

Tampouco poderiam opor-se um ao outro num antagonismo qualquer. É impossível, com efeito, crer no contrário do que se sabe sem deixar, por isso mesmo, de o saber, e é igualmente impossível chegar a saber o contrário do que se crê sem deixar imediatamente de crer.

Negar ou mesmo contestar as decisões da fé, e isso em nome da ciência, é provar que não se compreende nem a ciência nem a fé: com efeito, o mistério de um Deus em três pessoas não é um problema de matemática; a encarnação do Verbo não é um fenômeno que pertença à medicina; a redenção escapa à crítica dos historiadores. A ciência é absolutamente impotente para decidir se se tem ou não razão de se acreditar ou não no dogma; ela pode constatar somente os resultados da crença e, se a fé torna evidentemente os homens melhores, se, aliás, a fé em si mesma, considerada como um fato fisiológico, é evidentemente uma necessidade e uma força, será preciso que a ciência o admita e tome o sábio partido de contar sempre com a fé.

Ousemos afirmar agora que existe um fato imenso, igualmente apreciável pela fé e pela ciência, um fato que torna Deus visível de algum modo sobre a terra, um fato incontestável e de alcance universal; esse fato é a manifestação, no mundo, a partir da época em que começa a revelação cristã, de um espírito desconhecido pelos antigos, de um espírito evidentemente divino, mais positivo que a ciência em suas obras, mais magnificamente ideal em suas aspirações que a mais elevada poesia, um espírito para o qual era preciso criar um nome novo, completamente inaudito nos santuários da Antigüidade. Assim, esse nome foi criado, e demonstraremos que esse nome, que essa palavra é, em religião, tanto para a ciência quanto para a fé, a expressão do absoluto; a palavra é caridade e o espírito de que falamos chama-se o espírito de caridade.

Diante da caridade, a fé prosterna-se e a ciência, vencida, inclina-se. Há evidentemente aqui alguma coisa maior do que a humanidade; a caridade prova por suas obras que não é um sonho. É mais forte do que todas as paixões; triunfa sobre o sofrimento e a morte; faz que Deus seja compreendido por todos os corações e parece já preencher a eternidade pela realização iniciada de suas legítimas esperanças.

Diante da caridade viva e atuante, que Proudhon ousará blasfemar? Que Voltaire ousará rir?

Empilhai, um sobre os outros, os sofismas de Diderot, os argumentos críticos de Strauss, as Ruínas de Volney – tão bem nomeadas, pois esse homem não poderia fazer senão ruínas -, as blasfêmias dessa revolução cuja voz extingue-se uma vez no sangue e outra no silêncio do desprezo; acrescentei a isso o que o futuro pode nos reservar de monstruosidades e devaneios; depois, que venha a mais humilde e a mais simples de todas as irmãs da caridade, o mundo abandonará todas as suas tolices, todos os seus crimes, todos os seus devaneios doentios, para inclinar-se diante dessa realidade sublime.

Caridade! palavra divina, palavra que, por si, leva à compreensão de Deus, palavra que contém uma revelação inteira! Espírito de caridade, aliança de duas palavras que são toda uma solução e todo um futuro! Que pergunta, com efeito, essas duas palavras não podem responder?

O que é Deus para nós senão o espírito de caridade? o que é a ortodoxia? não é o espírito de caridade que não discute sobre a fé a fim de não alterar a confiança dos pequenos e de não perturbar a paz da comunhão universal? Ora, o que é a Igreja universal senão a comunhão em espírito de caridade? É pelo espírito de caridade que a Igreja é infalível. O espírito de caridade é a virtude divina do sacerdócio.

Dever dos homens, garantia de seus direitos, prova de sua imortalidade, eternidade de felicidade iniciada para eles na terra, objetivo glorioso dado a sua existência, fim e meio de seus esforços, perfeição de sua moral individual, civil e religiosa, o espírito de caridade abrange tudo, aplica-se a tudo, tudo pode esperar, tudo empreender e tudo cumprir.

Era pelo espírito de caridade que Jesus, expirando na cruz, dava a sua mãe um filho na pessoa de São João e, triunfando sobre as angústias do mais horrível suplício, soltava um grito de libertação e de salvação ao dizer: “Pai, nas tuas mãos entrego meu espírito.”

Foi pelo espírito de caridade que doze artesãos da Galiléia conquistaram o mundo; amaram a verdade mais do que suas vidas; e foram sozinhos dizê-la aos povos e aos reis; provados pela tortura, foram considerados fiéis. Mostraram às multidões a imortalidade viva em sua morte e regaram a terra com um sangue cujo calor não podia extinguir-se, pois neles ardia a chama da caridade.

Foi pela caridade que os apóstolos constituíram seus símbolos. Disseram que acreditar juntos é melhor do que duvidar separadamente; constituíram a hierarquia sobre a obediência, tornada tão nobre e tão grande pelo espírito de caridade, que servir assim é reinar; formularam a fé de todos e a esperança de todos e puseram esse símbolo sob a guarda da caridade de todos. Ai do egoísta que se apropria de uma só palavra dessa herança do Verbo, pois é um deicida que quer desmembrar o corpo do Senhor.

O símbolo é a arca sagrada da caridade, quem quer que o toque é atingido pela morte eterna, pois a caridade retira-se dele. É a herança sagrada de nossos filhos, é o preço do sangue de nossos pais.

Era pela caridade que os mártires se consolavam nas prisões dos césares e atraíam para sua crença seus guardas e mesmo seus carrascos.

Era em nome da caridade que São Martinho de Tours protestava contra o suplício dos priscilianos e separava-se da comunhão do tirano que queria impor a fé pela espada.

Foi pela caridade que tantos santos consolaram o mundo dos crimes cometidos em nome da própria religião e dos escândalos do santuário profanado.

Foi pela caridade que São Vicente de Paulo e Fenelon impuseram-se à admiração dos séculos, mesmo aos mais ímpios, e fizeram calar de antemão o riso dos filhos de Voltaire diante da seriedade imponente de suas virtudes.

Foi pela caridade, enfim, que a loucura da cruz tornou-se a sabedoria das nações, porque todos os nobres corações compreenderam que é mais elevado acreditar ao lado dos que amam e devotam-se do que duvidar ao lado dos egoístas e dos escravos do prazer!

ARTIGO I

Solução do primeiro problema

O VERDADEIRO DEUS

Deus só pode ser definido pela fé; a ciência não pode negar nem afirmar que ele existe.

Deus é o objeto absoluto da fé humana. No infinito, é a inteligência suprema e criadora da ordem. No mundo, é o espírito de caridade.

Será o Ser universal uma máquina fatal que tritura eternamente as inteligências ocasionais ou uma inteligência providencial que dirige as forças para a melhoria dos espíritos?

A primeira hipótese repugna à razão, é desesperadora e imoral.

Ciência e razão devem, portanto, inclinar-se diante da segunda.

Sim, Proudhon, Deus é uma hipótese, mas é uma hipótese tão necessária que, sem ela, todos os teoremas tornam-se absurdos ou duvidosos.

Para os iniciados da cabala, Deus é a unidade absoluta que cria e anima os números.

A unidade da inteligência humana demonstra a unidade de Deus.

A chave dos números é a dos símbolos, porque os sintomas são as figuras analógicas da harmonia que vem dos números.

As matemáticas não saberiam demonstrar a fatalidade cega, uma vez que são a expressão da exatidão que é o caráter da mais suprema razão.

A unidade demonstra a analogia dos contrários; é o princípio, o equilíbrio e o fim dos números. O ato de fé parte da unidade e retorna à unidade.

Vamos esboçar uma explicação da Bíblia pelos números, porque a Bíblia é o livro das imagens de Deus.

Perguntaremos aos números a razão dos dogmas da religião eterna, e os números responderão sempre, reunindo-se na síntese da unidade.

 

As poucas páginas que se seguem são simples apanhados das hipóteses cabalísticas; são externas à fé e as indicamos somente como pesquisas curiosas. Não nos cabe inovar em matéria de dogma, e nossas asserções como iniciado estão inteiramente subordinadas à nossa submissão como cristão.

Esboço da teologia profética dos números

I. A UNIDADE

A unidade é o princípio e a síntese dos números, é a idéia de Deus e do homem, é a aliança da razão e da fé.

A fé não pode ser oposta à razão, é exigida pelo amor, é idêntica à esperança. Amar é acreditar e esperar, e esse triplo ímpeto da alma é chamado virtude, porque é preciso coragem para realizá-lo. Mas haveria coragem nisso se a dúvida não fosse possível? Ora, poder duvidar é duvidar. A dúvida é a força equilibrante da fé e tem todo o seu mérito.

A própria natureza nos induz a crer, mas as fórmulas de fé são constatações sociais das tendências da fé numa época dada. É o que dá a infalibilidade à Igreja, infalibilidade de evidência e de fato.

Deus é necessariamente o mais desconhecido de todos os seres, uma vez que só é definido em sentido inverso de nossas experiências, é tudo o que não somos, é o infinito oposto ao finito por hipótese contraditória.

A fé e, por conseguinte, a esperança e o amor são tão livres que o homem, longe de impô-los aos outros, não os impõe a si mesmo.

São graças, diz a religião. Ora, será concebível que se exija a graça, isto é, que se queira forçar os homens ao que vem livre e gratuitamente do céu? É preciso desejar-lhes isso.

Raciocinar sobre a fé é disparatar, uma vez que o objeto da fé é externo à razão. Se me perguntam: “Existe um Deus?”, eu respondo: “Acredito que sim.” “Mas o senhor tem certeza disso?” “Se tivesse certeza, não acreditaria nele, eu o saberia.”

Formular a fé é admitir termos da hipótese comum.

A fé começa onde a ciência acaba. Ampliar a ciência é aparentemente suprimir a fé, e, na realidade, é ampliar igualmente seu domínio, pois é ampliar sua base.

Só se pode adivinhar o desconhecido por suas proporções supostas ou passíveis de serem supostas do conhecido.

A analogia era o dogma único dos antigos magos. Dogma verdadeiramente mediador, pois é metade científico, metade hipotético, metade razão e metade poesia. Esse dogma foi e será sempre o gerador de todos os outros.

O que é o Homem-Deus? É o que realiza na vida mais humana o ideal mais divino.

A fé é uma adivinhação da inteligência e do amor dirigidos pelos índices da natureza e da razão.

Faz parte, portanto, da essência das coisas de fé serem inacessíveis à ciência, duvidosas para a filosofia e indefinidas para a certeza.

A fé é uma realização hipotética dos fins últimos da esperança. É a adesão ao signo visível das coisas que não se vê.

Sperandarum substantia rerum

Argumentum non apparentium

Para afirmar sem disparate que Deus existe ou não, é preciso partir de uma definição sensata ou insensata de Deus. Ora, essa definição para ser sensata deve ser hipotética, analógica e negativa do finito conhecido. Pode-se negar um Deus qualquer, mas o Deus absoluto não se nega tanto quanto não se prova; é sensatamente suposto e nele se acredita.

Bem-aventurados os que têm o coração puro, pois verão a Deus, disse o Mestre; ver com o coração é acreditar e, se essa fé se relaciona ao verdadeiro bem, não pode ser enganada contanto que não procure definir muito seguindo as induções arriscadas da ignorância pessoal. Nossos julgamentos, em matéria de fé, aplicam-se a nós mesmos, será para nós como tivermos acreditado. Isto é, nós próprios nos fazemos à semelhança de nosso ideal.

Quem faz os deuses torna-se semelhante a eles, assim como todos aqueles que lhes dão sua confiança.

O ideal divino do velho mundo fez a civilização que acabou, e não se deve desesperar ao ver o deus de nossos bárbaros pais tornar-se o diabo de nossos filhos mais esclarecidos. Fazem-se diabos com deuses de refugo, e Satã só é assim tão incoerente e tão disforme porque é feito com todos os retalhos das antigas teogonias. É a esfinge sem palavra, é o enigma sem solução, é o mistério sem verdade, é o absoluto sem realidade e sem luz.

O homem é o filho de Deus, porque Deus, manifestado, é chamado o filho do homem.

Foi depois de ter feito Deus em sua inteligência e seu amor que a humanidade compreendeu o verbo sublime que disse: Faça-se a luz!

O homem é a forma do pensamento divino, e Deus é a síntese idealizada do pensamento humano.

Assim, o Verbo de Deus é o que revela o homem, e o Verbo do homem é o que revela Deus.

O homem é o Deus do mundo, e Deus é o homem do céu.

Antes de dizer: Deus quer, o homem quis.

Para compreender e honrar Deus todo-poderoso, é preciso que o homem seja livre.

Obedecendo e abstendo-se por temor ao fruto da ciência, tendo sido inocente e estúpido como o cordeiro, curioso e rebelde como o anjo de luz, o homem cortou o cordão de sua ingenuidade e, caindo livre sobre a terra, arrastou Deus em sua queda.

E é por isso que, do fundo dessa queda sublime, revela-se glorioso com o grande condenado do calvário e entra com ele no reino do céu.

Pois o reino do céu pertence à inteligência e ao amor, ambos filhos da liberdade!

Deus mostrou ao homem a liberdade como uma amante, e, para pôr seu coração à prova, fez passar, entre ela e ele, o fantasma da morte.

O homem amou e sentiu-se Deus; deu por ela isto que Deus acabava de nos dar: a esperança eterna.

Lançou-se em direção de sua noiva através da sombra da morte e o espectro desapareceu.

O homem possuía a liberdade; tinha abraçado a vida.

Expia agora tua glória, ó Prometeu!

Teu coração devorado sem cessar não pode morrer; é o teu abutre e Júpiter que morrerão.

Um dia despertaremos enfim dos sonhos penosos de uma vida atormentada, a obra de nossa provação terá acabado, seremos fortes o bastante contra a dor para sermos imortais.

Então viveremos em Deus, numa vida mais abundante, e desceremos às suas obras com a luz de seu pensamento, seremos levados ao infinito pelo sopro de seu amor.

Seremos, sem dúvida, os primogênitos de uma nova raça; anjos do porvir.

Mensageiros celestes, vogaremos na imensidão e as estrelas serão nossas brancas naus.

Transformar-nos-emos em doces visões para acalmar os olhos dos que choram; colheremos lírios resplandecentes em prados desconhecidos e espargiremos seu orvalho sobre a terra.

Tocaremos a pálpebra da criança que dorme e alegraremos docemente o coração de sua mãe com o espetáculo da beleza de seu filho bem-amado.

II. O BINÁRIO

O binário é mais particularmente o número da mulher, esposa do homem e mãe da sociedade.

O homem é o amor na inteligência, a mulher é a inteligência no amor.

A mulher é o sorriso do criador contente de si próprio, e foi depois de tê-la feito que ele descansou, diz a parábola celeste.

A mulher está antes do homem, porque é mãe e tudo lhe é perdoado de antemão porque dá à luz com dor.

A mulher foi quem primeiro se iniciou na imortalidade pela morte; o homem, então, a viu tão bela e a compreendeu tão generosa, que não quis sobreviver a ela, e amou-a mais do que sua vida, mais do que sua felicidade eterna.

Feliz proscrito! já que lhe foi dada como companheira de seu exílio.

Mas os filhos de Caim revoltaram-se contra a mãe de Abel e escravizaram sua mãe.

A beleza da mulher tornou-se uma presa para a brutalidade dos homens sem amor.

Então, a mulher fechou seu coração como um santuário desconhecido e disse aos homens indignos dela: “Sou virgem, mas quero ser mãe, e meu filho ensinar-vos-á a me amar.”

Ó Eva! sê saudada e adorada em tua queda!

Ó Maria! sê abençoada e adorada em tuas dores e em tua glória!

Santa crucificada que sobrevivia a teu Deus para enterrar teu filho, sê para nós a última palavra da revelação divina!

Moisés chamava Deus de Senhor, Jesus chamava-o de meu Pai, e nós, pensando em ti, diremos à Providência: “Sois nossa mãe!”

Filhos da mulher, perdoemos a mulher decaída.

Filhos da mulher, adoremos a mulher regenerada.

Filhos da mulher, que dormimos em seu seio, que fomos embalados em seus braços e consolados por seus carinhos, amemo-la e amemo-nos entre nós!

III. O TERNÁRIO

O ternário é o número da criação.

Deus criou a si próprio eternamente e o infinito que ele preenche com suas obras é uma criação incessante e infinita.

O amor supremo contempla-se na beleza como em um espelho, e experimenta todas as formas como enfeites, pois é o noivo da vida.

O homem também afirma e cria a si próprio: enfeita-se com suas conquistas, ilumina-se com suas concepções, reveste-se com suas obras como que com vestes nupciais.

A grande semana da criação foi imitada pelo gênio humano divinizando as formas da natureza.

Cada dia forneceu uma revelação nova, cada rei progressivo do mundo foi por um dia a imagem e a encarnação de Deus! Sonho sublime que explica os mistérios da Índia e justifica todos os simbolismos!

A elevada concepção do homem-Deus corresponde à criação de Adão, e o cristianismo, à semelhança dos primeiros dias do homem típico no paraíso terrestre, foi apenas uma aspiração e uma viuvez.

Esperamos o culto da esposa e da mãe, aspiramos às núpcias da nova aliança.

Então os pobres, os cegos, todos os proscritos do velho mundo serão convidados para o festim e receberão um traje nupcial; e olhar-se-ão uns aos outros com uma grande doçura e um inefável sorriso, porque terão chorado muito tempo.

IV. O QUATERNÁRIO

O quaternário é o número da força. É o ternário completado por seu produto, é a unidade rebelada reconciliada à trindade soberana.

No ardor primeiro da vida, o homem, tendo esquecido sua mãe, compreendeu Deus apenas como um pai inflexível e cioso.

O sombrio Saturno, armado com sua foice parricida, põe-se a devorar seus filhos.

Júpiter teve cenhos que abalaram o Olimpo, e Jeová, trovões que ensurdeceram as solidões do Sinai.

E, no entanto, o pai dos homens, embriagado às vezes como Noé, deixava o mundo perceber os mistérios da vida.

Psiquê, divinizada por suas aflições, tornava-se esposa do Amor; Adônis ressuscitado reencontrava Vênus no Olimpo; Jó, vitorioso ao mal, recuperava mais do que tinha perdido.

A lei é uma prova de coragem. Amar a vida mais do que se teme as ameaças da morte é merecer a vida.

Os eleitos são os que ousam; ai dos tímidos!

Assim, os escravos da lei que se fazem os tiranos das consciências, e os servidores do temor, e os avaros de esperança, e os fariseus de todas as sinagogas e de todas as igrejas, estes são os réprobos e os malditos do Pai!

Cristo não foi excomungado e crucificado pela sinagoga?

Savonarola não foi queimado por ordem de um pontífice da religião cristã?

Os fariseus não são hoje o que eram no tempo de Caifás?

Se alguém lhes fala em nome da inteligência e do amor, escutá-lo-ão?

Foi arrancando os filhos da liberdade à tirania dos Faraós que Moisés inaugurou o reino do Pai.

Foi quebrando o jugo insuportável do farisaísmo mosaico que Jesus convidou todos os homens à fraternidade do filho único de Deus.

Quando caírem os últimos ídolos, quando se quebrarem as últimas correntes materiais das consciências, quando os últimos matadores de profetas, quando os últimos sufocadores do Verbo forem confundidos, será o reino do Espírito Santo.

Glória, pois, ao Pai, que enterrou o exército do Faraó no mar Vermelho!

Glória ao Filho que rasgou o véu do templo e cuja cruz extremamente pesada posta sobre a coroa dos Césares quebrou contra a terra a fronte dos Césares!

Glória ao Espírito Santo que deve varrer da terra com seu sopro terrível todos os ladrões e todos os carrascos para dar lugar ao banquete dos filhos de Deus!

Glória ao Espírito Santo que prometeu ao anjo da liberdade a conquista da terra e do céu.

O anjo da liberdade nasceu antes da aurora do primeiro dia, antes mesmo do despertar da inteligência, e Deus o denominou estrela da manhã.

Ó Lúcifer, tu te desligaste voluntária e desdenhosamente do céu onde o sol te inundava com sua claridade, para sulcar com teus próprios raios os campos agrestes da noite.

Brilhas quando o sol se põe e teu olhar resplandecente precede o nascer do dia.

Cais para de novo levantar; experimentas a morte para melhor conhecer a vida.

És, para as glórias antigas do mundo, a estrela da noite; para a verdade renascente, a bela estrela da manhã!

A liberdade não é a licença: a licença é a tirania.

A liberdade é a guardiã do dever, porque ela reivindica o direito.

Lúcifer, cujas idades das trevas fizeram o gênio do mal, será verdadeiramente o anjo da luz quando, tendo conquistado a liberdade ao preço da reprovação, fizer uso dela para se submeter à ordem eterna, inaugurando assim as glórias da obediência voluntária.

O direito é apenas a raiz do dever, é preciso possuir para dar.

Ora, eis como uma elevada poesia explica a queda dos anjos.

Deus tinha dado aos espíritos a luz e a vida, depois lhes disse: Amai.

– O que é amar?, responderam os espíritos.

– Amar é dar-se aos outros, respondeu Deus. – Os que amarem sofrerão, mas serão amados.

– Temos o direito de não dar nada, e nada queremos sofrer, disseram os espíritos inimigos do amor.

– Estais em vosso direito, respondeu Deus -, e separemo-nos. Eu e os meus queremos sofrer e morrer, mesmo para amar. É nosso dever!

O anjo caído é pois aquele que desde o princípio recusou amar; não ama, e é todo o seu suplício; não dá, e é toda a sua miséria; não sofre, e é seu nada; não morre, e é seu exílio.

O anjo caído não é Lúcifer, o porta-luz, é Satã, o caluniador do amor.

Ser rico é dar; não dar nada é ser pobre; viver é amar, não amar nada é estar morto; ser feliz é devotar-se; existir somente para si é reprovar a si próprio, é seqüestrar-se no inferno.

O céu é a harmonia dos sentimentos gerais; o inferno é o conflito dos instintos lassos.

O homem do direito é Caim, que matou Abel por inveja; o homem do dever é Abel, que morre para Caim por amor.

E tal foi a missão do Cristo, o grande Abel da humanidade.

Não é pelo direito que devemos ousar em tudo, é pelo dever.

O dever é a expansão e a fruição da liberdade; o direito isolado é o pai da servidão.

O dever é a obrigação, o direito é o egoísmo.

O dever é o sacrifício, o direito é a rapina e o roubo.

O dever é o amor, o direito é o ódio.

O dever é a vida infinita, o direito é a morte eterna.

Se é preciso combater pela conquista do direito, é somente para adquirir a potência do dever: e por que seríamos livres se não fosse para amar, devotarmo-nos e, assim, assemelharmo-nos a Deus?

Se é preciso infringir a lei, é quando ela submete o amor ao medo.

Aquele que quiser salvar sua alma perdê-la-á, diz o livro santo, e aquele que consentir em perdê-la salvá-la-á.

O dever é amar: pereça todo aquele que cria obstáculos ao amor! Silêncio aos oráculos do ódio! Aniquilamento aos falsos deuses do egoísmo e do medo! Vergonha aos escravos avaros de amor!

Deus ama os filhos pródigos!

V. O QUINÁRIO

O quinário é o número religioso, pois é o número de Deus reunido ao da mulher.

A fé não é a credulidade estúpida da ignorância maravilhada.

A fé é a consciência e a confiança do amor.

A fé é o grito da razão que persiste em negar o absurdo, mesmo diante do desconhecido.

A fé é um sentimento necessário à alma como a respiração à vida: é a dignidade do coração, é a realidade do entusiasmo.

A fé não consiste na afirmação deste ou daquele símbolo, mas na aspiração verdadeira e constante às verdades veladas por todos os simbolismos.

Um homem rejeita uma idéia indigna da divindade, quebra suas falsas imagens, revolta-se contra odiosas idolatrias, e dizeis que é um ateu?

Os perseguidores da Roma decaída também chamavam os primeiros cristãos de ateus, porque não adoravam os ídolos de Calígula ou de Nero.

Negar toda uma religião e mesmo todas as religiões de preferência a aderir a fórmulas que a consciência reprova é um corajoso e sublime ato de fé.

Todo homem que sofre por suas convicções é um mártir da fé.

Talvez se explique mal, mas prefere a justiça e a verdade a qualquer coisa; não o condeneis sem entendê-lo.

Acreditar na verdade suprema não é defini-la, e declarar que nela se crê é reconhecer ignorá-la.

O apóstolo São Paulo limita toda fé a estas duas coisas: acreditar que Deus existe e que ele recompensa aqueles que o procuram.

A fé é maior que as religiões, porque precisa menos dos artigos da crença.

Um dogma qualquer constitui apenas uma crença e pertence a uma comunhão especial; a fé é um sentimento comum a toda a humanidade.

Quanto mais se discute para precisar, menos se acredita; um dogma a mais é uma crença de que uma seita se apropria e eleva assim, de alguma maneira, à fé universal.

Deixemos os sectários fazerem e refazerem seus dogmas, deixemos os supersticiosos detalharem e formularem suas superstições, deixemos os mortos enterrarem seus mortos, como dizia o Mestre, e acreditemos na verdade indizível, no absoluto que a razão admite sem compreender, no que pressentimos sem saber.

Acreditemos na razão suprema.

Acreditemos no amor infinito e tenhamos piedade das estupidezes da escola e das barbáries da falsa religião.

Ó homem! dize-me o que esperas, e eu dir-te-ei o que vales.

Rezas, jejuas, velas e crês que escaparás assim sozinho, ou quase sozinho, à perda imensa dos homens devorados por um Deus cioso. És um hipócrita e um ímpio.

Fazes da vida uma orgia e esperas o nada como sono, és um doente ou um insano.

Estás pronto a sofrer como os outros e pelos outros e esperas a salvação de todos, és um sábio e um justo.

Esperar não é ter medo.

Ter medo de Deus! Que blasfêmia!

O ato de esperança é a oração.

A oração é o derramar-se da alma na sabedoria e no amor eternos.

É o olhar do espírito para a verdade e o suspiro do coração para a beleza suprema.

É o sorriso da criança para a mãe.

É o murmúrio do bem-amado que se debruça para os beijos de sua bem-amada.

É a doce felicidade da alma amante que se dilata num oceano de amor.

É a tristeza da esposa na ausência do novel esposo.

É o suspiro do viajante que pensa em sua pátria.

É o pensamento do pobre que trabalha para alimentar a mulher e os filhos.

Oremos em silêncio e ergamos em direção de nosso Pai desconhecido um olhar de confiança e de amor; aceitemos com fé e resignação a parte que nos cabe nas penas da vida, e todas as batidas de nossos corações serão palavras de oração.

Necessitamos acaso informar a Deus que coisas lhe pedimos, já não sabe ele o que nos é necessário?

Se choramos, apresentemos-lhe as nossas lágrimas; se nos regozijamos, dirijamos-lhe o nosso sorriso; se ele nos atinge, baixemos a cabeça; se nos acaricia, adormeçamos em seus braços!

Nossa oração será perfeita, quando orarmos sem sequer saber que oramos.

A oração não é um ruído que fere os ouvidos, é um silêncio que penetra no coração.

E doces lágrimas vêm umedecer os olhos, e suspiros escapam como a fumaça dos incensos.

Fica-se tomado por um inefável amor a tudo o que é beleza, verdade, justiça; palpita-se de uma nova vida e não se teme mais morrer. Pois a oração é a vida eterna da inteligência e do amor; é a vida de Deus na terra.

Amai-vos uns aos outros, eis a lei e os profetas! Meditai e compreendei essa palavra.

E, quando tiverdes compreendido, não leiais mais, não procures mais, não duvideis mais, amai!

Não mais sejais sábios, não mais sejais eruditos, amai! Essa é a doutrina da verdadeira religião; religião quer dizer caridade, e o próprio Deus não é senão amor.

Eu já vos disse: amar é dar.

O ímpio é aquele que absorve os outros.

O homem pio é aquele que se expande na humanidade.

Se o coração do homem concentra em si próprio o fogo com o qual Deus o anima, é um inferno que devora tudo e que só se preenche de cinzas; se ele o faz resplandecer fora, torna-se um doce sol de amor.

O homem doa-se à família; a família doa-se à pátria; a pátria, à humanidade.

O egoísmo do homem merece o isolamento e o desespero, o egoísmo da família merece a ruína e o exílio, o egoísmo da pátria merece a guerra e a invasão.

O homem que se isola de todo amor humano ao dizer: Eu servirei a Deus, este se engana. Pois, diz o apóstolo São João, se ele não ama ao próximo que vê, como amará a Deus que não vê?

É preciso dar a Deus o que é de Deus, mas não se deve recusar mesmo a César o que é de César.

Deus é quem dá a vida, César é quem pode dar a morte.

É preciso amar a Deus e não temer a César, pois está dito no livro sagrado: Quem com ferro fere com ferro perecerá.

Quereis ser bons, sede justos; quereis ser justos, sede livres!

Os vícios que deixam o homem semelhante à besta são os primeiros inimigos da sua liberdade.

Olhai o bêbado e dizei-me se essa besta imunda pode ser livre!

O avaro maldiz a vida de seu pai e, como o corvo, tem fome de cadáveres.

O ambicioso quer ruínas, é um invejoso em delírio; o devasso escarrou no seio da mãe e encheu de abortos as entranhas da morte.

Todos esses corações sem amor são punidos pelo mais cruel dos suplícios: o ódio.

Pois, saibamo-lo bem, a expiação está contida no pecado.

O homem que faz o mal é como um vaso de barro defeituoso, quebrar-se-á, a fatalidade o quer.

Com os escombros do mundo, Deus refaz estrelas; com os escombros da alma, refaz anjos.

VI. O SENÁRIO

O senário é o número da iniciação pela prova; é o número do equilíbrio, é o hieróglifo da ciência do bem e do mal.

Quem procura a origem do mal procura o que não é.

O mal é o apelativo da desordem do bem, é a tentativa infrutífera de uma vontade inábil.

Cada um possui o fruto de suas obras, e a pobreza é somente o aguilhão do trabalho.

Para o rebanho dos homens, o sofrimento é como o cão pastor que morde a lã das ovelhas para recolocá-las no caminho.

É por causa da sombra que podemos ver a luz; é por causa do frio que sentimos o calor; é por causa da dor que somos sensíveis ao prazer.

O mal é, portanto, para nós, a ocasião e o começo do bem.

Mas, nos sonhos de nossa inteligência imperfeita, acusamos o trabalho providencial, por não o compreender.

Assemelhamo-nos ao ignorante que julga o quadro no começo do esboço e diz, quando a cabeça está feita: “Então esta figura não tem corpo.”

A natureza continua calma e realiza sua obra.

A relha não é cruel quando rasga o seio da terra, e as grandes revoluções do mundo são a lavoura de Deus.

Tudo tem seu tempo: aos povos ferozes, senhores bárbaros; ao gado, açougueiros; aos homens, juizes e pais.

Se o tempo pudesse transformar os carneiros em leões, eles comeriam os açougueiros e os pastores.

Os carneiros nunca se transformam porque não se instruem, mas os povos instruem-se.

Pastores e açougueiros dos povos, tendes razão, portanto, em ver como inimigos aqueles que falam a vosso rebanho.

Rebanhos que conheceis ainda apenas vossos pastores e que quereis ignorar seu comércio com os açougueiros, sois desculpáveis por apedrejar aqueles que vos humilham e que vos inquietam ao falarem de vossos direitos.

Ó Cristo! Os grandes condenam-te, teus discípulos renegam-te, o povo amaldiçoa-te e aclama teu suplício, somente tua mãe chora, Deus abandona-te!

Eli! Eli! Lamma Sabachtani!

VII. O SETENÁRIO

O setenário é o grande número bíblico. É a chave da criação de Moisés e o símbolo de toda a religião. Moisés deixou cinco livros, e a lei resume-se em dois testamentos.

A Bíblia não é uma história, é uma coletânea de poemas, é um livro de alegorias e imagens.

Adão e Eva são somente tipos primitivos da humanidade; a serpente que tenta é o tempo que põe à prova; a árvore da ciência é o direito; a expiação pelo trabalho é o dever.

Caim e Abel representam a carne e o espírito, a força e a inteligência, a violência e a harmonia.

Os gigantes são os antigos usurpadores da terra; o dilúvio foi um imensa revolução.

A arca é a tradição conservada numa família: a religião, nessa época, torna-se um mistério e a propriedade de uma raça. Caim é maldito por ser seu revelador.

Nemrod e Babel são duas alegorias primitivas do désposta único e do império universal sempre sonhado desde então; empreendido sucessivamente pelos assírios, os medas, os persas, Alexandre, Roma, Napoleão, os sucessores de Pedro, o Grande, e sempre inacabado por causa da dispersão de interesses, figurada pela confusão das línguas.

O império universal não deveria realizar-se pela força, mas pela inteligência e pelo amor. Por isso, a Nemrod, homem do direito selvagem, a Bíblia opõe Abraão, homem do dever, que se exila para buscar a liberdade e a luta numa terra estrangeira de que se apodera pelo pensamento.

Tem uma mulher estéril, é seu pensamento, e uma escrava fecunda, é sua força; mas, quando a força produz seu fruto, o pensamento torna-se fecundo, e o filho da inteligência exila o filho da força. O homem de inteligência é submetido a duras provas; deve confirmar suas conquistas pelo sacrifício. Deus quer que ele imole seu filho, isto é, a dúvida deve pôr à prova o dogma e o homem intelectual deve estar pronto a tudo sacrificar diante da razão suprema. Deus, então, intervém: a razão universal cede aos esforços do trabalho, mostra-se à ciência e apenas o lado material do dogma é imolado. É o que representa o carneiro preso pelos chifres entre os arbustos. A história de Abraão é pois um símbolo à moda antiga e contém uma elevada revelação dos destinos da alma humana. Tomada ao pé da letra, é um relato absurdo e revoltante. Santo Agostinho não tomava ao pé da letra o Asno de Ouro de Apuleu! Pobres grandes homens!

A história de Isaac é uma outra lenda. Rebeca é o tipo de mulher oriental, laboriosa, hospitaleira, parcial em suas afeições, astuta e ardilosa em suas manobras. Jacó e Esaú são ainda os dois tipos reproduzidos de Caim e Abel; mas aqui Abel se vinga; a inteligência emancipada triunfa pela astúcia. Todo o gênio israelita está no caráter de Jacó, o paciente laborioso suplantador que cede à cólera de Esaú, torna-se rico e compra o perdão de seu irmão. Quando os antigos queriam filosofar, contavam, nunca se deve esquecer.

A história ou lenda de José contém em germe todo o gênio do Evangelho, e Cristo, desconhecido por seu povo, teve de chorar mais de uma vez ao reler esta cena em que o governador do Egito lança-se ao pescoço de Benjamim dando um grito e dizendo: “Eu sou José!”

Israel torna-se o povo de Deus, isto é, o conservador da idéia e o depositário do Verbo. Essa idéia é a da independência humana e a da realeza pelo trabalho, mas é ocultada com cuidado, como um germe precioso. Um signo doloroso e indelével é imprimido nos iniciados, toda imagem da verdade é proibida, e os filhos de Israel velam, segurando o sabre em torno da unidade do tabernáculo. Hermor e Siquém querem introduzir-se pela força na família sagrada e perecem com seu povo em conseqüência de uma falsa iniciação. Para dominar os povos, é preciso que o santuário já esteja cercado de sacrifícios e terror.

A servidão dos filhos de Jacó prepara sua libertação: eles têm uma idéia, e não se acorrenta uma idéia; têm uma religião, e não se violenta uma religião; são por fim um povo, e não se acorrenta um verdadeiro povo. A perseguição suscita vingadores, a idéia encarna-se num homem, Moisés levanta, o Faraó cai e a coluna de nuvens e chamas que precede um povo livre avança majestosamente no deserto.

O Cristo é o pai e o rei pela inteligência e pelo amor.

Recebeu a unção santa, a unção do gênio, a unção da fé, a unção da virtude que é a força.

Ele vem quando o sacerdote está esgotado, quando os velhos símbolos não têm mais virtudes, quando a pátria da inteligência está extinta.

Vem para fazer Israel voltar à vida e, se não puder galvanizar Israel, morto pelos fariseus, ressuscitará o mundo abandonado ao culto morto dos ídolos.

Cristo é o direito do dever!

O homem tem o direito de cumprir o seu dever e não tem outro.

Homem, tens o direito de resistir até a morte a quem quer que te impeça de cumprir o teu dever!

Mãe! teu filho afoga-se; um homem impede-te de socorrê-lo; feres esse homem e corres a salvar teu filho!… Quem ousará condenar-te?…

Cristo veio para opor o direito do dever ao dever do direito.

O direito para os judeus era a doutrina dos fariseus. E, com efeito, pareciam ter adquirido o privilégio de dogmatizar; não eram eles os legítimos herdeiros da sinagoga?

Tinham o direito de condenar o Salvador, e o Salvador sabia que seu direito era o de resistir-lhes.

O Cristo é a protestação viva.

Mas protestação de quê? Da carne contra a inteligência? Não!

Do direito contra o dever? Não!

Da atração física contra a atração moral? Não! não!

Da imaginação contra a razão universal? Da loucura contra a sabedoria? Não, mil vezes não, ainda uma vez!

O Cristo é o dever real que protesta eternamente contra o direito imaginário.

É a emancipação do espírito que quebra a servidão da carne.

É a devoção revoltada contra o egoísmo.

É a modéstia sublime que responde ao orgulho: Eu não te obedecerei!

O Cristo é viúvo, o Cristo é só, o Cristo é triste: por quê? É que a mulher prostituiu-se.

É que a sociedade é acusada de roubo.

É que a felicidade egoísta é ímpia.

Cristo é julgado, condenado, executado, e nós o adoramos!

Isso se passou num mundo talvez tão sério quanto o nosso.

Juizes do mundo em que vivemos, sede atentos e pensai naquele que julgará vossos julgamentos.

Mas, antes de morrer, o Salvador legou a seus filhos o símbolo imortal da salvação: a comunhão.

Comunhão! União comum! Última palavra do Salvador do mundo.

O pão e o vinho repartidos entre todos, disse ele, é minha carne e meu sangue!

Ele deu sua carne aos carrascos, seu sangue à terra que quis bebê-lo: e por quê?

Para que todos repartam o pão da inteligência e o vinho do amor. Ó signo da união dos homens! Ó mesa comum! Ó banquete da fraternidade e da igualdade! quando enfim serás melhor compreendido?

Mártires da humanidade, vós que destes a vida para que todos tivessem o pão que alimenta e o vinho que fortifica, também não dizeis ao impor a mão sobre esses símbolos da comunhão universal: Isso é nossa carne e nosso sangue!

E vós, homens do mundo inteiro, vós a quem o Mestre chama irmãos: oh, não sentis que o pão universal é Deus!

Devedores do crucificado.

Vós todos que não estais prontos para dar à humanidade vosso sangue, vossa carne e vossa vida não sois dignos da comunhão do Filho de Deus! Não o façais derramar seu sangue sobre vós, pois faria nódoas sobre vossa fronte!

Não aproximeis vossos lábios do coração de Deus, ele sentiria vossa mordedura.

Não bebais o sangue do Cristo, queimaria vossas entranhas; já é suficiente que ele o tenha derramado inutilmente por vós!

VIII. O NÚMERO OITO

O octonário é o número da reação e da justiça equilibrante.

Toda ação produz uma reação.

É a lei universal do mundo.

O cristianismo devia produzir o anticristianismo.

O anticristo é a sombra, é o contraste e a prova do Cristo.

O anticristo já se produzia na Igreja na época dos apóstolos: Aquele que resiste agora resiste até a morte, dizia São Paulo, e o filho da iniqüidade manifestar-se-á.

Os protestantes disseram: O anticristo é o papa.

O papa respondeu: Todo herege é um anticristo.

O anticristo não é mais o papa do que Lutero: o anticristo é o espírito oposto ao do Cristo.

É a usurpação do direito pelo direito; é o orgulho da dominação e o despotismo do pensamento.

É o egoísmo pretensamente religioso dos protestantes da mesmíssima maneira que a ignorância crédula e imperiosa dos maus católicos.

O anticristo é o que divide os homens ao invés de os unir; é o espírito de disputa, é a teimosia dos doutores e dos sectários, o desejo ímpio de se apropriar da verdade e dela excluir os outros, o de forçar todo o mundo a sofrer a estreiteza de nossos julgamentos.

O anticristo é o pai que amaldiçoa ao invés de abençoar, que afasta ao invés de aproximar, que escandaliza ao invés de edificar, que condena ao invés de salvar.

É o fanatismo odioso que desencoraja a boa vontade.

É o culto da morte, da tristeza e da fealdade.

Que futuro daremos a nosso filho? disseram os pais insensatos; ele é fraco de espírito e de corpo e seu coração não dá ainda sinal de vida: faremos dele um padre, a fim de que viva do altar. E não compreenderam que o altar não é uma manjedoura para os animais preguiçosos.

Por isso, olhai os padres indignos, contemplei esses pretensos servidores do altar. O que é que dizem a vossos corações esses homens gordos ou cadavéricos, de olhos inexpressivos, de lábios cerrados ou escancarados?

Escutai-os falarem: o que vos ensina esse ruído desagradável e monótono?

Rezam como dormem e sacrificam como comem.

São máquinas de pão, de carne, de vinho e de palavras vazias de sentido.

E, quando se regozijam, como ostras ao sol, por estarem sem pensamento e sem amor, diz-se que têm paz de espírito.

Têm a paz da besta e, para o homem, a do túmulo é melhor; são os padres da tolice e da ignorância, são os ministros do anticristo.

O verdadeiro padre do Cristo é um homem que vive, que sofre, que ama e que combate pela justiça. Não briga, não reprova, difunde o perdão, a inteligência e o amor.

O verdadeiro cristão é estranho ao espírito de seita; ele é tudo para todos e vê todos os homens como filhos de um pai comum que quer salvar a todos; o símbolo inteiro tem para ele somente um sentido de doçura e amor: deixa para Deus os segredos da justiça e só compreende a caridade.

Vê os maus como doentes de quem é preciso ter pena e cuidar; o mundo com seus erros e seus vícios é, para ele, o hospital de Deus, e ele quer ser seu enfermeiro.

Não se acha melhor que ninguém, apenas diz: Enquanto eu for melhor, sirvamos os outros, quando for preciso cair e morrer, outros talvez tomarão meu lugar e nos servirão.

IX. O NÚMERO NOVE

Eis o eremita do tarô; eis o número dos iniciados e dos profetas.

Os profetas são solitários, pois seu destino é nunca serem ouvidos.

Vêem muito mais que os outros; pressentem as desgraças por vir. Assim, são aprisionados, mortos ou vilipendiados, são rejeitados como leprosos, ou deixam-nos morrer de fome.

Depois, quando os eventos ocorrem, dizemos: Foram essas pessoas que nos trouxeram desgraça.

Agora, como sempre, na véspera dos grandes desastres, nossas ruas estão plenas de profetas.

Encontrei alguns nas prisões; vi outros que morriam esquecidos em pardieiros.

Toda grande cidade viu algum cuja profecia silenciosa era girar incessantemente e andar sempre coberto de andrajos no palácio do luxo e da riqueza.

Vi um cujo rosto resplandecia como o do Cristo: tinha as mãos calejadas e a roupa do trabalhador e moldava epopéias como argila. Torcia juntos o gládio do direito e o cetro do dever e, sobre esta coluna de ouro e aço, inaugurava o símbolo criador do amor.

Um dia, numa grande assembléia do povo, desceu a rua, segurando um pão que partia e distribuía, dizendo: Pão de Deus, faze-te pão para todos!

Conheço outro que gritou: Não quero mais adorar o Deus do diabo; não quero um carrasco como Deus! E acreditou-se que ele blasfemava.

Não; mas a energia de sua fé transbordava em palavras inexatas e imprudentes.

Dizia ainda, na loucura de sua caridade ferida: Todos os homens são solidários e expiam uns pelos outros, da mesma forma que se merecem uns aos outros.

O castigo para o pecado é a morte.

O próprio pecado é, aliás, um castigo, e o maior dos castigos. Um grande crime é apenas uma grande desgraça.

O pior dos homens é o que se acredita melhor do que os outros.

Os homens apaixonados são escusáveis, uma vez que são passivos. Paixão significa sofrimento e redenção pela dor.

O que chamamos de liberdade é somente a onipotência da atração divina. Os mártires diziam: Mais vale obedecer a Deus que aos homens.

O menos perfeito ato de amor vale mais ao que a melhor palavra de piedade.

Não julgueis, falai pouco, amai e agi.

Um outro que veio disse: Protestai contra as más doutrinas por boas obras, mas não vos separeis de ninguém.

Restabelecei todos os altares, purificai todos os templos e estai prontos para a visita do espírito do amor.

Que cada um reze seguindo seu rito e comungue com os seus, mas não condeneis os outros.

Uma prática de religião nunca é desprezível, pois é o símbolo de um grande e santo pensamento.

Rezar em conjunto é comungar na mesma esperança, na mesma fé, na mesma caridade.

O signo não é nada para si próprio: é a fé que o santifica.

A religião é o laço mais sagrado e mais forte da associação humana, e fazer um ato de religião é fazer um ato de humanidade.

Quando os homens compreenderem, enfim, que não se deve discutir sobre coisas que se ignora;

Quando sentirem que um pouco de caridade vale mais que muita influência e dominação;

Quando todos respeitarem o que o próprio Deus respeita na menor de suas criaturas: a espontaneidade da obediência e a liberdade do dever;

Então, só haverá uma religião no mundo, a religião cristã e universal, a verdadeira religião católica que não renegará mais a si própria por restrição de lugares ou de pessoas.

Mulher, dizia o Salvador à samaritana, em verdade te digo que virá o tempo em que os homens não adorarão mais a Deus nem em Jerusalém nem sobre esta montanha, pois Deus é espírito, e seus verdadeiros adoradores devem servi-lo em espírito e em verdade.

X. NÚMERO ABSOLUTO DA CABALA

A chave das sefirotes (ver Dogma e Ritual da Alta Magia).

XI. O NÚMERO ONZE

Onze é o número da força; é o da luta e do martírio.

Todo homem que morre por uma idéia é um mártir, pois nele as aspirações do espírito triunfaram sobre os temores dos animais.

Todo homem que morre na guerra é um mártir, pois morre pelos outros.

Todo homem que morre miserável é um mártir, pois é como um soldado vencido na batalha da vida.

Aqueles que morrem pelo direito são tão santos em seu sacrifício quanto as vítimas do dever e, nas grandes lutas da revolução contra o poder, os mártires caem dos dois lados.

Sendo o direito a raiz do dever, nosso dever é defender nossos direitos.

O que é um crime? É o exagero do direito. O assassínio e o roubo são negações da sociedade; é o despotismo isolado de um indivíduo que usurpa a realeza e faz guerra por sua conta e risco.

O crime deve ser sem dúvida reprimido, e a sociedade deve defender-se; mas quem poderia ser justo o suficiente, grande o suficiente e puro o suficiente para ter a pretensão de punir?

Paz a todos os que tombam na guerra, mesmo na guerra ilegítima, pois arriscaram a cabeça e perderam-na, e, tendo pago, o que podemos ainda reclamar?

Honra a todos os que combatem bravamente e lealmente! Vergonha somente aos traidores e aos covardes!

O Cristo morreu entre dois ladrões e levou consigo um deles ao céu.

O reino dos céus é dos lutadores e se ganha à força.

Deus dá sua onipotência ao amor. Gosta de triunfar sobre o ódio, mas vomita a tibieza.

O dever é viver, nem que seja por um instante!

É belo ter reinado por um dia, mesmo por uma hora! Mesmo que seja sob a espada de Dâmocles ou na fogueira de Sardanapalo.

Mas é mais belo ter visto a seus pés todas as coisas do mundo e ter dito: Serei o rei dos pobres e meu trono será sobre o calvário.

Existe um homem mais forte do que aquele que mata, é o que morre para salvar.

Não existem crimes isolados nem expiações solitárias.

Não existem virtudes pessoais nem devotamentos perdidos.

Quem não for irrepreensível é cúmplice de todo mal, e quem não for absolutamente perverso pode participar de todo bem.

É por isso que um suplício é sempre uma expiação humanitária, e toda cabeça que é recolhida de um cadafalso pode ser saudada e honrada como a cabeça de um mártir.

É por isso também que o mais nobre e o mais santo dos mártires podia, ao entrar em sua consciência, achar-se digno da pena que iria suportar e dizer, saudando o gládio pronto a feri-lo: Justiça seja feita!

Puras vítimas das catacumbas de Roma, judeus e protestantes massacrados por indignos cristãos.

Padres da Abbaye e dos Carmes, guilhotinados do terror, realistas degolados, revolucionários sacrificados, soldados de nossos grandes exércitos que semeasses as ossadas pelo mundo, vós todos que morresses com sofrimento, ousados de toda sorte, bravos filhos de Prometeu que não tendes medo nem do raio nem do abutre, honra a vossas cinzas, paz e veneração a vossas memórias! Sois os heróis do progresso, os mártires da humanidade!

XII. O NÚMERO DOZE

O doze é o número cíclico; é o do símbolo universal.

Eis uma tradução dos versos feitos para o símbolo mágico e católico sem restrição:

Creio num só Deus onipotente, nosso pai,

Eterno criador do céu e da terra.

Creio no Rei salvador, chefe da humanidade.

Da divindade, filho, palavra e esplendor.

Concepção viva do eterno amor,

Divindade visível e luz atuante.

Desejado pelo mundo sempre e em todos os lugares.

Mas que não é um Deus separável de Deus.

Descido entre nós para libertar a terra,

Santificou a mulher em sua mãe.

Era o homem celeste, sábio e doce homem.

Nasceu para sofrer e morrer como nós.

Proscrito pela ignorância, acusado pela inveja,

Morreu na cruz para nos dar a vida.

Todos os que o tomarem por guia e apoio

Podem, por sua doutrina, ser Deus como ele.

Ressuscitou para reinar sobre os tempos;

Deve, da ignorância, as nuvens dissipar.

Seus preceitos, um dia mais fortes e mais conhecidos,

Serão o julgamento dos vivos e dos mortos.

Creio no Espírito Santo cujos únicos intérpretes

São o espírito e o coração dos santos e dos profetas.

É um sopro de vida e fecundidade

Que provém da humanidade e do Pai.

Creio na família única e sempre santa

Dos justos que o céu reuniu em seu temor.

Creio na unidade do símbolo, do lugar,

Do pontífice e do culto na honra de um só Deus.

Creio que, em nos transformando, a morte nos renove,

E que em nós, como em Deus, a vida é eterna.

XIII. O NÚMERO TREZE

O treze é o número da morte e o do nascimento; é o da propriedade e da herança, da sociedade e da família, da guerra e dos tratados.

A sociedade tem por bases as trocas do direito, do dever e da fé mútua.

O direito é a propriedade; a troca, a necessidade; a boa fé, o dever.

Aquele que quer receber mais do que dá ou que quer receber sem dar é um ladrão.

A propriedade é o direito de dispor de uma parte da fortuna comum; não é nem o direito de destruição nem o direito de seqüestro.

Destruir ou seqüestrar o bem público não é possuir, é roubar.

Digo bem público, porque o verdadeiro proprietário de todas as coisas é Deus, que quer que tudo seja de todos. O que quer que façais, não levareis convosco ao morrer nenhum dos bens deste mundo. Ora, o que vos deve ser tomado um dia não vos pertence realmente. Foi apenas um empréstimo.

Quanto ao usufruto, é o resultado do trabalho; mas o próprio trabalho não é uma garantia segura de posse, e a guerra pode vir, pela devastação ou pelo incêndio, deslocar a propriedade.

Fazei, pois, um bom uso das coisas que perecem, vós que perecereis antes delas!

Levai em consideração que o egoísmo provoca o egoísmo e que a imoralidade do rico corresponderá a crimes dos pobres.

O que quer o pobre, se é honesto?

Quer trabalho. Usai vossos direitos, mais fazei vosso dever: o dever do rico é expandir a riqueza; o bem que não circula está morto, não entesoureis a morte.

Um sofista disse: A propriedade é o roubo. E queria sem dúvida falar da propriedade absorvida, subtraída à troca, desviada da utilidade COMUM.

Se esse era seu pensamento, ele poderia ir mais longe e dizer que tal supressão da vida pública é um verdadeiro assassínio.

É o crime do açambarcamento, que o instinto público sempre viu como um crime de lesa-majestade humana.

A família é uma associação natural que resulta do casamento.

O casamento é a união de dois seres que o amor uniu e que se prometem um devotamento mútuo no interesse dos filhos que podem nascer.

Dois esposos que têm um filho e se separam são ímpios. Será que querem executar o julgamento de Salomão e separar também o filho?

Prometer-se um amor eterno é puerilidade: o amor sexual é uma emoção sem dúvida divina, mas acidental, involuntária e transitória; mas a promessa do devotamente recíproco é a essência do casamento e o princípio da família.

A sanção e a garantia dessa promessa devem ser uma confiança absoluta.

Todo ciúme é uma suspeita, e toda suspeita é um ultraje.

O verdadeiro adultério é o da confiança: a mulher que se queixa de seu marido perto de outro homem; o homem que confia a outra mulher, que não a sua, as aflições ou as esperanças de seu coração, esses traem verdadeiramente a fé conjugal.

As surpresas dos sentidos só são infidelidades por causa dos arrebatamentos do coração que se abandona mais ou menos ao reconhecimento do prazer. Afora isso, são faltas humanas, de que é preciso envergonhar-se e que se deve esconder: são indecências que é preciso evitar afastando as ocasiões, mas que nunca se deve procurar surpreender; os bons costumes são a proscrição do escândalo.

Todo escândalo é uma torpeza. Não se é indecente porque tem-se órgãos que o pudor não nomeia; mas se é obsceno quando são mostrados.

Maridos, escondei as chagas de vossa vida a dois; não desnudeis vossas mulheres perante o escárnio público!

Mulheres, não exibais as misérias do leito conjugal: seria vos ínscreverdes na opinião pública como prostituídas.

É preciso uma elevada dignidade de coração para conservar a fé conjugal: é um pacto de heroismo que somente as grandes almas podem compreender em toda a extensão.

Os casamentos que são rompidos não são casamentos, são acasalamentos.

No que se pode transformar uma mulher que abandona o marido? Não é mais esposa, não é viúva; o que é então? É uma apóstata da honra, que é forçada a ser licenciosa, porque não é nem virgem nem livre.

Um marido que abandona a mulher a prostitui e merece o nome infame que é dado aos amantes das jovens perdidas.

O casamento é sagrado, indissolúvel, quando existe realmente.

Mas só pode existir para seres de elevada inteligência e nobre coração.

Os animais não se casam, e os homens que vivem como animais sofrem as fatalidades de sua natureza.

Fazem sem cessar tentativas para agir racionalmente. Suas promessas são tentativas e simulacros de promessas; seus casamentos, tentativas e simulacros de casamento; seus amores, tentativas e simulacros de amor. Quereriam sempre e não querem nunca; começam sempre e não terminam nunca. Para tais pessoas, as leis só se aplicam pela repressão.

Tais seres podem ter uma ninhada, mas nunca têm uma família: o casamento, a família são direitos do homem perfeito, do homem emancipado, do homem inteligente e livre.

Por isso, consultar os anais dos tribunais e lede a história dos parricidas.

Erguei o véu negro de todas estas cabeças cortadas e perguntai-lhes o que pensaram do casamento e da família, que leite sugaram, que carinhos as enobreceram… Depois tremei, vós todos que não dais a vossos filhos o pão da inteligência e do amor, vós todos que não sancionais a autoridade paterna pela virtude do bom exemplo…

Esses miseráveis eram órfãos pelo espírito e pelo coração e vingaram-se de seu nascimento!…

Vivemos num século em que mais do que nunca a família é desconhecida no que tem de augusta e sagrada: o interesse material mata a inteligência e o amor; as lições da experiência são desprezadas, regateia-se as coisas de Deus. A carne insulta o espírito, a fraude ri na cara da lealdade. Quanto mais ideal, mais justiça: a vida humana ficou órfã dos dois lados.

Coragem e paciência! Este século irá para onde devem ir todos os culpados. Vede como é triste! O tédio é o véu negro de sua cabeça… a carroça anda, e a multidão segue estremecendo…

Logo, mais um século será julgado pela história, e será escrito num túmulo de ruínas: Aqui jaz o século parricida! o século carrasco de Deus e de seu Cristo!

Na guerra tem-se o direito de matar para não morrer: mas na batalha da vida, o mais sublime dos direitos é o de morrer para não matar.

A inteligência e o amor devem resistir à opressão até a morte, nunca até o assassínio.

Homem de coração, a vida daquele que te ofendeu está em tuas mãos, pois ele é senhor da vida dos outros, o qual não faz questão da sua. Massacra-o com tua grandeza: perdoa-o!

– Mas será proibido matar o tigre que nos ameaça?

– Se for um tigre com rosto humano, é mais belo deixar-se devorar, no entanto, aqui, a moral nada prescreve.

– Mas e se o tigre ameaça meus filhos?

– A própria natureza vos responderá.

Harmódio e Aristogiston tinham festas e estátuas na Grécia antiga. A Bíblia consagrou os nomes de Judite e Aud e uma das mais sublimes figuras do livro santo, Sansão cego e acorrentado que sacode as colunas do templo e grita: Que eu morra com os filisteus!

Acreditai, entretanto, que, se Jesus, antes de morrer, tivesse ido a Roma apunhalar Tibério, teria salvado o mundo como fez ao perdoar seus carrascos e até mesmo ao morrer por Tibério?

Brutus, ao matar César, salvou a liberdade romana? Ao matar Calígula, Quéreas apenas deu lugar a Cláudio e a Nero. Protestar contra a violência com violência é justificá-la e forçá-la a se reproduzir.

Mas triunfar sobre o mal pelo bem, sobre o egoísmo pela abnegação, sobre a ferocidade pelo perdão: é o segredo do cristianismo e da vitória eterna.

Eu vi o lugar em que a terra sangrava ainda pelo assassínio de Abel e nesse lugar passava um regato de pranto.

E miríades de homens avançavam conduzidos pelos séculos, deixando cair lágrimas no regato.

E a eternidade, agachada e morna, contemplava as lágrimas que caíam, contava-as uma a uma, e nunca havia o suficiente para lavar uma mancha de sangue.

Mas, entre duas multidões e duas épocas, veio o Cristo, pálida e resplandecente figura.

E, na terra do sangue e das lágrimas, plantou a vinha da fraternidade, e as lágrimas e o sangue aspirados pelas raizes da árvore divina tornaram-se a seiva deliciosa da uva que deve embriagar de amor os filhos do futuro.

XIV. O NÚMERO CATORZE

Catorze é o número da fusão, da associação e da unidade universal, e é em nome do que representa que faremos aqui um apelo às nações, a começar pela mais antiga e mais santa.

Filhos de Israel, por que, em meio ao movimento das nações, continuais imóveis como se guardásseis os túmulos de vossos pais?

Vossos pais não estão mais aqui, ressuscitaram: pois o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó não é o Deus dos mortos!

Por que imprimis sempre a vossa geração a marca sangrenta do cutelo?

Deus não quer mais separar-vos dos outros homens; sede nossos irmãos, e comei conosco hóstias pacíficas nos altares que o sangue nunca conspurca.

A lei de Moisés está cumprida: lede vossos livros e compreendei que fostes um povo cego e duro, como dizem todos os vossos profetas.

Mas fostes também um povo corajoso e perseverante na luta.

Filhos de Israel, tornai-vos filhos de Deus: compreendei e amai!

Deus apagou de vossa fronte a marca de Caim, e os povos ao vos ver passar não dirão mais: Aí estão os judeus! gritarão: Abram alas para nossos irmãos, abram alas para os que nos precederam na fé.

E iremos todos os anos comemorar convosco a páscoa na nova Jerusalém.

E descansaremos debaixo de vossa videira e de vossa figueira; pois sereis ainda amigos do viajante, em memória de Abraão, de Tobias e dos anjos que os visitavam.

E em memória daquele que disse: Quem ao menor dentre vós recebe a mim me recebe.

Pois doravante não recusareis mais um asilo em vossa casa e em vosso coração a vosso irmão José que vendesses às nações.

Porque ele se tornou poderoso na terra do Egito onde procuráveis pão durante os dias de esterilidade.

E ele recordou-se de seu pai Jacó e de Benjamim, seu jovem irmão; e perdoa vossa inveja e vos abraça chorando.

Filhos dos crentes, cantaremos convosco: não existe outro Deus senão Deus e Maomé é seu profeta.

Dizei com os filhos de Israel: Nenhum Deus existe senão Deus e Moisés é seu profeta!

Dizei com os cristãos: Não existe outro Deus senão Deus e Jesus Cristo é seu profeta!

Maomé é a sombra de Moisés. Moisés é o precursor de Jesus.

O que é um profeta? É um representante da humanidade que procura Deus. Deus é Deus, o homem é o profeta de Deus quando faz que acreditemos em Deus.

A Bíblia, o Alcorão e o Evangelho são três traduções diferentes do mesmo livro. Há somente uma lei como há somente um Deus.

Ó mulher idealizada, ó recompensa dos eleitos, és mais bela do que Maria?

Ó Maria, filha do Oriente, casta como o puro amor, grande como as aspirações maternais, vem ensinar aos filhos do Islã os mistérios do céu e os segredos da beleza.

Convida-os para o festim da nova aliança, lá, em três tronos resplandecentes de pedrarias, três profetas estarão sentados.

A árvore tuba fará de seus galhos recurvados um dossel para a mesa celeste.

A esposa será branca como a lua e rubra como o sorriso da manhã.

Todos os povos acorrerão para vê-Ia e não temerão mais passar Al Sirah, pois, sobre essa ponte cortante como uma lâmina de barbear, o Salvador estenderá sua cruz e virá estender a mão aos que vacilarem, e aos que caírem a esposa estenderá seu véu perfumado e os trará em sua direção.

Povos, batei palmas e aplaudi o último triunfo do amor! Somente a morte ficará morta e somente o inferno será queimado.

Ó nações da Europa, a quem o Oriente estende as mãos, uni-vos para expulsar os ursos do Norte! Que a última guerra faça triunfar a inteligência e o amor, que o comércio entrelace os braços do mundo e que uma civilização nova, saída do Evangelho armado, reúna todos os rebanhos da terra sob o cajado do mesmo pastor!

Tais serão as conquistas do progresso; tal é o objetivo para o qual nos empurra todo o movimento do mundo.

O progresso é o movimento; e o movimento é a vida.

Negar o progresso é afirmar o nada e deificar a morte.

O progresso é a única resposta que a razão pode opor às objeções relativas à existência do mal.

Nada está bem, mas tudo estará bem um dia. Deus inicia e acabará sua obra.

Sem o progresso, o mal seria imutável como Deus!

O progresso explica as ruínas e consola Jeremias que chora.

As nações sucedem-se como os homens e nada é estável porque tudo caminha em direção da perfeição.

O grande homem que morre lega a sua pátria o fruto de seu trabalho; a grande nação que se extingue na terra transfigura-se numa estrela para iluminar as obscuridades da história.

O que ele escreveu por suas ações fica gravado no livro eterno; acrescentou uma página à bíblia do gênero humano.

Não digais que a civilização é má; pois assemelha-se ao calor úmido que amadurece as colheitas, desenvolve rapidamente os princípios da vida e os princípios da morte, mata e vivifica.

É como o anjo do julgamento que separa os maus dos bons.

A civilização transforma em anjos de luz os homens de boa vontade e coloca o egoísta abaixo da besta; é a corrupção dos corpos e a emancipação das almas.

O mundo ímpio dos gigantes elevou ao céu a alma de Henoch; acima das bacanais da Grécia primitiva eleva-se o espírito harmonioso de Orfeu.

Sócrates e Pitágoras, Platão e Aristóteles resumem, ao explicá-las, todas as aspirações do mundo antigo; as fábulas de Homero permanecem mais verdadeiras do que a história, e só nos restam das grandezas de Roma os escritos imortais que elaborou o século de Augusto.

Assim, Roma talvez só tenha abalado o mundo com suas guerreiras convulsões para gerar seu Virgílio.

O cristianismo é o fruto das meditações de todos os sábios do Oriente que revivem em Jesus Cristo.

Assim, a luz dos espíritos nasceu onde nasce o sol do mundo; o Cristo conquistou o Ocidente, e os doces raios do sol da Ásia tocaram os gelos do Norte.

Movidos por esse calor desconhecido, formigueiros de homens novos espalharam-se por um mundo exaurido; as almas dos povos mortos brilharam sobre os povos rejuvenescidos e aumentaram neles o espírito de vida.

Há no mundo uma nação que se chama franqueza e liberdade, pois essas duas palavras são sinônimos do nome França.

Essa nação sempre foi, de algum modo, mais católica do que o papa e mais protestante do que Lutero.

A França das cruzadas, a França dos trovadores e das canções, a França de Rabelais e de Voltaire, a França de Bossuet e de Pascal, ela é a síntese dos povos; ela consagra a aliança da razão e da fé, da revolução e do poder, da crença mais terna e da dignidade humana mais altiva.

Por isso, vede como ela caminha, como se agita, como luta, como cresce!

Freqüentemente enganada e ferida, nunca batida, entusiasta com seus triunfos, audaciosa em seus reveses, ela ri, canta, morre e ensina ao mundo a fé na sua imortalidade.

A velha guarda não se rende, mas também não morre. Confiai no entusiasmo de nossos filhos, que querem ser um dia, eles também, soldados da velha guarda!

Napoleão não é mais um homem, é o próprio gênio da França, é o segundo salvador do mundo, e também deu como símbolo a seus apóstolos a cruz!

Santa Helena e o Gólgota são os marcos da nova civilização, são os pilares de uma imensa arcada que o arco-íris do último dilúvio forma e que lança uma ponte entre dois mundos.

E pensaríeis que a espora de um tártaro quebrará um dia o pacto de nossas glórias, o testamento de nossa liberdade!

Dizei antes que voltaremos a ser crianças e retornaremos ao seio de nossas mães!

Caminha!, caminha!, diz a voz divina a Aasveros. Avança! avança! grita para a França o destino do mundo!… E para onde vamos? Para o desconhecido, para o abismo talvez; não importa! Mas para o passado, para os cemitérios do esquecimento, mas para os cueiros que nossa própria infância rasgou, mas para a imbecilidade e a ignorância das primeiras idades… nunca! nunca!

XV. O NÚMERO QUINZE

Quinze é o número do antagonismo e da catolicidade.

O cristianismo divide-se agora em duas Igrejas: a Igreja civilizadora e a Igreja bárbara, a Igreja progressista e a Igreja estacionária.

Uma é ativa, a outra é passiva; uma sempre condenou as nações e os governos, uma vez que os reis a temem; a outra submeteu-se a todos os despotismos e só pode ser um instrumento de servidão.

A Igreja ativa realiza Deus pelos homens e só ela crê na divindade do Verbo humano, intérprete do Verbo de Deus.

O que é, afinal de contas, a infalibilidade do papa, senão a autocracia da inteligência confirmada pelo sufrágio universal da fé?

A esse respeito, dir-se-á, o papa deveria ser o primeiro gênio de seu século. Por quê? É melhor, na realidade, que ele seja um espírito comum. Sua supremacia não é mais divina, porque é, de algum modo, mais humana.

Os acontecimentos não falam mais alto do que os rancores e as ignorâncias irreligiosas? Não vedes a França católica sustentar com uma mão o papado desfalecido e com a outra segurar a espada para combater na liderança do exército do progresso?

Católicos, israelitas, turcos, protestantes já combateram sob a mesma bandeira; o crescente uniu-se à cruz latina, e juntos lutamos contra a invasão dos bárbaros e contra sua embrutecida ortodoxia.

É para sempre um fato consumado. Ao admitir dogmas novos, a cátedra de São Pedro acaba de se pronunciar solenemente progressiva.

A pátria do cristianismo católico é a da ciência e das belas-artes, e o Verbo eterno do Evangelho vivo e encarnado numa autoridade visível é ainda a luz do mundo.

Silêncio pois aos fariseus da nova sinagoga! Silêncio às tradições odiosas da escola, ao presbiterianismo arrogante, ao jansenismo absurdo e a todas estas vergonhosas e supersticiosas interpretações do dogma eterno, tão justamente estigmatizadas pelo gênio impiedoso de Voltaire!

Voltaire e Napoleão morreram católicos. E será que sabeis o que deve ser o catolicismo do futuro?

Será o dogma evangélico posto à prova como ouro pela crítica dissolvente de Voltaire, e realizado no governo do mundo pelo gênio de um Napoleão cristão!

Os que não quiserem caminhar, os acontecimentos os arrastarão ou passarão sobre eles!

Imensas calamidades podem ainda pesar sobre o mundo. Os exércitos do Apocalipse um dia talvez desencadearão os quatro flagelos. O santuário será depurado. A santa e severa pobreza enviará seus apóstolos para sustentar todo aquele que cambalear, reanimar aquele que estiver fatigado e espalhar o óleo santo em todas as feridas!

O despotismo e a anarquia, esses dois monstros ávidos de sangue, dilacerar-se-ão e aniquilar-se-ão um ao outro depois de serem mutuamente sustentados, por pouco tempo, pelo próprio entrelaçamento de sua luta.

E o governo do futuro será aquele cujo modelo é mostrado na natureza pela família, no ideal religioso pela hierarquia dos pastores. Os eleitos devem reinar com Jesus Cristo durante mil anos, dizem as tradições apostólicas: ou seja, durante uma seqüência de séculos, a inteligência e o amor dos homens de elite dedicados aos encargos do poder administrarão os interesses e os bens da família universal.

Então, segundo a promessa do Evangelho só haverá um rebanho e um pastor.

XVI. O NÚMERO DEZESSEIS

Dezesseis é o número do templo.

Digamos o que será o templo do futuro.

Quando o espírito de inteligência e de amor tiver se revelado, toda trindade manifestar-se-á em sua verdade e em sua glória.

A humanidade transformada em rainha e, como que ressuscitada, terá a graça da infância em sua poesia, o vigor da juventude em sua razao e a sabedoria da idade madura em suas obras.

Todas as formas que o pensamento divino revestiu sucessivamente renascerão imortais e perfeitas.

Todos os traços que a arte sucessiva das nações tinha esboçado reunir-se-ão e formarão a imagem completa de Deus.

Jerusalém reconstruirá o templo de Jeová de acordo com o modelo profetizado por Ezequiel; e o Cristo, novo e eterno Salomão, nele cantará, debaixo de lambris de cedro e de ciprestes, suas núpcias com a santa liberdade, a jovem esposa do cântico.

Mas Jeová terá largado seu raio para abençoar com as duas mãos o noivo e a noiva: aparecerá sorridente entre os dois esposos e alegrar-se-á por ser chamado de pai.

Entretanto, a poesia do Oriente, em suas mágicas lembranças, ainda o chamará de Brama e Júpiter. A índia ensinará a nossos climas encantados as fábulas maravilhosas de Vishnu, e experimentaremos na fronte ainda ensangüentada de nosso Cristo bem-amado a tripla coroa de pérolas da mística trimurti. Vênus purificada sob o véu de Maria não mais chorará seu Adônis.

O esposo ressuscitou para não mais morrer, e o javali infernal encontrou a morte em sua passageira vitória.

Reerguei-vos, templos de Delfos e Éfeso! O deus da luz e das artes tornou-se o Deus do mundo, e o verbo de Deus concorda em ser chamado de Apolo! Diana não reinará mais como viúva nos campos solitários da noite; seu crescente prateado está agora sob os pés da esposa.

Mas Diana não foi vencida por Vênus; seu Endimião acaba de despertar, e a virgindade vai orgulhar-se de ser mãe!

Sai da tumba, ó Fídias, e alegra-te com a destruição de teu primeiro Júpiter: é agora que vais gerar um Deus!

Ó Roma! Que teus templos reergam-se ao lado de tuas basílicas; sê ainda a rainha do mundo e panteão das nações; que Virgílio seja coroado no capitólio pelas mãos de São Pedro; e que o Olimpo e o Carmelo unam suas divindades sob o pincel de Rafael!

Transfigurai-vos, antigas catedrais de nossos pais; arremessei até as nuvens vossas flechas cinzeladas e vivas, e que a pedra conte por figuras animadas as sombrias lendas do Norte, alegradas pelos apólogos dourados e maravilhosos do Alcorão!

Que o Oriente adore Jesus Cristo em suas mesquitas, e que nos minaretes de uma nova Santa Sofia a cruz se eleve em meio ao crescente!

Que Maomé liberte a mulher para dar ao verdadeiro crente as huris com que tanto sonhou, e que os mártires do Salvador ensinem castas carícias aos belos anjos de Maomé.

Toda a terra revestida com os ricos ornamentos que todas as artes lhe bordaram será então um templo magnífico, cujo padre eterno será o homem!

Tudo o que foi verdadeiro, tudo o que foi belo, tudo o que foi doce nos séculos passados reviverá gloriosamente nessa transfiguração do mundo.

E a forma bela continuará inseparável da idéia verdadeira, como o corpo será um dia inseparável da alma, quando a alma, tendo alcançado todo o seu poder, terá feito para si um corpo à sua imagem.

Esse será o reino do céu sobre a terra, e os corpos serão os templos da alma, da mesma forma que o universo regenerado será o templo de Deus.

E os corpos e as almas, e a forma e o pensamento, e o universo inteiro serão a luz, o Verbo e a revelação permanente e visível de Deus. Amém! Assim seja!

XVII. O NÚMERO DEZESSETE

Dezessete é o número da estrela; é o da inteligência e do amor.

Inteligência guerreira, audaciosa, cúmplice do divino Prometeu, primogênita de Lúcifer, louvor a ti em tua audácia! Quiseste saber para ter, desafiaste todos os trovões e afrontaste todos os abismos!

Inteligência, tu a quem os pobres pecadores amaram até o delírio, até o escândalo, até a reprovação! Direito divino do homem, essência e alma da liberdade, louvor a ti! Pois perseguiram-te pisoteando, por ti, todos os sonhos mais caros de sua imaginação, os fantasmas mais amados de seu coração!

Por ti foram repelidos e proscritos; por ti suportaram a prisão, o desenlace, a fome, a sede, o abandono daqueles que amavam e as sombrias tentações do desespero! Eras o direito deles, e eles conquistaram-te! Agora eles podem chorar e crer, podem submeter-se e rezar!

Caim arrependido teria sido maior do que Abel: é o legítimo orgulho satisfeito que tem o direito de se fazer humilde!

Creio porque sei por que e como é preciso crer; creio porque amo e porque não temo mais nada. Amor! amor! redentor e reparador sublime; tu que fazes tanta felicidade de tantas torturas, tu, o sacrificador do sangue e das lágrimas, tu que és a própria virtude e o salário da virtude; força da resignação, liberdade da obediência, alegria das dores, vida da morte, louvor, louvor e glória a ti! Se a inteligência é uma lâmpada, és a sua chama; se é o direito, és o dever; se é a nobreza, és a felicidade! Amor pleno de orgulho e pudor nos mistérios, amor divino, amor oculto, amor insano e sublime, Titã que toma o céu com duas mãos e que o força a descer, último e inefável segredo da viuvez cristã, amor eterno, amor infinito e ideal que seria suficiente para criar mundos, amor! amor! bênção e glória a ti! Glória às inteligências que se encobrem para não ofender os olhos doentes! Glória ao direito que se transforma inteiramente em dever e que se torna a devoção! às almas viúvas que amam e consumam-se sem serem amadas! aos que sofrem e não fazem nada sofrer, aos que perdoam os ingratos, aos que amam seus inimigos! Oh! felizes sempre, felizes mais do que nunca os que se empobrecem e que se esgotam para se dar! Felizes as almas que fazem sempre tua paz! Felizes os corações puros e simples que não se acham melhor do que ninguém! Humanidade minha mãe, humanidade filha e mãe de Deus, humanidade concebida sem pecado, Igreja universal, Maria! Feliz de quem tudo ousou para te conhecer e te entender, e de quem está pronto a tudo sofrer para te servir e te amar!

XVIII. O NÚMERO DEZOITO

Esse número é o do dogma religioso, que é toda poesia e todo mistério.

O Evangelho diz que, quando da morte do Salvador, o véu do templo rasgou-se, porque essa morte manifestou o triunfo da devoção, o milagre da caridade, o poder de Deus no homem, a humanidade divina e a divindade humana, o último e o mais sublime dos arcanos, a última palavra de todas as iniciações.

Mas o Salvador sabia que não seria compreendido a princípio, e disse: Não suportaríeis agora toda a luz de minha doutrina; mas, quando se manifestar o espírito de verdade, ele vos ensinará toda verdade e sugerirá o sentido do que eu vos disse.

Ora, o espírito de verdade é o espírito de ciência e de inteligência, o espírito de força e de conselho.

Foi esse espírito que se manifestou solenemente na Igreja romana, quando ela declarou nos quatro artigos do decreto de 12 de dezembro de 1845:

1º Que, se a fé for superior à razão, a razão deve apoiar as inspirações da fé;

2º Que a fé e a ciência tem cada uma seu domínio separado, e que uma não deve usurpar as funções da outra;

3º Que é próprio da fé e da graça não enfraquecer, mas, ao contrário, afirmar e desenvolver a razão;

4º Que o concurso da razão, que examina não as decisões da fé mas as bases naturais e racionais da autoridade que decide, longe de prejudicar a fé, não poderia senão ser-lhe útil; em outras palavras, que a fé, perfeitamente racional em seus princípios, não deve temer, mas deve, ao contrário, desejar o exame sincero da razão.

Semelhante decreto é toda uma revolução religiosa acabada, e a inauguração do Espírito Santo na terra.

XIX. O NÚMERO DEZENOVE

É o número da luz.

É a existência de Deus provada pela própria idéia de Deus.

Ou é preciso dizer que o Ser imenso é um túmulo universal, ou que se move automaticamente, uma forma sempre morta e cadavérica, ou é preciso admitir o princípio absoluto da inteligência e da vida.

A luz universal está morta ou viva? Fatalmente dedicada à obra da destruição ou providencialmente dirigida para a criação universal?

Se Deus não existe, a inteligência é apenas uma decepção pois ela carece de absoluto e seu ideal é uma mentira.

Sem Deus, o ser é um nada que se afirma, e a vida, uma morte que se disfarça.

A luz é uma noite sempre enganada pela miragem dos sonhos.

O primeiro e o mais essencial ato de fé é pois este.

O Ser é, e o ser do ser, a verdade do ser é Deus.

O Ser é vivo com inteligência, e a inteligência viva do Ser absoluto é Deus.

A luz é real e vivificante; ora, a realidade e a vida de toda luz é Deus.

O Verbo da razão universal é uma afirmação e não uma negação.

Cegos os que não vêem que a luz física é apenas o instrumento do pensamento!

Somente o pensamento vê a luz e a produz empregando-a em benefício próprio.

A afirmação do ateísmo é o dogma da noite eterna; a afirmação de Deus é o dogma da luz!

Vamos parar aqui, no décimo nono número, embora o alfabeto sagrado tenha vinte e duas letras; as dezenove primeiras são as chaves da teologia oculta. As outras são as chaves da natureza; voltaremos a elas na terceira parte desta obra.

Resumamos o que dissemos de Deus citando uma bela evocação emprestada da liturgia israelita. É uma página do Kether-Malkuth, poema cabalístico do rabino Salomão, filho de Gabirol.

“Sois um, o começo de todos os números, o fundamento de todos os edifícios; sois um e, no segredo de vossa unidade, os homens mais sábios perdem-se porque não a conhecem. Sois um, e vossa unidade nunca diminui, nem aumenta, nem sofre nenhuma alteração. Sois um, mas não como o um em matéria de cálculo, pois vossa unidade não admite nem multiplicação, nem mudança, nem fórmula. Sois um, para quem nenhuma de minhas fantasias pode fixar definição: eis por que vigiarei minha conduta, evitando cometer faltas com a língua. Sois um enfim, cuja excelência é tão elevada que não pode cair de maneira alguma, e não como em um que pode deixar de ser.

“Sois existente; entretanto, o entendimento e a vista dos mortais não podem atingir vossa existência nem colocar em vós o onde, o como e o porquê. Sois existente, mas em vós mesmo, uma vez que outro não pode existir convosco. Sois existente desde antes do tempo e em lugar algum. Sois enfim existente e vossa existência é tão oculta e tão profunda que ninguém pode descobri-Ia ou penetrar seu segredo.

“Sois vivo, mas não desde um tempo conhecido e fixo; sois vivo, mas não por um espírito e uma alma; pois sois a alma de todas as almas. Sois vivo, mas não como as vidas dos mortais, que são comparadas a um sopro, e cujo fim será o alimento dos vermes. Sois vivo, e aquele que puder atingir vossos mistérios desfrutará as delícias eternas e viverá para sempre.

“Sois grande, e perto de vossa grandeza todas estas grandezas se curvam, e tudo o que há de mais excelente torna-se defeituoso. Sois grande, acima de qualquer imaginação, e elevai-vos acima de todas as hierarquias celestes. Sois grande, acima de toda grandeza, e sois exaltado acima de qualquer louvor. Sois forte, e nenhuma de vossas criaturas fará as obras que fazeis e nem sua força poderá ser comparada à vossa. Sois forte, e é a vós que pertence essa força invencível que não muda nem se altera nunca. Sois forte, e por vossa magnanimidade perdoais no momento de vossa mais ardente cólera, e mostrai-vos paciente para com os pecadores. Sois forte, e vossas misericórdias que sempre existiram estendem-se para todas as vossas criaturas. Sois a luz eterna que as almas puras verão e que a nuvem dos pecados ocultará aos olhos dos pecadores. Sois a luz que é oculta neste mundo e visível no outro, onde a glória do Senhor se mostra. Sois soberano, e os olhos do entendimento que desejam vervos estão inteiramente espantados por só poderem atingir de vós uma parte e nunca o todo. Sois o Deus dos deuses, testemunham-no todas vossas criaturas; e em honra desse grande nome todas devem render-vos culto. Sois Deus, e todas as criaturas são vossas servidoras e vossas adoradoras; vossa glória não é embaçada mesmo que outros sejam adorados, porque a intenção deles é a de se dirigir a vós; são como cegos, cujo objetivo é seguir o grande caminho, e perdem-se. Um afoga-se num poço e o outro cai numa fossa; todos, em geral, acreditam ter alcançado seus desejos e, no entanto, cansaram-se em vão. Mas vossos servidores são como clarividentes que andam num caminho seguro, e que dele nunca se afastam, nem à direita, nem à esquerda, até que entrem no adro do palácio do rei. Sois Deus que sustentais por vossa deidade todos os seres e que socorreis por vossa unidade todas as criaturas. Sois Deus, e não há diferença entre vossa deidade, vossa unidade, vossa eternidade e vossa existência; pois tudo é um mesmo mistério; e, embora os nomes variem, tudo retorna ao mesmo. Sois sábio, e essa ciência, que é a fonte da vida, emana de vós mesmo; e em comparação com vossa ciência os homens mais sábios são estúpidos. Sois sábio e o antigo dos antigos, e a ciência sempre alimentou-se convosco. Sois sábio, e não aprendesses a ciência com ninguém, e tampouco a adquirisses de outro senão de vós. Sois sábio e, como um operário e um arquiteto, reservasses de vossa ciência uma divina vontade, num tempo marcado para atrair o ser do nada; do mesmo modo que a luz que sai dos olhos é atraída de seu próprio centro sem nenhum instrumento ou ferramenta. Essa divina vontade cavou, traçou, purificou e fundiu; ordenou ao nada abrir-se, ao ser aprofundar-se e ao mundo estender-se. Mediu os céus com o palmo, com seu poder reuniu o pavilhão das esferas, com o laço de seu poder cerrou as cortinas das criaturas do universo e, tocando com sua força a ponta da cortina da criação, uniu a parte superior à inferior.”

Extraído das orações do Kippur

Demos a essas ousadas especulações cabalísticas a única forma que lhes convém, a da poesia ou da inspiração do coração.

As almas crentes não precisam das hipóteses racionais contidas nessa explicação nova das figuras da Bíblia, mas os corações sinceros e afligidos pela dúvida, e que a crítica do século dezoito atormenta, compreenderão ao lê-la que a própria razão sem a fé pode encontrar no livro sagrado outra coisa além de escolhos; se os véus com que os textos divinos são cobertos projetam uma grande sombra, essa sombra é tão maravilhosamente desenhada pelas oposições da luz que se torna a única imagem inteligível de um ideal divino.

Ideal incompreensível como o infinito e indispensável como a própria essência do mistério.

ARTIGO II

Solução do segundo problema

A VERDADEIRA RELIGIÃO

A religião existe na humanidade como no amor.

É única como ele.

Como ele, existe ou não existe nesta ou naquela alma; mas, seja aceita ou negada, está na humanidade, está, portanto, na vida, está na natureza, é incontestável diante da ciência e mesmo diante da razão.

A verdadeira religião é a que sempre existiu, que existe e que sempre existirá.

Podem-nos dizer que a religião é isto ou aquilo; a religião é o que é. A religião é ela, e as falsas religiões são superstições dela copiadas, dela emprestadas, sombras mentirosas dela própria.

Pode-se dizer da religião o que se diz da arte verdadeira. As tentativas bárbaras de pintura ou escultura são tentativas da ignorância para se chegar à verdade. A arte prova-se por si, brilha com seu próprio esplendor, é única e eterna como a beleza.

A verdadeira religião é bela, e é por esse caráter divino que se impõe aos respeitos da ciência e ao assentimento da razão.

A ciência não poderia, sem temeridade, afirmar ou negar as hipóteses do dogma que são verdades para a fé; mas pode reconhecer, em certos aspectos, a única religião verdadeira, ou seja, a única que merece o nome de religião, reunindo todos os aspectos que convêm a essa grande e universal aspiração da alma humana.

Uma só coisa evidentemente divina manifestou-se para todos no mundo.

É a caridade.

A obra da verdadeira religião deve ser a de produzir, conservar e difundir o espírito de caridade. Para alcançar esse objetivo, é preciso que ela própria tenha todas as características da caridade, de modo que se possa bem defini-la, nomeando-a de caridade organizada.

Ora, quais são as características da caridade?

É São Paulo quem vai nos ensinar.

A caridade é paciente.

Paciente como Deus, porque ela é eterna como ele. Sofre as perseguições e nunca persegue ninguém.

É benevolente e indulgente, chamando para si os pequenos e não rechaçando os grandes.

Não é invejosa. A quem e a que invejaria, não tem a melhor parte que nunca lhe será tirada?

Não é nem inquieta e nem intrigante.

Não tem orgulho, ambição, egoísmo, ira.

Nunca supõe o mal e nunca triunfa pela injustiça, pois põe toda sua alegria na verdade.

Suporta tudo sem jamais tolerar o mal.

Crê em tudo, sua fé é simples, submissa, hierárquica e universal.

Sustenta tudo, e nunca impõe fardos que não carregasse antes.

A religião é paciente, é a religião dos grandes trabalhadores do pensamento: é a religião dos mártires.

É benevolente como o Cristo e os apóstolos, como os Vicentes de Paulo e os Fenelons.

Não deseja nem as dignidades nem os bens da terra. É a religião dos pais do deserto, de São Francisco de Assis e de São Bruno, das irmãs de caridade e dos irmão de São João de Deus.

Não é nem inquieta nem intrigante, ela reza, faz o bem e espera. É humilde, é doce, só inspira a devoção e o sacrifício. Tem, enfim, todas as características da caridade, porque é a própria caridade.

Os homens, ao contrário, são impacientes, perseguidores, invejosos, cruéis, ambiciosos, injustos e mostram-se como tais em nome dessa religião que puderam caluniar, mas que nunca obrigarão a mentir. Os homens passam, e a verdade é eterna.

Filha da caridade e criando por sua vez a caridade, a verdadeira religião é essencialmente realizadora; acredita nos milagres da fé, porque os cumpre todos os dias quando faz a caridade. Uma religião que faz a caridade pode vangloriar-se de realizar todos os sonhos do amor divino. Assim, a fé da Igreja hierárquica transforma o mistério em realismo pela eficácia de seus sacramentos. Não mais signos, não mais figuras que não tenham sua força na graça e que não dêem realmente o que prometem. A fé anima tudo, torna tudo de algum modo visível e palpável; as próprias parábolas de Jesus Cristo tomam um corpo e uma alma. Mostra-se em Jerusalém a casa do mau rico. Os simbolismos esparsos das religiões primitivas, abandonados pela ciência e privados da vida da fé, assemelhavam-se a essas ossadas embranquecidas que cobriam o campo de Ezequiel. O espírito do Salvador, o espírito de fé, o espírito de caridade sopraram esse pó, e tudo o que estava morto recuperou uma vida tão real que não se reconhece mais nesses vivos de hoje os cadáveres de ontem.

 

Grande Pantáculo tirado da visão de São João

E por que seriam reconhecidos, uma vez que o mundo renovou-se, uma vez que São Paulo queimou no Éfeso os livros dos hierofantes. São Paulo era pois um bárbaro, e não estava cometendo um atentado contra a ciência? Não, mas ele queimava os sudários dos ressuscitados para fazê-los esquecer a morte. Por que então lembramos hoje as origens cabalísticas do dogma? Por que então lembramos hoje as origens cabalísticas do dogma? Por que relacionamos as figuras da Bíblia com as alegorias de Hermes? Será para condenar São Paulo, para trazer a dúvida aos crentes? Certamente não, pois os crentes não necessitam de nosso livro, não o lerão, não o quererão compreender. Mas queremos mostrar à multidão inumerável dos que duvidam que a fé relaciona-se à razão de todos os séculos, à ciência de todos os sábios. Queremos forçar a liberdade humana e respeitar a autoridade divina, a razão a reconhecer as bases da fé, para que a fé e a autoridade, por sua vez, nunca mais proscrevam nem a liberdade nem a razão.

ARTIGO III

Solução do terceiro problema

RAZÃO DOS MISTÉRIOS

Sendo a fé a aspiração ao desconhecido, o objeto da fé é absoluta e necessariamente o mistério.

Para formular suas aspirações, a fé é forçada a emprestar do conhecido aspirações e imagens.

Mas ela especializa o emprego dessas formas ao reuni-las de uma maneira impossível na ordem conhecida. Tal é a profunda razão do aparente absurdo do simbolismo.

Demos um exemplo:

Se a fé dizia que Deus é impessoal, poder-se-ia concluir daí que Deus é apenas uma palavra ou, no máximo, uma coisa.

Se ela dizia que Deus é uma pessoa, o infinito inteligente seria representado sob a forma necessariamente limitada de um indivíduo.

Ela diz Deus é um em três pessoas para exprimir que se concebe em Deus a unidade e o número.

A fórmula do mistério exclui necessariamente a própria inteligência dessa fórmula, na medida em que empresta do Verbo coisas conhecidas, pois se fosse compreendida exprimiria o conhecido e não o desconhecido.

Pertenceria, então, à ciência e não mais à religião, isto é, à fé.

O objeto da fé é um problema de matemática onde o x escapa aos procedimentos de nossa álgebra.

As matemáticas absolutas provam somente a necessidade e, por conseguinte, a existência desse conhecido representado pelo x intraduzível.

Ora, por mais que a ciência avance em seu progresso indefinido, mas sempre relativamente finito, nunca encontrará na língua do finito a expressão completa do infinito. O mistério é, portanto, eterno.

Fazer entrar na lógica do conhecido os termos de uma profissão de fé é fazê-los sair da fé que tem por bases positivas o ilogismo, isto é, a impossibilidade de explicar logicamente o desconhecido.

Para os israelitas, Deus está separado da humanidade, não vive nas criaturas, é um egoísmo infinito.

Para os muçulmanos, Deus é uma palavra diante da qual nos prosternamos sobre a fé de Maomé.

Para os cristãos, Deus revelou-se na humanidade, prova-se pela caridade, reina pela ordem que constitui a hierarquia.

A hierarquia é guardiã do dogma, cuja letra e cujo espírito quer que respeitemos. Os sectários que, em nome de sua razão, ou melhor, de sua desrazão individual, tocaram o dogma, perderam, por esse mesmo fato, o espírito de caridade, excomungaram a si próprios.

O dogma católico, isto é, universal, merece esse belo nome resumindo todas as aspirações religiosas do mundo; ele afirma a unidade de Deus com Moisés e Maomé, reconhece em si a trindade infinita da geração eterna com Zoroastro, Hermes e Platão, concilia com o Verbo único de São João os números vivos de Pitágoras, eis o que a ciência e a razão podem constatar. É portanto diante da própria razão e diante da ciência o dogma mais perfeito, isto é, o mais perfeito que alguma vez se produziu no mundo. Que a ciência e a razão nos concedam isso, não lhes pediremos mais nada.

Substituir o despotismo legítimo da lei pelo arbitrário humano, pôr, em outras palavras, a tirania no lugar da autoridade é obra de todos os protestantismos e de todas as democracias. O que os homens chamam de liberdade é a sanção da autoridade ilegítima ou, antes, a ficção do poder não sancionado pela autoridade.

João Calvino protestava contra as fogueiras de Roma para se dar o direito de queimar Miguel Servet. Todo povo que se libertou de um Carlos I ou de um Luís XVI submeteu-se a um Robespierre ou a um Cromwel, e existe um antipapa mais ou menos absurdo por trás de todos os protestos contra o papado legítimo.

A divindade de Jesus Cristo só existe na Igreja católica, para a qual ele transmite hierarquicamente sua vida e seus poderes divinos. Essa divindade é sacerdotal e real por comunhão, mas fora dessa comunhão toda afirmação da divindade de Jesus Cristo é idolátrica, porque Jesus Cristo não poderia ser um Deus separado.

Pouco importa à verdade católica o número dos protestantes.

Se todos homens fossem cegos, essa seria uma razão para negar a existência do sol?

A razão, protestando contra o dogma, prova suficientemente que não o inventou, mas é forçada a admirar a moral que resulta desse dogma. Ora, se a moral é uma luz, é preciso que o dogma seja um sol, a claridade não vem das trevas.

Entre os abismos do politeísmo e do deísmo absurdo e limitado, só há um meio possível: o mistério da santíssima trindade.

Entre o ateísmo especulativo e o antropomorfismo só há um meio possível: o mistério da encarnação.

Entre a fatalidade imoral e a responsabilidade draconiana que decidiria pela danação de todos os seres, só há um meio possível: o mistério da redenção.

A trindade é a fé.

A encarnação é a esperança.

A redenção é a caridade.

A trindade é a hierarquia.

A encarnação é a autoridade divina da Igreja.

A redenção é o sacerdócio único, infalível, indefectível e católico.

Somente a Igreja católica possui um dogma invariável e encontra-se por sua própria constituição na impossibilidade de corromper a moral; ela não inova, explica. Assim, por exemplo, o dogma da imaculada concepção não é novo, estava inteiramente contido no Théotokon do concílio de Éfeso, e o Théotokon é uma conseqüência rigorosa do dogma católico da encarnação.

Da mesma forma, a Igreja católica não faz excomunhões, ela as declara e só ela as pode declarar, porque é a única guardiã da unidade.

Fora da barca de Pedro, só há o abismo. Os protestantes assemelham-se às pessoas que, cansadas da arfagem, jogar-se-iam na água para evitar o enjôo.

E da catolicidade, tal qual é constituída na Igreja católica, que é preciso dizer o que Voltaire disse de Deus com tanta ousadia.

Se não existisse, seria preciso inventá-la. Mas, se um homem fosse capaz de inventar o espírito de caridade, teria também inventado Deus. A caridade não se inventa, revela-se por suas obras, e é então que se pode gritar com o Salvador do mundo: Felizes os que têm o coração puro, pois verão a Deus!

Entender o espírito de caridade é ter a inteligência de todos os mistérios.

ARTIGO IV

Solução do quarto problema

A RELIGIÃO PROVADA PELAS OBJEÇÕES QUE LHE SÃO OPOSTAS

As objeções que se pode fazer contra a religião podem ser feitas seja em nome da razão, seja em nome da fé.

A ciência não pode negar os fatos da existência da religião, de seu estabelecimento e de sua influência sobre os acontecimentos da história. É proibido a ela tocar no dogma, o dogma pertence inteiramente à fé.

A ciência arma-se comumente contra a religião com uma série de fatos que tem o direito de apreciar, que de fato aprecia com severidade, mas que a religião condena mais energicamente ainda do que a ciência.

Assim fazendo, a ciência dá razão à religião e censura a si própria; carece de lógica, acusa a desordem que toda paixão rancorosa introduz no espírito dos homens e a necessidade incessante que ele tem de ser reerguido e dirigido pelo espírito de caridade.

A razão, por sua vez, examina o dogma e considera-o absurdo.

Mas, se não o fosse, a razão compreendê-lo-ia; se ela o compreendesse, não seria mais a fórmula do desconhecido.

Seria uma demonstração matemática do infinito.

Seria o infinito finito, o desconhecido conhecido, o incomensurável medido, o indizível nomeado.

Isso quer dizer que o dogma só deixaria de ser absurdo diante da razão, para se tornar, diante da fé, da ciência, da razão e do bom senso reunidos, o mais monstruoso e o mais impossível de todos os absurdos.

Restam as objeções da fé dissidente.

Os israelitas, nossos pais em religião, censuram-nos por termos atentado contra a unidade de Deus, por termos mudado uma lei imutável e eterna, por adorarmos a criatura no lugar do criador.

Essas censuras são fundamentadas numa noção perfeitamente falsa do cristianismo.

Nosso Deus é o Deus de Moisés, Deus único, imaterial, infinito, o só adorável e sempre o mesmo.

Como os judeus, acreditamo-lo presente em todos os lugares, mas, como eles deveriam fazer, acredítamo-lo vivo, pensante e amante na humanidade e adoramo-lo em suas obras.

Não mudamos sua lei, pois o decálogo dos israelitas é também a lei dos cristãos.

A lei é imutável, porque está fundamentada em princípios eternos da natureza; mas o culto exigido pelas necessidades do homem pode variar e modificar-se com os homens.

O que o culto significa é imutável, mas o culto modifica-se como as línguas.

O culto é um ensinamento, é uma língua, é preciso traduzi-lo quando as nações não o compreendem mais.

Traduzimos e não destruímos o culto de Moisés e dos profetas.

Adorando Deus na criação, não estamos adorando a própria criação.

Adorando Deus em Jesus Cristo, é somente Deus que adoramos, mas Deus unido à humanidade.

Tornando a humanidade divina, o cristianismo revelou a divindade humana.

O Deus dos judeus era inumano, porque eles não o compreendiam em suas obras.

Somos, portanto, mais israelitas que os próprios israelitas. No que acreditam, acreditamos com eles e melhor que eles. Acusam-nos de estarmos separados dele e são eles, ao contrário, que querem estar separados de nós.

Esperamo-los de coração e braços abertos.

Somos, como eles, discípulos de Moisés.

Como eles, viemos do Egito e detestamos sua servidão. Mas nós estamos na terra prometida, e eles obstinam-se em permanecer e morrer no deserto.

Os muçulmanos são os bastardos de Israel, ou melhor, são seus filhos deserdados, como Esaú.

Sua crença é ilógica, pois admitem que Jesus é um grande profeta, e tratam os cristãos como infiéis.

Reconhecem a inspiração divina de Moisés e não vêem os judeus como irmãos.

Acreditam cegamente em seu cego profeta, o fatalista Maomé, o inimigo do progresso e da liberdade.

Não tiremos, no entanto, de Maomé a glória de ter proclamado a unidade de Deus entre os árabes idólatras.

Encontram-se no Alcorão páginas puras e sublimes.

É lendo essas páginas que se pode dizer com os filhos de Ismael: Não existe outro Deus senão Deus, e Maomé é seu profeta.

Há três tronos no céu para os três profetas das nações; mas, no fim dos tempos, Maomé será substituído por Elias.

Os muçulmanos nada censuram nos cristãos, eles injuriam-nos.

Chamam-nos de infiéis e de giaurs, isto é, cães. Não temos nada a lhes responder.

Não se deve refutar os turcos e os árabes, é preciso instruí-los e civilizá-los.

Restam os cristãos dissidentes, isto é, aqueles que, tendo rompido o laço de união, declaram-se estrangeiros à caridade da Igreja.

A ortodoxia grega, irmã gêmea da Igreja romana, que não cresceu desde sua separação, que não tem mais importância nos faustos religiosos, que, desde Fócio, não inspirou uma única eloqüência; Igreja que se tornou inteiramente temporal e cujo sacerdócio não é mais que uma função regulada pela política imperial do czar de todas as Rússias; múmia curiosa da Igreja primitiva, colorida e dourada com todas as suas lendas e com todos os seus ritos que os popes não compreendem mais; sombra de uma Igreja viva, mas que quis parar quando essa Igreja avançava e que não é mais que uma silhueta apagada e sem cabeça.

Depois, os protestantes, esses eternos reguladores da anarquia, que romperam o dogma e tentam sempre preenchê-lo com raciocínios, como o tonel das Danaides; esses fantasistas religiosos cujas inovações em sua totalidade são negativas, que formularam para uso próprio um desconhecido pretensamente mais conhecido, mistérios mais explicados, um infinito mais definido, uma imensidão mais restrita, uma fé mais duvidosa, que quintessenciaram o absurdo, cindiram a caridade e tomaram atos de anarquia pelos princípios de uma hierarquia para sempre impossível; esses homens que querem realizar a salvação somente pela fé, porque a caridade lhes escapa e que nada mais podem realizar, mesmo sobre a terra, pois seus pretensos sacramentos não são mais que farsas alegóricas, não dão mais a graça, não fazem mais ver a Deus nem tocar em Deus, não são mais, em uma palavra, os signos da onipotência da fé, mas as testemunhas forçadas da impotência eterna da dúvida.

Foi, portanto, contra a própria fé que a reforma protestou. Os protestantes tiveram razão contra o zelo inconsiderado e perseguidor que queria forçar as consciências. Exigiram o direito de duvidar, o direito de ter menos religião ou de não a ter absolutamente; derramaram seu sangue por esse triste privilégio; conquistaram-no, possuem-no, mas não nos tirarão o de lastimá-los e de amá-los. Quando sentirem novamente a necessidade de acreditar, quando seu coração revoltar-se por sua vez contra a tirania de uma razão falseada, quando se cansarem das frias abstrações de seu dogma arbitrário, das vãs observâncias de seu culto sem efeito, quando sua comunhão sem presença real, suas igrejas sem divindade e sua moral sem perdão os aterrorizarem enfim, assim que ficarem doentes da nostalgia de Deus, não se levantarão como o filho pródigo e não virão jogar-se aos pés do sucessor de Pedro dizendo-lhe: Pai, pecamos contra o céu e contra vós, já não somos dignos de ser chamados vossos filhos, mas incluí-nos ao menos entre vossos mais humildes servidores.

Não falaremos da crítica de Voltaire. Esse grande espírito estava dominado por um ardente amor pela verdade e pela justiça, mas faltava-lhe esta retidão do coração que dá a inteligência da fé. Voltaire não podia admitir a fé, porque não sabia amar. O espírito de caridade não se revelou a essa alma sem ternura, e ele criticou amargamente um fogo cujo calor não sentia e uma lâmpada cuja luz não via. Se a religião fosse tal qual viu, teria tido mil vezes razão em atacá-la e seria preciso ajoelhar-se diante do heroismo de sua coragem. Voltaire seria o messias do bom senso, o hércules destruidor do fanatismo. Mas este homem ria demais para compreender aquele que disse: Felizes dos que choram, e a filosofia do riso nunca terá nada em comum com a religião das lágrimas.

Voltaire parodiou a Bíblia, o dogma, o culto, depois ridicularizou, achincalhou, vilipendiou sua paródia.

Apenas aqueles que vêem a religião na paródia de Voltaire podem se ofender com isso. Os voltairianos assemelham-se às rãs da fábula que saltam sobre as vigas e, em seguida, zombam da majestade real. São livres para tomar a viga por um rei, são livres para refazer esta caricatura romana de que, outrora, Tertuliano ria, e que representava o Deus dos cristãos na figura de um homem com cabeça de asno. Os cristãos darão de ombros ao ver essa brejeirice e pedirão a Deus pelos pobres ignorantes que pretendiam insultá-los.

O senhor conde Joseph de Maistre, depois de ter representado, num de seus mais eloqüentes paradoxos, o carrasco como um ser sagrado e como uma encarnação permanente de justiça divina na terra, queria que se erguesse para o ancião de Ferney uma estátua pela mão do carrasco. Existe profundidade nesse pensamento. Voltaire, com efeito, foi também, no mundo, um ser ao mesmo tempo providencial e fatal, dotado de insensibilidade para a realização de suas terríveis funções. Foi, no domínio da inteligência, um executor das grandes obras, um executor armado com a própria justiça de Deus.

Deus enviou Voltaire entre o século de Bossuet e o de Napoleão para aniquilar tudo o que separa esses dois gênios e reuni-los num só.

Era o Sansão do espírito, sempre pronto a sacudir as colunas do templo; mas, para fazê-lo girar, a contragosto, a pedra do moinho do progresso religioso, a Providência parecia ter cegado seu coração.

ARTIGO V

Solução do último problema

SEPARAR A RELIGIÃO DA SUPERSTIÇÃO E DO FANATISMO

A superstição, da palavra latina superstes, sobrevivente, é o símbolo que sobreviveu à idéia, é a forma preferida à coisa, é o rito sem razão, é a fé tornada insensata, porque se isola. E, por conseguinte, o cadáver da religião, a morte da vida, é a inspiração substituída pelo embrutecimento.

O fanatismo é a superstição apaixonada, seu nome vem da palavra fanum, que significa templo, é o templo colocado no lugar de Deus, é a honra do sacerdote substituída pelo interesse humano e temporal do padre, é a paixão miserável do homem explorando a fé do crente.

Na fábula do asno carregado de relíquias, La Fontaine diz-nos que o animal acreditou ser adorado, não nos diz que algumas pessoas acreditaram de fato adorar o animal. Essas pessoas eram os supersticiosos.

Se alguém tivesse rido de suas tolices, teriam-no talvez assassinado, pois da superstição ao fanatismo há um só passo.

A superstição é a religião interpretada pela tolice; o fanatismo é a religião servindo de pretexto à fúria.

Os que confundem proposital e preconceituosamente a própria religião com a superstição e o fanatismo emprestam à tolice suas prevenções cegas e talvez emprestassem ao fanatismo suas injustiças e seus ódios.

Inquisidores ou participantes dos Massacres de Setembro, que importam os nomes? A religião de Jesus Cristo condena e sempre condenou os assassinos.

RESUMO DA PRIMEIRA PARTE EM FORMA DE DIÁLOGO

A FÉ, A CIÊNCIA, A RAZÃO

A CIÊNCIA – Nunca me fareis acreditar na existência de Deus.

A FÉ – Não tendes o privilégio de acreditar, mas nunca me provareis que Deus não existe.

A CIÊNCIA – Para vo-lo provar, é preciso que, em primeiro lugar, eu saiba o que é Deus.

A FÉ – Não o sabereis nunca. Se soubésseis, poderíeis ensinarmo, e, quando eu o soubesse, não mais acreditaria nele.

A CIÊNCIA – Acreditais, então, sem saber em que estais acreditando?

A FÉ – Ali! não joguemos com as palavras. Sois vós quem não sabeis em que eu acredito, precisamente porque vós não o sabeis. Tendes a pretensão de ser infinita? Não sois interrompida a cada instante pelo mistério? O mistério é para vós uma ignorância que reduziria ao nada o finito de vosso saber, se eu não o iluminasse com minhas ardentes inspirações, e quando dizeis: Eu não sei mais, eu gritaria: Quanto a mim, começo a acreditar.

A CIÊNCIA – Mas vossas aspirações e seu objeto são e só podem ser hipóteses para mim.

A FÉ – Sem dúvida, mas são certezas para mim, uma vez que sem essas hipóteses eu duvidaria até mesmo de vossas certezas.

A CIÊNCIA – Mas, se começais onde eu paro, começais temerariamente muito cedo. Meus progressos atestam que eu ando sempre.

A FÉ – Que importam os vossos progressos, se ando sempre na vossa frente?

A CIÊNCIA – Tu, andar! sonhadora da eternidade, desdenhaste demais a terra, teus pés estão dormentes.

A FÉ – Sou carregada por meus filhos!

A CIÊNCIA – São cegos que carregam um outro, cuidado com os precipícios!

A FÉ – Não, meus filhos não são cegos, muito pelo contrário, desfrutam de dupla visão, vêem por teus olhos o que tu podes demonstrar para eles na terra e contemplam, pelos meus, o que lhes mostro no céu.

A CIÊNCIA – O que a razão pensa disso?

A RAZÃO – Penso, ó caras mestras, que poderíeis realizar um apólogo tocante, o do paralítico e o do cego. A ciência censura a fé por não saber andar na terra, e a fé diz que a ciência não vê nada no céu das aspirações e da eternidade. Ao invés de brigarem, ciência e fé deveriam unir-se: que a ciência carregue a fé e a fé console a ciência, ensinando-lhe esperar e amar.

A CIÊNCIA – Essa idéia é bela, mas é uma utopia. A fé dir-me-á absurdos, e eu quero andar sem ela.

A FÉ – O que é que chamais de absurdos?

A CIÊNCIA – Chamo de absurdos as proposições contrárias às minhas demonstrações, como, por exemplo, que três são um, que um Deus fez-se homem, isto é, que o infinito fez-se finito. Que o Eterno morreu, que Deus puniu seu filho inocente pelo pecado dos homens culpados…

A FÉ – Não digas mais nada. Externadas por ti, essas proposições são, de fato, absurdos. Por acaso sabes o que é o número em Deus, tu que não conheces Deus? És capaz de raciocinar sobre as operações do desconhecido? És capaz de entender os mistérios da caridade? Devo ser sempre absurda para ti, pois se entendesses minhas afirmações, elas seriam absorvidas por teus teoremas; eu seria tu, e tu serias eu, para dizer melhor, eu não existiria mais, e a razão, em presença do infinito, deter-se-ia sempre cegada por tuas dúvidas tão infinitas quanto o espaço.

A CIÊNCIA – Pelo menos, nunca usurpes minha autoridade, não me desmintas em meus domínios.

A FÉ – Nunca o fiz, e não posso nunca o fazer.

A CIÊNCIA – Assim, nunca acreditaste, por exemplo, que uma virgem possa ser mãe sem deixar de ser virgem, e isso na ordem física, natural e positiva, a despeito de todas as leis da natureza; não afirmas que um pedaço de pão é não somente um Deus mas um corpo humano verdadeiro, com ossos e veias, órgãos, sangue, de maneira que fazes de teus filhos que comem esse pão um povinho antropófago.

A FÉ – Não é cristão quem não se revolte com o que acabaste de dizer. Isso prova o suficiente que eles não entendem meus ensinamentos dessa maneira positiva e grosseira. O sobrenatural que afirmo está acima da natureza e não poderia, por conseguinte, opor-se a ela, as palavras de fé só são compreendidas pela fé; nada que, em as repetindo, a ciência desnature. Sirvo-me de tuas palavras, porque não tenho outras; mas uma vez que achas meus discursos absurdos, deves concluir que dou a essas mesmas palavras um significado que te escapa. O Salvador, ao revelar o dogma da presença real, não disse: A carne aqui não tem nenhuma serventia, minhas palavras são espírito e vida? Não te apresento o mistério da encarnação como um fenômeno de anatomia nem o da transubstanciação como uma manifestação química. Com que direito gritarias ao absurdo? Eu não raciocino sobre nada do que conheceis; com que direito dirias que eu disparato?

A CIÊNCIA – Começo a te compreender, ou melhor, vejo que nunca te compreenderei. Nesse caso, continuemos separadas, nunca precisarei de ti.

A FÉ – Sou menos orgulhosa e reconheço que me podes ser útil. Talvez também sem mim estarias bem triste e bem desesperada, e não quero separar-me de ti, a menos que a razão o consinta.

A RAZÃO – Não façais isso. Sou necessária a ambas. E eu, que faria sem vós? Preciso saber e crer para ser justa. Mas nunca devo confundir o que sei com o que acredito. Saber não é mais acreditar, acreditar não é saber ainda. O objeto da ciência é o conhecido, a fé não se ocupa dele e deixa-o inteiramente à ciência. O objeto da fé é o desconhecido, a ciência pode buscá-lo, mas não defini-lo; é portanto forçada, pelo menos provisoriamente, a aceitar as definições da fé que lhe é até mesmo impossível de criticar. Somente se a ciência renuncia à fé, renuncia à esperança e ao amor, cuja existência e necessidade são, no entanto, tão evidentes para a ciência quanto para a fé. A fé, como fato psicológico, pertence ao domínio da ciência, e a ciência, como manifestação da luz de Deus na inteligência humana, pertence ao domínio da fé. A ciência e a fé devem, portanto, aceitar-se, respeitar-se mutuamente, até mesmo sustentar-se e socorrer-se nas necessidades, mas sem nunca usurpar uma à outra. O meio de as unir é nunca as confundir. Mas não deve haver contradição entre elas, pois servindo-se das mesmas palavras não falam a mesma língua.

A FÉ – Pois bem! irmã ciência, o que dizeis disso?

A CIÊNCIA – Digo que estávamos separadas por um deplorável mal-entendido e que, doravante, podemos andar juntas. Mas a qual de seus símbolos vais-me associar? Serei judia, católica, muçulmana ou protestante?

A FÉ – Continuarás sendo a ciência e serás universal.

A CIÊNCIA – Ou seja, católica, se bem compreendo. Mas o que devo pensar das diferentes religiões?

A FÉ – Julga-as por suas obras. Procure a caridade verdadeira e, quando a tiver encontrado, pergunta-lhe a que culto pertence.

A CIÊNCIA – Não será certamente ao dos inquisidores e dos carrascos da Noite de São Bartolomeu.

A FÉ – É ao de São João, o Esmoler, de São Francisco de Sales, de São Vicente de Paulo, de Fenelon e de tantos outros.

A CIÊNCIA – Reconheceis que, se a religião produziu algum bem, fez também muito mal.

A FÉ – Quando se mata em nome do Deus que disse: Não matarás, quando se persegue em nome daquele que quer que se perdoe os inimigos, quando se propaga trevas em nome daquele que não quer que se oculte a luz, será justo atribuir o crime à própria lei que o condena? Dize, se quereis ser justa, que, apesar da religião, muito mal foi feito na terra. Mas, também, quantas virtudes ela fez nascer, quantos devotamentos e sacrifícios ignorados? Contaste estes nobres corações de ambos os sexos que renunciaram a todas as alegrias para se pôr ao serviço de todas as dores? Essas obras devotadas ao trabalho e à oração que passaram fazendo o bem? Quem pois fundou asilos para os órfãos e os idosos, hospícios para os doentes, retiros para o arrependimento? Essas instituições tão gloriosas quanto modestas são obras reais de que os anais da Igreja estão cheios; as guerras de religião e os suplícios dos sectários pertencem à política dos séculos bárbaros. Os sectários, aliás, eram eles próprios assassinos. Esquecestes a fogueira de Miguel Servet e o massacre de nossos padres renovado ainda em nome da humanidade e da razão pelos revolucionários inimigos da inquisição e da Noite de São Bartolomeu? Os homens são sempre cruéis, quando esquecem a religião que os abençoa e perdoa.

A CIÊNCIA – Ó fé, perdoa-me então se não posso acreditar, mas sei agora por que és crente. Respeito tuas esperanças e partilho de teus desejos. Mas é pesquisando que eu encontro e é preciso que eu duvide para pesquisar.

A RAZÃO – Trabalha e procura, então, ó ciência, mas respeita os oráculos da fé. Quando tua dúvida deixar uma lacuna no ensinamento universal, permite à fé preenchê-la. Andai distintas uma da outra, mas apoiadas uma na outra, e nunca vos separeis.

SEGUNDA PARTE

MISTÉRIOS FILOSÓFICOS

Considerações preliminares

Diz-se que o belo é o esplendor do verdadeiro.

Ora, a beleza moral é a bondade. É belo ser bom.

Para ser bom com inteligência, é preciso ser justo.

Para ser justo, é preciso agir com razão.

Para agir com razão, é preciso ter a ciência da realidade.

Para ter a ciência da realidade, é preciso ter consciência da verdade.

Para ter consciência da verdade, é preciso ter uma noção exata do ser.

O ser, a verdade, a razão e a justiça são os objetos comuns das buscas da ciência e das aspirações da fé. A concepção de um poder supremo, real ou hipotético, transforma a justiça em Providência, e a noção divina, por esse ponto de vista, torna-se acessível à própria ciência.

A ciência estuda o ser em suas manifestações parciais, a fé o supõe, ou melhor, o admite a priori em sua generalidade.

A ciência busca a verdade em todas as coisas, a fé relaciona todas as coisas a uma verdade universal e absoluta.

A ciência verifica realidades no detalhe, a fé explica-as por uma realidade de conjunto que a ciência não pode verificar, mas que a própria existência dos detalhes parece forçá-la a reconhecer e a admitir.

A ciência submete as razões das pessoas e das coisas à razão matemática e universal; a fé procura, ou melhor, supõe nas próprias matemáticas e acima das matemáticas uma razão inteligente e absoluta.

A ciência demonstra a justiça pela justiça; a fé dá justeza absoluta à justiça, subordinando-a à Providência.

Vê-se aqui tudo o que a fé empresta à ciência e tudo o que a ciência, por sua vez, deve à fé.

Sem a fé, a ciência está circunscrita por uma dúvida absoluta e encontra-se eternamente estacionada no empirismo arriscado a um ceticismo raciocinador; sem a ciência, a fé constrói suas hipóteses ao acaso e só pode prejulgar cegamente as causas dos efeitos que ignora.

A grande corrente que reúne ciência e fé é a analogia.

A ciência está forçada a respeitar uma crença cujas hipóteses são análogas às verdades demonstradas. A fé, que atribui tudo a Deus, está forçada a admitir a ciência como uma revelação natural que, pela manifestação parcial das leis da razão eterna, dá uma escala de proporções a todas as aspirações e a todos os ímpetos da alma no domínio do desconhecido.

É somente a fé, portanto, que pode dar uma solução aos mistérios da ciência e é, em contrapartida, somente a ciência que demonstra a razão de ser dos mistérios da fé.

Fora da união e do concurso dessas duas forças vivas da inteligência, não há para a ciência senão ceticismo e desespero, para a fé, temeridade e fanatismo.

Se a fé insulta a ciência, blasfema; se a ciência desconhece a fé, abdica.

Agora, escutemo-las falar de comum acordo.

– O Ser está em todos os lugares, diz a ciência. É múltiplo e variável em suas formas, único em sua essência e imutável em suas leis. O relativo demonstra a existência do absoluto. A inteligência existe no ser. A inteligência anima e modifica a matéria.

– A inteligência está em todos os lugares, diz a fé. Em nenhum lugar a vida é fatal, uma vez que está regulada. A regra é a expressão de uma sabedoria suprema. O absoluto em inteligência, o regulador supremo das formas, o ideal vivo dos espíritos é Deus.

– Em sua identidade com a idéia, o ser é a verdade, diz a ciência.

– Em sua identidade com o ideal, a verdade é Deus, retorque a fé.

– Em sua identidade com minhas demonstrações, o ser é a realidade, diz a ciência.

– Em sua identidade com minhas legítimas aspirações, a realidade é meu dogma, diz a fé.

– Na sua identidade com o verbo, o ser é a razão, diz a ciência.

– Na sua identidade com o espírito de caridade, a mais elevada razão é minha obediência, diz a fé

– Em sua identidade com o motivo dos atos racionais, o ser é a justiça, diz a ciência.

– Em sua identidade com o princípio de caridade, a justiça é a Providência, responde a fé.

Acordo sublime de todas as certezas com todas as esperanças, do absoluto em inteligência e do absoluto em amor. O Espírito Santo, o espírito de caridade deve assim tudo conciliar e tudo transformar em sua própria luz. Não é ele o espírito de inteligência, o espírito de ciência, o espírito de conselho, o espírito de força? Ele deve vir, diz a liturgia católica, e isso será como uma criação nova, e ele mudará a face da terra.

“Rir da filosofia já é filosofar”, disse Pascal ao fazer alusão a esta filosofia cética e duvidosa que não reconhece a fé. E, se existisse uma fé que pisoteasse a ciência, não diríamos que rir de semelhante fé seria dar provas de verdadeira religião, que é toda caridade, que não tolera o riso, mas ter-se-ia razão em censurar esse amor pela ignorância e em dizer a essa fé temerária: Já que desconheces tua irmã, não és a filha de Deus!

Verdade, realidade, razão, justiça, providência, tais são os cinco raios da estrela flamejante no centro da qual a ciência escreverá a palavra Ser, a que a fé acrescentará o nome inefável de Deus.

Solução dos problemas filosóficos

PRIMEIRA SÉRIE

Pergunta – O que é a verdade?

Resposta – É a idéia idêntica ao ser.

P – O que é a realidade?

R – É a ciência idêntica ao ser.

P – O que é a razão?

R – É o verbo idêntico ao ser.

P – O que é a justiça?

R – É o motivo dos atos idênticos ao ser.

P – O que é o absoluto?

R – É o ser.

P – Concebe-se algo acima do ser?

R – Não, mas concebe-se no próprio ser algo de supereminente e de transcendental.

P – O que é?

R – A razão suprema do ser.

P – Conheceis e podeis defini-la?

R – Somente a fé afirma-a e nomeia-a Deus.

P – Existe algo acima da verdade?

R – Acima da verdade conhecida existe a verdade desconhecida.

P – Como se pode racionalmente supor essa verdade?

R – Pela analogia e pela proporção.

P – Como se pode defini-la?

R – Pelos símbolos da fé.

P – Pode-se dizer da realidade a mesma coisa que da verdade?

R – Exatamente a mesma coisa.

P – Existe algo acima da razão?

R – Acima da razão finita existe a razão infinita.

P – O que é a razão infinita?

R – É esta razão suprema do ser a que a fé chama de Deus.

P – Existe algo acima da justiça?

R – Sim, de acordo com a fé, existe a providência em Deus e, no homem, o sacrifício.

P – O que é o sacrifício?

R – É o abandono benévolo e espontâneo do direito.

P – O sacrifício é racional?

R – Não, é uma espécie de loucura maior que a razão, pois a razão é forçada a admirá-lo.

P – Como chamar um homem que age de acordo com a verdade, a realidade, a razão e a justiça?

R – É um homem moral.

P – E se pela justiça ele sacrifica seus atrativos?

R – É um homem de honra.

P – E se, para imitar a grandeza e a bondade da Providência, ele faz mais do que seu dever e sacrifica seu direito pelo bem dos outros?

R – É um herói.

P – Qual é o princípio verdadeiro do heroismo?

R – É a fé.

P – Qual é o seu sustento?

R – A esperança.

P – E sua regra?

R – A caridade.

P – O que é o bem?

R – É a ordem.

P – O que é o mal?

R – É a desordem.

P – Que prazer é permitido?

R – O gozo da ordem.

P – Que prazer é proibido?

R – O gozo da desordem.

P – Quais são as conseqüências de um e de outro?

R – A vida e a morte na ordem moral.

P – O inferno, com todos os seus horrores, tem, pois, razão de ser no dogma religioso?

R – Sim, é a conseqüência rigorosa de um princípio.

P – E que princípio é esse?

R – A liberdade.

P – O que é a liberdade?

R – É o direito de fazer o dever com a possibilidade de não o fazer.

P – O que é faltar com o dever?

R – É perder o direito. Ora, sendo o direito eterno, perdê-lo significa perda eterna.

P – Não se pode reparar uma falta?

R – Sim, pela expiação.

P – O que é a expiação?

R – É uma sobrecarga de trabalho. Assim, porque fui preguiçoso ontem, devo realizar, hoje, uma dupla tarefa.

P – Que pensar dos que se impõem sofrimentos voluntários?

R – Se é para remediar a atração brutal do prazer, são sábios; se é para sofrer no lugar dos outros, são generosos; mas, se o fazem sem conselho e sem medida, são imprudentes.

P – Assim, diante da verdadeira filosofia, a religião é sábia em tudo o que ordena?

R – Vós o vedes.

P – Mas se enfim estivermos errados em nossas esperanças eternas?

R – A fé não admite essa dúvida. Mas a própria filosofia deve responder que todos os prazeres da terra não valem um dia de sabedoria, e que todos os triunfos da ambição não valem um só instante de heroismo e de caridade.

 

SEGUNDA SÉRIE

P – O que é o homem?

R – O homem é um ser inteligente e corporal feito à imagem de Deus e do mundo, uno em essência, triplo em substância, imortal e mortal.

P – Dizeis triplo em substância. Teria o homem duas almas ou dois corpos?

R – Não. Tem em si uma alma espiritual, um corpo material e um mediador plástico.

P – Qual é a substância desse mediador?

R – É a luz em parte volátil e em parte fixada.

P – O que é a parte volátil dessa luz?

R – É o fluido magnético.

P – E a parte fixada?

R – É o corpo fluídico ou arornal.

P – A existência desse corpo é demonstrada?

R – Sim, pelas experiências mais curiosas e mais conclusivas. Falaremos disso na terceira parte deste livro.

P – Essas experiências são artigos de fé?

R – Não, pertencem à ciência.

P – Mas a ciência preocupar-se-ia com isso?

R – Ela já se preocupa, uma vez que escrevemos este livro e uma vez que o ledes.

P – Dai-nos algumas noções sobre esse mediador plástico.

R – Ele é formado por uma luz astral ou terrestre e transmite ao corpo humano a dupla imantação. Ao agir sobre essa luz, a alma, por suas volições, pode dissolvê-la ou coagulá-la, projetá-la ou atraí-la. Ela é o espelho da imaginação e dos sonhos. Reage sobre o sistema nervoso e produz, assim, os movimentos do corpo. Essa luz pode dilatar-se indefinidamente e comunicar suas imagens a distâncias consideráveis, ela imanta os corpos submetidos à ação do homem e pode, fechando-se, atraí-los para si. Pode assumir todas as formas evocadas pelo pensamento e, nas coagulações passageiras de sua parte resplandecente, aparecer aos olhos e até mesmo oferecer uma espécie de resistência ao contato. Se essas manifestações e esses usos do mediador plástico são anormais, o instrumento luminoso não pode produzi-las sem ser falseado e causam necessariamente ou alucinação ou loucura.

P – O que é o magnetismo animal?

R – É a ação de um mediador plástico sobre um outro para dissolver ou coagular. Aumentando a elasticidade da luz vital e sua força de projeção, ela é enviada tão longe quanto se deseje e é retirada totalmente carregada de imagens, mas é preciso que essa operação seja favorecida pelo sono do sujeito, que se produz com maior coagulação da parte fixa de seu mediador.

P – O magnetismo é contrário à moral e à religião?

R – Sim, quando dele se abusa.

P – O que é abusar dele?

R – É servir-se dele de maneira desordenada ou para um fim desordenado.

P – O que é um magnetismo desordenado?

R – É uma emissão fluídica malsã e feita com más intenções, por exemplo, para saber os segredos dos outros ou para chegar a fins injustos.

P – Qual é, então, seu resultado?

R – Falseia no magnetizador e no magnetizado o instrumento fluídico de precisão. E é a essa causa que se devem atribuir as imoralidades e as loucuras reprovadas num grande número de pessoas que lidam com o magnetismo.

P – Quais as condições necessárias para se magnetizar convenientemente?

R – A saúde do espírito e do corpo; a intenção reta e a prática discreta.

P – Que vantagens pode-se obter pelo magnetismo bem dirigido?

R – A cura das doenças nervosas, a análise dos pressentimentos, o restabelecimento das harmonias fluídicas, a descoberta de alguns segredos da natureza.

P – Explicai-nos tudo isso de uma maneira mais completa.

R – Nós o faremos na terceira parte desta obra que tratará especialmente dos mistérios da natureza.

TERCEIRA PARTE

OS MISTÉRIOS DA NATUREZA

O grande agente mágico

Falamos de uma substância propagada no infinito

A décima chave do Tarô

A substância una que é céu e terra, isto é, conforme seus graus de polarização, sutil ou fixa.

Essa substância é o que Hermes Trismegisto chama de grande Telesma. Quando produz o esplendor, ela denomina-se luz.

É essa substância que Deus cria antes de todas as coisas, quando diz: Que seja a luz.

Ela é ao mesmo tempo substância e movimento. É um fluido e uma vibração perpétua.

A força que a põe em movimento e que lhe é inerente denomina-se magnetismo.

No infinito, essa substância única é o éter ou a luz etérea.

Nos astros que magnetiza, torna-se luz astral.

Nos seres organizados, luz ou fluido magnético.

No homem, forma o corpo astral ou o mediador plástico.

A vontade dos seres inteligentes age diretamente sobre essa luz e, por meio dela, sobre toda a natureza submetida às modificações da inteligência.

Essa luz é o espelho comum de todos os pensamentos e de todas as formas; guarda as imagens de tudo o que foi, os reflexos dos mundos passados e, por analogia, os esboços dos mundos futuros. E o instrumento da taumaturgia e da adivinhação, como nos resta explicar na terceira e última parte desta obra.

LIVRO I

OS MISTéRIOS MAGNéTICOS

CAPÍTULO I

A chave do mesmerismo

Mesmer encontrou a ciência secreta da natureza, ele não a inventou.

A substância primeira, única e elementar, cuja existência ele proclama em seus aforismos, era conhecida por Hermes e por Pitágoras.

Sinésio, que a canta em seus hinos, encontrara sua revelação em meio às lembranças platônicas da escola de Alexandria:

Mia paga, mic riza

Trifahj elcmfe morfc

. . . . . . . . . . . . . . . . . .

Peri gan spareisc pnoic

Cqonoj` ezwwse moifcj

Polndaidcloisi morcij

“Uma única fonte, uma única raiz de luz jorra e abre-se em três ramos de esplendor. Um sopro circula em volta da terra e vivifica, sob inumeráveis formas, todas as partes da substância animada.”

Hinos de Sinésio, hino 11

Mesmer viu na matéria elementar uma substância indiferente tanto ao movimento quanto ao repouso. Submetida ao movimento é volátil, de volta ao repouso é fixa, e ele não compreendeu que o movimento é inerente à substância primeira, que resulta não de, sua indiferença, mas de sua aptidão combinada a um movimento e a um repouso equilibrados um pelo outro: que o repouso não está em nenhuma parte na matéria uníversalmente viva, mas que o fixo atrai o volátil para fixá~lo, enquanto o volátil corrói o fixo para volatilizá-lo. Que o pretenso repouso das partículas aparentemente fixadas é somente uma luta mais encarniçada e uma tensão maior de suas forças fluídicas que se imobilizam neutralizando-se. É assim que, segundo Hermes, o que está no alto é como o que está embaixo, a mesma força que dilata o vapor contrai e endurece o gelo; tudo obedece às leis da vida inerentes à substância primeira; essa substância atrai e repele e coagula-se e dissolve-se numa constante harmonia; é dupla; é andrógina; abraça-se e fecunda-se; luta, triunfa, destrui, renova, mas nunca se abandona à inércia, pois a inércia seria a morte para ela.

É essa substância primeira que se designa na narrativa hierática do Gênesis, quando o verbo dos Eloim faz a luz ordenando-lhe que seja.

Eloim diz: Que seja a luz, e a luz foi.

Essa luz,cujo nome hebreu é r u t, or, é o ouro fluido e vivo da filosofia hermética. Seu princípio positivo é o enxofre deles; seu princípio negativo, o mercúrio, e seus princípios equilibrados formam o que eles denominaram seu sal.

Seria preciso, pois, em vez do sexto aforismo de Mesmer assim concebido:

“A matéria é indiferente a estar em movimento ou a estar em repouso.”

Estabelecer este:

A matéria universal é necessária ao movimento por sua dupla magnetização e procura fatalmente o equilíbrio.

E deste deduzir os seguintes:

A regularidade e a variedade no movimento resultam das combinações diversas do equilíbrio.

Um ponto equilibrado por todos os lados permanece imóvel pelo próprio fato de ser dotado de movimento.

O fluido é uma matéria em grande movimento e sempre agitada pela variação dos equilíbrios.

O sólido é a mesma matéria em pequeno movimento ou em repouso aparente, porque está mais ou menos equilibrada.

Não há corpo sólido que não possa ser imediatamente pulverizado, esvair-se em fumaça e tornar-se invisível, se o equilíbrio de suas moléculas viesse a cessar de repente.

Não há corpo fluido que não possa tornar-se num segundo mais duro que o diamante, sim se pudesse equilibrar imediatamente suas moléculas constitutivas.

Dirigir os ímãs, portanto, é destruir ou criar as formas, é produzir em aparência ou anular os corpos, é exercer a onipotência da natureza.

Nosso mediador plástico é um ímã que atrai ou repele a luz astral sob a pressão da vontade. É um corpo luminoso que reproduz com a maior facilidade as formas correspondentes às idéias.

É o espelho da imaginação. Esse corpo alimenta-se de luz astral, exatamente como o corpo orgânico alimenta-se dos produtos da terra. Durante o sono ele absorve a luz por imersão e, durante a vigília, por uma espécie de respiração mais ou menos lenta. Quando se produzem os fenômenos do sonambulismo natural, o mediador plástico está sobrecarregado por uma alimentação que digere mal. A vontade, então, embora ligada pelo torpor do sono, impele instintivamente o mediador em direção aos órgãos para liberá-lo, e produz-se uma reação, de certa forma mecânica, que equilibra pelo movimento do corpo a luz do mediador. É por isso que é tão perigoso acordar os sonâmbulos com um sobressalto, pois o mediador ingurgitado pode, então, retirar-se subitamente para o reservatório comum e abandonar inteiramente os órgãos que se encontram, nesse momento, separados da alma, o que ocasiona a morte.

O estado de sonambulismo, seja natural, seja factício, é, pois, extremamente perigoso, porque, ao reunir os fenômenos da vigília aos do sono, constitui uma espécie de grande lacuna entre dois mundos. Ao movimentar as moias da vida particular, a alma, banhando-se na vida universal, experimenta um bem-estar indizível e abandonaria de bom grado as ramificações nervosas que a mantêm suspensa acima da corrente. Nos êxtases de todos os tipos a situação é a mesma. Se a vontade aí mergulha num esforço apaixonado ou mesmo se a isso se abandona inteiramente, o sujeito pode ficar idiota, paralisado ou morrer.

As alucinações e as visões resultam de ferimentos causados ao mediador plástico e de sua paralisia local. Ora ele cessa de irradiar e substitui as realidades mostradas pela luz por imagens de algum modo condensadas, ora irradia com muita força e condensa-se fora, em torno de alguma morada fortuita e desregulada, como o sangue nas excrescências da carne, então as quimeras do nosso cérebro tomam um corpo e parecem tomar uma alma, parecemos a nós mesmos radiosos ou disformes como o ideal de nossos desejos ou de nossos temores.

Sendo as alucinações sonhos de pessoas acordadas, supõem sempre um estado análogo ao sonambulismo, porém em sentido contrário; o sonambulismo é o sono tomando emprestado ao despertar seus fenômenos; a alucinação é a vigília sujeita ainda em parte à embriaguez astral do sono.

Nossos corpos fluídicos atraem-se e repelem-se uns aos outros, segundo leis consoantes às da eletricidade. É o que produz as simpatias e as antipatias instintivas. Equilibram-se, assim, uns aos outros, e é por isso que as alucinações são frequentemente contagiosas; as projeções anormais mudam as correntes luminosas; a perturbação de um doente ganha as naturezas mais sensitivas, um círculo de ilusões estabelece-se e toda uma multidão é facilmente arrastada para ele. É a história das aparições estranhas e dos prodígios populares. Assim explicam-se os milagres dos médiuns da América e as vertigens dos giradores de mesa, que reproduzem em nossos dias os êxtases dos dervixes giradores. Os bruxos lapões com seus tambores mágicos e os malabaristas curandeiros chegam a resultados parecidos por procedimentos semelhantes; seus deuses ou seus diabos em nada contribuem.

Os loucos e os idiotas são mais sensíveis ao magnetismo do que as pessoas sãs de espírito; deve-se compreender a razão disso; é preciso pouco para virar completamente a cabeça de um homem embriagado, e contrai-se mais facilmente uma doença quando todos os órgãos estão predispostos a sofrerem suas impressões e a manifestarem suas desordens.

As doenças fluídicas têm suas crises fatais. Toda tensão anormal do aparelho nervoso termina em tensão contrária segundo as leis necessárias do equilíbrio. Um amor exagerado transforma-se em aversão, e todo ódio exaltado está bem próximo do amor; a reação dá-se frequentemente com o estrondo e a violência do raio. A ignorância, então, desola-se e indigna-se; a ciência resigna-se e cala-se.

Há dois amores, o do coração e o da mente, o amor do coração nunca se exalta, recolhe-se e cresce lentamente pelas provações e pelos sacrifícios; o amor da mente, puramente nervoso e apaixonado, vive apenas de entusiasmo, vai contra todos os deveres, trata o objeto amado como coisa conquistada, é egoísta, exigente, inquieto, tirânico e traz fatalmente consigo o suicídio por catástrofe final ou o adultério por remédio. Esses fenômenos são constantes como a natureza, inexoráveis como a fatalidade.

Uma jovem artista cheia de futuro e de coragem tinha por marido um homem de bem, um pesquisador científico, um poeta a quem não podia reprovar senão um excesso de amor por ela, abandonou-o ultrajandoo e, desde então, continua a odiá-lo. No entanto, ela também é uma boa mulher, mas o mundo impiedoso a julga e condena. Todavia, não é agora que ela é culpada. Sua culpa, se é permitido lhe imputar alguma, foi em primeiro lugar ter amado louca e apaixonadamente seu marido.

Mas, dir-se-á, a alma humana então não é livre?

– Não, ela não o é mais desde que se abandona à vertigem das paixões. Apenas a sabedoria é livre, as paixões desordenadas são o domínio da loucura, e a loucura é a fatalidade.

O que dissemos do amor pode-se dizer também da religião, que é o mais poderoso mas também o mais inebriante dos amores. A paixão religiosa tem também seus excessos e suas reações fatais. Pode-se ter êxtases e estigmas, como São Francisco de Assis, e cair em seguida em abismos de devassidão e impiedade.

As naturezas apaixonadas são ímãs exaltados, atraem ou repelem com força.

Podemos magnetizar de duas maneiras: primeiramente, agindo pela vontade sobre o mediador plástico de outra pessoa, cuja vontade e atos encontram-se, por conseguinte, subordinados a essa ação.

Em segundo lugar, agindo pela vontade de uma pessoa, seja por intimidação, seja por persuasão, para que a vontade impressionada modifique, segundo nosso desejo, o mediador plástico e os atos dessa pessoa.

Magnetiza-se pela irradiação, pelo contato, pelo olhar e pela palavra.

As vibrações da voz modificam o movimento da luz astral e são um veículo poderoso do magnetismo.

O sopro quente magnetiza positivamente, e o sopro frio magnetiza negativamente.

Uma insuflação quente e prolongada na coluna vertebral, abaixo do cerebelo, pode ocasionar fenômenos eróticos.

Se for colocada a mão direita sobre a cabeça e a mão esquerda sob os pés de uma pessoa envolta em lã ou em seda, ela será inteiramente atravessada por uma fagulha magnética, e pode-se ocasionar uma revolução nervosa em seu organismo com a rapidez de um raio.

Os passes magnéticos servem apenas para dirigir a vontade do magnetizador, confirmando-a através de atos. São sinais e nada além disso. O ato da vontade é expresso, e não operado, por esses sinais.

O carvão em pó absorve e retém a luz astral. É o que explica o espelho mágico de Dupotet.

Figuras desenhadas a carvão aparecem luminosas para uma pessoa magnetizada e tomam para ela, segundo a direção dada pela vontade do magnetizador, as mais graciosas ou as mais aterrorizantes formas.

A luz astral, ou melhor, vital do mediador plástico, absorvida pelo carvão, torna-se totalmente negativa; é por isso que os animais que a eletricidade atormenta, como por exemplo os gatos, gostam de rolar-se no carvão. A medicina, um dia, utilizará essa propriedade, e as pessoas nervosas encontrarão aí um grande alívio.

CAPÍTULO II

A vida e a morte. A vigília e o sono

O sono é uma morte incompleta; a morte é um sono perfeito.

A natureza submete-nos ao sono para habituar-nos à idéia da morte, e adverte-nos por meio dos sonhos sobre a persistência de uma outra vida.

A luz astral em que o sono nos mergulha é como um oceano onde flutuam inumeráveis imagens, restos das existências naufragadas, miragens e reflexos daquelas que passam, pressentimentos daquelas que vão nascer.

Nossa disposição nervosa atrai-nos para aquelas imagens que correspondem à nossa agitação, à nossa fadiga especial, como um ímã colocado em meio a detritos metálicos atrairia e escolheria, sobretudo, a limalha de ferro.

Os sonhos revelam-nos a doença ou a saúde, a calma ou a agitação de nosso mediador plástico e, por conseguinte, também de nosso aparelho nervoso.

Formulam nossos presentimentos por meio da analogia das imagens.

Pois todas as idéias têm um duplo signo para nós, relativo à nossa dupla vida.

Existe uma língua do sono, de que é impossível, no estado de vigília, compreender e até mesmo reunir as palavras.

A língua do sono é a da natureza, hieroglífica em seus caracteres e ritmada apenas em seus sons.

O sono pode ser vertiginoso ou lúcido.

A loucura é um estado permanente de sonambulismo vertiginoso.

Uma comoção violenta pode despertar os loucos, assim como pode matá-los.

As alucinações, quando trazem consigo a adesão da inteligência, são acessos passageiros de loucura.

Toda fadiga do espírito provoca o sono; mas, se a fadiga é acompanhada de irritação nervosa, o sono pode ser incompleto e tomar os caracteres do sonambulismo.

Adormece-se por vezes sem disso se aperceber em meio à vida real, e então, em vez de pensar, sonha-se.

Por que temos reminiscências de coisas que nunca nos aconteceram? É que as sonhamos acordados.

Esse fenômeno do sono involuntário e não sentido, que atravessa de repente a vida real, produz-se freqüentemente em todos aqueles que superexcitam seu organismo nervoso com excessos, quer de trabalho, quer de vigílias, quer de bebida, quer de um eretismo qualquer.

Os monomaníacos dormem quando se entregam a atos insensatos, e não têm mais consciência de nada ao acordarem.

Quando Papavoine foi preso pelos soldados, disse-lhes tranqüilamente estas palavras notáveis:

– Vós tomais o outro por mim.

Era ainda o sonâmbulo que falava.

Edgar Poe, esse gênio infeliz que se embriagava, descreveu de um modo terrível o sonambulismo dos monomaníacos. Ora é um assassino que ouve, e acredita que todo o mundo ouve, o coração de sua vítima bater através das lajes do túmulo, ora é um envenenador que, por força de dizer a si mesmo: Estou em segurança, contanto que não vá denunciar a mim mesmo, termina por sonhar em voz alta que se denuncia e denuncia-se de fato.

Edgar Poe não inventou ele próprio nem os personagens nem os fatos de seus estranhos contos, sonhou-os acordado, e é por isso que tão bem lhes dá as cores de uma horrível realidade.

O doutor Brière de Boismont, em sua notável obra sobre as Alucinações, conta a história de um inglês, aliás muito sensato, que acreditava ter encontrado um homem com quem travara conhecimento; este o conduzira a almoçar em sua taberna, depois, tendo-o convidado a visitar a Igreja de São Paulo, tentara precipitá-lo do alto da torre onde haviam subido juntos.

Desde esse momento, o inglês estava obcecado por esse desconhecido, que apenas ele podia ver, e que reencontrava sempre quando estava só e acabava de jantar bem.

Os abismos atraem; a embriaguez chama a embriaguez; a loucura possui irresistíveis atrativos para a loucura. Quando um homem sucumbe ao sono, abomina tudo o que poderia acordá-lo.

Acontece o mesmo com os alucinados, os sonâmbulos extáticos, os maníacos, os epiléticos e todos aqueles que se abandonam ao delírio de uma paixão. Eles ouviram a música fatal, entraram na dança macabra e sentem-se arrastados no turbilhão da vertigem. Vós lhes falais, não vos ouvem mais, vós os advertis, não vos compreendem mais, mas vossa voz os importuna; têm sono do sono da morte.

A morte é uma corrente que arrasta, um precipício que absorve, mas de cujas profundezas o menor movimento vos pode trazer de volta. Sendo a força de repulsão igual à de atração, freqüentemente, no instante mesmo de expirar, fica-se violentamente preso à vida, freqüentemente também, pela mesma lei de equilíbrio, passa-se do sono à morte; por complacência para com o sono.

Um bote balança-se próximo às margens do lago. A criança nele entra, a água brilhante de mil reflexos dança à sua volta chamando-a, a corrente que retém o barco estira-se e parece querer romper-se; um pássaro maravilhoso lança-se, então, da margem e plana cantando sobre as ondas alegres; a criança quer segui-lo, leva a mão à corrente, solta o elo.

A Antigüidade adivinhara o mistério da morte atraente e representara-o na fábula de Hilas. Cansado após uma longa navegação, Hilas chega a uma ilha florida, aproxima-se de uma fonte para retirar água, uma miragem graciosa lhe sorri; ele vê uma ninfa estender-lhe os braços, os seus enfraquecem e não podem retirar o cântaro pesado; o frescor da fonte adormece-o, os perfumes da margem embriagam-no, ei-lo debruçado sobre a água como um narciso cuja haste fosse quebrada por uma criança a brincar; o cântaro cheio cai ao fundo e Hilas segue-o, morre sonhando com ninfas que o acariciam, e não ouve mais a voz de Hércules que o chama de volta aos trabalhos da vida, e que percorre todas as margens gritando mil vezes: Hilas, Hilas!

Outra fábula, não menos comovente, que sai das sombras da iniciação órfica, é a de Eurídice chamada de volta à vida pelos milagres da harmonia e do amor, Eurídice, esta sensitiva rompida no próprio dia de seu casamento e que se refugiou na tumba ainda trêmula de pudor! Logo, ela ouve a lira de Orfeu, e lentamente sobe em direção à luz; as terríveis divindades do Érebo não ousam fechar-lhe a passagem. Ela segue o poeta, ou antes, a poesia que ela adora… Mas ai do amante se mudar a corrente magnética e se seguir, com um único olhar, aquela que ele deve somente atrair! O amor sagrado, o amor virginal, o amor mais forte que o túmulo busca apenas a dedicação e foge desvairado diante do egoísmo do desejo. Orfeu sabe disso, mas por um instante esquece. Eurídice, em suas brancas vestes de noiva, está deitada no leito nupcial, ele, sob as vestimentas de grande hierofante, está em pé, a lira nas mãos, a cabeça coroada com os louros sagrados, os olhos voltados para o Oriente, e canta. Canta as flechas luminosas do amor que atravessam as sombras do antigo caos, as ondas da doce claridade escorrendo da teta negra da mãe dos deuses, Eros e Ânteros. Adônis que volta à vida para escutar os lamentos de Vênus e que se reanima como uma flor sob o orvalho brilhante de suas lágrimas; Castor e Pólux que a morte não pôde desunir e que se amam ora no inferno, ora na terra… Depois ele chama suavemente Eurídice, sua querida Eurídice, sua Eurídice tão amada:

Ah! miseram Eurydicen animâ fugiente vocabat,

Eurydicen! toto referebant flumine ripae.

Enquanto ele canta, aquela pálida estátua que a morte fez colore-se com as primeiras nuanças da vida, seus lábios brancos começam a avermelhar-se como a aurora da manhã… Orfeu a vê, treme, balbucia, o hino vai expirar em sua boca, mas ela empalidece novamente; então o grande hierofante tira de sua lira cantos dilacerantes e sublimes, não olha mais senão para o céu, chora, implora, e Eurídice abre os olhos… Infeliz! não olhes para ela, canta ainda, não afugentes a borboleta de Psiquê, que quer pousar nesta flor!… Mas o insensato viu o olhar da ressuscitada, o grande hierofante cede à embriaguez do amante, a lira cai de suas mãos, olha Eurídice, corre em sua direção… Aperta-a em seus braços e a encontra ainda gelada, seus olhos tornaram a fechar-se, seus lábios estão mais pálidos e mais frios do que nunca, a sensitiva estremeceu, e o vínculo delicado da alma rompeu-se novamente e para sempre… Eurídice está morta e os hinos de Orfeu não mais a trarão de volta à vida.

Em nosso Dogma e Ritual da Alta Magia, ousamos dizer que a ressurreição dos mortos não é um fenômeno impossível na própria ordem da natureza, e nisso não negamos nem contradissemos de nenhum modo a fé fatal da morte. Uma morte que pode cessar é apenas uma letargia e um sono, mas é sempre pela letargia e pelo sono que a morte começa. O estado de quietude profunda que se sucede, nesse momento, às agitações da vida leva então a alma distendida e dormente, não se pode fazê-la voltar, forçá-la a novamente mergulhar, senão excitando violentamente todas as suas feições e todos os seus desejos. Quando Jesus, o Salvador do mundo, estava na terra, a terra era mais bela e mais desejável do que o céu, e no entanto, para acordar a filha de Jairo, Jesus precisou gritar e sacudi-la. Foi a poder de frémitos e de lágrimas que chamou de volta do túmulo o amigo Lázaro, tão difícil é interromper uma alma cansada que dorme o seu primeiro sono!

Todavia, o rosto da morte não tem a mesma serenidade para todas as almas que o contemplam; quando se teve frustrado o objetivo da vida, quando se levam consigo cobiças desenfreadas ou ódios insaciados, a eternidade aparece para a alma ignorante ou culpada com tão formidáveis proporções de dores que ela tenta algumas vezes lançar-se novamente na vida mortal. Quantas almas assim agitadas pelo pesadelo do inferno refugiaram-se em seus corpos gelados e já cobertos pelo mármore da tumba! Foram encontrados esqueletos revirados, convulsos, retorcidos, e foi dito: Aí estão homens que foram enterrados vivos. Enganavam-se frequentemente, e bem podiam ser retomados da morte, ressuscitados da sepultura que, por se terem abandonado completamente às angústias do limiar da eternidade, com ela foram ter por duas vezes.

Um magrietista célebre, o barão Dupotet, ensina no seu livro secreto sobre a Magia que se pode matar pelo magnetismo como pela eletricidade. Essa revelação nada tem de estranho para quem conhece bem as analogias da natureza. É certo que, dilatando-se além dos limites-ou coagulando-se repentinamente o mediador plástico de um sujeito, pode-se separar sua alma de seu corpo. Basta algumas vezes provocar numa pessoa uma violenta cólera ou um enorme susto para matá-la subitamente.

O uso habitual do magnetismo geralmente coloca o sujeito que a ele se abandona à mercê do magnetizador. Quando a comunicação é bem estabelecida, quando o magnetizador pode produzir à vontade o sono, a insensibilidade, a catalepsia, etc., só lhe custaria um esforço a mais trazer também a morte.

Contaram-nos, como verdadeira, uma história de que todavia não garantimos a autenticidade.

Vamos contá-la porque pode ser verdadeira.

Pessoas que duvidavam ao mesmo tempo da religião e do magnetismo, desses incrédulos que se prestam a todas as superstições e a todos os fanatismos, haviam convencido, a peso de ouro, uma pobre moça a submeter-se às suas experiências. Era uma natureza impressionável e nervosa, cansada além disso pelos excessos de uma vida mais do que irregular, e já enojada da existência. Adormecem-na; ordenam-lhe que veja; ela chora e debate-se. Falam-lhe de Deus…. tremem-lhe todos os membros.

– Não – diz ela -, ele me dá medo; não quero olhar para ele.

– Olhe para ele, eu quero.

Ela abre então os olhos; suas pupilas dilatam-se; fica apavorante.

– O que você está vendo?

– Não consigo dizer… Oh! por misericórdia, por misericórdia, acordem-me!

– Não, olhe e diga o que está vendo.

– Vejo uma noite negra em que turbilhonam fagulhas de todas as cores em volta de dois grandes olhos que se movem sem parar. Desses olhos saem raios que se enrolam em serpentinas e ocupam todo o espaço… Oh! isso me dói! acordem-me!

– Não, olhe.

– Para onde mais querem que eu olhe?

– Olhe dentro do paraíso.

– Não, não posso subir até lá; a grande noite me rechaça e volto sempre a cair.

– Então olhe dentro do inferno.

Aí, a sonâmbula agita-se convulsivamente.

– Não! Não! – grita soluçando -, não quero; me daria vertigem; cairia. Oh! segurem-me! detenham-me!

– Não, desça.

– Aonde querem que eu desça?

– Ao inferno.

– É horrível! Não, não, não quero ir!

– Vá.

– Misericórdia!

– Vá, eu quero.

As feições da sonâmbula ficam terríveis de se ver; os cabelos em pé; os olhos esbugalhados só mostram o branco; o peito arfa e deixa escapar um som rouco.

– Vá até lá, eu quero – repete o magnetizador.

– Estou aqui – diz entre dentes a infeliz, caindo esgotada. Depois, não responde mais; a cabeça inerte tomba sobre os ombros; os braços pendem ao longo do corpo. Aproximam-se dela; tocam-na. Querem, já tarde demais, acordá-la; o crime estava consumado; a mulher estava morta e os autores dessa experiência sacrílega, graças à incredulidade pública em matéria de magnetismo, não foram perseguidos. Coube à autoridade atestar um óbito, e a morte foi atribuída à ruptura de um aneurisma. O corpo, aliás, não tinha nenhuma marca de violência; mandaram-no enterrar e encerrou-se o caso.

Eis um outro caso que nos foi contado por companheiros da Volta à França.

Dois companheiros hospedavarn-se no mesmo albergue e dividiam o mesmo quarto. Um dos dois tinha o hábito de falar dormindo, quando então respondia às perguntas que seu colega lhe fazia. Uma noite, ele começa, de repente, a soltar gritos sufocados, o outro companheiro acorda e pergunta-lhe o que está havendo.

– Mas então você não está vendo – diz o que está dormindo não está vendo esta pedra enorme… está se soltando da montanha… está caindo sobre mim, vai me esmagar.

– Pois então fuja!

– Impossível, meus pés estão enroscados num espinheiro que se aperta cada vez mais… Ai! Socorro! lá… lá está a grande pedra que vem para cima de mim.

– Toma, aqui está ela! – diz rindo o outro, que lhe atira na cabeça o travesseiro para acordá-lo.

Um grito terrível, subitamente sufocado na garganta, uma convulsão, um suspiro, depois mais nada. O desastrado brincalhão levanta-se, puxa o colega pelo braço, chama-o, assusta-se por sua vez, grita, alguém traz uma luz… o infeliz sonâmbulo estava morto.

CAPÍTULO III

Mistérios das alucinações e da evocação dos espíritos

Uma alucinação é um ilusão produzida por um movimento irregular da luz astral.

É, como dissemos antes, a mistura dos fenômenos do sono aos da vigília.

Nosso mediador plástico aspira e respira a luz astral ou a alma vital da terra, como nosso corpo aspira e respira a atmosfera terrestre. Ora, do mesmo modo que em alguns lugares o ar é impuro e irrespirável, também algumas circunstâncias fenomenais podem tornar a luz astral malsã e não assimilável.

Tal ar também pode ser muito vivo para algumas pessoas e convir perfeitamente a outras, sendo assim também com a luz magnética.

O mediador plástico assemelha-se a uma estátua metálica permanentemente em fusão. Se o molde está defeituoso, ela torna-se disforme; se o molde se quebra, ela foge.

O molde do mediador plástico é a força vital equilibrada e polarizada. Nosso corpo, por meio do sistema nervoso, atrai e retém essa forma fugidia de luz especificada; mas a fadiga local ou a superexcitação parcial do aparelho pode ocasionar disformidades fluídicas.

Essas disformidades alteram parcialmente o espelho da imaginação e ocasionam alucinações habituais próprias aos visionários extáticos.

O mediador plástico, feito à imagem e semelhança de nosso corpo, cujos órgãos reproduz luminosamente, tem visão, tato, audição, olfato e paladar que lhe são próprios; pode, quando está superexcitado, comunicá-los por vibrações ao aparelho nervoso, de tal modo que a alucinação seja completa. A imaginação parece, então, triunfar sobre a própria natureza e produz fenômenos verdadeiramente estranhos. O corpo material inundado de fluido parece participar das qualidades fluídicas, escapa às leis da gravidade, torna-se momentaneamente invulnerável e mesmo invisível num círculo de alucinados por contágio. Sabe-se que os convulsionários de São Medardo deixavam-se atenazar, espancar, triturar, crucificar, sem que sentissem nenhuma dor, que se erguiam do chão, andavam de cabeça para baixo, comiam alfinetes e os digeriam.

Achamos oportuno relatar aqui o que publicamos no jornal O Estafeta sobre os prodígios do médium americano Home e sobre vários fenômenos da mesma ordem.

Nunca fomos, nós mesmos, testemunhas dos milagres do senhor Home, mas nossas informações vêm das melhores fontes, recolhemo-nas numa casa onde o médium americano foi acolhido com benevolência quando estava infeliz, e com indulgência quando chegou a tomar sua doença por uma felicidade e uma ventura. É a casa de uma senhora nascida na Polônia, mas três vezes francesa pela nobreza de seu coração, pelos encantos inefáveis de seu espírito e pela celebridade européia de seu nome.

A publicação dessas informações no Estafeta atraiu-nos, sem que saibamos bem por quê, as injúrias de um senhor De Pène, conhecido, desde então, por seu duelo infeliz. Lembramo-nos, na ocasião, da fábula de La Fontaine sobre o louco que atirava pedras num sábio. O senhor De Pène tratava-nos de “padre que abandonou a batina” e de mau católico. Mostramo-nos pelo menos bom cristão compadecendo-nos dele e perdoando-o, e, como é impossível ser “padre que abandonou a batina” sem nunca ter sido padre, deixamos cair por terra uma injúria que não nos atingia.

Na semana passada, o senhor Home queria mais uma vez deixar Paris, essa Paris onde, se os próprios anjos e demônios aparecessem sob uma forma qualquer, não passariam muito tempo por seres maravilhosos, e nada melhor teriam a fazer senão retornar logo ao céu ou ao inferno, para escapar ao esquecimento e ao abandono dos humanos.

O sr. Home, com ar triste e desiludido, despedia-se, então, de uma nobre dama, cuja benevolente acolhida fora uma de suas primeiras alegrias na França. Naquele dia, como sempre, a sra. B… foi gentil com ele, e quis retê-lo para jantar; o misterioso personagem ia aceitar, quando alguém disse que era esperado um cabalista conhecido no mundo das ciências ocultas pela publicação de um livro intitulado Dogma e Ritual da Alta Magia; as feições do sr. Home alteraram-se de repente, e ele declarou balbuciando e com uma visível perturbação que não podia ficar e que a aproximação daquele professor de magia causava-lhe um insuperável terror. Tudo o que lhe disseram para tranqüilizá-lo foi inútil. – Não julgo esse homem – dizia ele -, nem afirmo que ele seja bom ou mau, nada sei sobre isso, mas sua atmosfera me faz mal, perto dele me sentiria sem forças e como que sem vida.

E, depois dessa explicação, o sr. Home apressou-se a despedir-se e a sair.

Esse terror dos homens de prestígio em presença dos verdadeiros iniciados à ciência não é um fato novo nos anais do ocultismo. Pode-se ler em Filóstrato a história da estrige que treme ao ouvir chegar Apolônio de Tiana. Nosso admirável escritor Alexandre Dumas dramatizou essa lenda mágica no belo resumo de todas as lendas que serviria de prólogo à sua grande epopéia romanesca do Judeu Errante. A cena passa-se em Corinto; é uma cerimônia de casamento antiga com belas crianças coroadas de flores que carregam archotes nupciais e cantam epitalâmios graciosos e ornados de voluptuosas imagens como as poesias de Catulo. A noiva está linda, em suas castas vestes, como a Polímnia antiga; está amorosa e deliciosamente provocante em seu pudor, como uma Vênus de Corrégio ou uma Graça de Cânova. Aquele que ela desposa é Clínias, um discípulo do célebre Apolônio de Tiana. O mestre prometeu vir às núpcias de seu discípulo, mas não vem, e a bela noiva respira mais aliviada, pois teme Apolônio. No entanto, o dia não acabou. É chegada a hora do leito nupcial, e de repente Méroe treme, empalidece, olha fixamente em direção à porta, estende a mão aterrorizada e diz numa voz sufocada: “Ei-lo! é ele!” É Apolônio de fato. Eis o mago, eis o mestre: a hora dos encantamentos passou, os prestígios caem diante da verdadeira ciência. Procura-se a bela noiva, a branca Méroe, e vê-se apenas uma velha mulher, a bruxa Canídie, a devoradora de criancinhas. Clínias está desiludido, agradece seu mestre; está salvo.

O vulgo sempre se enganou sobre a magia, e confunde os adeptos com os encantadores. A verdadeira magia, isto é, a ciência tradicional, dos magos, é inimiga mortal dos encantamentos; ela impede ou faz cessar os falsos milagres, hostis à luz e fascinadores de um pequeno número de testemunhas preparadas ou crédulos. A desordem aparente nas leis da natureza é uma mentira; não é, pois, uma maravilha. A maravilha verdadeira, o verdadeiro prodígio sempre resplandecente aos olhos de todos é a harmonia sempre constante dos efeitos e das causas; são os esplendores da ordem eterna!

Não saberíamos dizer se Cagliostro teria feito milagres diante de Swedenborg, mas teria certamente temido a presença de Paracelso e de Henri Khunrath, se esses dois grandes homens tivessem sido seus contemporâneos.

Longe de nós, no entanto, a idéia de denunciar o sr. Home como um bruxo de baixa categoria, isto é, um charlatão. O célebre médium americano é doce e ingênuo como uma criança. É um pobre ser muito sensitivo, sem intriga e sem defesa; é o joguete de uma força terrível que ele ignora, e ele próprio é certamente a primeira de suas vítimas.

O estudo dos estranhos fenômenos que se produzem em torno desse moço é da maior importância. Trata-se de rever seriamente as denegações demasiado levianas do século XVIII, e de abrir diante da ciência e da razão horizontes menos estreitos que os da crítica burguesa, que nega tudo o que ainda não pode explicar. Os fatos são inexoráveis, e a verdadeira boa fé nunca deve recear examiná-los.

A explicação desses fatos que todas as tradições obstinam-se em afirmar e que se reproduzem diante de nós com uma incômoda publicidade, essa explicação, antiga como os próprios fatos, rigorosa como a matemática, mas pela primeira vez tirada das sombras onde a escondiam os hierofantes de todas as idades, seria um grande evento científico, se pudesse obter bastante luz e publicidade. Vamos talvez preparar esse evento, pois não nos seria permitido a esperança audaciosa de concluí-lo.

Em primeiro lugar, eis os fatos em toda sua singularidade. Comprovamo-os e vamos restabelecê-los com uma rigorosa exatidão abstendo-nos, inicialmente, de qualquer explicação ou comentário.

O sr. Home está sujeito a êxtases que o põem, segundo ele, em contato diretamente com a alma de sua mãe, e, pela intermediação desta, com todo o mundo dos espíritos. Descreve, como os sonâmbulos de Cahagnet, pessoas que nunca viu e que são reconhecidas pelos que as evocam; vos dirá mesmo seus nomes e responderá de sua parte a perguntas que só podem ser compreendidas por elas e por vós mesmos.

Quando ele está num apartamento, ruídos inexplicáveis fazem-se ouvir. Batidas violentas ecoam nos móveis e nas paredes; algumas vezes as portas e as janelas abrem-se como se fossem impelidas por uma tempestade; fora, chega-se a ouvir o vento e a chuva; ao sair, o céu está sem nuvens, e não se sente nem o mais leve sopro de vento.

Os móveis são erguidos e deslocados sem que ninguém os toque.

Lápis escrevem sozinhos. A caligrafia é a do sr. Home, e cometem os mesmos erros que ele.

As pessoas presentes sentem-se tocar e agarrar por mãos invisíveis. Esses contatos, que parecem escolher as damas, carecem de seriedade, e por vezes mesmo de conveniência, em sua aplicação. Pensamos que nos compreendem o suficiente.

Mãos visíveis e tangíveis saem ou parecem sair das mesas, mas para isso é preciso que as mesas estejam cobertas. São necessários alguns preparativos ao agente invisível, assim como aos mais hábeis sucessores de Robert Houdin.

Essas mãos mostram-se sobretudo na escuridão; são quentes e fosforescentes ou frias e negras. Escrevem tolices ou tocam piano; e quando tocam piano é preciso vir o afinador, pois seu contado é sempre fatal à afinação do instrumento.

Um dos mais recomendáveis personagens da Inglaterra, sir Edward Bulwer Lytton, viu e tocou essas mãos; lemos a declaração escrita e assinada por ele. Declara mesmo tê-las apertado e puxado para si com toda a força, para fazer saírem do seu esconderijo os braços a que naturalmente elas deviam estar ligadas. Mas a coisa invisível foi mais forte do que o romancista inglês, e as mãos escaparam-lhe.

Um fidalgo russo, que foi o protetor do senhor Home e cujo caráter e boa fé não poderiam ser alvo de nenhuma dúvida, o conde A.B… também viu e apertou vigorosamente as mãos misteriosas. Eram, disse ele, formas perfeitas de mãos humanas, quentes e vivas; só que não se sentiam os ossos. Cerradas num aperto inevitável, as mãos não lutaram para escapar, mas diminuíram, fundiram-se de algum modo, e o conde acabou por nada mais segurar.

Outras pessoas que viram e tocaram essas mãos dizem que os dedos são inchados e rígidos, e comparam-nos a luvas de borracha cheias de um ar fosforescente e quente. Por vezes, no lugar de mãos, são pés que se exibem, todavia, nunca a descoberto. O espírito, a quem provavelmente faltam sapatos, respeita ao menos nisso a delicadeza das damas, e nunca mostra seu pé a não ser sob um cortinado ou uma toalha.

A aparição desses pés cansa e assusta muito o senhor Home. Ele procura então aproximar-se de alguma pessoa saudável, agarra-a como se temesse afogar-se; e a pessoa assim agarrada pelo médium sente-se de repente num estado singular de esgotamento e debilidade.

Um fidalgo polonês, que assistia a uma das sessões do senhor Home, colocara no chão entre seus pés um lápis sobre um papel, e pedira um sinal da presença do espírito. Durante alguns instantes nada se moveu. De repente, o lápis foi lançado ao outro extremo do apartamento. O fidalgo abaixou-se, pegou o papel e viu aí três signos cabalísticos que ninguém compreendia. Só o senhor Home, ao vê-los, pareceu experimentar uma grande contrariedade e manifestou um certo temor; porém recusou-se a explicar a natureza e a significação desses caracteres. Guardaram-nos, então, e trouxeram-nos para este professor de magia, cuja aproximação o médium tanto receara. Examinamo-os e aqui está sua minuciosa descrição.

Estavam desenhados com força e o lápis quase rasgara o papel.

Estavam espalhados na folha sem ordem e sem alinhamento.

O primeiro era o signo que os iniciados egípcios geralmente colocavam na mão de Tífon. Um tau com duplo traço vertical aberto em forma de compasso, uma cruz com alça tendo no alto um círculo, abaixo do círculo um duplo traço horizontal, sob o duplo traço horizontal um duplo traço oblíquo em forma de V invertido.

O segundo caráter representava uma cruz de grande hierofante com as três travessas hierárquicas. Esse símbolo, que remonta à mais alta Antigüidade, é ainda o atributo de nossos soberanos pontífices e arremata a extremidade superior de seu bastão pastoral. Mas o signo traçado pelo lápis tinha de particular que o ramo superior, a cabeça da cruz, era duplo e formava ainda o terrível V tifoniano, o signo do antagonismo e da separação, o símbolo do ódio e do combate eterno.

O terceiro caráter era o que os maçons denominam cruz filosófica, uma cruz de quatro ramos iguais com um ponto em cada um dos ângulos. Porém, em vez de quatro pontos, havia somente dois, colocados nos dois ângulos da direita, ainda um signo de luta, de separação e de negação.

O professor, que nos será permitido distinguir aqui do narrador e nomear na terceira pessoa, para não cansar nossos leitores parecendo falar-lhes de nós, o professor, pois, mestre Eliphas Levi, deu às pessoas reunidas na sala da senhora B… a explicação científica das três assinaturas, e eis o que ele disse:

“Estes três signos pertencem à série dos hieróglifos sagrados e primitivos conhecidos somente pelos iniciados da primeira ordem, o primeiro é a assinatura de Tífon. Ele exprime a blasfêmia desse espírito do mal estabelecendo o dualismo no princípio criador. Pois a cruz com alça de Osíris é um linga invertido, e representa a força paterna e ativa de Deus (a linha vertical saindo do círculo) fecundando a natureza passiva (a linha horizontal). Dobrar a linha vertical é afirmar que a natureza tem dois pais; é colocar o adultério no lugar da maternidade divina, é afirmar, ao invés do primeiro princípio inteligente, a fatalidade cega que tem por resultado o conflito eterno das aparências no nada; é, pois, o mais antigo, o mais autêntico e o mais terrível de todos os estigmas do inferno. Significa o deus ateu, é a assinatura de Satã.

“Essa primeira assinatura é hierática e refere-se aos caracteres ocultos do mundo divino.

“A segunda pertence aos hieróglifos filosóficos, representa a medida ascensional da idéia e a extensão progressiva da forma.

“É um triplo tau invertido, é o pensamento humano afirmando alternativamente o absoluto nos três mundos, e esse absoluto termina aqui por um forcado, ou seja, pelo signo da dúvida e do antagonismo. De tal modo que, se o primeiro caráter queria dizer: Não existe Deus, este tem por significação rigorosa: A verdade hierárquica não existe.

“O terceiro, ou a cruz filosófica, foi em todas as iniciações o símbolo da natureza e de suas quatro formas elementares, os quatro pontos representam as quatro letras indizíveis e incomunicáveis do tetragrama oculto, esta fórmula eterna do grande arcano G.’. A.’.

“Os dois pontos da direita representam a força, os da esquerda figuram o amor, e as quatro letras devem ser lidas da direita para a esquerda começando pelo alto à direita, e indo daí para a letra embaixo à esquerda, e assim para as outras fazendo a cruz de Santo André.

“A supressão dos dois pontos da esquerda exprime, pois, a negação da cruz, a negação da misericórdia e do amor.

“A afirmação do reino absoluto da força, e de seu antagonismo eterno, de alto a baixo e de baixo ao alto.

“A glorificação da tirania e da revolta.

“O signo hieroglífico do vício imundo, que se teve ou não razão de reprovar aos Templários, é o signo da desordem e do desespero eternos.”

Tais são, portanto, as primeiras revelações da ciência oculta dos magos sobre esses fenômenos de manifestações sobrenaturais. Agora, seja-nos permitido relacionar essas assinaturas estranhas a outras aparições contemporâneas de escrituras fenomenais, pois é um verdadeiro processo que a ciência deve instruir antes de levá-lo ao tribunal da razão pública. É preciso, pois, não desprezar nenhuma averiguação e nenhum indício.

Nas proximidades de Caen, em Tilly-sur-Seulles, uma série de fatos inexplicáveis produziam-se, havia alguns anos, sob a influência de um médium ou de um extático chamado Eugène Vintras.

Algumas circunstâncias ridículas e um processo fraudulento logo fizeram cair no esquecimento e mesmo no desprezo esse taumaturgo, atacado aliás com violência em panfletos cujos autores eram antigos admiradores de sua doutrina, pois o médium Vintras também dogmatiza. No entanto, uma coisa é notável nas invectivas de que ele é alvo: é que seus adversários, mesmo esforçando-se em condená-lo, reconhecem a verdade de seus milagres e contentam-se em atribuí-los ao demônio.

Quais são, pois, os milagres tão autênticos de Vintras?

Sobre esse assunto estamos melhor informados do que ninguém, como logo se notará. Autos assinados por testemunhas honradas, artistas, médicos, padres, aliás irrepreensíveis, foram-nos comunicados; interrogamos testemunhas oculares, e, melhor do que isto, vimos. As coisas merecem ser contadas com alguns detalhes.

Existe em Paris um escritor, no mínimo excêntrico, que se chama Madrolle. É um ancião cuja família e relações são honradas. Escreveu primeiramente no sentido católico mais exaltado, recebeu os estímulos mais lisonjeiros das autoridades eclesiásticas e até mesmo breves emanações da Santa Sé, depois conheceu Vintras; e, arrastado pelo prestígio de seus milagres, tornou-se um sectário determinado e um inimigo irreconciliável da hierarquia e do clero.

Na época em que Eliphas Levi publicava seu Dogma e Ritual da Alta Magia, recebeu uma brochura de Madrolle que o surpreendeu. O autor sustentava abertamente os paradoxos mais inauditos no estilo desordenado dos extáticos. Para ele, a vida bastava para a expiação dos grandes crimes, uma vez que ela era a conseqüência de uma sentença de morte. Os piores homens, por serem os mais infelizes de todos, pareciam-lhe oferecer a Deus uma expiação mais sublime. Enfurecia-se contra toda repressão e toda danação. “Uma religião que condena”, exclamava ele, “é uma religião condenada!” Depois pregava a licença mais absoluta sob o pretexto de caridade, e chegava até a dizer que o ato de amor mais imperfeito e aparentemente mais repreensível valia mais que a melhor das preces. Era o Marquês de Sade tornado pregador. Depois negava o diabo com um entusiasmo por vezes pleno de eloqüência.

“Podeis conceber”, dizia ele, “um diabo que Deus tolera, que Deus autoriza! Conceber além disso um Deus que fez o diabo e que o deixa atormentar criaturas já tão fracas e tão prontas a se enganarem! Um Deus do diabo enfim, secundado, preconceituoso e mal superado em suas vinganças por um diabo de Deus!…” O restante da brochura tinha a mesma força. O professor de magia esteve a ponto de aterrorizar-se e tratou de conseguir o endereço de Madrolle. Não foi sem alguma dificuldade que ele chegou até esse singular panfletário, e eis a seguir mais ou menos o que foi a conversa:

Eliphas Levi: – Senhor, recebi sua brochura. Venho agradecer-lhe e testemunhar-lhe ao mesmo tempo meu espanto e meu pesar.

Madrolle: – Seu pesar, senhor! Queira explicar-se, não estou entendendo.

– Lamento profundamente, senhor, vê-lo cometer erros que outrora eu mesmo cometi. Mas eu tinha, então, pelo menos a desculpa da inexperiência e da juventude. Falta alcance à sua brochura porque falta-lhe medida. Por certo sua intenção era protestar contra erros na crença, contra abusos na moral; e acontece serem a própria crença e a moral que o senhor ataca. A exaltação que transborda em seu pequeno escrito deve mesmo causar-lhe muito transtorno, e alguns de seus melhores amigos devem ter-se preocupado com seu estado de saúde…

– Sem dúvida! Já se disse e ainda se diz que sou louco. Mas não é de hoje que os crentes devem suportar a loucura da cruz. Estou exaltado porque, no meu lugar, o senhor também estaria, pois é impossível permanecer frio na presença dos prodígios.

– Oh! Oh! o senhor está falando de prodígios, isso me interessa. Vejamos, cá entre nós e de boa fé, de que prodígios se trata?

– Ora! de que prodígios senão daqueles do grande profeta Elias, que voltou à terra sob o nome de Pierre Michel.

– Estou ouvindo; o senhor quer dizer Eugène Vintras. Ouvi falar de suas obras. Mas ele realmente faz milagres?

(Nesse momento, Madrolle dá um salto da cadeira, ergue os olhos e as mãos para o céu, e termina por sorrir com uma condescendência que se assemelha a uma profunda piedade.)

– Se ele faz milagres, meu senhor! E os maiores!… Os mais surpreendentes!… Os mais incontestáveis!… Os mais verdadeiros milagres que se tenham feito na terra desde Jesus Cristo!… Como! milhares de hóstias aparecem sobre altares onde não havia nenhuma, o vinho brota em cálices vazios, e não é uma ilusão, é vinho, um vinho delicioso… ouvem-se músicas celestes, exalam-se aromas do outro mundo… e finalmente sangue… um verdadeiro sangue humano (foi examinado por médicos!), um sangue de verdade, estou dizendo, goteja e por vezes jorra das hóstias deixando nelas caracteres misteriosos! Estou lhe dizendo o que vi, ouvi, toquei, provei! E o senhor quer que eu permaneça frio diante de uma autoridade eclesiástica que acha mais cômodo negar tudo do que examinar qualquer coisa…!

– Com licença, meu senhor; é sobretudo em matéria de religião que a autoridade nunca pode errar… Em religião, o bem é a hierarquia, e o mal é a anarquia; a que se reduziria, com efeito, a influência do sacerdócio, se o senhor coloca como princípio que é preciso acreditar no testemunho dos sentidos mais do que nas decisões da Igreja? A Igreja não é mais visível do que todos os seus milagres? Os que vêem milagres e não vêem a Igreja são bem mais dignos de compaixão do que os cegos, pois não lhes resta nem mesmo o recurso de se deixarem conduzir…

– Meu senhor, sei tanto quanto o senhor essas coisas. Mas Deus não pode estar em desacordo consigo próprio. Não pode permitir que a boa fé seja ludibriada, e a própria Igreja não poderia decidir que sou cego quando tenho dois olhos… Ouça, eis o que se lê nas cartas de Jan Hus, quadragésima terceira carta, no final:

“Um doutor disse-me: “Em todas as coisas submeter-me-ia ao concílio, tudo então seria bom e legítimo para mim.” Acrescentou: “Se o concílio dissesse que tendes apenas um olho, embora tenhais dois, ainda assim seria preciso dizer que o concílio tem razão.” Quando o mundo inteiro, respondi, afirmasse tal coisa, enquanto tivesse o uso da razão, não poderia concordar sem ferir minha consciência.” Eu lhe direi como Jan Hus: Antes de haver uma Igreja e concílios, há uma verdade e uma razão.

– Um momento, meu caro senhor. Antigamente o senhor era católico, não é mais; as consciências são livres. Observarei apenas que a instituição da infalibilidade hierárquica em matéria de dogma é de modo bem diverso racional e bem mais incontestavelmente verdadeira que todos os milagres do mundo. Aliás, o que não se deve fazer para conservar a paz! Acredita o senhor que Jan Hus não teria sido um homem bastante superior, se tivesse sacrificado um de seus olhos à concórdia universal, ao invés de inundar a Europa de sangue! Oh! Senhor, que a Igreja decida quando lhe aprouver que sou caolho; só lhe peço uma graça, a de me dizer de qual olho, para que eu possa fechá-lo e olhar através do outro, com uma ortodoxia irrepreensível!

– Confesso que não sou ortodoxo ao seu modo.

– Estou percebendo. Mas voltemos aos prodígios! O senhor os viu, tocou, sentiu, provou; mas, vejamos, exaltações à parte, queira me contar um bem detalhado, bem circunstanciado, e que sobretudo seja evidentemente um milagre. Estou sendo indiscreto ao lhe pedir isso?

– De modo nenhum; mas qual escolherei? Há tantos! Ouça – acrescentou Madrofle após um instante de reflexão e com um leve tremor de emoção na voz -, o profeta está em Londres e nós estamos aqui. Pois bem! se o senhor lhe pedisse, apenas em pensamento, que lhe enviasse imediatamente a comunhão e se, num lugar designado pelo senhor, em sua casa, numa peça de roupa, num livro, o senhor encontrasse, ao voltar, uma hóstia, o que diria?

– Declararia esse fato inexplicável pelos meios usuais da crítica. – Pois bem, senhor! – exclama então Madrolle triunfante – no entanto, é isso que muitas vezes me acontece; quando quero, isto é, quando estou preparado e quando espero ser digno! Sim, senhor, encontro a hóstia quando a peço; eu a encontro real, palpável, mas freqüentemente decorada com pequenos corações milagrosos que se acreditaria pintados por Rafael.

Eliphas Levi, que se sentia pouco à vontade para discutir fatos a que se misturava uma espécie de profanação das coisas mais veneradas, despediu-se do antigo escritor católico e saiu meditando sobre a estranha influência desse Vintras, que modificara assim esta velha crença e esta velha mente de sábio.

Alguns dias depois, o cabalista Eliphas foi acordado muito cedo por um visitante desconhecido. Era um homem de cabelos brancos, todo vestido de preto, a fisionomia de um padre extremamente devoto, de aspecto, em suma, inteiramente respeitável.

Esse eclesiástico estava munido de uma carta de recomendação assim escrita:

“Caro Mestre,

Envio-lhe um velho sábio que deseja “arranhar” com o senhor o hebraico da bruxaria. Receba-o como eu mesmo (quero dizer como eu mesmo o recebi), desembaraçando-se dele da melhor maneira possível.

Todo seu na sacrossanta Cabala.

Ad. Desbarolles.”

– Senhor Abade – diz Eliphas sorrindo após haver lido -, estou à sua inteira disposição e nada posso recusar ao amigo que me escreve, então o senhor esteve com meu excelente discípulo Desbarolles?

– Sim, senhor, e encontrei nele um homem muito amável e muito sábio. O senhor e ele, acredito serem dignos da verdade que recentemente se manifestou através de surpreendentes milagres e das revelações positivas do arcanjo São Miguel.

– O senhor nos deixa honrados. O prezado Desbarolles surpreendeu-o, então, por sua ciência?

– Oh! com certeza ele possui os segredos da quiromancia num grau bastante notável; apenas com a leitura de minha mão contou-me quase toda minha vida.

– Ele é bem capaz disso. Mas entrou em detalhes?

– O suficiente, senhor, para convencer-me de seus conhecimentos extraordinários.

– Disse-lhe que o senhor é o antigo pároco de Mont-Louis, na diocese de Tours? Que é o discípulo mais zeloso do extático Eugène Vintras? E que se chama Charvoz?

Tamanha reviravolta causou-lhe um choque: o velho padre, a cada uma dessas três frases, dera um salto na cadeira. Quando ouviu seu nome empalideceu e levantou-se como se fosse impulsionado por uma mola.

– O senhor é realmente um mágico? – exclamou ele. – Charvoz é de fato meu nome, mas não é o que uso; faço-me chamar La Paraz…

– Eu sei. La Paraz é o sobrenome de sua mãe. O senhor deixou uma posição bastante invejável: a de pároco de um cantão e de um encantador presbitério, para compartilhar da existência agitada de um sectário…

– Diga de um grande profeta!

– Senhor, acredito inteiramente em sua boa fé. Mas vai me permitir examinar um pouco a missão e o caráter de seu profeta.

– Pois não, senhor, o exame, o grande dia, a luz da ciência, eis o que pedimos. Venha a Londres e verá! Os milagres são permanentes.

– Pode me dar, antes, alguns detalhes exatos e conscienciosos sobre os milagres?

– Oh! quantos quiser.

E o velho padre começou imediatamente a contar coisas que todo o mundo teria considerado impossíveis, mas que não fizeram o professor de alta magia sequer franzir as sobrancelhas.

Coisas como por exemplo:

– Um dia, Vintras, num acesso de entusiasmo, pregava diante de seu altar heterodoxo; vinte e cinco pessoas assistiam a esse sermão. Um cálice vazio estava sobre o altar, cálice bem conhecido pelo abade Charvoz; trouxera-o ele próprio de sua igreja de Mont-Louis, e tinha absoluta certeza de que esse cálice sagrado não tinha nem conduto misterioso nem fundo duplo.

“Para vos provar”, diz Vintras, “que é o próprio Deus quem me inspira, ele me faz saber que o cálice vai se encher com as gotas de seu sangue sob a aparência de vinho, e todos vós podereis saborear o produto das vinhas do porvir, o vinho que devemos beber com o Salvador no reino de seu pai…”

– Tomado de espanto e medo – continua o abade Charvoz subo ao altar, pego o cálice, olho no fundo: estava inteiramente vazio. Viro-o diante de todos, depois volto a me ajoelhar ao pé do altar, segurando o cálice entre as mãos… De repente ouve-se um leve ruído, como se tivesse caído do teto uma gota de água no cálice, e uma gota de vinho aparece no fundo. Todos os olhares voltam-se para mim, olha-se para o teto, pois nossa simples capela estava armada num quarto pobre; no teto não havia buraco nem fenda, nada se via cair, e no entanto o barulho da queda das gotas multiplicava-se mais rápido e mais apressado… e o vinho brotava do fundo do cálice para a borda. Quando o cálice ficou cheio, passei-o lentamente sob os olhares da assembléia, depois o profeta molhou aí seus lábios, e todos, um após o outro, provaram o vinho milagroso. Qualquer lembrança de um sabor delicioso não poderia dar a idéia de seu gosto. E o que lhe direi – acrescentou o abade Charvoz – dos prodígios de sangue que nos surpreendem todos os dias. Milhares de hóstias feridas e sangrentas refugiam-se em nossos altares. Os estigmas sagrados aparecem diante de todos aqueles que os querem ver. As hóstias, inicialmente brancas, marmorizam-se lentamente de caracteres e de corações ensangüentados… Deve-se acreditar que Deus abandona aos prestígios do demônio as coisas mais santas? ou antes de mais nada é preciso adorar e crer que é chegada a hora da suprema e última revelação?

O abade Charvoz, ao falar assim, tinha na voz aquela espécie de tremor nervoso que Eliphas Levi já observara em Mandrolle. O mágico balançava a cabeça com um ar pensativo; depois, de repente:

– Senhor – diz ao abade -, o senhor traz consigo uma ou várias dessas hóstias. Seja gentil deixando-me vê-Ias.

– Senhor…

– Eu sei que o senhor as tem; por que tentar negar?

– Não o nego – diz o abade Charvoz -, mas o senhor me permitirá não expor às investigações da incredulidade os objetos da mais sincera e devotada crença.

– Senhor Abade – diz gravemente Eliphas -, a incredulidade é a desconfiança de uma ignorância quase certa de estar enganada. A ciência não é incrédula. A princípio creio em sua convicção, uma vez que o senhor aceitou uma vida de privações e mesmo de reprovações por essa infeliz crença. Mostre-me, pois, suas hóstias milagrosas e creia em todo o meu respeito pelos objetos de uma sincera adoração.

– Pois bem! – diz o abade Charvoz após ter ainda hesitado um pouco -, vou mostrar-lhe.

Então ele desabotoou o alto de seu colete negro e tirou um pequeno relicário de prata, diante do qual pôs-se de joelhos com lágrimas nos olhos e preces nos lábios; Eliphas ajoelhou-se perto dele, e o abade abriu o relicário.

Havia no relicário três hóstias, uma inteira, as duas outras quase em pasta e como que amassadas com sangue.

A hóstia inteira tinha no centro um coração em relevo dos dois lados; um grumo de sangue moldado na forma de coração, e que parecia ter-se formado na própria hóstia de modo inexplicável. O sangue não poderia ter sido aplicado por fora, pois a coloração por embebição deixara brancas as partes aderentes à superfície exterior. A aparência do fenômeno era a mesma dos dois lados. O mestre de magia foi tomado por um tremor involuntário.

Essa emoção não escapou ao velho pároco que, tendo adorado mais uma vez e fechado seu relicário, tirou do bolso um álbum e entregou-o a Eliphas sem nada dizer. Eram cópias de todos os caracteres sangrentos observados nas hóstias desde o começo dos êxtases e dos milagres de Vintras.

Havia corações de todos os tipos, emblemas de todos os gêneros. Mas três sobretudo excitaram ao máximo a curiosidade de Eliphas…

– Senhor Abade – diz ele a Charvoz -, conhece estes três signos?

– Não – disse ingenuamente o abade -, mas o profeta garante que são da mais alta importãncia e que sua significação oculta deverá ser conhecida logo, isto é, no final dos tempos.

– Pois bem, senhor – diz solenemente o professor de magia – antes mesmo do fim dos tempos vou explicar-lhe: estes três signos cabalísticos são a assinatura do diabo!

– É impossível! – exclama o velho padre.

– É isso mesmo – continuou com firmeza Eliphas.

Ora, eis que signos eram esses:

1º – A estrela do microcosmo, ou o pentagrama mágico. É a estrela de cinco pontas da maçonaria oculta, a estrela em que Agripa desenhou a figura humana, a cabeça na ponta superior, os quatro membros nas quatro outras. A estrela flamejante que, invertida, é o signo hieroglífico do bode da magia negra, cuja cabeça pode, então, estar desenhada na estrela, os dois chifres no alto, à direita e à esquerda as orelhas, a barba embaixo. É o signo do antagonismo e da fatalidade. É o bode da luxúria atacando o céu com seus chifres. É um signo execrado mesmo no sabbat pelos iniciados de uma ordem superior.

2º – As duas serpentes herméticas, porém as cabeças e as caudas, ao invés de se juntarem em dois semicírculos paralelos, estavam de fora, e não havia linha intermediária representando o caduceu. Acima da cabeça das serpentes via-se o V fatal, o forcado tifoniano, o caráter do inferno. À direita e à esquerda, os números sagrados III e VII relegados sobre a linha horizontal que representa as coisas passivas e secundárias. O sentido do caráter, portanto, era este:

O antagonismo é eterno.

Deus é a luta das forças fatais que criam sempre destruindo.

As coisas religiosas são passivas e passageiras.

A audácia delas se serve, a guerra delas se aproveita, e é através delas que a discórdia se perpetua.

3º – Finalmente, o monograma cabalístico de Jehova, o Iod e o He, porém invertidos, o que forma, segundo os doutores da ciência oculta, a mais terrível de todas as blasfêmias e significa, de qualquer modo que se leia:

“Só a fatalidade existe: Deus e o espírito não são. A matéria é tudo, e o espírito é apenas uma ficção dessa mesma matéria em demência. A forma é mais que a idéia, a mulher mais que o homem, o prazer mais que o pensamento, o vício mais que a virtude, a multidão mais que seus chefes, os filhos mais que seus pais, a loucura mais que a razão!”

Eis o que estava escrito em caracteres de sangue nas hóstias supostamente milagrosas de Vintras!

Damos nossa palavra de honra de que todos os fatos acima enunciados são tais como os relatamos e de que nós mesmos vimos e explicamos os caracteres, segundo a verdadeira ciência mágica e as verdadeiras chaves da Cabala.

O discípulo de Vintras comunicou-nos também a descrição e o desenho das vestes pontificais dadas, dizia ele, pelo próprio Jesus Cristo ao pretenso profeta durante um de seus sonos extáticos. Vintras mandou confeccionar essas vestes e enfeita-se com elas para fazer seus milagres. São vermelhas. Ele deve trazer na fronte uma cruz em forma de linga, ter um bastão pastoral encimado por uma mão, cujos dedos estão todos fechados, à exceção do polegar e do auricular.

Ora, tudo isso é diabólico por excelência, e não é uma coisa verdadeiramente maravilhosa essa intuição dos signos de uma ciência perdida? Pois foi a alta magia que, apoiando o universo sobre as duas colunas de Hermes e de Salomão, dividiu o mundo metafísico em duas zonas intelectuais, uma branca e luminosa encerrando as idéias positivas, a outra negra e obscura contendo as idéias negativas, e que deu à noção sintética da primeira o nome de Deus, à síntese da outra o nome do diabo, ou de Satã.

O signo do linga trazido na fronte é, na Índia, a marca distintiva dos adoradores de Shiva, o destruidor; sendo esse signo o do grande arcano mágico que detém o mistério da geração universal, trazê-lo sobre a fronte é fazer profissão de impudor dogmático. Ora, dizem os orientais, no dia em que não houver mais pudor no mundo, e este estiver abandonado à devassidão, que é estéril, logo acabará por falta de mães. O pudor é a aceitação da maternidade.

A mão com os três grandes dedos fechados expressa a negação do ternário e a afirmação das únicas forças naturais.

Os antigos hierofantes, como vai explicar nosso sábio e espirituoso amigo Desbarolles num belo livro, haviam feito da mão humana o resumo da ciência mágica. O indicador, para eles, representava Júpiter; o grande dedo ou dedo médio, Saturno; o anular, Apolo ou o Sol. Para os egípcios, o dedo médio era Ops, o indicador, Osíris e o anular, Hórus; o polegar representava a força geradora, e o auricular, a habilidade insinuante. A mão mostrando apenas o polegar e o auricular equivale, em língua hieroglífica sagrada, à afirmação exclusiva da paixão e da habilidade. É a tradução abusiva e material desta grande fala de Santo Agostinho: “Amai e fazei o que quiserdes.” Comparai agora esse signo à doutrina de Madrolle: o ato de amor mais imperfeito e aparentemente mais condenável vale mais do que a melhor das preces. E vós vos perguntareis qual força é essa que, independentemente da vontade e da maior ou menor ciência dos homens (pois Vintras é um homem sem letras e sem instrução), formula seus dogmas com signos enterrados nos destroços do antigo mundo, reencontra os mistérios de Tebas e de Elêusis, e escreve-nos os mais doutos devaneios da Índia com os alfabetos ocultos de Hermes.

Que força é essa? Eu vos direi. Mas tenho ainda muitos outros prodígios a vos contar, e este trabalho é, digamos, como uma instrução jurídica. Devemos antes de mais nada completá-la.

No entanto, ser-nos-á permitido, antes de passar a outros relatos, transcrever aqui uma página de um iluminado alemão, Ludwig Tieck.

“Se, por exemplo, como narra uma antiga tradição, uma parte dos anjos criados não tardou em decair, e se foram precisamente, como é dito ainda, os mais brilhantes, pode-se depreender dessa queda apenas que eles buscavam um caminho novo, uma outra atividade, outras ocupações e uma outra vida, ao contrário daqueles espíritos ortodoxos, ou mais passivos, que permaneceram na região que lhes era destinada e não fizeram nenhum uso da liberdade, seu apanágio comum. Sua queda foi essa gravidade da forma que agora chamamos realidade, e que é a reabsorção do espírito universal nos abismos. É assim que a morte conserva e reproduz a vida, é assim que a vida é noiva da morte… Compreendeis agora o que é Lúcifer? Não é o gênio mesmo do antigo Prometeu, essa força que impulsiona o mundo, a vida, o próprio movimento, e que regula o curso das forças sucessivas? Essa força, por sua resistência, equilibrou o princípio criador. Foi assim que os Eloim criaram o mundo. Quando em seguida os homens foram colocados na terra, pelo Senhor, como espíritos intermediários, em seu entusiasmo que os levava a investigar a natureza e suas profundezas, abandonaram-se à influência daquele soberbo e poderoso gênio, e quando num doce enlevo precipitaram-se na morte, para aí encontrar a vida, começaram então a existir de modo verdadeiro, natural e como convém às criaturas.”

Esta página não necessita de comentário e explica o suficiente as tendências do que se denomina espiritualismo, ou a doutrina espírita.

Há muito tempo já essa doutrina, ou essa antidoutrina, trabalha o mundo para precipitá-lo numa anarquia universal. Porém a lei de equilíbrio nos salvará, e o grande movimento de reação já começou.

Retomemos o relato dos fenômenos.

Um operário apresentou-se um dia na casa de Eliphas Levi. Era um homem de uns cinqüenta anos, alto, de olhar direto e que falava de modo bastante sensato. Perguntado sobre o motivo de sua visita, respondeu:

– O senhor deve saber, venho pedir-lhe e suplicar-lhe que me devolva o que perdi.

Devemos dizer, para sermos sinceros, que Eliphas nada sabia sobre esse visitante nem sobre o que ele pudesse ter perdido. Assim, respondeu-lhe:

– Acredita-me muito mais bruxo do que na realidade sou; não sei quem é nem o que procura, portanto, se acredita que lhe possa ser útil em alguma coisa, é necessário que se explique e esclareça o seu pedido.

– Pois bem! uma vez que não quer me compreender, reconhecerá pelo menos isso – disse então o desconhecido, tirando do bolso um pequeno livro negro e roto.

Era o grimório do papa Honório.

Uma palavra sobre esse pequeno livro tão desacreditado.

O grimório de Honório compõe-se de uma constituição apócrifa de Honório II para a evocação e o governo dos espíritos; e mais, de algumas receitas supersticiosas… Era o manual dos maus padres que exerciam a magia negra durante os mais tristes períodos da Idade Média. Encontram-se aí ritos sangrentos misturados a profanações da missa e das espécies consagradas, fórmulas de bruxaria e de malefícios, e também práticas que só a estupidez pode admitir e a perfídia aconselhar. Enfim, é um livro completo em seu gênero; assim, tornou-se muito raro nas livrarias, e os apreciadores fazem seu preço subir muito nos leilões.

– Meu caro senhor – disse o operário suspirando -, desde a idade de seis anos, não deixei uma única vez de fazer meu serviço. Este livro não me deixa, e sigo rigorosamente todas as prescrições que ele contém. Por que então os que me visitavam abandonaram-me? Eli, Eli, Lamma…

– Pare – disse Eliphas -, não parodie as mais formidáveis palavras que uma agonia já fez o mundo ouvir! Quais são os seres que o visitavam pelo poder deste livro horrível? Conhece-os? Prometeu-lhes alguma coisa? Assinou um pacto?

– Não – interrompeu o proprietário do grimório -, não os conheço e não assumi com eles nenhum compromisso. Sei apenas que entre eles os chefes são bons, os intermediários alternativamente bons e maus; os inferiores maus, mas não cegamente e sem que lhes seja possível fazer melhor. Aquele a quem evoquei e que freqüentemente me apareceu pertence à hierarquia mais elevada, pois tinha boa aparência, era bem vestido e sempre me dava respostas favoráveis. Mas perdi uma página do meu grimório, a primeira, a mais importante, a que trazia a assinatura do espírito, e, desde então, não aparece mais quando o chamo. Sou um homem perdido. Estou nu como Jó, não tenho mais força nem coragem. Oh! mestre, eu lhe suplico, o senhor a quem a uma única palavra, a um único sinal os espíritos obedecerão, tenha piedade de mim e devolva-me o que perdi!

– Dê-me seu grimório – disse Eliphas. – Que nome dava ao espírito que lhe aparecia?

– Chamava-o Adonai.

– Em que língua era sua assinatura?

– Ignoro, mas suponho que fosse hebraico.

– Tome – disse o professor de alta magia após haver traçado duas palavras hebraicas no começo e no final do livro. – Eis duas assinaturas que os espíritos das trevas nunca falsificarão. Vá em paz, durma bem e não evoque mais os fantasmas.

O operário retirou-se.

Oito dias depois voltou a procurar o homem de ciência.

– O senhor devolveu-me a esperança e a vida, minha força voltou em parte, posso, com as assinaturas que me deu, aliviar a dor dos que sofrem e livrar os obcecados, mas ele não posso mais ver, e, enquanto não o vir de novo, estarei triste até a morte. Antigamente, ele estava sempre perto de mim, tocava-me por vezes e acordava-me à noite para me dizer tudo o que eu precisava saber. Mestre, eu lhe suplico, faça com que o veja de novo.

– Quem?

– Adonai.

– Sabe quem é Adonai?

– Não, mas gostaria de revê-lo.

– Adonai é invisível.

– Eu o vi.

– Ele não tem forma.

– Eu o toquei.

– Ele é infinito.

– É mais ou menos do meu tamanho.

– Os profetas dizem que a orla de sua roupa, do Oriente ao Ocidente, varre as estrelas da manhã.

– Tinha um sobretudo muito limpo e a roupa muito branca.

– A Sagrada Escritura diz ainda que não se pode vê-lo sem morrer.

– Tinha um rosto bom e jovial.

– Mas como o senhor procedia para obter essas aparições?

– Ora! Fazia tudo o que está indicado no grande grimório.

– O quê! mesmo o sacrifício de sangue?

– Sem dúvida.

– Infeliz! mas quem era a vítima?

A essa pergunta, o operário teve um leve tremor, empalideceu, seu olhar perturbou-se.

– Mestre, o senhor sabe melhor do que eu – disse humildemente e em voz baixa. – Oh! custou-me muito; sobretudo a primeira vez, num único golpe com a faca mágica cortar a garganta dessa criatura inocente! Uma noite, tinha acabado de cumprir os ritos fúnebres, estava sentado dentro do círculo, na soleira interna da minha porta, e a vítima acabava de se consumir num grande fogo feito com álamos e ciprestes… De repente, perto de mim… vi, ou antes senti, que ele passava… Ouvi um lamento dilacerante… parecia chorar, e a partir desse momento tinha a impressão de ouvi-lo sempre.

Eliphas levantara-se e olhava fixamente seu interlocutor. Teria diante de si um louco perigoso capaz de repetir as atrocidades do Senhor de Retz? No entanto, a aparência desse homem era suave e honesta. Não, isso não era possível.

– Mas enfim, essa vítima… diga-me claramente o que era. O senhor supõe que eu já saiba, e talvez saiba mesmo, mas tenho razões para querer que me diga.

– Era, de acordo com o ritual mágico, um cabritinho de um ano, virgem e sem defeitos.

– Um cabrito de verdade?

– Sem dúvida. Acredite, não era nem um brinquedo de criança nem um animal empalhado.

Eliphas respirou.

“Ainda bem!” pensou, “este homem não é um bruxo digno da fogueira. Não sabe que os abomináveis autores dos grimórios, quando falavam do cabrito virgem, queriam dizer uma criancinha.”

– Pois bem! – disse então àquele que o consultava -, dê-me detalhes sobre essas visões. O que me conta interessa-me muitíssimo.

O bruxo, pois é preciso chamá-lo pelo seu nome, o bruxo contou-lhe então uma série de fatos estranhos de que duas famílias haviam sido testemunhas, e esses fatos eram precisamente idênticos aos fenômenos do senhor Home: mãos que saíam das paredes, agitações de móveis, aparições fosforescentes. Um dia, o temerário aprendiz de mágico ousara chamar Astaroth, e vira aparecer um monstro gigantesco que tinha o corpo de um porco e a cabeça tirada de um colossal esqueleto de boi. Mas tudo isso era contado num tom de verdade, com uma certeza de ter visto, que excluía qualquer dúvida sobre a boa fé e a inteira convicção do narrador. Eliphas, que é artista em magia, encantou-se com esse achado. No século XIX, um verdadeiro bruxo da Idade Média, um bruxo ingênuo e convicto! Um bruxo que viu Satã sob o nome de Adonai, Satã vestido como um burguês e Astaroth sob sua verdadeira forma diabólica! que obra de arte! que tesouro de arqueologia!

– Meu amigo – disse a seu novo discípulo -, quero ajudá-lo a encontrar o que diz ter perdido. Pegue meu livro, observe as prescrições do ritual e venha ver-me daqui a oito dias.

Oito dias depois, nova conferência, e então o operário declarou que inventou uma máquina de salvamento da maior importância para a marinha. A máquina está perfeitamente montada; falta apenas uma coisa… não funciona: um defeito imperceptível está no mecanismo. Que defeito é esse? Só o espírito de malícia poderia dizer. É, pois, absolutamente necessário evocá-lo!…

– Cuidado – disse Eliphas -; antes, diga durante nove dias esta invocação cabalística (e entregou-lhe uma folha manuscrita). Comece esta noite, e volte amanhã para me dizer o que viu, pois esta noite o senhor terá uma manifestação.

No dia seguinte, nosso homem não faltou ao encontro.

– Acordei de repente, mais ou menos à uma hora da manhã. Vi diante de minha cama uma grande luz, e dentro dessa luz um braço de sombra que passava e repassava diante de mim como para magnetizar-me. Então, tornei a dormir, e, alguns instantes depois, tendo novamente acordado, revi a mesma luz, mas ela mudara de lugar. Passara da esquerda para a direita, e sobre o fundo luminoso distingui a silhueta de um homem que cruzava os braços e me olhava.

– Como era esse homem?

– Aproximadamente da sua estatura e do seu peso.

– Está bem. Vá e continue a fazer o que eu lhe disse.

Passaram-se os nove dias; ao final desse tempo, nova visita do adepto; mas dessa vez muito feliz e agradecido. Ao ver ao longe Eliphas:

– Obrigado, mestre! – exclamou -, a máquina funciona, pessoas que eu não conhecia vieram colocar à minha disposição o capital de que necessitava para terminar meu empreendimento, reencontrei a paz do sono, e tudo isso graças ao seu poder.

– Diga antes graças à sua fé e à sua docilidade, e agora adeus, preciso trabalhar… E então? por que este ar suplicante, o que ainda quer de mim?

– Oh! se o senhor quisesse!…

– Se quisesse o quê? Não obteve tudo o que pediu, e até mais do que pediu, pois o senhor não havia falado em dinheiro.

– Sim, certamente, disse o outro suspirando, mas gostaria muito de revê-lo!

– Incorrigível!

Algumas semanas depois, o professor de alta magia foi acordado mais ou menos às duas horas da manhã por uma dor de cabeça aguda. Durante alguns instantes, receou uma congestão cerebral, levantou-se, acendeu a lâmpada, abriu a janela, passeou pelo seu gabinete de estudos, depois, acalmado pelo ar fresco da manhã, voltou a deitar-se e adormeceu profundamente; teve, então, um pesadelo; viu, com uma aparência terrível de realidade, o gigante de cabeça de boi descarnada de que lhe falara o mecânico. Esse monstro perseguia-o e lutava com ele. Quando acordou já era dia e alguém batia à sua porta. Eliphas levantou-se, jogou uma roupa sobre o corpo e foi abrir: era o operário.

– Mestre – disse entrando apressadamente e com um ar alarmado -, como o senhor está se sentindo?

– Muito bem – respondeu Eliphas.

– Mas essa noite, às duas horas da manhã, o senhor não correu perigo?

Eliphas não sabia do que se tratava e já não se lembrava de sua indisposição da noite.

– Um perigo? não, nenhum que eu saiba.

– O senhor não foi atacado por um fantasma monstruoso que tentava estrangulá-lo? O senhor não sofreu?

Eliphas lembrou-se.

– Sim, certamente tive um começo de apoplexia e um sonho horrível. Mas como sabe disso?

Na mesma hora, uma mão invisível bateu-me com força no ombro e acordou-me em sobressalto. Sonhava, então, que o via lutando com Astaroth. Sentei-me na cama e uma voz disse-me ao ouvido: “Levante-se e vá em socorro de seu mestre; ele está em perigo.” Levantei-me precipitadamente.

Mas, em primeiro lugar, para onde era preciso correr? Que perigo o ameaçava? Era em sua casa ou em outra parte? A voz nada dissera sobre isso. Tomei a decisão de esperar o nascer do sol, e, desde que o dia clareou, vim em seu auxílio, e aqui estou.

– Obrigado, meu amigo – disse-lhe o mágico estendendo-lhe a mão, Astaroth é um bufão desagradável, e essa noite um pouco de sangue subiu-me à cabeça, apenas isto. Agora estou perfeitamente bem. Pode, portanto, ficar tranqüilo e voltar ao trabalho.

Por mais estranhos que sejam os fatos que acabamos de contar, resta-nos revelar um drama fúnebre ainda bem mais extraordinário.

Trata-se do fato cruento, que no início deste ano, mergulhou no luto e no estupor Paris e toda a cristandade; fato a que ninguém suspeitou que a magia negra não fosse estranha.

Eis o que aconteceu:

Durante o inverno, no início do ano passado, um livreiro informou ao autor de Dogma e Ritual da Alta Magia que um eclesiástico procurava seu endereço e demonstrava o maior desejo de vê-lo. Eliphas Levi não se sentiu, de início, tomado de confiança por esse desconhecido a ponto de expor-se sem precauções à sua visita; indicou uma casa amiga, onde deveria estar com seu fiel amigo Desbarolles. Na hora combinada e no dia marcado, eles foram à casa da senha A…, e encontraram o eclesiástico que já há alguns instantes os esperava.

Era um moço bastante magro, de nariz pontiagudo e arqueado, de olhos azuis e ternos. Sua testa ossuda e saliente era mais larga do que alta: a cabeça era alongada atrás, os cabelos lisos e curtos, repartidos de lado, eram de um loiro acinzentado, pendendo para o castanho claro, mas com uma nuança particular e desagradável. A boca era sensual e batalhadora; seus modos, aliás, eram afáveis, a voz doce e a fala algumas vezes um pouco embaraçada. Perguntado por Eliphas Levi sobre o objetivo sua visita, respondeu que estava à procura do grimório de Honório e que vinha informar-se com o professor de ciências ocultas sobre o modo de se obter esse pequeno livro negro, que se tornara praticamente impossível de encontrar.

– Eu daria cem francos por um exemplar desse grimório – dizia ele.

– A obra em si nada vale – disse Eliphas. – É uma constituição, que se supõe ser de Honório II, que o senhor talvez encontre citada por algum colecionador de constituições apócrifas; o senhor poderia procurar na biblioteca.

– Farei isso, pois em Paris passo quase todo o meu tempo na bibliotecas públicas.

– Não está ocupado no ministério de Paris.

– Não, no momento não. Estive trabalhando durante algum tempo na paróquia São Germano de Auxerre.

– E, pelo que vejo, ocupa-se agora com pesquisas curiosas sobre as ciências ocultas.

– Não exatamente; mas persigo a realização de uma idéia… Tenho alguma coisa a fazer.

– Suponho que essa alguma coisa não seja uma operação de magia negra; sabe, como eu, senhor abade, que a Igreja sempre condenou e ainda condena severamente tudo o que se relaciona com essas práticas proibidas.

Um pálido sorriso, marcado por uma espécie de ironia sarcástica, foi toda a resposta do abade, e a conversa interrompeu-se.

No entanto, o quiromante Desbarolles observava atentamente a mão do padre; este percebeu e seguiu-se, naturalmente, uma explicação, o abade então ofereceu de bom grado sua mão ao experimentador. Desbarolles franziu as sobrancelhas e pareceu embaraçado. A mão era úmida e fria, os dedos lisos e espatulados; o monte de Vênus, ou a parte da palma da mão que corresponde ao polegar, de um desenvolvimento bastante notável, a linha da vida curta e interrompida, cruzes no centro da mão, estrelas no monte da Lua.

– Senhor abade – disse Desbarolles -, se o senhor não tivesse uma sólida instrução religiosa, tornar-se-ia um perigoso sectário, pois, por um lado, é inclinado ao misticismo mais exaltado e, pelo outro, à obstinação mais concentrada e menos comunicativa que possa existir no mundo. O senhor procura muito, mas imagina mais ainda, e como não confia a ninguém suas imaginações elas poderiam atingir proporções que as transformariam em suas verdadeiras inimigas. Seus hábitos são contemplativos e um pouco indolentes, mas é uma sonolência cujos despertares podem ser dignos de temor. É levado a uma paixão que seu estado… Mas, perdoe-me, senhor abade, receio ter ultrapassado os limites da discrição.

– Diga tudo, senhor, posso ouvir tudo e desejo tudo saber.

– Pois bem! se, como não duvido, o senhor dedica à caridade toda a atividade inquieta que as paixões do coração lhe dariam, deve ser muitas vezes bendito por suas boas obras.

Mais uma vez o abade deu aquele sorriso duvidoso e fatal que dava ao seu pálido rosto tão singular expressão.

Levantou-se e despediu-se sem ter dito seu nome e sem que ninguém se tivesse lembrado de perguntá-lo.

Eliphas e Desbarolles reconduziram-no até a escada em respeito à sua dignidade de padre. Perto da escada, voltou-se e disse lentamente:

– Em breve os senhores ouvirão dizer algo… Ouvirão falar de mim, acrescentou sublinhando cada palavra. Depois saudou-os com um gesto de cabeça e com a mão, virou-se sem acrescentar uma só palavra e desceu a escada.

Os dois amigos retomaram à casa da senhora A…

– Eis aí um singular personagem – disse Eliphas. – Pareceu-me ver Pierrot des Furnambules no papel de um traidor. O que nos disse ao partir parece-se bastante com uma ameaça.

– O senhor intimidou-o – disse a senhora A… – Antes de sua chegada, ele começava a expor todo seu pensamento, mas o senhor falou-lhe de consciência e das leis da Igreja, ele não ousou confessar o que queria.

– Ora essa! o que ele queria então?

– Ver o diabo.

– Pensaria, por acaso, que o trago no bolso?

– Não, mas sabe que o senhor dá aulas de cabala e de magia, esperava que o ajudasse em seus empreendimentos. Contou-nos, à minha filha e a mim, que em seu presbitério, no campo, já fizera uma noite uma evocação com o auxílio de um grimório vulgar. Então, disse ele, um redemoinho pareceu abalar o presbitério, as vigas rangeram, a madeira do forro estalou, as portas balançaram-se, as janelas abriram-se com estrondo, e ouviram-se assovios em todos os cantos da casa. Esperava, então, a visão formidável, mas nada viu, nenhum monstro se apresentou; numa palavra, o diabo não quis aparecer. É por isso que ele procura o grimório de Honório, pois espera encontrar aí conjurações mais fortes e ritos mais eficazes.

– Realmente! esse homem então é um monstro… ou um louco.

– Deve estar apenas ingenuamente apaixonado – disse Desbarolles. – Está tormentado por alguma paixão absurda e não espera absolutamente nada, a menos que o diabo se intrometa.

– Mas como, então, ouviremos falar dele?

– Quem sabe? Talvez tencione seqüestar a rainha da Inglaterra ou a mãe do sultão.

A conversa parou por aí, e um ano inteiro se passou sem que nem a senhora A…. nem Desbarolles, nem Eliphas ouvissem falar do jovem padre desconhecido.

Na noite do primeiro para o segundo dia de janeiro do ano de 1857, Eliphas Levi acordou sobressaltado com as emoções de um sonho estranho e fúnebre. Parecia-lhe estar num quarto gótico em ruínas muito semelhante à capela abandonada de um velho castelo. Uma porta oculta por um pano negro dava para esse quarto, atrás do pano adivinhava-se a luz tênue e avermelhada dos círios, e parecia a Eliphas que, levado por uma curiosidade cheia de terror, aproximava-se do pano negro… Então o pano entreabriu-se, uma mão estendeu-se e agarrou o braço de Eliphas. Ele não viu ninguém, mas ouviu uma voz baixa que dizia em seu ouvido:

– Venha ver seu pai que vai morrer!

O magista acordou com o coração palpitante e a testa banhada de suor.

“O que quer dizer esse sonho?”, pensou. “Meu pai morreu há muito tempo; por que me dizem que ele vai morrer, e por que essa advertência perturbou meu coração?”

Na noite seguinte, o mesmo sonho voltou com as mesmas circunstâncias, e Eliphas Levi acordou mais uma vez ouvindo repetir ao seu ouvido:

– Venha ver seu pai que vai morrer!

Essa repetição de pesadelos impressionou Eliphas penosamente: ele aceitara para 3 de janeiro um convite para jantar em companhia alegre, escreveu para desculpar-se, achando-se pouco disposto para a alegria de um banquete de artistas. Permaneceu, então, em seu gabinete de estudos; o tempo estava carregado; ao meio-dia, recebeu a visita de um de seus discípulos de magia, o visconde de M… A chuva caiu, então, com tal abundância que Eliphas ofereceu seu guarda-chuva ao visconde, que recusou-se a aceitá-lo. Seguiu-se uma discussão de polidez, cujo resultado foi que Eliphas saiu para reconduzir o visconde. Enquanto estavam fora, a chuva cessou, o visconde encontrou um carro, e Eliphas, ao invés de voltar para casa, atravessou maquinalmente o Luxemburgo, saiu pelo portão que dá para a Rua do Inferno, e encontrou-se diante do Panteão.

Uma dupla fileira de barracas improvisadas para a novena de Santa Genoveva indicava aos peregrinos o caminho de Santo Estêvão do Monte. Eliphas, cujo coração estava triste e, por conseguinte, disposto às orações, seguiu essa via e entrou na Igreja. Podiam ser, nesse momento, quatro horas da tarde.

A igreja estava cheia de fiéis, e o ofício realizava-se com um grande recolhimento e uma solenidade extraordinária. Os estandartes das paróquias da cidade e do subúrbio atestavam a veneração pública por essa virgem que salvou Paris da fome e das invasões. No fundo da igreja, o túmulo de Santa Genoveva resplandecia de luz. Cantavam-se as ladainhas e a procissão saía do coro.

Após a cruz, acompanhada de seus acólitos e seguida pelos meninos do coro, vinha o estandarte de Santa Genoveva; depois caminhavam em duas filas as senhoras genovevinas, vestidas de preto com um véu branco na cabeça, uma fita azul ao pescoço e a medalha da legenda, um círio na mão encimado por uma pequena lanterna gótica, como as que a tradição atribui às imagens da santa. Pois, nos antigos legendários, Santa Genoveva é sempre representada com uma medalha ao pescoço, a que lhe deu São Germano de Auxerre, e segurando um círio que o demônio esforça-se em apagar, mas que é preservado do sopro do espírito imundo por um pequeno tabernáculo milagroso.

Após as senhoras genovevinas vinha o clero, depois, finalmente, aparecia o venerável arcebispo de Paris, mitrado de branco, portando uma capa levantada de cada lado por dois grandes vigários; o prelado, apoiando-se em seu báculo, caminhava lentamente e abençoava à direita e à esquerda a multidão que se ajoelhava à sua passagem. Eliphas via o arcebispo pela primeira vez e observou os traços de seu rosto. Expressavam a bonomia e a doçura; mas podia-se notar aí a expressão de um grande cansaço e mesmo de um sofrimento nervoso penosamente dissimulado.

A procissão desceu até o ádrio da igreja atravessando a nave, subiu pela nave à esquerda da porta de entrada e chegou ao túmulo de Santa Genoveva; depois voltou pela nave da direita continuando a cantar ladainhas.

Um grupo de fiéis seguia a procissão e caminhava logo atrás do arcebispo.

Eliphas misturou-se a esse grupo para atravessar mais facilmente a multidão que ia se formar novamente e para alcançar a porta da igreja, pensativo e enternecido com essa piedosa solenidade.

A frente da procissão já tornava a entrar no coro, o arcebispo chegava à grade da nave: aí o vão era muito estreito para que três pessoas pudessem passar de frente; o arcebispo, portanto, estava adiante e os dois grandes vigários atrás sempre segurando as extremidades de sua capa, que encontrava-se, assim, jogada e puxada para trás, de modo que o prelado apresentava seu peito descoberto e protegido apenas pelos bordados cruzados da estola.

Então, os que estavam atrás do arcebispo viram-no estremecer, e ouviu-se uma interpelação feita em voz alta, todavia sem clamor. O que fora dito? Parecia ter sido: Abaixo as deusas! mas acreditava-se ter ouvido mal, tão deslocada e sem sentido parecia essa frase. No entanto, a exclamação repetiu-se duas ou três vezes, alguém gritou: “Salvem o arcebispo!” outras vozes responderam: “Às armas!” A multidão dispersou-se, então, revirando as cadeiras e as barreiras, precipitou-se para as portas gritando. Eram choros de criança, gritos de mulheres, e Eliphas, arrastado pela multidão, foi de certo modo carregado para fora da igreja; mas os últimos olhares que pôde lançar aí dentro depararam-se com um terrível e indelével quadro.

No meio de um círculo alargado pelo terror dos que o rodeavam, o prelado estava em pé, só, sempre apoiado em seu báculo e sustentado pela rigidez de sua capa, que os grandes vigários haviam soltado, e que pendia agora até o chão.

A cabeça do arcebispo estava um pouco inclinada, os olhos e a mão que não segurava o báculo estavam erguidos para o céu. Sua atitude era a que Eugênio Delacroix deu ao Bispo de Liège assassinado por bandidos do Javali das Ardenas; havia no seu gesto toda a epopéia do martírio, era uma aceitação e uma oferenda, uma prece por seu povo e um perdão para o seu algoz.

A tarde caía, e a igreja começava a escurecer. O arcebispo, com os braços erguidos para o céu e iluminado por um último raio de luz vindo dos caixilhos da nave, destacava-se contra um fundo sombrio, onde se distinguia apenas um pedestal sem estátua em que estavam escritas estas duas palavras da paixão de Cristo: ECCE HOMO, e mais adiante, no fundo, uma pintura apocalíptica representando os quatro flagelos prontos a lançarem-se sobre o mundo, e os turbilhões do inferno seguindo os rastros poeirentos do cavalo pálido da morte.

Diante do arcebispo, um braço erguido, que se desenhava na sombra como uma silhueta infernal, segurava e brandia uma faca: soldados avançavam com a espada em punho.

E enquanto todo esse tumulto acontecia no ádrio da igreja, o canto das ladainhas continuava no coro como a harmonia das esferas celestes perpetua-se, atenta às nossas revoluções e às nossas angústias.

Eliphas Levi fora arrastado para fora pela multidão. Saíra pela porta da direita. Quase no mesmo instante, a porta da esquerda abria-se com violência, e um grupo furioso precipitava-se para fora da igreja.

Esse grupo girava em volta de um homem que cinqüenta braços pareciam segurar, que cem punhos estendidos queriam socar.

Esse homem, mais tarde, queixou-se de ter sido maltratado pelos soldados; mas, tanto quanto se podia observar nesse tumulto, os soldados protegiam-no contra a exasperada multidão.

Mulheres corriam em seu encalço gritando: Matem-no! – Mas o que ele fez? – diziam outras vozes.

– O miserável! deu um soco no arcebispo, diziam as mulheres. Depois outras pessoas saíram da igreja, e as versões contraditórias entrecruzavam-se.

– O arcebispo teve medo e passou mal – diziam alguns.

– Ele morreu – respondiam outros.

– Viram a faca? – acrescentava um novo interlocutor.

– Era longa como um sabre, e o sangue escorria na lâmina.

Esse pobre monsenhor perdeu um de seus sapatos – observava uma velha senhora juntando as mãos.

– Não foi nada! Não foi nada! – veio anunciar, então, uma locadora de cadeiras.

– Podem voltar para a igreja: monsenhor não está ferido, acabam de declará-lo no púlpito.

A multidão, então, fez um movimento para retornar à igreja.

– Saiam! Saiam! – disse nesse mesmo instante a voz grave e desolada de um padre.

– O ofício não pode prosseguir. A igreja será fechada; está profanada.

– Como está o arcebispo? – disse então um homem.

– Senhor – respondeu o padre -, o arcebispo está morrendo, e talvez nesse momento mesmo em que falamos ele esteja morto!

A multidão dispersou-se consternada, para ir divulgar essa funesta notícia em toda Paris.

Uma circunstância estranha envolveu Eliphas, e de certo modo desviou o seu espírito da profunda dor pelo que acabava de acontecer.

Na hora do tumulto, uma mulher idosa e de aparência muito respeitável tomara-lhe o braço solicitando sua proteção.

Ele achou-se no dever de responder a esse apelo, e, quando saiu da multidão com essa senhora:

– Como estou feliz – disse-lhe – por ter encontrado um homem que se aflige com esse grande crime com o qual alegram-se, nesse momento, tantos miseráveis!

– O que diz, senhora, e como é possível existirem seres tão depravados para alegrarem-se com tamanha infelicidade?

– Silêncio! – disse a velha senhora – talvez nos ouçam… Sim – acrescentou, abaixando a voz -, há pessoas que estão encantadas com o que aconteceu, e olhe, ali, há poucos minutos, havia um homem de aparência sinistra, que dizia para a multidão inquieta, quando interrogado sobre o que acabava de acontecer… Oh! não foi nada! foi uma aranha que tombou!

– Não, a senhora deve ter ouvido mal. A multidão não teria permitido esse abominável propósito, e o homem teria sido imediatamente preso.

– Quisera Deus que todo o mundo pensasse como o senhor – disse a dama.

Depois acrescentou:

– Recomendo-me às suas orações, pois vejo que é um homem de Deus.

– Talvez não seja a opinião de todo o mundo – respondeu Eliphas.

– E o que nos importa o mundo? – continuou a senhora com vivacidade – ele é mentiroso, caluniador, ímpio! talvez fale mal do senhor. Não me espanto com isso, e se o senhor pudesse saber o que ele diz de mim, compreenderia por que desprezo sua opinião.

– O mundo fala mal da senhora!

– Certamente, e o pior mal que se possa dizer.

– Como assim?

– Acusa-me de sacrilégio.

– A senhora está me assustando. E de qual sacrilégio, por favor?

– De uma indigna comédia que teria representado para enganar duas crianças na montanha da Salette.

– Quê! seria…

– Sou a senhorita Merlière.

– Ouvi falar de seu processo, senhorita, e do escândalo que provocou, mas parece-me que sua idade e sua responsabilidade deveriam protegê-la de semelhante acusação.

– Venha ver-me, senhor, e o apresentarei a meu advogado, senhor Farre, é um homem talentoso que eu gostaria de ganhar para Deus.

Conversando assim os dois interlocutores haviam chegado à Rua do Velho Pombal. A dama agradeceu ao seu cavalheiro improvisado e renovou o convite para que fosse vê-Ia.

– Vou tentar – disse Eliphas. – Mas, se for, perguntarei ao porteiro pela senhorita Merlière?

– Cuidado! não me conhecem por esse nome; pergunte pela senhora Dutruck.

– Dutruck, está bem, senhora, queira aceitar meus humildes cumprimentos.

E separaram-se.

O julgamento do assassino começou, e Eliphas, ao ler nos jornais que esse homem era padre, que fizera parte do clero de São Germano de Auxerre, que fora pároco no interior, que parecia furioso, lembrou-se do padre pálido que um ano antes procurava o grimório de Honório. Mas a descrição que as páginas públicas davam desse criminoso contrariava as lembranças do professor de magia. Com efeito, a maioria dos jornais atribuíam-lhe cabelos negros… Portanto, não é ele, pensava Eliphas. No entanto, tenho ainda no ouvido e na memória as palavras que para mim estariam agora explicadas por esse grande crime:

– Não tardarão a saber algo. Em breve ouvirão falar de mim.

O julgamento teve lugar com todas as horríveis peripécias que todos conhecem, e o acusado foi condenado à morte.

No dia seguinte, Eliphas leu numa folha judiciária o relato dessa cena inaudita nos anais da justiça; e sentiu a vista turvar-se quando leu o trecho em que se descrevia o acusado: “Ele é loiro”.

– Deve ser ele – disse o professor de magia.

Alguns dias depois, uma pessoa que na audiência pudera traçar um esboço do perfil do condenado mostrou-o a Eliphas.

– Deixe-me copiar este desenho – disse, tremendo de espanto.

Fez a cópia e levou-a ao seu amigo Desbarolles a quem perguntou sem maiores explicações:

– Conhece este rosto?

– Sim – assentiu vivamente Desbarolles -; espere, é o padre misterioso que vimos na casa da senhora A…. e que queria fazer evocações mágicas.

– Pois bem, meu amigo! o senhor confirma minha triste convicção. O homem que vimos, não tornaremos mais a ver, a mão que o senhor examinou tornou-se sanguinária. Ouvimos falar dele, como nos anunciara, pois este padre pálido, sabe qual era seu nome?

– Oh! meu Deus! – disse Desbarolles mudando de cor – receio saber.

– Pois o senhor sabe, era o infeliz Louis Verger!

Algumas semanas depois do que acabamos de contar, Eliphas Levi conversava com um livreiro que tem por especialidade colecionar velhos livros de ciências ocultas sobre o grimório de Honório.

– É agora um artigo impossível de ser encontrado, dizia o comerciante. O último que tive nas mãos cedi-o a um padre que ofereceu cem francos por ele.

– Um jovem padre! e lembra-se qual era sua fisionomia?

– Oh! perfeitamente. Mas o senhor deve conhecê-lo, pois ele contou-me tê-lo visto, e fui eu quem o indicou.

Assim, não havia mais dúvida, o infeliz padre encontrara o fatal grimório, fizera a evocação e preparara-se para o crime através de uma série de sacrilégios, pois eis no que consiste a evocação infernal, segundo o grimório de Honório:

“Escolher um galo preto e dar-lhe o nome do espírito das trevas que se quer evocar.”

“Matar o galo, reservar sua língua, o coração e a primeira pena da asa esquerda.”

“Deixar secarem a língua e o coração e reduzi-los a pó.”

“Não comer carne e não beber vinho nesse dia.”

“Na terça-feira, ao nascer do dia, dizer uma missa dos anjos.”

“Traçar sobre o altar com a pena do galo molhada em vinho consagrado assinaturas diabólicas (aquelas do lápis do senhor Home e das hóstias ensangüentadas de Vintras).”

“Na quarta-feira, preparar uma vela de cera amarela; levantar-se à meia-noite, e, sozinho numa igreja, começar o ofício dos mortos.”

“Misturar a esse ofício evocações infernais.”

“Terminar o ofício à luz de uma única vela, que será em seguida apagada, e permanecer sem luz na igreja assim profanada até o nascer do sol.”

“Na quinta-feira, misturar à água benta o pó da língua e do coração do galo preto, e fazer um cordeiro macho de nove dias engolir a mistura…”

A mão recusa-se a escrever o resto. É um misto de práticas brutais e atentados revoltantes apropriados a matar o discernimento e a consciência.

Mas para comunicar-se com o fantasma do mal absoluto, para realizar o fantasma a ponto de vê-lo e tocá-lo, não é preciso estar, necessariamente, sem consciência e sem discernimento?

Aí está certamente o segredo dessa inacreditável perversidade, dessas fúrias assassinas, desse ódio doentio contra toda ordem, toda magistratura, toda hierarquia, dessa fúria sobretudo contra o dogma que santifica a paz, a obediência, a doçura sob o símbolo tão comovente de uma mãe.

Esse infeliz estava certo de que não morreria. O imperador, acreditava ele, seria forçado a perdoá-lo, um exílio honroso esperava-o, seu crime lhe daria uma enorme celebridade, seus devaneios seriam comprados a peso de ouro pelos livreiros. Tornar-se-ia imensamente rico, atrairia a atenção de uma grande dama e se casaria do outro lado do mar. Era com promessas semelhantes que outrora o fantasma do demônio também tentava e fazia saltar de um crime a outro Gilles de Laval, senhor de Retz. Um homem capaz de evocar o diabo, segundo os ritos do grimório de Honório, engajou-se de tal maneira na trilha do mal que está disposto a todas as alucinações e a todas as mentiras. Assim Verger adormecia no sangue para acordar em não sei que abominável Panteão; e acordou no cadafalso.

Mas as aberrações da perversidade não constituem uma loucura; a execução desse miserável provou-o.

Sabe-se que resistência desesperada ele opôs aos executores. “É uma traição”, dizia, “não posso morrer assim! Uma hora apenas, uma hora para escrever ao Imperador! O Imperador deve salvar-me.”

Quem, pois, o traía?

Quem, pois, prometera-lhe a vida?

Quem, pois, assegurara-lhe de antemão uma clemência impossível, visto que ela teria revoltado a consciência pública?

Perguntai tudo isso ao grimório de Honório!

Duas coisas nessa história tão trágica relacionam-se com os fenômenos do senhor Home: o ruído de tempestade ouvido pelo mau padre quando de suas primeiras evocações e a perturbação que o impediu de expor todo seu pensamento na presença de Eliphas Levi.

Pode-se observar também a aparição de um homem sinistro regozijando-se com o luto público e sustentando um propósito verdadeiramente infernal em meio à multidão consternada, aparição observada apenas pela extática da Salette, a tão célebre senhorita Merlière, que, não obstante ter a aparência de uma pessoa boa e respeitável, é muito exaltada e capaz talvez de agir e de falar, sem se aperceber, sob a influência de um sonambulismo ascético.

Esta palavra sonambulismo traz-nos de volta ao senhor Home, e nossos relatos não nos fizeram esquecer do que o título deste trabalho prometia a nossos leitores.

Devemos dizer-lhes o que é o senhor Home.

Vamos manter nossa promessa.

O senhor Home é um doente afetado por um sonambulismo contagioso.

Isso é uma asserção.

Restou-nos uma explicação e uma demonstração a dar.

Essa explicação e essa demonstração, para serem completas, pediam um trabalho capaz de encher um livro.

Esse livro está pronto e publicá-lo-emos brevemente.

Eis seu título: A Razão dos Prodígios, ou o Diabo diante da Ciência.

Por que o diabo? Porque demonstramos através de fatos o que antes de nós o senhor Mirville incompletamente pressentira.

Dizemos incompletamente porque o diabo é, para o senhor Mirville, uma personagem fantástica, enquanto para nós é o uso abusivo de uma força natural.

Um médium disse: O inferno não é um lugar, é um Estado.

Poderíamos acrescentar: O diabo não é nem uma pessoa nem uma força; é um vício e, por conseguinte, uma fraqueza.

Voltemos por um momento ao estudo dos fenômenos.

Os médiuns geralmente são seres doentes e limitados.

Nada de extraordinário podem fazer diante das pessoas calmas e instruídas.

É preciso estar habituado a seu contato para ver e sentir algo.

Os fenômenos não são os mesmos para todos os espectadores. Assim, onde um verá uma mão, o outro notará apenas um vapor esbranquiçado.

As pessoas impressionáveis pelo magnetismo do senhor Home experimentam uma espécie de mal-estar; parece-lhes que a sala gira, e têm a sensação de que a temperatura abaixa-se rapidamente.

Os prodígios ou os prestígios realizam-se melhor diante de um pequeno número de testemunhas escolhidas pelo próprio médium.

Numa reunião de pessoas que verão os prestígios, pode encontrar-se uma que não verá absolutamente nada.

Dentre as pessoas que vêem, não vêem todas a mesma coisa.

Assim, por exemplo:

Numa noite, na casa da senhora B… I o médium fez aparecer o filho que essa senhora perdeu. Apenas a senhora B… via a criança, o conde de M… via um pequeno vapor esbranquiçado em forma de pirâmide, as outras pessoas nada viam.

Todo mundo sabe que certas substâncias, o haxixe, por exemplo, entorpecem sem privar do uso da razão, e fazem ver, com uma surpreendente impressão de realidade, coisas que não existem.

Grande parte dos fenômenos do senhor Home pertencem a uma influência natural semelhante à do haxixe.

Eis por que o médium quer operar apenas diante de um pequeno número de pessoas escolhidas por ele.

O restante desses fenômenos deve ser atribuído ao poder magnético.

Ver algo com o senhor Home não é um indício tranqüilizador para a saúde de quem vê.

Aliás, mesmo que a saúde fosse excelente, essa visão revela uma perturbação passageira do aparelho nervoso em suas relações com a imaginação e com a luz.

Se essa perturbação fosse frequentemente repetida, a pessoa se tornaria seriamente doente.

Quem sabe quantas catalepsias, tétanos, loucuras e mortes violentas a mania das mesas girantes já produziu?

Esses fenômenos tornam-se particularmente terríveis quando deles a perversidade se apodera.

É então que se pode realmente afirmar a intervenção e a presença do espírito do mal.

Perversidade ou fatalidade, os pretensos milagres obedecem a um desses dois poderes.

Quanto às escrituras cabalísticas e às assinaturas misteriosas, diremos que se reproduzem pela intuição magnética das imagens do pensamento no fluido vital universal.

Esses reflexos instintivos podem produzir-se se o Verbo mágico nada tiver de arbitrário e se os signos do santuário oculto forem a expressão natural das idéias absolutas.

É o que demonstramos em nosso livro.

Mas, para não remetermos nossos leitores do desconhecido ao futuro, vamos antecipar dois capítulos dessa obra inédita, um sobre o Verbo cabalístico, o outro sobre os segredos da cabala, e deles tiraremos conclusões que completarão de modo satisfatório para todos a explicação que prometemos para os fenômenos do senhor Home.

Existe um poder gerador das formas; este poder é a luz.

A luz cria as formas segundo as leis das matemáticas eternas, pelo equilíbrio universal do dia e da sombra.

Os signos primitivos do pensamento delineiam-se por si sós na luz, que é o instrumento material do pensamento.

Deus é a alma da luz. A luz universal e infinita é para nós como o corpo de Deus.

A cabala ou a alta magia é a ciência da luz.

A luz corresponde-se com a vida.

O reino das trevas é a morte.

Todos os dogmas da verdadeira religião estão escritos na cabala em caracteres de luz numa página de sombra.

A página de sombra são as crenças cegas.

A luz é o grande mediador plástico.

A aliança da alma com o corpo é um casamento de luz e de sombra.

A luz é o instrumento do Verbo, é a escritura branca de Deus no grande livro da noite.

A luz é a fonte dos pensamentos, e é nela que se deve buscar a origem de todos os dogmas religiosos. Mas só há um verdadeiro dogma, como só há uma pura luz; apenas a sombra é infinitamente variada.

A luz, a sombra e sua união que é a visão dos seres, tal é o princípio analógico dos grandes dogmas da Trindade, da Encarnação e da Redenção.

Tal é também o mistério da cruz.

Eis o que nos será fácil provar pelos monumentos religiosos, pelos signos do Verbo primitivo, pelos livros iniciados na cabala, pela explicação racional, enfim, de todos os mistérios por meio das chaves da magia cabalística.

Com efeito, em todos os simbolismos encontramos as idéias de antagonismo e de harmonia produzindo uma noção trinitária na concepção divina, depois a personificação mitológica dos quatro pontos cardeais do céu completa o setenário sagrado, base de todos os dogmas e de todos os ritos. Para convencermo-nos disto, bastará relermos e meditarmos sobre a sábia obra de Dupuis, que seria um grande cabalista se tivesse visto uma harmonia de verdades onde suas preocupações negativas apenas o deixaram ver um concerto de erros.

Não devemos refazer aqui o seu trabalho, que todos conhecem; mas o que importa provar é que a reforma religiosa de Moisés era inteiramente cabalística, e que o cristianismo, ao instituir um dogma novo, simplesmente reaproximou-se das fontes primitivas do mosaísmo, e que o Evangelho não é mais do que um véu transparente lançado sobre os mistérios universais e naturais da iniciação oriental.

Um sábio notável, mas muito pouco conhecido, M. P. Lacour, em seu livro sobre os Eloim ou deuses de Moisés, lançou nova luz sobre essa questão e encontrou nos símbolos do Egito todas as figuras alegóricas do Gênesis. Mais recentemente, um bravo pesquisador, de vasta erudição, M. Vincent (de Yonne), publicou um tratado sobre a idolatria entre os antigos e os modernos, onde ergue o véu da mitologia universal.

Convidamos os homens de estudos conscienciosos a lerem essas diferentes obras e nós nos concentraremos no estudo especial da cabala entre os hebreus.

Sendo o Verbo, ou a palavra, segundo os iniciados nessa ciência, toda a revelação, os princípios da alta cabala devem se encontrar reunidos nos próprios sinais que compõem o alfabeto primitivo.

Ora, eis o que encontramos em todas as gramáticas hebraicas.

Há uma letra principiante e universal geradora de todas as outras. É o Iod h .

Há duas outras letras mães opostas e análogas entre si; o Aleph t e o Mem n , seguindo-se a outras o Schin a .

Há sete letras duplas, o Beth c , o Ghimel d , o Daleth s , o Caph f , o Phé p , o Resch r e o Tau , .

Finalmente há doze simples que são as outras letras; ao todo, vinte e duas.

A unidade é representada de modo relativo pelo aleph, o ternário é figurado ou por iod, mem, schin, ou por aleph, mem, schin.

O setenário por beth, ghimel, daleth, caph, phé, resch, tau.

O duodenário pelas outras letras. O duodenário é o ternário multiplicado por quatro; e entra também no simbolismo do setenário.

Cada letra representa um número:

Cada conjunto de letras uma série de números.

Os números representam idéias filosóficas absolutas.

As letras são hieróglifos abreviados.

Vejamos agora as significações hieroglíficas e filosóficas de cada uma das vinte e duas letras. (Ver Belarmino, Reuchlin, São Jerônimo, Kabbala denudata, o Sepher Yétsírah, Technica curiosa do padre Schott, Pico delia Mirandola e os outros autores, especialmente os da coleção de Pistorius.)

AS MÃES

O iod – o princípio absoluto, o ser produtor;

O mem – o espírito, ou o Jaquim de Salomão;

O schin – a matéria, ou a coluna Boaz.

AS DUPLAS

Beth – o reflexo, o pensamento, a lua, o anjo Gabriel, príncipe dos mistérios;

Ghimel – o amor, a vontade, Vênus, o anjo Anael, príncipe da vida e da morte;

Daleth – a força, o poder, Júpiter, Sachiel Melech, rei dos reis;

Caph – a violência, a luta, o trabalho, Mars Samaël Zébaoth, príncipe das falanges;

Phé – a eloqüência, a inteligência, Mercúrio, Rafael, príncipe das ciências;

Resch – a destruição e a regeneração, o Tempo, Saturno, Cassiel, rei dos túmulos e das solidões;

Tau – a verdade, a luz, o Sol, Micael, rei dos Eloim.

AS SIMPLES

As simples dividem-se em quatro ternários trazendo por títulos as quatro letras do tetragrama divino v u v h .

No tetragrama divino, o iod, como acabamos de dizer, figura o princípio produtor ativo. O he v representa o princípio produtor passivo, o ctëiss. O vau , figura a união dos dois ou o linga, e o he final é a imagem do princípio produtor secundário, isto é, da reprodução passiva no mundo dos efeitos e das formas.

As doze letras simples v u z y j h k b o g m e , divididas em grupos de três, reproduzem a noção do triângulo primitivo, com a interpretação e sob a influência de cada uma das letras do tetragrama.

Vê-se que a filosofia e o dogma religioso da cabala estão indicados aí de modo completo mas velado.

Interroguemos agora as alegorias do Gênesis.

“No princípio (iod, a unidade do ser), Eloim, as forças equilibradas (Jaquin e Boaz) fizeram o céu (o espírito) e a terra (a matéria), em outras palavras, o bem e o mal, a afirmação e a negação.” Assim começa o relato de Moisés.

Depois, quando se trata de dar um lugar ao homem e um primeiro santuário à sua aliança com a divindade, Moisés fala de um jardim no meio do qual uma fonte única dividia-se em quatro rios (o Jod e o Tetragrama), depois de duas árvores, uma da vida, outra da morte, plantadas perto do rio. Aí são colocados o homem e a mulher, o ativo e o passivo, a mulher simpatiza com a morte e arrasta consigo em sua ruína Adão, eles são, pois, expulsos do santuário da verdade e um chérub (uma esfinge com cabeça de touro, ver os hieróglifos da Assíria, da Índia e do Egito) é colocado à porta do jardim da verdade para impedir os profanadores de destruírem a árvore da vida. Aí está, portanto, o dogma misterioso com todas as suas alegorias e seus horrores que sucede à simples verdade. O ídolo substituiu Deus, e a humanidade decadente não tardará a dedicar-se ao culto do novilho de ouro.

O mistério das reações necessárias e sucessivas dos dois princípios um sobre o outro é, em seguida, indicado pela alegoria de Caim e Abel. A força vinga-se, por opressão, das seduções da fraqueza; a fraqueza mártir expia e intercede pela força condenada em conseqüência do crime à vergonha e ao remorso. Assim revela-se o equilíbrio do mundo moral, assim assenta-se a base de todas as profecias e o ponto de apoio de toda política inteligente. Abandonar uma força a seus próprios excessos é condená-la ao suicídio.

O que faltou a Dupuis para compreender o dogma religioso universal da cabala foi a ciência desta bela hipótese demonstrada em parte e realizada a cada dia mais pelas descobertas da ciência: a analogia universal.

Privado dessa chave do dogma transcendental, não pôde ver em todos os deuses senão o sol, os sete planetas e os doze signos do zodíaco, mas não viu no sol a imagem do logos de Platão, nos sete planetas as sete notas da gama celeste, e no zodíaco a quadratura do ciclo ternário de todas as iniciações.

O imperador Juliano, esse espiritualista incompreendido, esse iniciado cujo paganismo era menos idólatra do que a fé de certos cristãos, o imperador Juliano, dizemos, compreendia melhor que Dupuis e Volnay o culto simbólico ao sol. Em seu hino ao rei Hélio reconhece que o astro do dia é apenas o reflexo e a sombra material daquele sol de verdade que ilumina o mundo da inteligência e que é ele próprio apenas um clarão tomado emprestado ao absoluto.

Coisa notável, Juliano tem o Deus supremo que os cristãos pensavam serem os únicos a adorar, idéias bem maiores e bem mais justas do que as de vários pais da Igreja, adversários e contemporâneos desse imperador.

Eis como ele expressa-se em sua defesa do helenismo:

“Não basta escrever num livro: Deus disse, e as coisas foram feitas. É preciso ver se as coisas que atribuem a Deus não são contrárias às próprias leis do Ser. Pois, se assim for, Deus não as pode ter feito, ele que não pode dar desmentidos à natureza sem negar-se a si próprio… Sendo Deus eterno, é absolutamente necessário que suas ordens sejam imutáveis como ele.”

Eis como falava esse apóstata e esse ímpio, e mais tarde um doutor cristão, que se tornou o oráculo das escolas de teologia, devia, inspirando-se talvez nas belas palavras do descrente, colocar um freio em todas as superstições ao escrever esta bela e corajosa máxima que tão bem resume o pensamento do grande imperador:

“Uma coisa não é justa porque Deus a quer; mas Deus a quer porque ela é justa.”

A idéia de uma ordem perfeita e imutável na natureza, a noção de uma hierarquia ascendente e de uma influência descendente em todos os seres fornecerá aos antigos hierofantes a primeira classificação de toda a história natural. Os minerais, os vegetais, os animais foram estudados analogicamente, e atribuíram-se sua origem e suas propriedades ao princípio passivo ou ao princípio ativo, às trevas ou à luz. O signo de sua eleição ou de sua reprovação, desenhado na sua forma, tornou-se o caráter hieroglífico de um vício ou de uma virtude; depois, de tanto tomar o signo pela coisa, e exprimir a coisa pelo signo, acabou-se por confundi-los, e tal é a origem da história natural fabulosa em que leões deixam-se abater por galos, em que delfins morrem de dores após haverem feito ingratos entre os homens, em que mandrágoras falam e estrelas cantam. Esse mundo encantado é verdadeiramente o domínio poético da magia; mas tem como realidade apenas a significação dos hieróglifos que lhe deram origem. Para o sábio que compreende as analogias da alta cabala e a relação exata das idéias com os signos, esse país fabuloso das fadas é uma região ainda fértil em descobertas, pois as verdades muito belas ou muito simples para agradar aos homens sem véus foram todas ocultadas sob essas sombras engenhosas.

Sim, o galo pode intimidar o leão e tornar-se seu mestre, porque a vigilância frequentemente substitui a força e consegue domar a cólera. As outras fábulas da pretensa história natural dos antigos explicam-se do mesmo modo, e, nesse uso alegórico das analogias, já se pode compreender os abusos possíveis e pressentir os erros que se devem ter originado na cabala.

A lei das analogias foi, de fato, para os cabalistas da segunda ordem, o objeto de uma fé cega e fanática. É a essa crença que devem ser relacionadas todas as superstições reprovadas aos adeptos das ciências ocultas. Eis como raciocinavam:

O signo exprime a coisa.

A coisa é a virtude do signo.

Há correspondência analógica entre o signo e a coisa significada.

Quanto mais perfeito é o signo, mais a correspondência é total.

Dizer uma palavra é evocar um pensamento e torná-lo presente. Dizer Deus, por exemplo, é manifestar Deus.

A palavra age sobre as almas e as almas reagem sobre os corpos; pode-se, portanto, assustar, consolar, fazer adoecer, curar, matar e ressuscitar por palavras.

Proferir um nome é criar ou chamar um ser.

No nome está contida a doutrina verbal ou espiritual do próprio ser.

Quando a alma evoca um pensamento, o signo desse pensamento escreve-se por si só na luz. Invocar é adjurar, isto é, jurar por um nome: é fazer ato de fé nesse nome e comungar na virtude que ele representa.

As palavras, portanto, são por si próprias boas ou más, venenosas ou salutares.

As palavras mais perigosas são as palavras vãs e proferidas levianamente, porque são abortos voluntários do pensamento.

Uma palavra inútil é um crime contra o espírito de inteligência. É um infanticídio intelectual.

As coisas são para cada pessoa o que ela as faz ao denominá-las. O verbo de cada pessoa é uma impressão ou uma prece habitual.

Falar bem é viver bem.

Um belo estilo é uma auréola de santidade.

Desses princípios, uns verdadeiros, outros hipotéticos, e das conseqüências mais ou menos exageradas que deles tiravam, resultava para os cabalistas supersticiosos uma confiança absoluta nos encantamentos, evocações, conjurações e orações misteriosas. Ora, como a fé sempre realiza prodígios, nunca lhe faltaram as aparições, os oráculos, as curas maravilhosas, as doenças súbitas e estranhas.

Foi assim que uma simples e sublime filosofia tornou-se a ciência secreta da magia negra. É sobretudo desse ponto de vista que a cabala pode ainda excitar a curiosidade da maioria em nosso século tão desconfiado e tão crédulo. No entanto, como acabamos de expor, a verdadeira ciência não está aí.

Os homens raramente procuram a verdade por ela mesma; têm sempre por motivo secreto em seus esforços alguma paixão a satisfazer ou alguma cupidez a saciar. Dentre os segredos da cabala, há um que sempre atormentou os pesquisadores: o segredo da transmutação dos metais e a conversão de todas as substâncias terrestres em ouro.

De fato, a alquimia tomou emprestado à cabala todos os seus signos, e era na lei das analogias, resultantes da harmonia dos contrários, que baseava suas operações. Um segredo físico imenso estava, aliás, oculto sob parábolas cabalísticas dos antigos. Conseguimos decifrá-lo e vamos confiá-lo às investigações dos fazedores de ouro. Ei-lo:

1º – Os quatro fluidos imponderáveis são apenas as manifestações diversas de um mesmo agente universal que é a luz.

2º – A luz é o fogo que serve à grande obra sob forma de eletricidade.

3º – A vontade humana dirige a luz vital por meio do aparelho nervoso. Em nossos dias isso denomina-se magnetizar.

4º – O agente secreto da pedra filosofal, o azote dos sábios, o ouro vivo e vivificante dos filósofos, o agente produtor metálico universal é a ELETRICIDADE MAGNETIZADA.

A aliança dessas duas palavras ainda não nos diz muito e, no entanto, elas talvez encerrem uma força capaz de revolucionar o mundo. Dizemos talvez por conveniência filosófica, pois, de nossa parte, não duvidamos da alta importância desse grande arcano hermético.

Acabamos de dizer que a alquimia é filha da cabala; e, para convencer-se disso, basta interrogar os símbolos de Flamel, de Basílio Valentim, as páginas do judeu Abraão e os oráculos mais ou menos apócrifos da mesa de esmeralda de Hermez. Em toda a parte encontram-se os traços dessa década de Pitágoras tão brilhantemente aplicada, no Sepher Yétsirah, à noção completa e absoluta das coisas divinas, essa década composta da unidade e de um tríplice ternário que os rabinos denominaram o Bereschit e a Mercabah, a árvore luminosa das Sefirotes e a chave dos Schemamphorasch.

Falamos, com certa extensão, em nosso livro intitulado Dogma e Ritual da Alta Magia, de um monumento hieroglífico conservado até os nossos dias sob um pretexto fútil, e que sozinho explica todas as escrituras misteriosas da alta iniciação. Esse monumento é o tarô dos Boêmios que deu origem a nossos jogos de cartas. Compõe-se de vinte e duas letras alegóricas e de quatro séries, cada uma de dez hieróglifos relativos às quatro letras do nome de Jehovah. As diversas combinações desses signos e dos números que lhes correspondem formam a mesma quantidade de oráculos cabalísticos, de modo que a ciência inteira está contida nesse livro misterioso. Essa máquina filosófica perfeitamente simples surpreende pela profundidade e exatidão de seus resultados.

O abade Trithème, um de nossos maiores mestres em magia, compôs sobre o alfabeto cabalístico um trabalho muito engenhoso a que ele denomina poligrafia. É uma série combinada de alfabetos progressivos em que cada letra representa uma palavra, as palavras correspondem-se e completam-se de um alfabeto ao outro, e não há dúvida de que Trithème teve conhecimento do tarô e dele se utilizou para dispor numa ordem lógica suas sábias combinações.

Jerônimo Cardano conhecia o alfabeto simbólico dos iniciados como se pode reconhecer pelo número e pela disposição dos capítulos de sua obra sobre a sutileza. Essa obra, com efeito, é composta de vinte e dois capítulos, e o tema de cada capítulo é análogo ao número e à alegoria da carta correspondente no tarô. Fizemos a mesma observação sobre um livro de São Martinho intitulado Quadro Natural das Relações que existem entre Deus, o Homem e o Universo. A tradição desse segredo não foi, pois, interrompida desde os primórdios da cabala até os nossos dias.

Os giradores de mesa e os que fazem falar os espíritos através de quadrantes alfabéticos estão, pois, muitos séculos atrasados e não sabem que existe um instrumento de oráculo claro e de um sentido exato por meio do qual se pode comunicar com os sete gênios dos planetas e fazer falar à vontade as setenta e duas rodas de Aziah, Jezirah e Briah. Para isso basta conhecer o sistema de analogias universais, tal como expôs Swedenborg na chave hieroglífica dos arcanos, depois embaralhar as cartas e tirar ao acaso, dispondo-as sempre pelos números correspondentes às idéias cujos esclarecimentos se deseja, depois ler os oráculos como devem ser lidas as escrituras cabalísticas, isto é, começando no meio indo da direita para a esquerda para os números ímpares, começando à direita para os pares e interpretando sucessivamente o número pela letra que lhe corresponde, o conjunto das cartas pela adição de seus números e todos os oráculos sucessivos por sua ordem numeral e suas relações hieroglíficas.

Essa operação dos sábios cabalistas para encontrar o desenvolvimento rigoroso das idéias absolutas degenerou em superstições em meio aos padres ignorantes e aos nômades ancestrais dos Boêmios que possuíam o tarô da Idade Média, sem conhecer seu verdadeiro emprego e que dele se serviam unicamente para ler a sorte.

O jogo de xadrez, atribuído a Palamedes, não tem outra origem senão o tarô, e nele encontram-se as mesmas combinações e os mesmos símbolos, o rei, a rainha, o cavaleiro, o soldado, o louco, a torre, depois casas representando os números. Os antigos jogadores de xadrez procuravam em seu tabuleiro a solução dos problemas filosóficos e religiosos, e argumentavam um contra o outro em silêncio manobrando os caracteres hieroglíficos através dos números. Nosso vulgar jogo do ganso, copiado dos gregos e igualmente atribuído a Palamedes, é apenas um tabuleiro de figuras imóveis e números móveis por meio dos dados. É um tarô disposto em roda destinado ao uso dos aspirantes à iniciação. Ora, a palavra tarô, em que se encontram rota e tora, exprime ela própria, como demonstrou-o Guilherme Postel, essa disposição primitiva em forma de roda.

Os hieróglifos do jogo do ganso são mais simples que os do tarô, mas encontram-se aí os mesmos símbolos: o bobo, o rei, a rainha, a torre, o diabo ou tífon, a morte, etc. As probabilidades aleatórias desse jogo representam as da vida e escondem um sentido filosófico bastante profundo para fazer meditar os sábios e bastante simples para ser compreendido pelas crianças.

A personagem alegórica de Palamedes é aliás idêntica às de Henoc, de Hermes e de Cádmo, aos quais atribui-se a invenção das letras nas diversas mitologias. Mas, no pensamento de Homero, Palamedes, o revelador e a vítima de Ulisses, representa o iniciador ou o gênio cujo destino eterno é ser morto por aqueles que inicia. O discípulo torna-se a realização viva dos pensamentos do mestre apenas depois de ter tomado seu sangue e comido sua carne, segundo a enérgica e alegórica expressão do iniciador tão mal compreendido pelos cristãos.

A concepção do alfabeto primitivo era, como se pode ver, a idéia de uma língua universal, encerrando em suas combinações e em seus próprios signos o resumo e a lei da evolução de todas as ciências divinas e humanas. Acreditamos que, desde então, nada mais bonito nem maior foi sonhado pelo gênio dos homens e confessamos que a descoberta desse segredo do mundo antigo compensou-nos plenamente por tantos anos de pesquisas estéreis e trabalhos ingratos nas criptas das ciências perdidas e nas necrópoles do passado.

Um dos primeiros resultados dessa descoberta seria uma nova direção dada ao estudo das escrituras hieroglíficas ainda tão imperfeitamente decifradas pelos êmulos e pelos sucessores de Champollion. Sendo o sistema de escritura dos discípulos de Hermes analógico e sintético como todos os signos da cabala, para a leitura das páginas gravadas nas pedras dos antigos templos não importaria recolocar essas pedras em seu lugar e contar o número de suas letras comparando-as com os números das outras pedras?

O obelisco de Lúxor, por exemplo, não era uma das duas colunas da entrada de um templo? ficava à direita ou à esquerda? Se ficava à direita, seus sinais referem-se ao princípio ativo; se ficava à esquerda, é pelo princípio passivo que se devem interpretar seus caracteres. Mas deve haver uma correspondência exata de um obelisco ao outro, e cada signo deve receber seu sentido completo da analogia dos contrários; Champollion encontrou traços do copta nos hieróglifos, um outro sábio talvez encontrasse mais facilmente e mais felizmente o hebraico, mas o que diriam se não fosse nem hebraico nem copta? Se fosse, por exemplo, a língua universal primitiva? Ora, essa língua, que é a da alta cabala, existiu certamente, existe na base do próprio hebraico e de todas as línguas orientais que dele derivam, essa língua é a do santuário, e as colunas da entrada dos templos geralmente resumiam todos os seus símbolos. A intuição dos extáticos aproxima-se mais da verdade sobre esses signos primitivos do que a própria ciência dos sábios. Isso porque, como dissemos, o fluido vital, universal, a luz astral, sendo princípio mediador entre as idéias e as formas, obedece aos impulsos extraordinários da alma que procura o desconhecido e fornece-lhe naturalmente os signos já encontrados, mas esquecidos, das grandes revelações do ocultismo. Assim formaram-se as pretensas assinaturas dos espíritos, assim produziram-se as escrituras misteriosas de Gablidone que visitava o doutor Laváter, dos fantasmas de Schroepfer, do São Miguel de Vintras e dos espíritos do senhor Home.

Se a eletricidade pode mover um corpo leve ou mesmo pesado sem que seja tocado, seria impossível, pelo magnetismo, dar à eletricidade uma direção e assim produzir naturalmente sinais e escrituras? É certamente possível, uma vez que isso é feito.

Assim, portanto, aos que nos perguntarem qual é o maior agente dos prodígios, responderemos:

– É a matéria-prima da pedra filosofal.

– É a ELETRICIDADE MAGNETIZADA.

Tudo foi criado pela luz.

É na luz que a forma conserva-se.

É pela luz que a forma reproduz-se.

As vibrações da luz são o princípio do movimento universal.

Pela luz os sóis ligam-se uns aos outros e entrelaçam seus raios como cadeias de eletricidade.

Os homens e as coisas são imantados de luz como os sóis e podem, por meio de cadeias eletromagnéticas estendidas pelas simpatias e afinidades, comunicar-se uns com os outros de uma à outra extremidade do mundo, acariciar-se ou bater-se, curar-se ou ferir-se de modo natural certamente, mas prodigioso e invisível.

Aí está o segredo da magia.

A magia, a ciência que nos vem dos magos. A magia, a primeira das ciências.

A mais santa de todas, uma vez que estabelece de modo mais sublime as grandes verdades religiosas.

A mais caluniada de todas, porque o vulgo obstina-se em confundir a magia com a bruxaria supersticiosa cujas práticas abomináveis denunciamos.

É somente pela magia que pode, diante das questões enigmáticas da Esfinge de Tebas e das obscuridades por vezes escandalosas difundidas nos relatos da Bíblia, responder a tais perguntas e encontrar a solução desses problemas da história judaica.

Os próprios historiadores sagrados reconhecem a existência e o poder da magia que concorria abertamente com o de Moisés.

A Bíblia conta-nos que Janes e Mambres, os mágicos do Faraó, fizeram em primeiro lugar os mesmos milagres que Moisés, e que declararam impossíveis à ciência humana os que não puderam imitar. Com efeito, é mais lisonjeiro para o amor-próprio de um charlatão confessar o milagre do que declarar-se vencido pela ciência ou pela destreza de um colega, sobretudo quando esse colega é um inimigo político ou um adversário religioso.

Onde começa e onde termina o possível na ordem dos milagres mágicos? Eis uma grave e importante questão. É certa a existência dos fatos habitualmente classificados como milagres. Os magnetizadores e os sonâmbulos fazem-nos todos os dias; a irmã Rose Tamisier os fez, o iluminado Vintras ainda os faz; mais de quinze mil testemunhas atestavam ultimamente os dos médiuns da América, dez mil camponeses do Berry e da Sologne atestariam, se necessário, os do deus Cheneau (um antigo comerciante de botões retirado dos negócios e que se acredita inspirado por Deus). Todas essas pessoas são alucinadas ou espertalhonas? Alucinadas, talvez, mas o próprio fato de ser sua alucinação idêntica, seja separadamente, seja coletivamente, não é um milagre bastante grande da parte de quem o produz sempre que deseja e no momento oportuno?

Fazer milagres ou persuadir a multidão de que os faz é quase a mesma coisa, sobretudo num século tão leviano e tão zombeteiro quanto o nosso. Ora, o mundo está cheio de taumaturgos, e a ciência é freqüentemente obrigada a negar suas obras ou a recusar-se a vê-las para não ser obrigada a examiná-las e atribuir-lhes uma causa.

No século passado, repercutiram em toda a Europa os prodígios de Cagliostro. Quem não sabe de todo o poder que se atribuía a seu vinho do Egito e a seu elixir? Que poderíamos acrescentar a tudo o que se conta daquelas ceias do outro mundo, em que ele fazia aparecer em carne e osso os personagens ilustres do passado? No entanto, Cagliostro estava longe de ser um iniciado da primeira ordem, já que a grande associação dos adeptos abandonou-o à inquisiçao romana, diante da qual, se se deve acreditar nas peças de seu processo, deu uma ridícula e odiosa explicação do trigrama maçônico L.’.P.’.D.’.

Mas os milagres não são um quinhão exclusivo dos iniciados da primeira ordem e freqüentemente são realizados por seres sem instrução e sem virtude. As leis naturais encontram num organismo, cujas qualidades excepcionais nos escapam, uma ocasião para exercerem-se, e fazem sua obra, como sempre, com precisão e calma. Os gourmets mais delicados apreciam as trufas e consomem-nas, mas são os porcos que as desenterram: analogicamente, ocorre o mesmo com muitas coisas menos materiais e menos gastronômicas: os instintos procuram e pressentem, mas apenas a ciência verdadeiramente encontra.

O progresso atual do conhecimento humano diminuiu muito as chances dos prodígios, mas resta ainda um grande número deles, uma vez que não se conhece nem a força da imaginação nem a razão de ser e o poder do magnetismo. A observação das analogias universais foi negligenciada e é por isso que não se crê mais na adivinhação.

Um sábio cabalista ainda pode, portanto, assustar a multidão e confundir até mesmo as pessoas instruídas:

1º – Adivinhando as coisas ocultas;

2º predizendo muitas coisas futuras;

3º dominando a vontade dos outros de modo a impedi-los de fazer o que desejam e a forçá-los a fazer o que não desejam;

4º excitando à vontade aparições e sonhos;

5º curando um grande número de doenças;

6º devolvendo a vida a sujeitos em que se manifestam todos os sintomas da morte;

7º finalmente, demonstrando, com exemplos, se necessário, a realidade da pedra filosofal e da transmutação dos metais, segundo os segredos de Abraão, o Judeu, de Flamel e de Raimundo Lúlio.

Todos esses prodígios operam-se por meio de um único agente que os hebreus chamavam OD, como o cavaleiro de Reichenbach; que chamamos luz astral, com a escola de Pasqualis Martinez; que Mirville chama diabo; que os antigos alquimistas denominavam azote. É o elemento vital que se manifesta pelos fenômenos de calor, de luz, de eletricidade e de magnetismo, que imanta todos os globos terrestres e todos os seres vivos. Nesse agente manifestam-se as provas da doutrina cabalística sobre o equilíbrio e o movimento pela dupla polaridade, em que uma atrai enquanto a outra repele, em que uma produz o quente, a outra o frio, enfim em que uma dá uma luz azul e esverdeada, a outra uma luz amarela e avermelhada.

Esse agente, por seus diferentes modos de imantação, atrai-nos uns para os outros ou distancia-nos uns dos outros, submete um às vontades do outro fazendo-o entrar em seu círculo de atração, restabelece ou perturba o equilíbrio na economia animal por suas transmutações e seus eflúvios alternativos, recebe e transmite as impressões da força imaginária, que é no homem a imagem e a semelhança do verbo criador, produz, assim, os pressentimentos e determina os sonhos. A ciência dos milagres é, pois, o conhecimento dessa força maravilhosa, e a arte de fazer milagres é tão simplesmente a arte de imantar ou de iluminar os seres segundo as leis invariáveis do magnetismo ou da luz astral.

Preferimos a palavra luz a magnetismo, porque ela é mais tradicional no ocultismo e expressa de modo mais completo e perfeito a natureza do agente secreto. Encontra-se aí, verdadeiramente, o ouro fluido e potável dos mestres da alquimia, a palavra ouro vem do hebraico or, que significa luz. “O que quereis?”, perguntava-se aos recipiendários de todas as iniciações. “Ver a luz”, devia-se responder. O nome iluminados, que comumente se dá aos adeptos, foi, pois, muito mal interpretado quando lhe deram um sentido místico, como se significasse homens cuja inteligência teria se tornado iluminada num dia miraculoso. Iluminados quer dizer simplesmente conhecedores e possuidores da luz, seja pela ciência do grande agente mágico, seja pela noção racional e ontológica do absoluto.

O agente universal é a força vital e subordinada à inteligência. Abandonado a si próprio, devora rapidamente, como Moloch, tudo o que gera, e transforma em vasta destruição a superabundância da vida. É, então, a serpente infernal dos antigos mitos, o Tífon dos egípcios e o Moloch da Fenícia; mas, se a sabedoria, mãe dos Eloim, coloca-lhe o pé sobre a cabeça, extingue todas as chamas vomitadas por ele e derrama sobre a terra, a mãos cheias, uma luz vivificante. Do mesmo modo está dito no Zohar que no início de nosso período terrestre, quando os elementos disputavam entre si a superfície do mundo, o fogo, semelhante a uma serpente imensa, envolvera tudo em suas espirais e ia consumir todos os seres, quando a clemência divina, erguendo à sua volta as ondas do mar como uma vestimenta de nuvens, colocou o pé sobre a cabeça da serpente e fê-la retornar ao abismo. Quem não vê nessa alegoria o primeiro dado e a explicação mais razoável de uma das imagens mais caras ao simbolismo católico, o triunfo da mãe de Deus?

Os cabalistas dizem que o nome oculto do diabo, seu verdadeiro nome, é o mesmo de Jehovah escrito às avessas. Isso é toda uma revelação para o iniciado aos mistérios do tetragrama. De fato, a ordem das letras desse grande nome indica a predominância da idéia sobre a forma, do ativo sobre o passivo, da causa sobre o efeito. Invertendo-se essa ordem obtém-se o contrário. Jehovah é aquele que doma a natureza como a um cavalo bravio e a faz ir onde ele quer, chevajoh (o demônio) é o cavalo sem freio que, semelhante aos dos egípcios no cântico de Moisés, derruba seu cavaleiro arrastando-o consigo para o abismo.

O diabo, pois, existe de modo muito real para os cabalistas, mas não é nem uma pessoa, nem um poder distinto das próprias forças da natureza. O diabo é a divagação ou o sono da inteligência. É a loucura e a mentira.

Assim explicam-se todos os pesadelos da Idade Média, assim explicam-se também os estranhos símbolos de alguns iniciados, como os dos Templários, por exemplo, bem menos culpados por terem prestado culto a Baphomet do que por terem revelado sua imagem a profanos. O Baphomet, figura panteística do agente universal, não é outra coisa senão o demônio barbudo dos alquimistas. Sabe-se que os mais graduados na antiga maçonaria hermética atribuíam a um demônio barbudo dar conclusão à pedra filosofal, cabendo ao não iniciado nesta palavra persignar-se e tapar a vista, mas os iniciados ao culto de Hermès-Panthée compreendiam a alegoria e cuidavam em não explicá-la aos profanos.

Mirville, num livro atualmente quase esquecido, mas que teve certa repercussão há alguns meses, deu-se muito trabalho para reunir algumas bruxarias no gênero das que enchem as compilações dos Delancre, dos Delrio e dos Bodin. Teria encontrado melhor do que isso na história. E sem falar dos milagres tão averiguados dos jansenistas de PortRoyal e do diácono Páris, que pode haver de mais maravilhoso do que a grande monomania do marítimo que fez as crianças e as próprias mulheres acorrerem ao suplício como a uma festa durante trezentos anos? Que pode haver de mais magnífico do que essa fé entusiasta atribuída durante tantos séculos aos mais incompreensíveis e, humanamente falando, mais revoltantes dos mistérios? Nessa ocasião, direis, os milagres vinham de Deus, e servimo-nos deles até como uma prova para estabelecer a verdade da religião. Ora essa! Os heréticos também deixavam-se matar por dogmas francamente bastante absurdos; sacrificavam, pois, também a razão e a vida ao seu credo? Oh! com relação aos heréticos é evidente que o diabo estava em jogo. Pobres-coitados que tomavam o diabo por Deus e Deus pelo diabo! Como desiludiram-se quando os fizeram reconhecer o verdadeiro Deus na caridade, na ciência, na justiça e sobretudo na misericórdia de seus ministros!

Os necromantes, que fazem aparecer o diabo após uma série fatigante e quase impossível das mais revoltantes evocações, são apenas crianças ao pé do Santo Antônio da lenda que os tirava aos milhares do inferno e os arrastava sempre consigo, como de Orfeu se conta que atraía para si os carvalhos, as rochas e os animais mais selvagens.

Somente Callot, iniciado pelos boêmios nômades durante a infância aos mistérios da bruxaria negra, pôde compreender e reproduzir as evocações do primeiro eremita. E credes que ao descreverem os sonhos assustadores da maceração e do jejum, os legendários tenham inventado? Não; ficaram muito aquém da realidade. Os claustros, com efeito, sempre foram povoados por espectros sem nome, cujas sombras e larvas infernais pulsam em suas paredes. Certa vez, Santa Catarina de Sena passou oito dias em meio a uma orgia obscena que teria desencorajado a veia poética de Aretino; Santa Teresa sentiu-se transportada viva ao inferno e aí sofreu, entre muralhas que se juntavam, angústias que apenas as mulheres histéricas poderão compreender… Tudo isso, dirse-á, passava-se na imaginação dos pacientes. Mas onde, pois, quereis que se possam passar fatos de ordem sobrenatural? O certo é que todos esses visionários viram, tocaram, tiveram o sentimento lancinante de uma realidade aterradora. Falamos baseados em nossa própria experiência, e há visões de nossa primeira juventude passada num recolhimento e num ascetismo cuja lembrança ainda nos faz estremecer.

Deus e o diabo são o ideal do bem e do mal absolutos. Mas o homem nunca concebe o mal absoluto senão como uma falsa idéia do bem. Só o bem pode ser absoluto, e o mal é relativo unicamente a nossas ignorâncias e a nossos erros. Todo homem para ser deus faz-se primeiro diabo; mas, como a lei da solidariedade é universal, a hierarquia existe no inferno como no céu. Um ser malévolo sempre encontrará um pior do que ele para fazer-lhe mal; e quando o mal atinge seu ápice é preciso que cesse, pois só poderia continuar pelo aniquilamento do ser, o que é impossível. Então os homens-diabo, esgotados seu recursos, recaem no domínio dos homens-Deus e são salvos por aqueles que inicialmente pareciam ser suas vítimas; mas o homem que se esmera em viver fazendo o mal presta homenagem ao bem por toda a inteligência e energia que desenvolve em si próprio. É por isso que o grande iniciador dizia em sua linguagem figurada: Sede frios ou quentes, porque se sois mornos fazeis-me vomitar.

O grande mestre, numa de suas parábolas, condena unicamente o preguiçoso que enterrou seu depósito por medo de perdê-lo nas operações arriscadas desse banco que se chama vida. Nada pensar, nada amar, nada querer, nada fazer, eis o verdadeiro pecado. A natureza reconhece e recompensa apenas os trabalhadores.

A vontade humana desenvolve-se e aumenta pela atividade. Para querer realmente, é preciso agir. A ação domina e sempre arrasta a inércia. Tal é o segredo da influência dos pretensos celerados sobre as pessoas supostamente honestas. Quantos poltrões e covardes crêem-se virtuosos porque têm medo! Quantas mulheres honradas olham com inveja para as prostitutas! Não faz ainda muito tempo os galerianos estavam na moda. Por quê? Pensais que a opinião pública nunca possa render homenagem ao vício? Não, mas ela faz justiça à atividade e à audácia, e está na ordem que os covardes infames estimem os bandidos audaciosos.

A audácia unida à inteligência é a mãe de todos os sucessos neste mundo. Para empreender, é preciso saber; para realizar, é preciso querer; para querer verdadeiramente, é preciso ousar; e, para recolher em paz os frutos da própria audácia, é preciso calar-se.

SABER, OUSAR, QUERER, CALAR-SE são, como dissemos antes, os quatro verbos cabalísticos que correspondem às quatro letras do tetragrama e às quatro formas hieroglíficas da Esfinge. Saber é a cabeça humana; ousar são as garras do leão; querer são as ilhargas laboriosas do touro; calar-se são as asas místicas da águia. Apenas mantém-se acima dos outros homens quem não prostitui os segredos de sua inteligência aos comentários e ao escárnio daqueles.

Todos os homens verdadeiramente fortes são magnetizadores e o agente universal obedece à sua vontade. É assim que eles operam maravilhas. Fazem-se acreditar, fazem-se seguir e quando dizem: Isto é assim, a natureza de certa forma muda aos olhos do vulgo e torna-se o que o grande homem quis. Isto é minha carne e isto é meu sangue, disse um homem que se fez Deus por suas virtudes e, em presença de um pedaço de pão e de um pouco de vinho, dezoito séculos viram, tocaram, provaram, adoraram a carne e o sangue divinizados pelo martírio! Dizei-nos agora que a vontade humana nunca realiza milagres!

Não nos faleis aqui de Voltaire, Voltaire não foi um taumaturgo, foi o espiritual e eloqüente intérprete daqueles sobre os quais os milagres não agiam mais. Tudo em sua obra é negativo; ao contrário, tudo era afirmativo na de Galileu, como o chamava um ilustre e muito infeliz imperador. Do mesmo modo, Juliano tentara em sua época mais do que Voltaire pôde realizar, queria opor o prestígio aos prestígios, a austeridade do poder à do protesto, as virtudes às virtudes, os milagres aos milagres; os cristãos jamais tiveram inimigos tão perigosos, e sentiram-no bem, pois Juliano foi assassinado, e a lenda dourada ainda atesta que um santo mártir, acordado na tumba pelos clamores da Igreja, pegou das armas e feriu o apóstata no ombro em meio a seu exército e a suas vitórias. Tristes mártires que ressuscitam para serem algozes! Crédulo imperador que se fiava em seus deuses e nas virtudes dos tempos antigos.

Quando os reis da França viviam cercados pela adoração de seu povo, quando eram vistos como os ungidos do Senhor e os primogênitos da Igreja, curavam escrófulas. Um homem em voga fará milagres quando quiser. Cagliostro podia ser apenas um charlatão, mas, desde que a opinião pública fizera dele o divino Cagliostro, ele devia operar prodígios, e foi também o que aconteceu.

Quando Céphas Barjona era apenas um judeu, proscrito por Nero e que vendia às mulheres dos escravos um específico para a vida eterna, não passava de um charlatão para todas as pessoas instruídas de Roma; mas a opinião pública fez do empírico espiritualista um apóstolo; e os sucessores de Pedro, sejam eles Alexandre VI ou mesmo João XXII, são infalíveis para todo homem bem-educado e que não deseje ser inutilmente banido da sociedade. Assim segue o mundo.

O charlatanismo, quando bem-sucedido, é, pois, em magia como em todas as coisas, um grande instrumento de poder. Fascinar habilmente o vulgo não é já dominá-lo? Vê-se que os pobres-diabos dos bruxos que, na Idade Média, tolamente faziam-se queimar vivos não tinham um grande domínio sobre os outros. Joana d’Arc era mágica à frente dos exércitos, e em Rouen a pobre moça não foi bruxa. Sabia apenas orar e combater, e o prestígio que a rodeava cessou assim que lhe colocaram os grilhões. Consta de sua história que o rei da França a tenha reclamado? Que a nobreza francesa, que o povo, que o exército tenham protestado contra sua condenação? O papa, de quem o rei da França era o primogénito, excomungou os algozes da Virgem? Não, nada disso. Joana d’Arc foi bruxa para todos assim que deixou de ser mágica, e certamente não foram os ingleses os únicos a queimá-la. Quando se exerce um poder aparentemente sobre-humano, é preciso exercê-lo sempre ou resignar-se a perecer. O mundo vinga-se sempre covardemente por ter acreditado muito, admirado muito e sobretudo obedecido muito.

Só compreendemos o poder mágico em sua aplicação às grandes coisas, se um verdadeiro mágico prático não se torna mestre do mundo é porque o desdenha; e para que desejaria diminuir seu soberano poder? “Eu te darei todos os reinos do mundo se tu caíres a meus pés e me adorares”, diz a Jesus o satã da parábola. “Retira-te”, diz-lhe o Salvador, “pois está escrito: Tu adorarás somente a Deus…” Eli, Eli lamma Sabbachtani! devia gritar mais tarde esse sublime e divino adorador de Deus. Se tivesse respondido a satã: Não te adorarei e és tu que vais cair a meus pés, pois ordeno-te em nome da inteligência e da eterna razão!, não teria devotado sua santa e nobre vida ao mais atroz de todos os suplícios. O satã da montanha foi bem cruelmente vingado.

Os antigos chamavam a magia prática de arte sacerdotal e arte real; e lembramos que os magos foram os mestres da civilização primitiva, porque foram os mestres de toda a ciência de seu tempo.

Saber é poder quando se ousa querer.

A primeira ciência do cabalista prático ou do mago é o conhecimento dos homens. A frenologia, a psicologia, a quiromancia, a observação dos gostos e dos movimentos, do som da voz e das impressões, sejam simpáticas, sejam antipáticas, são ramos dessa arte, e os antigos não os ignoravam. Gall e Spurzëim reencontraram em nossos dias a frenologia, Laváter depois de Porta. Cardano, Taisnier, Jean Belot e alguns outros novamente adivinharam mais do que reencontraram a ciência da psicologia; a quiromancia está ainda oculta e é com dificuldade que se encontram alguns traços seus na obra bastante recente e muito interessante, aliás, do cavalheiro d’Arpentigny. Para se ter noções suficientes dessa ciência é preciso remontar às próprias fontes cabalísticas em que se inspirou o sábio Cornélius Agrippa. É oportuno, pois, dizer algumas palavras a esse respeito, enquanto aguardamos a obra de nosso amigo Desbarolles.

A mão é no homem o instrumento da ação; é, como o rosto, uma espécie de síntese nervosa, e também deve ter seus traços e sua fisionomia. O caráter dos indivíduos está traçado aí em signos irrefutáveis. Assim, dentre as mãos, umas são laboriosas, outras preguiçosas; umas pesadas e quadradas, outras insinuantes e leves. As mãos duras e secas são feitas para a luta e o trabalho, as mãos macias e úmidas aspiram somente à volúpia. Os dedos pontudos são escrutadores e místicos, os dedos quadrados, matemáticos, os dedos espatulados, pertinazes e ambiciosos.

O polegar, pollex, o dedo da força e do poder, corresponde no simbolismo cabalístico à primeira letra do nome de Jehovah. Esse dedo, pois, é por si só como a síntese da mão: se ele é forte, o homem é forte moralmente; se é fraco, o homem é frágil. Ele possui três falanges, das quais a primeira está oculta na palma da mão, como o eixo imaginário do mundo atravessa a espessura da terra. Essa primeira falange corresponde à vida física, a segunda à inteligência, a última à vontade. As palmas da mão gordas e espessas denotam gostos sensuais e uma, grande força física; um polegar longo, sobretudo em sua última falange, revela uma vontade forte que pode chegar ao despotismo; polegares curtos, ao contrário, são caracteres dóceis e fáceis de dominar.

As pregas naturais da mão determinam suas linhas. Essa linhas, portanto, são o traço dos hábitos, e o observador paciente saberá reconhecê-las e julgá-las. O homem cuja mão fecha-se mal é desastrado ou infeliz. A mão tem três funções principais: pegar, segurar e apalpar. As mãos mais macias pegam e apalpam melhor; as mãos duras e fortes retêm mais tempo. Mesmo as mais leves rugas atestam as sensações habituais desse órgão. Cada dedo, aliás, tem uma função especial que lhe ocasionou o nome. Já falamos do polegar; o indicador é o dedo que aponta, é o do verbo e da profecia; o médio domina toda a mão, é o do destino; o anular é o das alianças e das honras: os quiromantes consagraram-no ao sol; o auricular é insinuante e loquaz, ao menos no dizer dos simplórios e das amas a quem seu dedinho conta tantas coisas: a mão tem sete protuberâncias que os cabalistas, segundo as analogias naturais, atribuíram aos sete planetas: a do polegar, a Vênus; do indicador, a Júpiter; do médio, a Saturno; do anular, ao Sol; do auricular, a Mercúrio; dos dois outros, a Marte e à Lua. De acordo com sua forma e sua predominância, eles julgavam os atrativos, as aptidões e, por conseguinte, os prováveis destinos dos indivíduos submetidos à sua apreciação.

Não existe vício que não deixe marca, nem uma virtude que não tenha seu sinal. Além disso, para os olhos exercitados do observador, não há hipocrisia possível. Compreender-se-á que tal ciência já é um poder verdadeiramente sacerdotal e real.

A predição dos principais acontecimentos da vida já é possível pelas numerosas probabilidades analógicas dessa observação, contudo existe uma faculdade que se designa pressentimentos ou sensitivismo. As coisas eventuais freqüentemente existem em sua causa antes de realizarem-se em ações, os sensitivos vêem antecipadamente os efeitos nas causas, e existiram antes de todos os grandes acontecimentos surpreendentes predições. Durante o reinado de Luís Filipe, ouvimos sonâmbulos e extáticos anunciarem a volta do Império e precisarem a data de seu advento. A República de 1848 estava claramente anunciada na profecia de Orval, que datava no mínimo de 1830 e de que suspeitamos, bem como daquelas atribuídas aos Olivarius, ter sido obra pseudônima de Mlle. Lenormand. Mas isso pouco importa para nossa tese.

Essa luz magnética que faz prever o futuro também faz adivinhar as coisas presentes e ocultas; como é a vida universal, ela é também o agente da sensibilidade humana, transmitindo a uns os males ou a saúde dos outros, segundo a influência fatal dos contatos ou as leis da vontade. É o que explica o poder das bênçãos e dos feitiços tão claramente reconhecido pelos grandes adeptos e sobretudo pelo maravilhoso Paracelso. Um crítico judicioso e sagaz, M. Ch. Fauvety, num artigo publicado pela Revista Filosófica e Religiosa, aprecia de modo notável os trabalhos avançados de Paracelso, Pomponace, Goglenius, Crollius e Robert Flud sobre o magnetismo. Mas o que nosso sábio amigo e colaborador estuda somente como uma curiosidade filosófica, Paracelso e os seus praticavam sem preocuparem-se muito em torná-lo compreensível para o mundo, pois era segundo eles, um desses segredos tradicionais para os quais o ocultismo é de rigor, e que basta indicar aos que sabem, deixando sempre um véu sobre a verdade para desorientar os ignorantes.

Ora, eis o que Paracelso reservava somente para os iniciados, e que compreendemos ao definir os caracteres cabalísticos e as alegorias de que ele faz uso na coleção de suas obras:

A alma humana é material, o mens divino lhe é oferecido para imortalizá-la e fazê-la viver espiritual e individualmente, mas sua substância natural é fluídica e coletiva.

Há no homem, pois, duas vidas, a individual ou racional, e a vida comum ou instintiva. É por esta última que se pode viver uns nos outros, uma vez que a alma universal, como todo organismo nervoso com uma consciência separada, é a mesma para todos.

Vivemos da vida comum e universal no embrionato, no êxtase e no sono. De fato, no sono a razão não age, e a lógica, quando é encontrada em nossos sonhos, ocorre apenas fortuitamente e segundo os acasos das reminiscências puramente físicas.

Nos sonhos, temos a consciência da vida universal; misturamo-nos à água, ao fogo, ao ar e à terra; voamos como os pássaros; escalamos como os esquilos; rastejamos como as serpentes; estamos embriagados de luz astral; tornamos a mergulhar na morada comum, como acontece de modo mais completo na morte; mas então (e é assim que Paracelso explica os mistérios da outra vida) os maus, isto é, aqueles que se deixaram dominar pelos instintos da besta em prejuízo da razão humana, afogam-se no oceano da vida comum com todas as angústias de uma morte eterna; os outros flutuam e gozam para sempre das riquezas daquele ouro fluido que conseguiram dominar.

Essa identidade da vida física permite às vontades mais fortes apoderarem-se da existência das outras e tornarem-se suas auxiliares, explica as correntes simpáticas que ocorrem em proximidade ou à distância, e dá todo o segredo da medicina oculta, porque essa medicina tem por princípio a grande hipótese das analogias universais e, atribuindo todos os fenômenos da vida física ao agente universal, ensina que é preciso agir sobre o corpo astral para reagir sobre o corpo materialmente visível; ensina também que a essência da luz astral é um duplo movimento de atração e de projeção; assim como os corpos humanos atraem-se e repelem-se uns aos outros, podem também absorver-se, propagar-se uns nos outros e realizar trocas; as idéias ou as imaginações de um podem influenciar sobre a forma do outro e reagir em seguida sobre o corpo exterior.

Assim produzem-se os fenômenos tão estranhos da influência dos olhares na gravidez, assim a proximidade de pessoas doentes causa maus sonhos, assim a alma respira algo de insalubre na companhia dos loucos e dos maus.

Pode-se observar que nos pensionatos as crianças adquirem um pouco a fisionomia umas das outras; cada casa de educação tem, por assim dizer, um ar de família que lhe é próprio. Nos escolas de órfãs dirigidas por religiosas, todas as garotas parecem-se e adquirem todas essa fisionomia obediente e apagada que caracteriza a educação ascética. Os homens tornam-se belos na escola do entusiasmo, das artes ou da glória; tornam-se feios na prisão, e de ar triste nos seminários e nos conventos.

Aqui compreende-se que abandonamos Paracelso para entrar nas conseqüências e nas aplicações de suas idéias, que são simplesmente as dos antigos magos e os elementos dessa cabala física que chamamos magia.

Segundo os princípios cabalísticos formulados pela escola de Paracelso, a morte seria apenas um sono cada vez mais profundo e definitivo, que seria possível interromper em seu início exercendo uma poderosa ação de vontade sobre o corpo astral que se desprende e chamando-o de volta à vida por algum interesse poderoso ou alguma afeição dominante. Jesus exprimia o mesmo pensamento quando dizia da filha de Jairo: “Esta moça não está morta, está dormindo”; e de Lázaro: “Nosso amigo adormeceu e vou acordá-lo.” Para exprimir esse sistema ressurreicionista de modo que não ofenda o senso comum, isto é, as opiniões geralmente adotadas, digamos que a morte, quando não há destruição ou alteração essencial dos órgãos, é sempre precedida de uma letargia mais ou menos longa. (A ressurreição de Lázaro, se tivesse de ser admitida como fato científico, provaria que esse estado pode durar quatro dias).

Voltemos agora ao segredo da pedra filosofal que demos somente em hebraico não pontuado no Ritual da Alta Magia. Eis o texto completo em latim, tal como é encontrado à página 144 do Sepher Yétsirah, comentado pelo alquimista Abraão (Amsterdam, 1642):

SEMITA XXXI

Vocatur intelligentia perpetua; et quare vocatur ita? Eo quod ducit motum solis et lunae juxta constitutionem eorum; utrumque in orbe sibi conveniente.

Rabbi Abraham F.’. D.’.

dicit:

Semita trigésima prima vocatur intelligentia perpetua: et illa ducit solem et lunam et reliquas stellas et figuras, unum quodque in orbe suo, et impertit omnibus creatis juxta dispositionem ad signa et figuras.

Eis a tradução do texto hebraico que transcrevemos em nosso ritual:

“A trigésima primeira via chama-se inteligência perpétua e rege o sol e a lua e as outras estrelas e figuras, cada qual em seu orbe respectivo. E distribui o que convém a todas as coisas criadas segundo sua disposição nos signos e nas figuras.”

Vê-se que esse texto é ainda totalmente obscuro para alguém que não conhece o valor característico de cada uma das trinta e duas vias. (As trinta e duas vias são os dez números e as vinte e duas letras hieroglíficas da Cabala. A trigésima primeira refere-se ao a , que representa a lâmpada mágica ou a luz entre os chifres de Baphomet. É o signo cabalístico do od ou da luz astral com seus dois pólos e seu centro equilibrado. Sabe-se que na linguagem dos alquimistas o sol significa o olho, a lua, a prata, e que as outras estrelas ou planetas referem-se aos outros metais. Deve-se compreender agora o pensamento do judeu Abraão.

O fogo secreto dos mestres em alquimia era, pois, a eletricidade, e aí está a metade de seu grande arcano; mas eles sabiam equilibrar sua força por uma influência magnética que concentravam em seu atanor. É o que resulta dos dogmas obscuros de Basílio Valentim, Bernard Trévisan e Henri Kunrath, que pretendem, todos, ter operado a transmutação como Raimundo Lúlio, Arnaud de Villeneuve e Nicolas Flamel.

A luz universal, quando imanta os mundos, chama-se luz astral; quando forma os metais, denomina-se azote, ou mercúrio dos sábios; quando dá vida aos animais, deve chamar-se magnetismo animal.

O bruto sofre as fatalidades dessa luz; o homem pode dirigi-la. É a inteligência que, ao adaptar o sinal ao pensamento, cria as formas e as imagens.

A luz universal é como a imaginação divina, e esse mundo que muda sem cessar, permanecendo sempre o mesmo quanto às suas leis de configuração, é o sonho imenso de Deus.

O homem formula a luz por sua imaginação; atrai para si luz suficiente para dar as formas convenientes a seus pensamentos e mesmo a seus sonhos; se essa luz o invade, se afoga seu entendimento nas formas que evoca, fica louco. Mas a atmosfera fluídica dos loucos freqüentemente é um veneno para as razões vacilantes e para as imaginações exaltadas.

As formas que a imaginação superexcitada produz para perturbar o entendimento são tão reais quanto as impressões da fotografia. Não se pode ver o que não existe. Os fantasmas dos sonhos, e os próprios sonhos das pessoas acordadas, são, pois, imagens reais que existem na luz.

Existem, aliás, alucinações contagiosas. Mas afirmamos aqui algo mais do que alucinações comuns. Se as imagens atraídas pelos cérebros doentes são algo real, eles não podem projetá-las exteriormente, reais como as recebem?

Essas imagens, projetadas por todo o organismo nervoso do médium, não podem afetar todo o organismo daqueles que, deliberadamente ou não, entram em simpatia nervosa com o médium?

Os feitos do senhor Home provam que tudo isso é possível.

Agora, respondamos aos que crêem ver nesses fenômenos manifestações do outro mundo e fatos de necromancia.

Tomamos nossa resposta emprestada ao livro sagrado dos cabalistas, e nisto nossa doutrina é igual à dos rabinos compiladores do Zohar.

Axioma

O espírito reveste-se para descer e despoja-se para subir.

De fato: Por que os espíritos criados são revestidos de corpos?

É que eles devem ser limitados para terem uma existência possível. Despojados de corpo e, por conseguinte, tornados sem limites, os espíritos criados se perderiam no infinito, e, por não poderem concentrar-se em algum lugar, estariam mortos e impotentes em toda a parte, porque estariam precipitados na imensidão de Deus.

Todos os espíritos, portanto, têm corpos, uns mais delgados, outros mais espessos, segundo os meios em que foram chamados a viver.

A alma de um morto não poderia, pois, viver na atmosfera dos vivos, assim como nós não poderíamos viver na terra ou na água.

Seria necessário a um espírito aéreo, ou antes, etéreo, um corpo factício semelhante aos aparelhos de mergulhadores, para que pudesse chegar até nós.

Tudo o que podemos ver dos mortos são os reflexos que deixaram na luz atmosférica, luz cujas impressões evocamos pela simpatia de nossas lembranças.

As almas dos mortos estão acima de nossa atmosfera. Nosso ar respirável torna-se terra para eles. Foi o que o Salvador declarou em seu Evangelho, quando fez a alma de um bem-aventurado dizer:

“Agora o grande caos firmou-se para nós, e os que estão no alto não podem mais descer para os que estão embaixo.”

As mãos que o senhor Home faz aparecer são, pois, ar colorido pelos reflexos que sua imaginação doente atrai e projeta.

São tocadas como são vistas: metade ilusão, metade força magnética e nervosa.

A nosso ver aí estão explicações bastante claras e precisas.

Raciocinemos um pouco com os partidários de aparições do outro mundo:

Ou essas mãos são corpos reais.

Ou são ilusões.

Se são corpos, não são, portanto, espíritos.

Se são ilusões produzidas por miragens, seja em nós, seja fora de nós, então vós me dais ganho de causa.

Agora, uma observação:

Todos os doentes de congestão luminosa ou de sonambulismo contagioso perecem de morte violenta, ou pelo menos de morte súbita.

É por essa razão que antigamente se atribuía ao diabo o poder de estrangular os bruxos.

O bom e honesto Laváter evocava habitualmente o suposto espírito de Gablidone.

Foi assassinado.

Um vendedor de limonadas de Leipsick, Scroepfer, evocava imagens animadas dos mortos.

Suicidou-se com um tiro de pistola.

Sabe-se qual foi o final infeliz de Cagliostro.

Apenas um mal maior que a própria morte pode salvar a vida desses experimentadores imprudentes. Podem tornar-se idiotas ou loucos, e então só não morrem se forem atentamente vigiados para impedir que se suicidem.

As doenças magnéticas por si próprias são um encaminhamento para a loucura, e sempre nascem da hipertrofia ou da atrofia do sistema nervoso.

Assemelham-se ao histerismo, que é uma de suas variações, e freqüentemente são produzidas ou por excessos de celibato, ou por excessos de um gênero totalmente oposto.

Sabe-se qual a relação existente entre o cérebro e os órgãos encarregados pela natureza da realização de suas obras mais nobres: as que têm por finalidade a reprodução dos seres.

Não se viola impunemente o santuário da natureza.

Ninguém ergue, sem arriscar a própria vida, o véu da grande Isis.

A natureza é casta, e é à castidade que ela deve as chaves da vida.

Entregar-se aos amores impuros é desposar a morte.

A liberdade, que é a vida da alma, se conserva apenas na ordem da natureza. Toda desordem voluntária a fere, um excesso prolongado a mata.

Então, ao invés de sermos guiados e preservados pela razão, somos abandonados às fatalidades do fluxo e do refluxo da luz magnética.

Ora, a luz magnética devora sem cessar porque está sempre criando; para produzir continuamente, é preciso eternamente absorver.

Daí vêm as monomanias assassinas e as tentações de suicídio.

Daí vem esse espírito de perversidade que Edgar Poe descreveu de forma tão impressionante e tão verdadeira, e que Mirville teria razão em chamar diabo.

O diabo é a vertigem da inteligência atordoada pelas oscilações do coração.

É a monomania do nada, é a atração do abismo, independentemente do que isso possa ser segundo as decisões da fé católica, apostólica e romana, em que não receamos tocar.

Quanto à reprodução dos signos e dos caracteres por esse fluido universal a que chamamos luz astral, negar sua possibilidade seria importar-se pouco com os fenômenos mais comuns da natureza. A miragem nas estepes da Rússia, os palácios da fada Morgana, as figuras impressas naturalmente no coração das pedras que Gaffarel denomina gamahés, a configuração monstruosa de algumas crianças proveniente dos olhares ou pesadelos das mães, todos esses fenômenos e muitos outros provam que a luz está repleta de imagens e reflexos que projeta e reproduz de acordo com as evocações da imaginação, da lembrança ou do desejo. A alucinação não é sempre um devaneio sem objeto: desde que todos vêem uma coisa, ela certamente é visível; mas, se essa coisa é absurda, deve-se rigorosamente concluir que todos estão enganados ou alucinados por uma aparência real.

Dizer, por exemplo, que nas sessões magnéticas do senhor Home saem das mesas mãos reais e vivas, mãos verdadeiras, que uns vêem, que outros tocam, e pelas quais outros ainda sentem-se tocados sem vê-Ias, dizer que essas mãos verdadeiramente corporais são mãos de espíritos é falar como crianças ou como loucos, é implicar contradição nos termos. Mas reconhecer que esta ou aquela aparência, esta ou aquela sensação se produz é ser simplesmente sincero e zombar da zombaria dos homens probos ainda quando esses homens fossem espirituosos como este ou aquele redator brincalhão do jornal.

Esses fenômenos de luzes que produzem aparições mostraram-se sempre em épocas difíceis para a humanidade. São os fantasmas da febre do mundo, é o histerismo de uma sociedade que se entedia. Virgílio conta-nos em belos versos que, na época de César, Roma estava repleta de espectros; sob Vespasiano, as portas do Templo de Jerusalém abriam-se sozinhas, e ouvia-se gritar: “Os deuses se vão.” Ora, quando os deuses partem, os diabos retornam. O sentimento religioso transforma-se em superstição quando a fé está perdida; pois as almas têm necessidade de acreditar, porque têm sede de ter esperança. Como a fé pode perder-se? Como a ciência pode duvidar do infinito e da harmonia? Porque o santuário do absoluto está sempre fechado para a maioria. Mas o reino da verdade, que é o de Deus, sofre violências e deve ser conquistado pelos fortes. Existe um dogma, uma chave, uma tradição sublime; e esse dogma, essa chave, essa tradição é a alta magia. Apenas aí encontram-se o absoluto da ciência e a base eterna da lei, o preservativo contra toda loucura, toda superstição e todo erro, o Éden da inteligência, o repouso do coração e a quietude da alma. Não dizemos isso na esperança de convencer os que riem, mas somente para advertir os que procuram. Coragem e esperança a estes; eles certamente encontrarão, uma vez que nós encontramos.

O dogma mágico não é aquele dos médiuns. Os médiuns que dogmatizam só podem ensinar a anarquia, uma vez que sua inspiração resulta de uma exaltação desordenada. Eles sempre prevêem desastres, negam a autoridade hierárquica, assumem a postura de soberanos pontífices, como Vintras. O iniciado, ao contrário, respeita antes de tudo a hierarquia, ama e conserva a ordem, inclina-se diante das crenças sinceras, ama todos os signos da imortalidade na fé e da redenção pela caridade, que é toda ela disciplina e obediência.

Acabamos de ler um livro publicado sob a influência da vertigem astral e magnética e ficamos chocados com as tendências anárquicas de que ele está repleto sob uma grande aparência de benevolência e religião. Encabeçando a obra, vê-se o signo, ou, como dizem os magistas, a assinatura das doutrinas que ela ensina. Em vez da cruz cristã, símbolo de harmonia, aliança e regularidade, vê-se aí a vara de videira tortuosa, com seus brotos em gavinhas, imagens da alucinação e da embriaguez.

As primeiras idéias formuladas nesse livro são o cúmulo do absurdo. As almas dos mortos, diz ele, estão em toda a parte, e nada mais as limita. Eis o infinito todo povoado de deuses que entram uns nos outros. As almas podem e querem comunicar-se conosco por meio das mesas e dos chapéus. Assim, nada mais de ensino regulamentado, de sacerdócio, de Igreja, o delírio alçado à condição de verdade, oráculos que escrevem para a salvação do gênero humano a palavra atribuída a Cambronne, grandes homens que deixam a serenidade dos destinos eternos para fazer dançarem nossos móveis e manter conosco conversas semelhantes àquelas que lhes empresta Béroalde de Verville como meio de ter sucesso. Tudo isso causa piedade; e no entanto, na América, propaga-se como uma peste intelectual. A jovem América delira, tem febre, talvez esteja em sua primeira dentição. Mas a França! A França acolher semelhantes coisas! Não, isso não é possível, e isso não é. Mas, ao renegarem as doutrinas, os homens sérios devem observar os fenômenos, permanecer calmos em meio às agitações de todos os fanatismos (pois a incredulidade também tem o seu), julgar após haver examinado. Conservar a razão em meio aos loucos, a fé em meio às superstições, a dignidade em meio aos caracteres enfraquecidos e a independência em meio aos carneiros de Panurgo é de todos os milagres o mais raro, o mais belo e também o mais difícil de realizar.

CAPÍTULO IV

Os fantasmas fluídicos e seus mistérios

Os antigos davam-lhes diferentes nomes. Eram larvas, lêmures, empusas. Gostavam do vapor do sangue derramado, e fugiam do gume do gládio.

A teurgia evocava-os, e a cabala conhecia-os sob o nome de espíritos elementares.

No entanto, não eram espíritos, pois eram mortais.

Eram coagulações fluídicas que se podiam destruir, dividindo-as.

Eram espécies de miragens animadas, emanações imperfeitas da vida humana: as tradições da magia negra as fazem nascer do celibato de Adão. Paracelso diz que os vapores do sangue das mulheres histéricas povoam o ar de fantasmas; e essas idéias são tão antigas que as encontramos em Hesíodo, que defende expressamente fazer secar diante do fogo roupa branca manchada por uma poluição qualquer.

As pessoas obcecadas pelos fantasmas geralmente estão exaltadas por um celibato muito rigoroso, ou enfraquecidas por excessos de devassidão.

Os fantasmas fluídicos têm os abortos da luz vital; são mediadores plásticos sem corpo e sem espírito, nascidos dos excessos do espírito e dos desregramentos do corpo.

Esses mediadores errantes podem ser atraídos por certos doentes que lhes são fatalmente simpáticos, e que lhes emprestam, às suas expensas, uma existência factícia mais ou menos durável. Servem, então, de instrumentos suplementares para as vontades instintivas desses doentes: nunca, todavia, para curá-los, sempre para desviá-los e aluciná-los mais.

Se os embriões corporais têm a propriedade de tomar as formas que lhes dá a imaginação das mães, os embriões fluídicos errantes devem ser prodigiosamente variáveis e transformar-se com uma surpreendente facilidade. Sua tendência a darem-se um corpo para atrair uma alma faz com que condensem e assimilem, naturalmente, as moléculas corporais que flutuam na atmosfera.

Assim, ao coagularem o vapor do sangue, refazem sangue, o mesmo sangue que os maníacos alucinados vêem escorrer nos quadros e nas estátuas. Mas não são os únicos a vê-lo. Vintras e Rose Tamisier não são impostores nem vítimas de alguma ilusão; o sangue escorre realmente; médicos examinam-no; analisam-no; é sangue, verdadeiro sangue humano: de onde vem? Pode ter se formado espontaneamente na atmosfera? Pode sair naturalmente de um mármore, unia tela pintada ou uma hóstia? Não, certamente; esse sangue circulou em veias, depois propagou-se, evaporou-se, dessecou-se, o soro tornou-se vapor, os glóbulos poeira intangível, o todo flutuou e voltejou na atmosfera, depois foi atraído para a corrente de um eletromagnetismo especificado. O soro voltou a ser líquido, retomou e embebeu novamente os glóbulos que a luz astral coloriu, e o sangue escorreu.

A fotografia é prova suficiente de que as imagens são modificações reais da luz. Ora, existe uma fotografia acidental e fortuita que opera, segundo as miragens errantes na atmosfera, impressões duráveis em folhas de árvores, na madeira e até no coração das pedras: assim formam-se as figuras naturais a que Gaffarel consagrou várias páginas em seu livro Curiosidades Inauditas, as pedras a que ele atribui uma virtude oculta, e que denomina gamahés; assim traçam-se as escrituras e os desenhos que tanto surpreendem os observadores dos fenômenos fluídicos. São fotografias astrais feitas pela imaginação dos médiuns com ou sem a ajuda das larvas fluídicas.

A existência dessas larvas nos foi demonstrada de modo peremptório por uma experiência bastante curiosa. Várias pessoas, para testar o poder mágico do americano Home, pediram-lhe que evocasse parentes que elas alegavam ter perdido, mas que na realidade jamais existiram. Os espectros não faltaram a esse apelo, e os fenômenos que habitualmente seguiam-se à evocação do médium manifestaram-se plenamente.

Essa experiência por si só bastaria para convencer de credulidade deplorável e de erro formal os que crêem na intervenção dos espíritos nesses fenômenos estranhos. Para que mortos retornem, é preciso antes de mais nada que tenham existido, e demônios não seriam tão facilmente enganados por nossas mistificações.

Como todos os católicos, acreditamos na existência dos espíritos das trevas; mas sabemos também que o poder divino lhes deu as trevas por prisão eterna e que o Redentor viu Satã cair do céu como um raio. Se os demônios nos tentam é pela cumplicidade voluntária de nossas paixões más, e não lhes é permitido afrontar o império de Deus e perturbar, por manifestações tolas e inúteis, a ordem eterna da natureza.

Os caracteres e assinaturas diabólicos, que se produzem à revelia dos médiuns, evidentemente não são provas de um pacto tácito ou formal entre esses doentes e as inteligências do abismo. Esses signos serviram em todos os tempos para exprimir a vertigem astral e permaneceram no estado de miragem nos reflexos da luz extraviada. A natureza também tem suas reminiscências e envia-nos os mesmos signos com relação às mesmas idéias. Não há nisso nada de sobrenatural nem de infernal.

“Como quer o senhor que eu admita”, dizia-nos o pároco Charvoz, primeiro vigário de Vintras, “que Satã ousa imprimir seus hediondos estigmas nas espécies consagradas e tornadas o próprio corpo de Jesus Cristo?” Declaramos logo que nos era igualmente impossível pronunciarmo-nos a favor de semelhante blasfêmia; no entanto, como demonstramos em nossos folhetins do jornal O Estafeta, os signos impressos em caracteres sangrentos nas hóstias de Vintras, regularmente consagradas por Charvoz, eram os que, na magia negra, são absolutamente reconhecidos como as assinaturas dos demônios.

As escrituras astrais são freqüentemente ridículas ou obscenas. Os pretensos espíritos, interrogados sobre os maiores mistérios da natureza, respondem muitas vezes com uma expressão grosseira tornada heróica, segundo dizem, nos lábios militares de Cambronne. Os desenhos que os lápis traçam por si sós reproduzem com freqüência essas figuras priápicas informes, que o pálido vadio, para servirmo-nos da pitoresca expressão de Augusto Barbier, desenha assoviando ao longo dos muros de Paris, prova recente do que adiantamos, isto é, que o espírito não preside de nenhum modo a essas manifestações e que seria soberbamente absurdo reconhecer aí sobretudo a intervenção dos espíritos desligados da matéria.

O jesuíta Paul Saufidius, que escreveu sobre os usos e costumes dos japoneses, narra um caso muito interessante. Um grupo de peregrinos japoneses, atravessando um dia um deserto, viu aproximar-se um bando de espectros em igual número ao seu e que caminhava no mesmo passo. Esses espectros, no princípio disformes e semelhantes a larvas, tomavam ao se aproximarem a aparência do corpo humano. Logo, encontraram os peregrinos e misturaram-se a eles, deslizando em silêncio por entre as fileiras, então os japoneses viram-se duplos, tendo cada fantasma se tornado a imagem perfeita e como que a miragem de cada peregrino. Os japoneses aterrorizados prosternaram-se, e o bonzo que os conduzia pôs-se a orar por eles com grandes contorsões e em altos brados. Quando os peregrinos se levantaram, os fantasmas haviam desaparecido e o grupo devoto pôde continuar livremente seu caminho. Esse fenômeno, que não colocamos em dúvida, apresenta as duplas características de uma miragem e de uma projeção repentina de larvas astrais, ocasionadas pelo calor da atmosfera e esgotamento fanático dos peregrinos.

O doutor Brière de Boismont, em seu curioso Tratado das Alucinações, conta que um homem perfeitamente sensato, e que jamais tivera visões, foi atormentado uma manhã por um terrível pesadelo. Viu em seu quarto um macaco enorme, horrendo, que rangia os dentes e fazia as mais hediondas contorsões. Acordou sobressaltado, era dia claro; saltou da cama e ficou apavorado ao ver realmente o medonho objeto de seu sonho. O macaco estava lá perfeitamente idêntico àquele do pesadelo, igualmente absurdo, igualmente assustador e fazendo as mesmas caretas. O personagem em questão não podia acreditar em seus olhos; permaneceu cerca de meia hora imóvel, observando esse singular fenômeno e perguntando-se se estava com febre alta ou se estava ficando louco. Aproximou-se, enfim, do fantástico animal para tocá-lo e a aparição dissipou-se.

Cornelius Gemma, em sua História Crítica Universal, conta que em 454, na ilha de Creta, o fantasma de Moisés apareceu para alguns judeus na praia; trazia na fronte seus chifres luminosos, na mão sua vara fulminante, e convidava-os a segui-lo apontando-lhes o horizonte na direção da Terra Santa. A notícia desse prodígio espalhou-se, e uma multidão de israelitas precipitou-se em direção à margem. Todos viram, ou imaginaram ter visto, a maravilhosa aparição: eram em número de vinte mil, no dizer do cronista, que supomos ter exagerado um pouco. Logo as cabeças esquentam-se, as imaginações exaltam-se; acredita-se num milagre mais extraordinário do que foi outrora a travessia do mar Vermelho. Os judeus formam-se em colunas cerradas e correm em direção ao mar; os últimos empurravam os primeiros com frenesi: acreditavam ver o suposto Moisés caminhando sobre as águas. Foi um terrível desastre: essa multidão quase toda afogou-se, e a alucinação só se extinguiu com a vida da maioria desses infelizes visionários.

O pensamento humano cria o que imagina; os fantasmas da superstição projetam sua disformidade real na luz astral e vivem dos próprios terrores que os conceberam. Esse gigante negro que estende suas asas do oriente ao ocidente para ocultar ao mundo a luz, esse monstro que devora as almas, essa aterrorizante divindade da ignorância e do medo, numa palavra, o diabo, ainda é, para uma multidão de crianças de todas as idades, uma aterradora realidade. Em nosso Dogma e Ritual da Alta Magia, representamo-lo como a sombra de Deus, e dizendo isso ocultamos ainda metade de nosso pensamento; Deus é a luz sem sombra. O diabo é apenas a sombra do fantasma de Deus!

O fantasma de Deus! Esse último ídolo da terra; esse espectro antropomórfico que se torna maliciosamente invisível; essa personificação finita do infinito; esse invisível que não se pode ver sem morrer, sem morrer ao menos em inteligência e em razão, pois que para ver o invisível é preciso estar louco; o fantasma do que não tem corpo; a forma confusa que é sem formas e sem limites: eis o que adora sem saber a maioria dos crentes. Aquele que é essencialmente, puramente, espiritualmente, não sendo nem o ser absoluto, nem um ser abstrato, nem a coleção dos seres, numa palavra, o infinito intelectual, é muito difícil de se imaginar! Assim, toda imaginação a seu respeito é uma idolatria, é preciso nele crer e adorá-lo. Nosso espírito deve calar-se diante dele e apenas nosso coração tem direito a dar-lhe um nome: Pai nosso!

LIVRO II

OS MISTÉRIOS MÁGICOS

CAPÍTULO I

Teoria da vontade

A vida humana e suas dificuldades incontáveis têm por finalidade, na ordem da sabedoria eterna, a educação da vontade do homem.

A dignidade do homem consiste em fazer o que quer e em querer o bem, em conformidade com a ciência do verdadeiro.

O bem conforme ao verdadeiro é o justo.

A justiça é a prática da razão.

A razão é o verbo da realidade.

A realidade é a ciência da verdade.

A verdade é a história idêntica ao ser.

O homem chega à idéia absoluta do ser por duas vias, a experiência e a hipótese.

A hipótese é provável quando é solicitada pelos ensinamentos da experiência; é improvável ou absurda quando é rejeitada por esse ensinamento.

A experiência é a ciência, e a hipótese é a fé.

A verdadeira ciência admite necessariamente a fé; a verdadeira fé conta necessariamente com a ciência.

Pascal blasfemava contra a ciência quando disse que, pela razão, o homem não pode chegar ao conhecimento de nenhuma verdade.

Assim, Pascal morreu louco.

Mas Voltaire não blasfemava menos contra a ciência, quando declarava absurda toda hipótese da fé e admitia por regra da razão apenas o testemunho dos sentidos.

Assim, as últimas palavras de Voltaire foram esta fórmula contraditória:

DEUS E A LIBERDADE

Deus, isto é, um mestre supremo: o que exclui toda idéia de liberdade, como a entendia a escola de Voltaire.

E a liberdade, isto é, uma independência absoluta de todo mestre; o que exclui toda idéia de Deus. A palavra DEUS exprime a personificação suprema da lei e, por conseguinte, do dever; e, se pela palavra LIBERDADE se quiser entender conosco O DIREITO DE FAZER O DEVER, tomaremos, de nossa parte, por divisa e repetiremos sem contradição e sem erro:

DEUS E A LIBERDADE

Como só há liberdade para o homem na ordem que resulta do verdadeiro e do bem, pode-se dizer que a conquista da liberdade é o grande trabalho da alma humana. O homem, libertando-se das más paixões e de sua servidão, de certo modo cria-se a si próprio uma segunda vez. A natureza fizera-o vivo e sofredor, ele se faz feliz e imortal; torna-se, assim, o representante da divindade na terra e exerce relativamente sua onipotência.

AXIOMA I

Nada resiste à vontade do homem quando ele sabe o verdadeiro e quer o bem.

AXIOMA II

Querer o mal é querer a morte. Uma vontade perversa é um começo de suicídio.

AXIOMA III

Querer o bem com violência é querer o mal; pois a violência produz a desordem, e a desordem produz o mal.

AXIOMA IV

Pode-se e deve-se aceitar o mal como meio para o bem; mas é preciso nunca querê-lo ou fazê-lo, do contrário destruir-se-ia com uma mão o que se edificasse com a outra. A boa fé nunca justifica os maus meios; corrige-os quando são suportados e condena-os quando deles se lança mão.

AXIOMA V

Para se ter direito de possuir, sempre é preciso querer pacientemente e por muito tempo.

AXIOMA VI

Passar a vida querendo o que é impossível possuir, sempre é abdicar da vida e aceitar a eternidade da morte.

AXIOMA VII

Quanto mais a vontade supera obstáculos, mais se fortalece. É por isso que Cristo glorificou a pobreza e a dor.

AXIOMA VIII

Quando a vontade é consagrada ao absurdo, é reprovada pela eterna razão.

AXIOMA IX

A vontade do homem justo é a vontade do próprio Deus, e é a lei da natureza.

AXIOMA X

É pela vontade que a inteligência vê. Se a, vontade é sã, a visão é justa. Deus disse: Que seja a luz! e a luz é; a vontade disse: Que o mundo seja como eu o quero ver! e a inteligência o vê como a vontade quis. É o que significa a expressão assim seja, que confirma os atos de fé.

AXIOMA XI

Quando alguém cria fantasmas, põe no mundo vampiros, e será preciso alimentar esses filhos de um pesadelo voluntário com seu sangue, sua vida, sua inteligência e sua razão, sem nunca saciá-los.

AXIOMA XII

Afirmar e querer o que deve ser é criar; afirmar e querer o que não deve ser é destruir.

AXIOMA XIII

A luz é um fogo elétrico colocado pela natureza a serviço da vontade: ilumina os que dela sabem servir-se, queima os que dela abusam.

AXIOMA XIV

O império do mundo é o império da luz.

AXIOMA XV

As grandes inteligências cuja vontade equilibra-se mal assemelham-se aos cometas, que são sóis abortados.

AXIOMA XVI

Nada fazer é tão funesto quanto fazer o mal, mas é mais covarde. O mais imperdoável dos pecados mortais é a inércia.

AXIOMA XVII

Sofrer é trabalhar. Uma grande dor sofrida é um progresso realizado. Os que sofrem muito vivem mais do que os que não sofrem.

AXIOMA XVIII

A morte voluntária por abnegação não é um suicídio; é a apoteose da vontade.

AXIOMA XIX

O medo é apenas uma preguiça da vontade, e é por isso que a opinião desencoraja os covardes.

AXIOMA XX

Consegui não temer o leão, e o leão vos temerá. Dizei à dor: Quero que tu sejas um prazer, e ela se tornará até mais do que um prazer, uma felicidade.

AXIOMA XXI

Uma corrente de ferro é mais fácil de quebrar que uma corrente de flores.

AXIOMA XXII

Antes de declarar um homem feliz ou infeliz, sabei como o fez a direção de sua vontade: Tibério morria todos os dias em Capri, enquanto Jesus provava sua imortalidade e sua divindade no Calvário e na cruz.

CAPÍTULO II

O poder da palavra

É o verbo que cria as formas, e as formas, por sua vez, reagem sobre o verbo para modificá-lo e terminá-lo.

Toda palavra de verdade é o começo de um ato de justiça.

Pergunta-se se o homem algumas vezes pode ser necessariamente impelido para o mal. Sim, quando ele tem o julgamento falso e, por conseguinte, o verbo injusto.

Mas alguém é tão responsável por um julgamento falso como por uma má ação.

O que falseia o julgamento são as vaidades injustas do egoísmo.

O verbo injusto, não podendo realizar-se pela criação, realiza-se pela destruição. É preciso que mate ou morra.

Se pudesse permanecer sem ação seria a maior de todas as desordens, uma blasfêmia duradoura contra a verdade.

Tal é a palavra ociosa da qual Cristo disse que se prestará conta no juizo final. Um gracejo, uma tolice que recreia e que faz rir não é uma palavra ociosa.

A beleza da palavra é um esplendor de verdade. Uma palavra verdadeira é sempre bela, uma bela palavra é sempre verdadeira.

É por isso que as obras de arte são sempre santas quando são belas.

Que me importa que Anacreonte cante Batylle, se, em seus versos, ouço as notas da divina harmonia que é o hino eterno da beleza? A poesia é pura como o sol: ela estende seu véu de luz sobre os erros da humanidade. Ai daquele que quisesse erguer o véu para perceber fealdades.

O Concílio de Trento disse que é permitido às pessoas sábias e prudentes lerem os livros dos antigos, mesmo obscenos, por causa da beleza da forma.

Uma estátua de Nero ou de Heliogábalo feita como as obras-primas de Fídias não seria uma obra absolutamente bela e absolutamente boa? E os que gostariam de vê-la destruída por representar um monstro não mereceriam as vaias do mundo inteiro?

As estátuas escandalosas são as estátuas malfeitas; e a Vênus de Milo seria profanada se fosse exposta ao lado das Virgens que ousam expor em algumas igrejas.

Aprende-se o mal nos livros de moral tolamente escritos, bem mais do que nas poesias de Catulo ou nas engenhosas alegorias de Apuleio.

Não há maus livros senão os livros malpensados ou malfeitos.

Todo verbo de beleza é um verbo de verdade. É uma luz formulada em palavra.

Porém, é preciso uma sombra para que a mais brilhante luz produza-se e torne-se visível; e a palavra criadora, para tornar-se eficaz, necessita de contraditores. É preciso que suporte a prova da negação, do sarcasmo, depois aquela ainda bem mais cruel da indiferença e do esquecimento. “É preciso”, dizia o Mestre, “que o grão apodreça para germinar.”

O verbo que afirma e a palavra que nega devem casar-se, e de sua união nascerá a verdade prática, a palavra real e progressiva. É a necessidade que deve constranger os trabalhadores a escolherem por pedra angular a que inicialmente fora desconhecida e rejeitada. Que a contradição nunca desencoraje, pois, os homens de iniciativa. O arado necessita de uma terra e a terra resiste porque trabalha. Ela defende-se como todas as virgens, concebe e dá à luz lentamente como todas as mães. Vós, pois, que quereis semear uma planta nova no campo da inteligência, compreendei e respeitai as resistências pudibundas da experiência limitada e da razão tardia.

Quando uma palavra nova vem ao mundo, necessita de laços e cueiros; foi o gênio que a concebeu, mas é a experiência que deve alimentá-la. Não receeis que seja desamparada e morra; o esquecimento para ela é um repouso favorável e as contradições são uma cultura. Quando um sol desponta no espaço, cria ou atrai mundos. Uma única fagulha de luz fixa promete ao espaço um universo.

Toda a magia está numa palavra, e essa palavra, pronunciada cabalisticamente, é mais forte que todos os poderes do céu, da terra e do inferno. Com o nome de Jod he van he domina-se: os reinos são conquistados em nome de Adonai, e as forças ocultas que compõem o império de Hermes são totalmente obedientes àquele que sabe pronunciar segundo a ciência o nome incomunicável de Agla.

Para pronunciar segundo a ciência as grandes palavras da Cabala, é preciso pronunciá-las com uma inteligência inteira, com uma vontade que nada detenha, com uma atividade que nada rejeite. Em magia ter dito é ter feito; o verbo começa com letras, termina com atos. Só se quer realmente algo quando se quer com todo o coração, a ponto de por isso ferir as mais caras afeições; com todas as forças a ponto de expor a saúde, a fortuna e a vida.

É pela devoção absoluta que a fé se prova e se constitui. Mas o homem armado de semelhante fé poderá remover montanhas.

O inimigo mais fatal de nossas almas é a preguiça. A inércia possui uma embriaguez que nos adormece; mas o sono da inércia é a corrupção e a morte. As faculdades da alma humana são como as ondas do oceano: necessitam, para conservarem-se, do sal e do amargor das lágrimas; necessitam das tormentas do céu e da agitação das tempestades.

Quando, ao invés de caminharmos na rota do progresso, queremos ser carregados, estamos dormindo nos braços da morte; é para nós que é dito, como ao paralítico do Evangelho: Carregai vossa cama e andai! Somos nós que devemos carregar a morte para precipitá-la na vida.

Segundo a magnífica e terrível expressão de São João, o inferno é um fogo que dorme. É uma vida sem atividade e sem progresso; é enxofre em estagnação: stagnum ignis et sulphuris.

A vida que dorme é análoga à palavra ociosa e é disso que os homens terão de prestar contas no dia do juízo final.

A inteligência fala e a matéria agita-se; só descansará depois de ter tomado a forma dada pela palavra. Vede o verbo cristão há dezenove séculos trabalhando o mundo. Que combates de gigantes! Quantos erros experimentados e rechaçados! Quanto cristianismo desiludido e irritado no fundo do protesto, desde o século XVI até o século XVIII! O egoísmo humano, desesperado com suas derrotas, amotinou sucessivamente todas as suas estupidezes. Revestiram o Salvador do mundo com todos os andrajos e todas as púrpuras derrisórias: depois de Jesus o Inquisidor, fez-se o Jesus Revolucionário. Se fordes capaz, medi quantas lágrimas e quanto sangue correram, ousai prever quanto ainda correrá antes que se chegue ao reino messiânico do Homem-Deus, que subjuga ao mesmo tempo todas as paixões aos poderes e todos os poderes à justiça!

ADVENIAT REGNUM TUUM! Eis o que setecentos milhões de vozes repetem noite e dia em toda a superfície da terra, há quase mil e novecentos anos, enquanto os israelitas continuam a esperar o Messias. Ele falou, e ele voltará; veio para morrer, e prometeu retornar para viver.

CÉU É A HARMONIA DOS SENTIMENTOS GENEROSOS.

INFERNO É O CONFLITO DOS INSTINTOS COVARDES.

Quando a humanidade, a poder de experiências sangrentas e dolorosas, tiver compreendido bem essa dupla verdade, abjurará do inferno do egoísmo para entrar no céu da abnegação e da caridade cristã.

A lira de Orfeu desbravou a Grécia selvagem, e a lira de Anfião construiu a misteriosa Tebas. É que a harmonia é a verdade. A natureza inteira é harmonia, mas o Evangelho não é uma lira: é o livro dos princípios eternos que devem regular e que regularão todas as liras e todas as harmonias vivas do universo.

Enquanto o mundo não compreender estas três palavras: verdade, razão, justiça, e estas: dever, hierarquia, sociedade, a divisa revolucionária, liberdade, igualdade, fraternidade, será apenas uma tríplice mentira.

CAPÍTULO III

As influências misteriosas

Não há meio-termo possível. Todo homem é bom ou mau. Os indiferentes, os mornos não são bons, são, pois, maus, e os piores de todos os maus, pois são imbecis e covardes. O combate da vida assemelha-se a uma guerra civil, os que permanecem neutros traem igualmente os dois lados e renunciam ao direito de serem contados dentre os filhos da pátria.

Todos nós respiramos a vida dos outros e de algum modo insuflamo-lhes uma parte de nossa existência. Os homens inteligentes e bons são, sem saberem, os médicos da humanidade, os homens tolos e maus são envenenadores públicos.

Existem pessoas perto de quem sentimo-nos melhores. Vede esta jovem senhora da alta sociedade, ela conversa, ri, adorna-se como todas as outras, por que, então, tudo nela é melhor e mais perfeito? Nada mais natural que sua distinção, nada mais franco e mais nobremente despretensioso que sua conversa. Perto dela tudo deve achar-se à vontade, exceto os maus sentimentos, mas eles são impossíveis perto dela. Ela não encontra os corações, prende-os e os instrui, não embriaga, encanta. O que toda sua pessoa prega parece ser uma perfeição mais aprazível do que a própria virtude; é mais graciosa que a graça, suas ações são fáceis e inimitáveis como a bela música e os belos versos. Era dela que uma encantadora mundana, muito amiga para ser rival, dizia depois de um baile: Pareceu-me ver a Sagrada Bíblia em movimento. Vede ao contrário esta outra mulher, afeta a mais rígida devoção e se escandalizaria ao ouvir os anjos cantarem, mas sua fala é malévola, seu olhar é altivo e desdenhoso; quando fala sobre virtude poderia provocar o amor ao vício. Para ela Deus é um marido ciumento que ela tem o grande mérito de não enganar; suas máximas são desoladoras, as ações mais vãs que caridosas e poder-se-ia dizer após a ter encontrado na igreja: Vi o diabo orando a Deus.

Ao deixar a primeira, senti-vos cheio de amor por tudo o que é belo, por tudo o que é bom e generoso. Estais feliz por lhe terdes dito tudo o que ela vos inspirou de bem e por terdes sido por ela aprovado; dizei-vos que a vida é boa, uma vez que foi dada por Deus a semelhantes almas, estais cheio de coragem e de esperança. A outra vos deixa enfraquecido, rejeitado, ou talvez, o que é pior, estimulado a fazer o mal; vos faz duvidar da honra, da piedade e do dever; perto dela só escapais ao tédio pela porta dos maus desejos. Falastes mal de alguém para agradá-la, diminuíste-vos para adular seu orgulho, ficais descontente com ela e convosco mesmo.

O sentimento vivo e certo dessas diversas influências é próprio dos espíritos justos e das consciências delicadas, e é precisamente o que os antigos escritores ascéticos chamavam graça do discernimento dos espíritos.

Sois cruéis consoladores, dizia Jó a seus pretensos amigos. De fato, os seres viciosos sempre afligem ao invés de consolarem. Têm um tato prodigioso para encontrar e escolher as mais desesperadoras banalidades. Chorais um afeto perdido, como sois ingênuo! Zombavam de vós, não vos amavam. Com dor confessais que vosso filho é coxo, amigavelmente vos fazem ver que ele é corcunda. Ele tosse e inquietai-vos, suplicam-vos ternamente que tomeis cuidado, pois talvez esteja tuberculoso. Vossa mulher está doente há muito tempo, consolai-vos, pois ela morrerá.

Espera e trabalha, eis o que o céu nos diz pela voz de todas as boas almas; desespera e morre, eis o que o inferno nos grita em todas as palavras, todos os movimentos, todas as amizades e todos os afagos dos seres imperfeitos ou degradados.

Qualquer que seja a reputação de uma pessoa e quaisquer que sejam os testemunhos de amizade que ela vos dá, se, ao deixá-la, sentivos menos amigo do bem e menos forte, ela é perniciosa para vós: evitai-a.

Nossa dupla imantação produz em nós duas espécies de simpatias. Temos necessidade de, alternadamente, absorver e irradiar. Nosso coração gosta dos contrastes, e existem poucos exemplos de mulheres que tenham amado sucessivamente dois gênios.

Repousamo-nos pela proteção dos cansaços da admiração, é a lei do equilíbrio; mas por vezes também as naturezas sublimes surpreendem-se em caprichos de vulgaridade. O homem, disse o abade Gerbet, é a sombra de um Deus no corpo de um animal: existem os amigos do anjo e os complacentes para com o animal. O anjo atrai-nos, mas, se não tomamos cuidado, é a besta que nos leva: ela deve mesmo fatalmente levar-nos quando se trata de asneiras, isto é, das satisfações desta vida nutriz da morte, que na linguagem das bestas chama-se vida real. Em religião, o Evangelho é um guia seguro, o mesmo não sendo em negócios, e muitas pessoas, quando se tratasse de estabelecer a sucessão temporal de Jesus Cristo, se entenderiam melhor com Judas Iscariotes do que com São Pedro.

Admiram a probidade, disse Juvenal, e não lhe dão o que lhe cabe. Se, por exemplo, tal homem célebre não tivesse escandalosamente mendigado a riqueza, alguém teria pensado em recompensar sua velha musa? Alguma herança lhe teria caído do céu? A virtude toma nossa admiração, nossa bolsa, portanto, nada lhe deve, essa grande dama é bastante rica sem nós. Preferimos dar ao vício, ele é tão pobre!

“Não gosto dos mendigos e dou apenas aos pobres vergonhosos”, dizia um homem inteligente. “Mas o que lhes dais, se não os conheceis?” “Dou-lhes minha admiração e minha estima, e não preciso conhecê-los para isso.” “Como necessitais de tanto dinheiro”, foi perguntado a outro, “se não tendes filhos nem encargos?” “Tenho meus pobres vergonhosos a quem não me posso impedir de dar muito.” “Apresente-os a mim, talvez dê-lhes também.” “Oh! certamente já conheceis alguns. Tenho sete deles, que comem excessivamente, e um oitavo que come mais do que os outros sete: os sete são os sete pecados capitais; o oitavo é o jogo.”

“Senhor, dai-me cinco francos, estou morrendo de fome.” “Imbecil! estás morrendo de fome e queres que te encoraje a prosseguir em tão mau caminho! Morres de fome e tens a imprudência de confessá-lo! Queres tornar-me cúmplice de tua incapacidade, nutriz de teu suicídio! Queres um prêmio pela miséria? Por quem me tomas? Acaso sou um traste da tua espécie…”

“Meu amigo, preciso de um milhão de escudos para seduzir uma mulher honesta.” “Ah! isso é mau; mas não sei recusar nada a um amigo. Toma, e quando tiveres conseguido dá-me o endereço dessa pessoa.” Eis o que se chama, na Inglaterra e em outros lugares, agir como um perfeito cavalheiro.

“O homem honrado sem trabalho rouba, e não mendiga!”, respondeu um dia Cartouche a um transeunte que lhe pedia esmola. É enfático como a palavra emprestada a Cambronne; e, na realidade, talvez o célebre ladrão e o grande general tenham ambos respondido do mesmo modo.

Foi esse mesmo Cartouche quem de outra feita ofereceu, por iniciativa própria e sem que lhe fosse pedido, vinte mil libras a alguém falido. Entre irmãos é preciso saber viver.

A assistência mútua é uma lei da natureza. Ajudar nossos semelhantes é ajudar a nós mesmos. Mas acima da assistência mútua eleva-se uma lei maior e mais santa: é a assistência universal, é a caridade.

Todos admiramos e amamos São Vicente de Paulo, mas quase todos temos também um fraco secreto pela habilidade, pela presença de espírito e, sobretudo, pela audácia de Cartouche.

Os cúmplices confessos de nossas paixões podem repugnar-nos humilhando-nos; saberemos, sujeitando-nos aos perigos, resistir-lhes por orgulho. Mas que pode haver de mais perigoso para nós que nossos cúmplices hipócritas e ocultos? Seguem-nos como o desgosto, esperam-nos como o abismo, envolvem-nos como a vertigem. Nós os desculpamos para desculparmo-nos, os defendemos para defendermo-nos, os justificamos para justificarmo-nos e os suportamos em seguida porque é preciso, porque não temos força para resistir a nossas inclinações, porque não desejamos isso.

Apossaram-se de nosso ascendente, como diz Paracelso, e onde quiserem conduzir-nos iremos.

São nossos maus anjos, sabemo-lo no fundo de nossa consciência; mas os poupamos, pois fizemo-nos seus servidores, a fim de que eles também nos sirvam.

Nossas paixões, aduladas e poupadas, tornaram-se servas-senhoras; e os complacentes para com nossas paixões são valetes que se tornaram nossos mestres.

Respiramos nossos pensamentos e aspiramos os dos outros impressos na luz astral, tornada sua atmosfera eletromagnética: assim, a companhia dos maus é menos funesta para as pessoas de bem do que a dos seres vulgares, covardes e mornos. Uma forte antipatia adverte-nos facilmente e salva-nos do contato com os vícios grosseiros; não é assim com os vícios disfarçados, diminuídos de certo modo e tornados quase amáveis. Uma mulher honesta sentirá apenas repulsa em companhia de uma moça perdida; mas tem tudo a recear das seduções de uma doidivanas.

Sabemos que a loucura é contagiosa; mas os loucos são mais particularmente perigosos quando são amáveis e simpáticos. Entramos pouco a pouco em seu círculo de idéias, chegamos a compreender seus exageros compartilhando seus entusiasmos, habituamo-nos à sua lógica excepcional e transviada, chegamos a pensar que não são tão loucos quanto acreditávamos no início. Daí a acreditar que são os únicos a ter razão não há muita distância. Nós os amamos, os aprovamos, estamos loucos como eles.

As afeições são livres e podem ser racionalizadas; mas as simpatias são fatais e muito freqüentemente desarrazoadas; dependem das atrações mais ou menos equilibradas da luz magnética, e agem sobre os homens do mesmo modo que sobre os animais. Divertiremo-nos tolamente com uma pessoa que nada tem de amável porque estamos misteriosamente atraídos e dominados por ela. Freqüentemente, essas simpatias estranhas começaram por vivas antipatias; os fluidos repeliam-se no início, equilibrando-se depois.

A especialidade equilibrante do mediador plástico de cada pessoa é o que Paracelso chama seu ascendente, e denomina flagum ao reflexo particular das idéias habituais de cada um na luz universal.

Chega-se ao conhecimento do ascendente de uma pessoa pela adivinhação sensitiva do flagum, e por um direcionamento perseverante da vontade vira-se o lado ativo do próprio ascendente para o lado passivo do ascendente do outro, quando se quer apoderar-se do outro e dominá-lo.

O ascendente astral foi adivinhado por outros magistas, que o chamaram turbilhão.

É, dizem eles, uma corrente de luz especializada, reproduzindo sempre um mesmo círculo de imagens, e, por conseguinte, de impressões determinadas e determinantes. Esses turbilhões existem para os homens como para as estrelas. “Os astros”, diz Paracelso, “respiram sua alma luminosa e atraem a irradiação uns dos outros. A alma da terra, cativa das leis fatais da gravitação, desprende-se especializando-se e passa pelo instinto dos animais para chegar à inteligência do homem. A parte cativa dessa alma é muda, mas conserva por escrito os segredos da natureza. A parte livre não pode mais ler essa escritura fatal sem perder instantaneamente sua liberdade. Só se passa da contemplação muda e vegetativa ao pensamento livre e vibrante mudando de meios e de órgãos. Daí vem o esquecimento que acompanha o nascimento e as reminiscências vagas de nossas intuições doentias, sempre análogas às visões de nossos êxtases e de nossos sonhos.”

Essa revelação do grande mestre da medicina oculta lança uma enorme luz sobre todos os fenômenos do sonambulismo e da adivinhação. Aí está, também, para quem souber encontrá-la, a verdadeira chave das evocações e das comunicações com a alma fluídica da terra.

As pessoas cuja influência perigosa se faz sentir num único contato são as que fazem parte de uma associação fluídica; ou que dispõem, quer voluntariamente, quer sem saberem, de uma corrente de luz astral desviada. Aquelas, por exemplo, que vivem no isolamento e na privação de toda comunicação humana e que estão diariamente em relação fluídica com animais reunidos em grande número, como estão normalmente os pastores, esses estão possuídos pelo demônio a que se denomina legião, e, por sua vez, reinam despoticamente sobre as almas fluídicas dos rebanhos confiados à sua guarda: desse modo sua benevolência ou sua malevolência faz prosperar ou morrer o rebanho; podem exercer essa influência de simpatia animal sobre mediadores plásticos humanos mal defendidos por uma vontade fraca ou uma inteligência limitada.

Assim explicam-se os encantamentos operados habitualmente pelos pastores e os fenômenos ainda muito recentes do presbitério de Cideville.

Cideville é um pequeno vilarejo da Normandia onde, há alguns anos, produziram-se fenômenos semelhantes aos que se produziram, depois, sob a influência do senhor Home. Mirville estudou-os cuidadosamente e Gougenot Desmousseaux repetiu todos seus detalhes num livro publicado em 1854 e intitulado: Costumes e Práticas dos Demônios. O que há de notável nesse último autor é que ele parece adivinhar a existência do mediador plástico ou do corpo fluídico. “Com certeza não temos duas almas”, diz ele, “mas talvez tenhamos dois corpos.” Com efeito, tudo o que ele conta pareceria provar essa hipótese. Trata-se de um pastor, cuja forma fluídica infestava um presbitério e que foi ferido à distância pelos golpes desfechados à sua larva astral.

Aqui perguntaremos aos senhores Mirville e Gougenot Desmousseaux se eles tomam esse pastor pelo diabo e se, de perto ou à distância, o diabo, tal como o concebem, pode ser arranhado ou ferido. Na Normandia, até então, quase não eram conhecidas as doenças magnéticas dos médiuns e o infeliz sonâmbulo, que fora preciso tratar e curar, foi rudemente maltratado e até agredido, segundo se diz, não em aparência fluídica, mas em sua própria pessoa, pelo próprio pároco. Aí está, convenhamos, um singular gênero de exorcismo! Se realmente essas violências aconteceram, e se são imputáveis a um eclesiástico que dizem, e que pode ser, credulidade à parte, muito bom e respeitável, reconheçamos que escritores como Mirville e Gougenot Desmousseaux tornam-se de certo modo seus cúmplices.

As leis da vida física são inexoráveis e, em sua natureza animal, o homem nasce escravo da fatalidade; e é à custa de lutas contra os instintos que ele pode conquistar a liberdade moral. Duas existências diferentes, portanto, nos são possíveis na terra: uma fatal, a outra livre. O ser fatal é o joguete ou o instrumento de uma força que ele não dirige: ora, quando os instrumentos da fatalidade se encontram e se chocam, o mais forte destrói ou domina o mais fraco; os seres verdadeiramente libertos não temem nem as bruxarias nem as influências misteriosas.

Dir-nos-ão que o encontro de Caim pode ser fatal para Abel. Sem dúvida; mas semelhante fatalidade é uma felicidade para a santa e pura vítima, é uma infelicidade apenas para o assassino.

Assim como entre os justos existe uma grande comunidade de virtudes e méritos, existe entre os maus uma solidez absoluta de culpabilidade fatal e castigo necessário. O crime está nas disposições do coração. As circunstâncias quase sempre independentes da vontade fazem sozinhas a gravidade dos atos. Se a fatalidade tivesse feito de Nero um escravo, ele se teria tornado um histrião ou um gladiador e não teria incendiado Roma: seria preciso agradecer-lhe por isso?

Nero era cúmplice de todo o povo romano e os únicos responsáveis pela fúria desse monstro eram os que a deveriam ter impedido. Sêneca, Burro, Tráseas, Corbulão, eis os verdadeiros culpados desse reino terrível: grandes homens egoístas ou incapazes! Souberam apenas morrer. Se um dos ursos do Jardim Zoológico escapasse e devorasse algumas pessoas, seria ele ou seus vigias quem deveria prestar contas? Todo aquele que se liberta dos erros comuns deve pagar um resgate proporcional à soma desses erros: Sócrates responde por Anito, e Jesus teve que sofrer um suplício que se igualou em horrores a toda a traição de Judas.

É assim que, ao pagar as dívidas da fatalidade, a liberdade conquistada compra o império do mundo; é a ela que compete ligar ou desligar: Deus entregou-lhe as chaves do céu e do inferno.

Homens que abandonais as bestas a si mesmas, quereis que elas vos devorem.

As multidões escravas da fatalidade só podem gozar da liberdade pela obediência absoluta à vontade dos homens livres; elas devem trabalhar para eles, porque eles respondem por elas.

Mas, quando a besta governa as bestas, quando o cego conduz os cegos, quando o homem fatal governa as massas fatais, o que se deve esperar? Terríveis catástrofes, e elas nunca faltarão.

Ao admitir os dogmas anárquicos de 89, Luís XVI lançara o Estado num declive fatal. A partir desse momento todos os crimes da Revolução pesaram unicamente sobre ele; apenas ele faltara a seu dever. Robespierre e Marat haviam feito o que deviam fazer. Girondinos e Montanheses fatalmente mataram-se uns aos outros e suas mortes violentas foram apenas catástrofes necessárias; houve nessa época apenas um grande e legítimo suplício, verdadeiramente sagrado, verdadeiramente expiatório: o do rei. O princípio da realeza devia cair se esse príncipe demasiado fraco tivesse sido absoluto. Mas era impossível uma transação entre a ordem e a desordem. Não se herda dos que são assassinados, eles são poupados, e a Revolução reabilitou Luís XVI ao assassiná-lo. Após tantas concessões, fraquezas, indignas vilezas, esse homem sagrado uma segunda vez pela desgraça pôde ao menos dizer, ao subir ao cadafalso: a Revolução está julgada, e eu continuo sendo o rei da França!

Ser justo é sofrer por todos os que não o são, mas é viver; ser mau é sofrer por si mesmo sem conquistar a vida, é enganar-se, agir mal e morrer eternamente.

Resumindo: as influências fatais são as da morte, as influências salutares são as da vida. Conforme sejamos mais fracos ou mais fortes na vida, atraímos ou repelimos o malefício. Esse poder oculto não é senão demasiado real; mas a inteligência e a virtude terão sempre os meios de evitar suas obsessões e seus ataques.

CAPÍTULO IV

Mistérios da perversidade

O equilíbrio humano compõe-se de dois atrativos; um pela morte, o outro pela vida. A fatalidade é a vertigem que nos atrai para o abismo; a liberdade é o esforço racional que nos eleva acima das atuações fatais da morte.

O que é um pecado mortal? É uma apostasia de nossa liberdade; é um abandono de nós mesmos às leis materiais da gravidade; um ato injusto é um pacto com a injustiça: ora, toda injustiça é uma abdicação da inteligência. Caímos, então, sob o império da força, cujas reações sempre esmagam tudo o que se afasta do equilíbrio.

O amor pelo mal e a adesão formal da vontade à injustiça são os últimos esforços da vontade expirante. O homem, não importa o que faça, é mais forte que o bruto e não pode, como este, abandonar-se à fatalidade. É necessário que escolha e que ame. A alma desesperada que se acredita apaixonada pela morte está ainda mais viva do que uma alma sem amor. A atividade para o mal pode e deve reconduzir o homem ao bem por contragolpe e reação. O verdadeiro mal sem remédio é a inércia.

Aos abismos da perversidade correspondem os abismos da graça. Freqüentemente Deus fez de celerados santos; nunca fez nada de mornos e de covardes.

Sob pena de reprovação, é preciso trabalhar, é preciso agir. A natureza, aliás, provê para isso, e se não queremos, com toda nossa coragem, ir em direção à vida, ela nos precipita com todas as suas forças para a morte. Os que não querem caminhar, ela os arrasta.

Um homem que poderia ser chamado o grande profeta dos ébrios, Edgar Poe, esse alucinado sublime, esse gênio da extravagância lúcida, descreveu com uma realidade assustadora os pesadelos da perversidade…

“Matei este velho porque era estrábico. Fiz isso porque não deveria ser feito.”

Eis a terrível contrapartida do Credo quia absurdum, de Tertuliano.

Desafiar Deus e injuriá-lo é um último ato de fé. “Os mortos não te louvam, Senhor”, diz o salmista; e poderíamos acrescentar, se ousássemos: “Os mortos não te blasfemam.”

“Oh! meu filho!”, dizia um pai inclinado sobre o leito do filho, caído em letargia após um violento acesso de delírio; “insulta-me; batame, morda-me; sentirei que ainda vives… Mas não fiques para sempre neste silêncio medonho da tumba!”

Um grande crime sempre protesta contra uma grande tepidez. Cem mil padres honestos teriam podido, através de uma caridade mais ativa, prevenir o atentado daquele miserável Verger. A Igreja deve julgar, condenar, punir um eclesiástico escandaloso; mas não tem o direito de abandoná-los aos frenesis do desespero e às tentações da miséria e da fome.

Nada é tão assustador quanto o nada; e se se pudesse jamais formular sua concepção, se fosse possível admiti-lo, o inferno seria uma esperança.

Eis por que a própria natureza procura e impõe a expiação como um remédio; eis por que o suplício suplica, como tão bem o compreendeu esse grande católico chamado conde Joseph de Maistre; eis por que a pena de morte é o direito natural e nunca desaparecerá das leis humanas. A mácula do homicídio seria indelével se Deus não absolvesse o cadafalso; o poder divino abdicado pela sociedade e usurpado pelos celerados pertencer-lhes-ia sem contestação. O assassinato, então, transformar-se-ia em virtude quando exercesse as represálias da natureza ultrajada. As vinganças particulares protestariam contra a ausência da expiação pública, e com os restos do gládio quebrado da justiça a anarquia fabricaria punhais para si.

“Se Deus suprimisse o inferno, os homens fariam outro para desafiá-lo”, dizia-nos um dia um bom padre. Tinha razão; e é por isso que o inferno deseja tanto ser suprimido. Emancipação! tal é o grito de todos os vícios. Emancipação do homicídio pela abolição da pena de morte; emancipação da prostituição e do infanticídio pela abolição do casamento; emancipação da preguiça e do roubo pela abolição da propriedade… Assim gira o turbilhão da perversidade até que chegue a esta fórmula suprema e secreta: Emancipação da morte pela abolição da vida!

É pelas vitórias do trabalho que se escapa às fatalidades da dor. O que chamamos morte é somente o parto eterno da natureza. Ininterruptamente, ela reabsorve e retoma em seu seio tudo o que não nasceu do espírito. A matéria inerte por si mesma só pode existir pelo movimento perpétuo, e o espírito naturalmente volátil só pode durar fixando-se. A emancipação das leis fatais pela adesão livre do espírito ao verdadeiro e ao bem é o que o Evangelho denomina nascimento espiritual; a reabsorção na morada eterna da natureza é a segunda morte.

Os seres não-emancipados são atraídos para essa segunda morte por uma gravidade fatal, arrastam-se uns aos outros, como o divino Michelangelo tão bem nos faz ver em sua grande pintura sobre o juízo final; são invasores e tenazes como pessoas que se afogam, e os espíritos livres devem lutar energicamente contra eles para não serem por eles retidos em seu vôo e rebaixados fatalmente ao inferno.

Essa guerra é tão antiga quanto o mundo; os gregos representavam-na sob os símbolos de Eros e Anteros, e os hebreus pelo antagonismo de Caim e Abel. É a guerra dos titãs e dos deuses. Os dois exércitos estão em toda a parte, invisíveis, mas disciplinados e sempre prontos ao ataque ou à represália. As pessoas ingênuas dos dois partidos, surpresas com as resistências súbitas e unânimes que encontram, acreditam em vastos complôs, sabiamente organizados, das sociedades ocultas e todo-poderosas. Eugène Sue inventa Rodin; pessoas da Igreja falam de iluminados e de maçons; Wronski sonha com seus bandos místicos, e o que há de verdadeiro e sério no fundo de tudo isso é apenas a luta necessária entre a ordem e a desordem, os instintos e o pensamento; o resultado dessa luta é o equilíbrio no progresso e o diabo contribui sempre, contra a sua vontade, para a glória de São Miguel.

O amor físico é a mais perversa de todas as paixões fatais. É o anarquista por excelência; não conhece nem leis, nem deveres, nem verdade, nem justiça. Faria a moça passar por cima do cadáver de seus pais. É uma embriaguez irresistivel, uma loucura furiosa, uma vertigem da fatalidade que procura novas vítimas; a embriaguez de Saturno que quer ser pai para ter crianças a quem devorar. Vencer o amor é triunfar sobre toda a natureza. Submetê-lo à justiça é reabilitar a vida devotando-a à imortalidade; assim, as maiores obras da revelação cristã são a criação da virgindade voluntária e a santificação do matrimônio.

Enquanto o amor é apenas um desejo e um gozo, ele é mortal. Para eternizar-se é preciso que se torne um sacrifício, pois torna-se, então, uma força e uma virtude. É a luta de Eros e Anteros que faz o equilíbrio do mundo.

Tudo o que superexcita a sensibilidade conduz à depravação e ao crime. As lágrimas chamam o sangue. Existem grandes emoções que são como licores fortes, usá-las habitualmente é abusar. Ora, todo abuso das emoções perverte o sentido moral; buscamo-las por elas mesmas, sacrificamos tudo para obtê-las. Uma mulher romanesca se tornará facilmente uma heroína de Tribunal do Júri, chegará talvez ao deplorável e irreparável absurdo de suicidar-se para admirar-se e enternecer-se consigo mesma vendo-se morrer.

Os hábitos romanescos levam as mulheres à histeria e os homens à depressão. Manfred, Renê, Lélia são tipos de perversidade muito mais profunda por racionalizarem seu orgulho doentio e poetizarem sua demência. Perguntamo-nos aterrorizados que monstro poderia nascer do casamento de Manfred e Lélia!

A perda do sentido moral é uma verdadeira alienação; um homem que não obedece à justiça antes de tudo não se pertence mais, caminha sem luz na noite de sua existência, agita-se como num sonho vítima do pesadelo de suas paixões.

As correntes impetuosas da vida instintiva e as fracas resistências da vontade formam um antagonismo tão distinto que os cabalistas acreditaram no embrionato das almas, isto é, a presença num mesmo corpo de várias almas que o disputam entre si e freqüentemente tentam destruí-lo, mais ou menos como os náufragos da Medusa, que no momento em que disputavam a jangada muito estreita, tentavam fazê-la soçobrar.

É certo que alguém ao se tornar servo de uma corrente qualquer de instintos, ou mesmo de idéias, aliena sua personalidade e torna-se escravo desse gênio das multidões que o Evangelho chama Legião.

Os artistas sabem algo sobre isso. Suas freqüentes evocações da luz universal enervam-nos. Tornam-se médiuns, isto é, doentes. Quanto mais o sucesso os faz crescer junto à opinião pública, mais sua personalidade enfraquece; tornam-se sujeitos a acessos, absurdos, invejosos, coléricos; não admitem que outro mérito, mesmo de ordem diferente, possa produzir-se ao lado do seu, e desde que se tornam injustos eximem-se até de serem polidos. Para escapar a essa fatalidade os verdadeiros grandes homens isolam-se de toda camaradagem liberticida e salvam-se dos atritos da vil multidão por uma impopularidade orgulhosa: se Balzac, quando vivo, tivesse sido um homem de conventículo ou de partido, não teria permanecido, após sua morte, o grande universal de nossa época.

A luz não ilumina as coisas insensíveis nem os olhos fechados, ou pelo menos só as ilumina em proveito dos que vêem. A palavra do Gênesis, Que se faça a luz!, é o grito de vitória da inteligência triunfante sobre as trevas. Essa palavra é sublime porque exprime com simplicidade a maior e mais sublime coisa do mundo: a criação da inteligência por si mesma quando, convocando seus poderes, equilibrando suas faculdades, ela diz: Quero imortalizar-me vendo a verdade eterna, que seja a luz! E a luz é. A luz eterna como Deus começa todos os dias para os olhos que se abrem. A verdade será eternamente a invenção e como que a criação do gênio: ele grita: Que seja a luz, e ele próprio é porque ela é. Ele é imortal porque compreendera eterna. Ele contempla a verdade como sua obra porque ela é sua conquista, e a imortalidade como seu triunfo porque ela será sua recompensa e sua coroa.

Mas nem todos os espíritos vêem com justeza porque nem todos os corações querem com justiça. Existem almas para as quais a verdadeira luz parece nunca dever existir. Contentam-se com visões fosforescentes, abortos de luz, alucinações do pensamento, e, apaixonadas por esses fantasmas, temem o dia que os faria fugirem porque sentem que, não sendo o dia feito para seus olhos, voltariam a cair numa profunda escuridão. Assim é que os loucos, no início, temem, depois caluniam, insultam, perseguem e condenam os sábios. É preciso compadecer-se deles e perdoá-los, não sabem o que fazem.

A verdadeira luz repousa e satisfaz a alma, a alucinação, ao contrário, cansa-a e atormenta-a. As satisfações da loucura assemelham-se aos sonhos gastronômicos das pessoas famintas que aguçam sua fome sem nunca saciá-la. Daí nascem as irritações e as perturbações, os desencorajamentos e os desesperos. “A vida sempre nos mentiu”, dizem os discípulos de Werther, “eis por que queremos morrer!” Pobres crianças, não é a morte que vos seria preciso, é a vida. Desde que estais no mundo morreis todos os dias, é à cruel volúpia do nada que deveis pedir o remédio do nada de vossas volúpias? Não, a vida nunca vos enganou, pois não vivestes ainda. O que tomais por vida são as alucinações e os sonhos do primeiro sono da morte!

Todos os grandes criminosos são alucinados voluntários, e todos os alucinados voluntários podem ser fatalmente levados a tornarem-se grandes criminosos. Nossa luz pessoal especializada, concebida, determinada por nossa afeição dominante é o germe de nosso paraíso ou de nosso inferno. Cada um de nós de algum modo concebe, põe no mundo e alimenta seu bom anjo ou seu mau demônio. A concepção da verdade faz nascer em nós o bom gênio; a percepção desejada da mentira é uma incubadora e uma criadora de pesadelos e de vampiros. Cada um deve alimentar seus filhos, e nossa vida consome-se em proveito de nossos pensamentos. Felizes os que reencontram a imortalidade nas criações de sua alma! Ai dos que se exaurem para alimentar a mentira e engordar a morte, pois cada um gozará o fruto de suas obras.

Existem alguns seres inquietos e atormentados cuja influência é turbulenta e a conversa, fatal. Perto deles sentimo-nos irritados e ao deixá-los sentimo-nos encolerizados; entretanto, por uma perversidade secreta, nós os procuramos para afrontar a perturbação e gozar as emoções malévolas que eles nos dão. São doentes contagiosos do espírito de perversidade.

O espírito de perversidade sempre tem por móvel secreto a sede da destruição e por fim o suicídio.

O assassino Eliçabide, segundo suas próprias declarações, não só experimentava uma necessidade selvagem de matar seus parentes e amigos, como também gostaria, se isso fosse possível, e disse-o com suas próprias palavras diante do tribunal, de fazer o globo saltar como uma castanha cozida. Lacenaire, que passava seus dias combinando assassínios para obter meios de passar as noites em ignóbeis orgias, ou nos frenesis do jogo, vangloriava-se abertamente de ter vivido. Chamava a isso viver! E cantava um hino à guilhotina, que chamava sua bela noiva! E o mundo estava repleto de imbecis que admiravam esse celerado! Alfred de Musset, antes de aniquilar-se na embriaguez, desperdiçou um dos primeiros talentos de seu século em contos de fria ironia e desgosto universal; o infeliz fora enfeitiçado pelo respir de uma mulher profundamente perversa, que, após tê-lo morto, acocorou-se sobre seu cadáver como um vampiro e rasgou seu sudário. Perguntávamos um dia a um jovem escritor dessa escola o que provava sua literatura. “Prova”, respondeu-nos franca e ingenuamente, “que é preciso desesperar e morrer.” Que apostolado e que doutrina! Mas eis as conclusões necessárias e rigorosas do espírito de perversidade. Aspirar incessantemente ao suicídio, caluniar a vida e a natureza, invocar todos os dias a morte sem poder morrer, é o inferno eterno, é o suplício de Satã, esse avatar mitológico do espírito de perversidade; a verdadeira tradução da palavra grega diabolos, ou diabo, é o perverso.

Eis um mistério de que os pervertidos não desconfiam. É que só se pode gozar os prazeres da vida, mesmo os materiais, pelo sentido moral. O prazer é a música das harmonias interiores; os sentidos são apenas seus instrumentos, instrumentos que desafinam ao contato com uma alma degradada. Os maus nada podem sentir, porque nada podem amar: para amar, é preciso ser bom. Para eles, portanto, tudo é vazio, e parece-lhes que a natureza é impotente, porque eles próprios o são, duvidam de tudo porque nada sabem, blasfemam contra tudo porque de nada gostam; se afagam, é para emurchecer; se bebem, é para embriagar-se; se dormem, é para esquecer; se acordam, é para entediar-se mortalmente: assim viverá, ou antes, assim morrerá todos os dias aquele que se liberta de toda lei e de todo dever para tornar-se escravo de suas fantasias. O mundo e a própria eternidade tornam-se inúteis para quem se torna inútil para o mundo e para a eternidade.

Nossa vontade, ao agir diretamente sobre nosso mediador plástico, isto é, sobre a porção de luz astral que se especializou em nós e que serve para a assimilação e configuração dos elementos necessários à nossa existência; nossa vontade, justa ou injusta, harmoniosa ou perversa, configura o mediador à sua imagem e dá-lhe aptidões conforme os nossos atrativos. Assim, a monstruosidade moral produz a fealdade física, pois o mediador astral, esse arquiteto interior de nosso edifício corporal, modificado incessantemente segundo nossas necessidades verdadeiras ou factícias. Ele faz crescer o ventre e os maxilares do glutão, crispa os lábios do avarento, torna impudentes os olhares da mulher impura e venenosos os do invejoso e do mau. Quando o egoísmo prevaleceu numa alma, o olhar torna-se frio, os traços duros; a harmonia das formas desaparece e, segundo a especialidade absorvente ou irradiante desse egoísmo, os membros dessecam-se ou ficam comprometidos por uma excessiva gordura. A natureza, ao fazer de nosso corpo o retrato de nossa alma, garantiu tal semelhança para sempre, e retoca-o incansavelmente. Lindas mulheres que não sois bondosas, estai certas de não permanecerdes belas por muito tempo. A beleza é um adiantamento que a natureza faz à virtude: se a virtude não está pronta para o acerto da dívida, a emprestadora recuperará impiedosamente seu capital.

A perversidade, ao modificar o organismo cujo equilíbrio ela destrói, cria ao mesmo tempo a fatalidade das necessidades que impele à destruição do próprio organismo e à morte. Quanto menos o perverso desfruta, mais sede de prazer tem. O vinho é como água para o ébrio, o ouro derrete nas mãos do jogador; Messalina cansa-se sem ficar saciada. A volúpia que lhes escapa transforma-se para eles num longo desejo irritado. Quanto mais seus excessos são homicidas, mais parece-lhes que a suprema felicidade se aproxima… Mais uma golada de licor forte, mais um espasmo, mais uma violência contra a natureza… Ah! finalmente, o prazer! a vida… e seu desejo, no paroxismo de sua insaciável fome, extingue-se para sempre na morte!

QUARTA PARTE

OS GRANDES SEGREDOS PRÁTICOS OU AS REALIZAÇÕES DA CIÊNCIA

Introdução

As altas ciências da Cabala e da magia prometem ao homem um poder excepcional, real, efetivo, realizador, e deve-se encará-las como vãs e mentirosas se não o dão.

Vós julgareis os doutores por suas obras, dizia o mestre supremo, e essa regra de julgamento é infalível.

Se quereis que eu acredite no que sabeis, mostrai-me o que fazeis.

Deus, para elevar o homem à emancipação moral, esconde-se dele e de certo modo abandona-lhe o governo do mundo. Deixa-se adivinhar pelas grandezas e harmonias da natureza, a fim de que o homem se aperfeiçoe progressivamente, sempre ampliando a idéia que faz de seu autor.

O homem conhece Deus apenas pelos nomes que dá a esse Ser dos seres e só o distingue pelas imagens que dele tenta traçar. Assim, ele é de certo modo o criador daquele que o criou. Acredita-se o espelho de Deus e, ampliando indefinidamente sua própria miragem, acredita poder esboçar no espaço infinito a sombra daquele que é sem corpo, sem sombra e sem espaço.

CRIAR DEUS, CRIAR-SE A SI PRÓPRIO, TORNAR-SE INDEPENDENTE, IMPASSÍVEL E IMORTAL: aí está com certeza um programa mais temerário do que o sonho de Prometeu. Pois bem, esse programa é paradoxal apenas na forma que empresta a uma falsa e sacrílega interpretação. Num sentido ele é perfeitamente razoável, e a ciência dos adeptos promete realizá-lo e dar-lhe uma perfeita execução.

O homem, com efeito, cria um Deus conforme à sua própria inteligência e à sua própria bondade, não pode elevar seu ideal mais alto do que lhe permite seu desenvolvimento moral. O Deus que ele adora é sempre seu próprio reflexo aumentado. Conceber o que seja o absoluto em bondade e em justiça é ser ele próprio muito justo e muito bom.

As qualidades do espírito, as qualidades morais são riquezas, e as maiores de todas as riquezas. É preciso adquiri-las pela luta e pelo trabalho. Objetar-nos-ão a desigualdade das aptidões e as crianças que nascem com uma organização mais perfeita. Mas devemos crer que tais organizações são o resultado de um trabalho mais avançado da natureza e que as crianças delas dotadas adquiriram-nas, senão por seus próprios esforços, ao menos pelas obras solidárias dos seres humanos a quem sua existência está ligada. É um segredo da natureza, que nada faz ao acaso; a propriedade das faculdades intelectuais mais desenvolvidas como a do dinheiro e das terras constitui um direito imprescritível de transmissão e de herança.

Sim, o homem é chamado a terminar a obra de seu Criador, e cada um dos instantes por ele empregados para tornar-se melhor ou perder-se é decisivo para toda uma eternidade. É pela conquista de uma inteligência para sempre reta e de uma vontade para sempre justa que ele se torna vivo para a vida eterna, pois que nada sobrevive à injustiça e ao erro, a não ser a pena por sua desordem. Compreender o bem é querê-lo, e, na ordem da justiça, querer é fazer. Eis por que o Evangelho nos diz que os homens serão julgados segundo suas obras.

Nossas obras tanto nos fazem o que somos, que, como já dissemos, nosso corpo sofre modificação com nossos hábitos e, algumas vezes, transformação total de sua forma.

Uma forma conquistada ou suportada torna-se para toda a existência uma providência ou uma fatalidade. Essas figuras estranhas que os egípcios davam aos símbolos humanos da divindade representam as formas fatais. Tífon, por sua boca de crocodilo, está condenado a devorar incessantemente para encher seu ventre de hipopótamo. Assim, por sua voracidade e sua fealdade, é consagrado à destruição eterna.

O homem pode matar ou vivificar suas faculdades pela negligência ou pelo abuso. Pode criar para si faculdades novas pelo bom uso das que recebeu da natureza. Freqüentemente se diz que as afeições não podem ser comandadas, que a fé não é possível a todos, que não se refaz o caráter, e todas essas asserções são verdadeiras apenas para os preguiçosos ou os perversos. Alguém pode se tornar crente, piedoso, amante, devoto, quando sinceramente o quer. Pode-se dar a calma da justeza ao espírito como a onipotência da justiça à vontade. Pode-se reinar no céu pela fé, e na terra pela ciência. O homem que sabe comandar a si próprio é rei de toda a natureza.

Vamos mostrar, neste último livro, por que meios os verdadeiros iniciados tornaram-se mestres de vida comandando a dor e a morte; como operam em si mesmos e nos outros as transformações de Proteu; como exercem as adivinhações de Apolônio; como fazem o ouro de Raimundo Lúlio e de Flamel; como possuem, para renovar sua juventude, os segredos de Postel, o Ressuscitado, e do fabuloso Cagliostro. Vamos dizer, enfim, a última palavra da magia.

CAPÍTULO I

Da transformação. A vara de Circe.

O banho de Medéia. A magia vencida por suas próprias armas.

O grande arcano dos jesuítas e o segredo de seu poder

A Bíblia conta que o rei Nabucodonosor, no auge de seu poder e orgulho, foi repentinamente transformado em besta.

Fugiu para lugares selvagens, pôs-se a pastar a relva, deixou crescer a barba, os cabelos e todo o pêlo do corpo, bem como as unhas, e permaneceu nesse estado durante sete anos.

Em nosso Dogma e Ritual da Alta Magia, dissemos o que pensamos dos mistérios da licantropia, ou seja, da metamorfose dos homens em lobisomens.

Todos conhecem a fábula de Circe e compreendem sua alegoria.

O ascendente fatal de uma pessoa sobre outra é a verdadeira vara de Circe.

Sabe-se que quase todas as fisionomias humanas portam alguma semelhança com um animal, isto é, a assinatura de um instinto especializado.

Ora, os instintos são balanceados pelos instintos contrários e dominados por instintos mais fortes.

Para dominar os carneiros, o cão explora o medo do lobo.

Se vós sois cão, e se quereis que uma linda gatinha vos ame, tendes apenas uma medida a tomar: metamorfosear-vos em gato.

Como? Pela observação, imitação e imaginação. Pensamos que se compreende aqui nossa linguagem figurada, e recomendamos essa revelação a todos os magnetistas; aí está o mais profundo de todos os segredos de sua arte.

Eis sua fórmula em termos técnicos:

“Polarizar sua própria luz animal, em antagonismo equilibrado com um pólo contrário.”

Ou então:

Concentrar em si mesmo as especialidades absorventes para dirigir as irradiantes para uma morada absorvente; e vice-versa.

Esse governo de nossa polarização magnética pode ser feito com o auxílio das formas animais de que falamos, e que servirão para fixar a imaginação.

Demos um exemplo:

Quereis agir magneticamente sobre uma pessoa polarizada como vós, o que sabereis no primeiro contato, se fordes magnetizador; porém, ela é um pouco menos forte que vós: é um rato, sois uma ratazana. Fazei-vos gato, e tomá-la-eis.

Num dos admiráveis contos que não inventou, mas que narrou melhor do que ninguém, Perrault põe em cena um mestre gato que, por seus ardis, induz um ogro a metamorfosear-se em rato; mal ele acabara de fazê-lo, foi devorado pelo gato. Os contos da Mamãe Gansa seriam, como o Asno de Ouro, de Apuleio, verdadeiras lendas mágicas, e ocultariam, sob a aparência pueril, os formidáveis segredos da ciência?

Sabe-se que os magnetizadores dão à água pura, apenas com a imposição das mãos, isto é, de sua vontade expressa por um sinal, as propriedades e o sabor do vinho, dos licores e de todos os medicamentos possíveis.

Sabe-se também que os domadores de animais ferozes subjugam os leões fazendo-se eles mesmos mental e magneticamente mais fortes e mais ferozes que os leões.

Jules Gérard, o intrépido matador de leões da África, seria devorado se tivesse medo. Mas, para não ter medo de um leão, é preciso, por um esforço de imaginação e de vontade, fazer-se mais forte e mais selvagem que o próprio animal; é preciso dizer a si mesmo: O leão sou eu, e este animal diante de mim é apenas um cão que deve sentir medo.

Fourier sonhara os antileões: Jules Gérard realizou essa quimera do sonhador falansteriano.

Mas, para não temer os leões, basta ser um homem corajoso e ter armas, dirão.

Não, isso não basta. É preciso, por assim dizer, conhecer de cor seu leão, calcular as investidas do animal, adivinhar seus ardis, evitar suas garras, prever seus movimentos, numa palavra, ser mestre na profissão de leão, como diria o bom La Fontaine.

Os animais são os símbolos vivos dos instintos e das paixões dos homens. Se tornais um homem temeroso, vós o transformais em lebre; se, ao contrário, impeli-o à ferocidade, fazeis dele um tigre. A vara de Circe é o poder fascinador da mulher; e os companheiros de Ulisses transformados em porcos não são uma história apenas daquele tempo.

Mas nenhuma metamorfose se opera sem destruição. Para transformar um gavião em pomba, é necessário primeiro matá-lo, depois cortá-lo em pedaços, de modo a destruir até o menor vestígio de sua primeira forma, depois fervê-lo no banho mágico de Medéia.

Vede como os hierofantes modernos procedem para realizar a regeneração humana; como fazem, por exemplo, na religião católica para transformarem um homem mais ou menos fraco e apaixonado num estóico missionário da Companhia de Jesus.

Aí está o grande segredo dessa ordem venerável e terrível, sempre desconhecida, freqüentemente caluniada e sempre soberana.

Lede atentamente o livro intitulado os Exercícios de Santo Inácio e vede com que mágico poder esse gênio opera a realização da fé.

Ele ordena a seus discípulos que vejam, toquem, cheirem, degustem as coisas invisíveis; quer que os sentidos sejam exaltados na oração até a alucinação voluntária. Meditais sobre um mistério da fé, Santo Inácio quer primeiramente que construais um lugar, que o sonheis, vejais, toqueis. Se é o inferno, ele vos faz tatear rochas ardentes, nadar em trevas espessas como o pez, coloca em vossa língua enxofre líquido, enche vossas narinas de um abominável mau cheiro; mostra-vos atrozes suplícios, vos faz ouvir gemidos sobre-humanos; diz à vossa vontade para criar tudo isso através de exercícios persistentes. Cada um o faz a seu modo, mas sempre da forma mais capaz de impressioná-lo. Não é mais a embriaguez do haxixe servindo à fraude do Velho da Montanha; é um sonho sem sono, uma alucinação sem loucura, uma visão racional e intencional, uma criação verdadeira da inteligência e da fé. Daí em diante, ao pregar, o jesuíta poderá dizer: É o que vimos com nossos olhos, o que ouvimos com nossos ouvidos, o que nossas mãos tocaram, é isso o que vos anunciamos. O jesuíta assim formado comunga com um círculo de vontades exercitadas como a sua: desse modo, cada um dos padres é forte como a sociedade, e a sociedade é mais forte que o mundo.

CAPÍTULO II

Como se pode conservar e renovar a juventude. Os segredos de Cagliostro.

A possibilidade da ressurreição. Exemplo de Guilherme Postel, dito

o Ressuscitado. De um operário taumaturgo, etc.

Sabemos que uma vida sóbria, moderadamente laboriosa e perfeitamente regular geralmente prolonga a existência. Mas é pouco, a nosso ver, a prolongação da velhice; temos o direito de pedir à ciência que professamos outros privilégios e outros segredos.

Ser por muito tempo jovem, ou mesmo voltar a sê-lo, eis o que pareceria, com razão, desejável e precioso para a maioria dos homens. É possível? É o que vamos examinar.

O famoso conde de Saint-Germain morreu, não duvidamos disso; mas nunca o viram envelhecer. Aparentava sempre quarenta anos, e no auge de sua celebridade afirmava ter mais de oitenta.

Ninon de l’Enclos, tendo atingido uma idade avançada, era ainda uma mulher jovem, bela e sedutora. Morreu sem ter envelhecido.

Desbarrolles, o célebre quiromante, há muito tempo é para todo o mundo um homem de trinta e cinco anos. Sua certidão de nascimento diria outra coisa, se ousasse mostrar-se; mas ninguém acreditaria.

Cagliostro sempre foi visto com a mesma idade, e não apenas pretendia possuir um elixir que devolvia aos idosos, por um instante, todo o vigor da juventude, como também gabava-se de operar a regeneração física por meios que detalhamos e analisamos em nossa História da Magia.

Cagliostro e o conde de Saint-Germain atribuíam a conservação de sua juventude à existência e ao uso da medicina universal, inutilmente procurada por tantos sopradores e alquimistas.

Um iniciado do século XVI, o bom e sábio Guilherme Postel, não afirmava possuir o grande arcano da filosofia hermética; e no entanto, após o terem visto velho e alquebrado, viram-no novamente com uma tez vermelha e sem rugas, barba e cabelos negros, corpo ágil e vigoroso. Seus inimigos pretenderam que ele se maquiava e que tingia os cabelos; pois os zombeteiros e os falsos sábios necessitam de uma explicação qualquer para fenômenos que não compreendem.

O grande meio mágico para conservar a juventude do corpo é impedir a alma de envelhecer, conservando-lhe preciosamente o frescor original de sentimentos e pensamentos que o mundo corrompido denomina ilusões, e a que chamaremos miragens primitivas da verdade eterna.

Acreditar na felicidade da terra, na amizade, no amor, numa Providência materna que conta todos os nossos passos e recompensará todas as nossas lágrimas é ser perfeitamente ingênuo, dirá o mundo corrompido; e não vê que o ingênuo é ele, que se acredita forte privando-se de todas as delícias da alma.

Acreditar no bem da ordem moral é possuir o bem: e é por isso que o Salvador do mundo prometia o reino do céu aos que se tornassem semelhantes às criancinhas. O que é a infância? É a idade da fé. A criança ainda nada sabe da vida; desse modo, resplandece de imortalidade confiante. Como poderia duvidar da dedicação, da ternura, da amizade, do amor, da Providência, quando está nos braços de sua mãe?

Fazei-vos crianças de coração e permanecereis jovens de corpo.

As realidades de Deus e da natureza superam infinitamente em beleza e bondade toda a imaginação dos homens. Assim, os empedernidos são pessoas que nunca souberam ser felizes; e os desiludidos provam, por seus dissabores, que beberam apenas em fontes lamacentas. Para gozar os prazeres, mesmo sensuais, da vida, é preciso ter o sentido moral; e os que caluniam a existência certamente deles abusaram.

A alta magia, como provamos, reconduz o homem às leis da mais pura moral. Vel sanctum invenit, vel sanctum facit, disse um adepto; pois ela nos faz compreender que, para ser feliz, mesmo neste mundo, é preciso ser santo.

Ser santo! é fácil dizer; mas como dar-se a fé, quando não se acredita mais? Como reencontrar o gosto da virtude num coração tornado insípido pelo vício?

Trata-se aqui de recorrer aos quatro verbos da ciência: saber, ousar, querer e calar-se.

É preciso impor silêncio aos dissabores, estudar o dever e começar por praticá-lo como se o amasse.

Vós sois incrédulo, por exemplo, e gostaríeis de tornar-vos cristão.

Fazei os exercícios de um cristão. Orai regularmente, servindo-vos das fórmulas cristãs; aproximai-vos dos sacramentos supondo a fé, e a fé virá. Aí está o segredo dos jesuítas, contido nos exercícios espirituais de Santo Inácio.

Por exercícios análogos, um tolo, se o quisesse com perseverança, tornar-se-ia um homem inteligente.

Mudando-se os hábitos da alma, mudam-se certamente os do corpo: já o dissemos e explicamos como.

O que contribui, sobretudo, para envelhecer-nos tornando-nos feios são os pensamentos rancorosos e amargos, os julgamentos desfavoráveis que fazemos dos outros, nossas raivas por orgulho ferido e paixões malsatisfeitas. Uma filosofia benevolente e doce evitar-nos-ia todos esses males.

Se fechássemos os olhos aos defeitos do próximo, levando em conta apenas suas boas qualidades, encontraríamos o bem e a benevolência em toda a parte. O homem mais perverso tem seu lado bom e abranda-se quando se sabe abordá-lo. Se nada tivésseis em comum com os vícios dos homens, nem mesmo os perceberíeis. A amizade e as dedicações que ela inspira encontram-se até nas penitenciárias e nas prisões de forçados. O horrível Lacenaire devolvia fielmente o dinheiro que lhe haviam emprestado, e várias vezes teve atos de generosidade e beneficência. Não tenho dúvidas de que na vida criminosa de Cartouche e Mandrin tenha havido lances de virtude capazes de tirar lágrimas dos olhos. Nunca houve ninguém totalmente mau nem totalmente bom. “Ninguém é bom, a não ser Deus”, disse o melhor dos mestres.

O que tomamos em nós por zelo da virtude é freqüentemente apenas um secreto amor-próprio dominador, um ciúme dissimulado e um instinto orgulhoso de contradição. “Quando vemos desordens manifestas e pecadores escandalosos”, dizem os autores da teologia mística, “cremos que Deus os submete a maiores provas do que nós, que certamente, ou pelo menos muito provavelmente, não as merecemos, e que faríamos bem pior em seu lugar.”

A paz! a paz! Tal é o bem supremo da alma, e foi para nos dar esse bem que Cristo veio ao mundo.

Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens que desejam o bem!, clamavam os espíritos do céu quando o Salvador acabava de nascer.

Os antigos pais do cristianismo contavam um oitavo pecado capital: a tristeza.

De fato, o próprio arrependimento para o verdadeiro cristão não é uma tristeza, é um consolo, uma alegria e um triunfo. “Queria o mal e não o quero mais, estava morto e estou vivo. O pai do filho pródigo matou o novilho gordo porque seu filho voltou, que pode fazer o filho pródigo? Chorar, um pouco de confusão, mas sobretudo de alegria!

Existe apenas uma coisa triste no mundo, é a loucura e o pecado. Visto que estamos livres, riamos e gritemos de alegria, pois estamos salvos e todos os mortos que nos amam regozijam-se no céu!

Todos trazemos em nós um princípio de morte e um princípio de imortalidade. A morte é a besta, e a besta sempre produz a tolice. Deus não ama os tolos, pois seu espírito divino denomina-se espírito de inteligência. A tolice expia pela dor e escravidão. O bastão é feito para as bestas.

Um sofrimento é sempre uma advertência, tanto pior para o que não sabe compreender. Quando a natureza puxa a corda é porque estamos andando de lado, quando bate é porque o perigo urge. Ai, então, de quem não reflete!

Quando estamos maduros para a morte, deixamos a vida sem pesar e nada nos faria retornar; mas quando a morte é prematura a alma lamenta a perda da vida, e um taumaturgo hábil poderia chamá-la de volta ao corpo. Os livros sagrados indicam-nos o procedimento que se deve, então, adotar. O profeta Elias e o apóstolo São Paulo empregaram-nos com sucesso. Trata-se de magnetizar o defunto colocando os pés sobre seus pés, as mãos sobre suas mãos, a boca sobre sua boca, depois reunir toda a vontade e chamar a si longamente a alma evadida com todas as benevolências e carinhos mentais de que se é capaz. Se o operador inspira à alma defunta muita afeição, ou um grande respeito, se no pensamento que lhe comunica magneticamente o taumaturgo pode persuadi-la de que a vida lhe é ainda necessária e que dias felizes lhe estão ainda prometidos aqui embaixo, ela certamente retomará, e para os homens de ciência vulgar a morte aparente terá sido apenas uma letargia.

Foi após uma letargia semelhante que Guilherme Postel, chamado de volta à vida pelos cuidados da mãe Joana, reapareceu com uma juventude nova e passou a chamar-se Postel, o Ressuscitado, Postellus restitutus.

No ano de 1799, havia no subúrbio de Santo Antônio, em Paris, um ferrador que se fazia passar por adepto da ciência hermética, chamava-se Leriche e passava por ter operado, pela medicina universal, curas milagrosas e até mesmo ressurreições. Uma dançarina da ópera, que acreditava nele, um dia foi procurá-lo em lágrimas e disse-lhe que seu amante morrera. O senhor Leriche acompanhou-a à casa mortuária. Quando entrava, uma pessoa que saía disse-lhe: “É inútil o senhor subir, ele morreu há seis horas.” “Não importa”, disse o ferrador, “já que eu vim, vou vê-lo.” Subiu, encontrou um cadáver com o corpo todo gelado, exceto na cavidade do estômago, onde ele acreditou sentir ainda um pouco de calor. Mandou acender um grande fogo, operou fricções em todo o corpo com toalhas quentes, esfregou-o com medicina universal diluída em álcool (sua pretensa medicina universal devia ser um pó mercurial análogo ao quermes das farmácias), enquanto isso a amante do morto chorava e chamava-o à vida com as mais ternas palavras. Após uma hora e meia de semelhantes cuidados, Leriche pôs um espelho diante do rosto do paciente e achou-o levemente embaçado. Os cuidados foram redobrados e logo houve um sinal de vida mais acentuado; colocaram-no, então, num leito bem aquecido e poucas horas depois ele retomara inteiramente à vida. Esse ressuscitado chamava-se Candy, viveu, desde então, sem nunca adoecer. Em 1845, vivia ainda e morava na praça Chevalier-du-Guet, n° 6. Contava sua ressurreição a quem quisesse ouvir, e provocava o riso dos médicos e dos membros do conselho profissional de seu bairro. O bom homem consolava-se à maneira de Galileu e respondia-lhes: “Oh! riam o quanto quiserem. Tudo o que sei é que o médico-legista tinha vindo, que a inumação estava permitida, que dezoito horas mais tarde iam me enterrar e que aqui estou.”

CAPÍTULO III

O grande arcano da morte

Entristecemo-nos com freqüência ao pensar que a mais bela vida deve terminar, e a aproximação deste terrível desconhecido a que se denomina morte faz com que nos enfastiemos com todas as alegrias da existência.

Por que nascer, se se deve viver tão pouco? Por que educar com tantos cuidados crianças que morrerão? Eis o que pergunta a ignorância humana em suas mais freqüentes e mais tristes dúvidas.

Eis também o que vagamente se pode perguntar o embrião humano ao aproximar-se o nascimento que vai lançá-lo num mundo desconhecido, despojando-o de seu invólucro protetor. Estudemos o mistério do nascimento e teremos a chave do grande arcano da morte.

Lançado pelas leis da natureza no ventre de uma mulher, o espírito encarnado acorda aí lentamente, e com esforço cria em si órgãos indispensáveis mais tarde, mas que, à medida que crescem, aumentam seu mal-estar na situação presente. O tempo mais feliz da vida do embrião é aquele em que, sob a simples forma de uma crisálida, estende à sua volta a membrana que lhe serve de abrigo e que nada com ele num fluido nutriente e conservador. Ele é, então, livre e impassível, vive da vida universal e recebe o cunho das lembranças da natureza que determinarão, mais tarde, a configuração de seu corpo e a forma dos traços de seu rosto. Essa idade feliz poderia chamar-se a infância do embrião.

A seguir vem a adolescência, a forma humana torna-se distinta e o sexo determina-se, um movimento opera-se no ovo materno semelhante aos vagos devaneios da idade que sucede à infância. A placenta, que é o corpo externo e real do feto, sente germinar em si algo de desconhecido que já tende a escapar-se, rompendo-a. A criança, então, entra mais distintamente na vida dos sonhos, seu cérebro, invertido como um espelho de sua mãe, reproduz com tanta força as imaginações desta, que comunica sua forma aos próprios membros. Sua mãe, então, é para ele o que Deus é para nós, é uma providência desconhecida, invisível, a que ele aspira a ponto de identificar-se em tudo com o que ela admira. Está preso a ela, vive através dela e não a vê, nem mesmo pode compreendê-la, e se pudesse filosofar talvez negasse a existência pessoal e a inteligência dessa mãe que para ele ainda é apenas uma prisão fatal e um aparelho conservador. Pouco a pouco, no entanto, essa sujeição incomoda-o, agita-se, atormenta-se, sofre, sente que sua vida vai terminar. Chega uma hora de angústia e convulsão, seus liames desprendem-se, sente que vai cair no abismo do desconhecido. Está feito, ele cai, uma sensação dolorosa oprime-o, um frio estranho invade-o, solta um último suspiro que se transforma num primeiro grito; morreu para a vida embrionária, nasceu para a vida humana!

Na vida embrionária, parecia-lhe que a placenta era seu corpo, e de fato era seu corpo especial embrionário, corpo inútil para uma outra vida e que deve ser rejeitado como uma imundície no instante do nascimento.

Nosso corpo na vida humana é como um segundo invólucro inútil para a terceira vida e é por isso que o rejeitamos no instante de nosso segundo nascimento.

A vida humana comparada à vida celeste é um verdadeiro embrionato. Quando as más paixões nos matam, a natureza aborta e nascemos antes do tempo para a eternidade, o que nos expõe à dissolução terrível a que São João chama segunda morte.

Segundo a tradição constante dos extáticos, os abortos da vida humana permanecem nadando na atmosfera terrestre que eles não podem ultrapassar e que aos poucos os absorve e os afoga. Têm a forma humana, mas sempre imperfeita e truncada: a um falta a mão, a outro um braço, este já tem só o tronco, este último é uma cabeça pálida que rola. O que os impediu de subirem ao céu foi um ferimento recebido durante a vida humana, ferimento moral que causou uma disformidade física e, por esse ferimento, pouco a pouco toda sua existência se vai.

Logo, sua alma imortal ficará nua e, para esconder sua vergonha criando a qualquer preço um novo véu, será obrigada a arrastar-se nas trevas exteriores e a atravessar lentamente o mar morto, isto é, as águas adormecidas do antigo caos.

Essas almas feridas são as larvas do segundo embrionato, alimentam seu corpo aéreo com o vapor do sangue propagado e temem a ponta das espadas. Freqüentemente ligam-se aos homens viciados e vivem de sua vida como o embrião vive no seio da mãe; podem, então, tomar as mais horríveis formas para representar os desejos desenfreados dos que as alimentam, e são elas que aparecem sob a forma de demônios aos miseráveis operadores das obras sem nome da magia negra.

Essas larvas temem a luz, sobretudo a luz dos espíritos. Um clarão de inteligência basta para fulminá-las e precipitá-las nesse mar morto que não se deve confundir com o lago Asfaltite, na Palestina. Tudo o que aqui revelamos pertence à tradição hipotética dos videntes e só pode ser afirmado diante da ciência em nome dessa filosofia excepcional que Paracelso chamava a filosofia da sagacidade, philosophia sagax.

CAPÍTULO IV

O grande arcano dos arcanos

O grande arcano, isto é, o segredo indizível inexplicável, é a ciência absoluta do bem e do mal.

“Quando tiverdes comido o fruto desta árvore, sereis como deuses”, diz a serpente.

“Se comerdes, morrereis”, responde a sabedoria divina.

Assim, o bem e o mal frutificam numa mesma árvore e brotam de uma mesma raiz.

O bem personificado é Deus.

O mal personificado é o diabo.

Saber o segredo ou a ciência de Deus é ser Deus.

Saber o segredo ou a ciência do diabo é ser o diabo.

Querer ser ao mesmo tempo Deus e diabo é absorver em si a antinomia mais absoluta, as duas forças contrárias mais tensas; é querer abrigar um antagonismo infinito.

É beber um veneno que apagaria os sóis e que consumiria mundos.

É vestir a túnica devorante de Dejanira.

É votar-se à mais pronta e mais terrível de todas as mortes.

Ai daquele que quer saber demais! Pois se a ciência excessiva e temerária não o matar o tornará louco!

Comer o fruto da árvore da ciência do bem e do mal é associar o mal ao bem e assimilá-los um ao outro.

É cobrir com a máscara de Tífon o rosto irradiante de Osíris.

É erguer o véu sagrado de Ísis, é profanar o santuário.

O temerário que ousa olhar o sol sem sombra torna-se cego e, então, para ele o sol é negro!

É proibido contarmos mais, terminaremos nossa revelação pela figura de três pentáculos.

Essas três estrelas dizem o bastante, pode-se compará-las àquelas que desenhamos no início de nossa história da magia, e reunindo as quatro será possível chegar a entrever o grande arcano dos arcanos.

Primeiro Pantáculo, a estrela branca

A estrela dos Três Magos

Segundo Pantáculo, a estrela negra

A má estrela

Terceiro Pentáculo, a estrela vermelha

Pentagrama do divino Paracleto

Agora, para completar nossa obra, resta-nos dar a grande chave de Guilherme Postel.

Essa chave é a do tarô. Vêem-se aí os quatro naipes, paus, copas, espada, ouros ou círculo, que correspondem aos quatro pontos cardeais do céu e aos quatro animais ou signos simbólicos, os números e as letras dispostos em círculo, depois os sete signos planetários com a indicação de sua tríplice repetição expressa nas três cores, para significar o mundo natural, o mundo humano e o mundo divino, cujos emblemas hieroglíficos compõem os vinte e um grandes trunfos de nosso jogo atual de tarô.

No centro do anel, vê-se o duplo triângulo formando a estrela ou selo de Salomão, é o ternário religioso e metafísico análogo ao ternário natural da geração universal na substância equilibrada.

c

s

t

n h v k t n h k t

a

h

,

n h v k t s n t h u

s u t h t h u s u t h t h

Em volta do triângulo está a cruz que divide o círculo em quatro partes iguais, assim os símbolos da religião reúnem-se às linhas da geometria, a fé completa a ciência e a ciência dá a razão da fé.

Com o auxílio dessa chave pode-se compreender o simbolismo universal do antigo mundo e comprovar suas surpreendentes analogias com nossos dogmas. Reconhecer-se-á assim que a revelação divina é permanente na natureza e na humanidade; sentir-se-á que o cristianismo não trouxe senão a luz e o calor ao templo universal ao fazer descer nele o espírito de caridade que é a vida do próprio Deus.

A Chave do Grande Arcano

EPÍLOGO

Graças vos sejam dadas, meu Deus, porque vós me chamasses a essa admirável luz. Sois a inteligência suprema e a vida absoluta desses números e dessas forças que vos obedecem para povoar o infinito com uma criação inesgotável. As matemáticas vos provam, as harmonias vos cantam, as formas passam e vos adoram!

Abraão conheceu-vos, Hermes adivinhou-vos, Pitágoras calculou vossos movimentos, Platão aspirava a vós em tolos os sonhos de seu gênio; mas um único iniciador, um único sábio vos revelou aos filhos da terra, um único pôde dizer de vós: Meu pai e eu somos apenas um; glória seja, pois, para ele, pois que toda sua glória é para vós!

Pai, vós o sabeis, aquele que escreve estas linhas muito lutou e sofreu; suportou a pobreza, a calúnia, a proscrição odiosa, a prisão, o abandono dos que amava, e, no entanto, nunca se julgou infeliz, porque restava-lhe por consolo a verdade e a justiça!

Vós sois o único santo, Deus dos corações verdadeiros e das almas justas, e sabeis se algum dia acreditei estar puro diante de vós; fui como todos os homens o joguete das paixões humanas, depois venci-as, ou antes, venceste-as em mim, e destes-me, para que aí repousasse, a paz profunda dos que buscam e ambicionam a vós somente.

Amo a humanidade porque os homens, enquanto não são insensatos, nunca são maus a não ser por erro ou fraqueza. Amam naturalmente o bem e é por esse amor, que lhes destes como um sustentáculo em meio a suas provações, que devem ser reconduzidos cedo ou tarde ao culto da justiça pelo amor da verdade.

Que meus livros vão agora onde Vossa Providência os enviar. Se contiverem as palavras de vossa sabedoria, serão mais fortes que o esquecimento, se ao contrário contiverem apenas erros, sei ao menos que meu amor pela justiça e pela verdade lhes sobreviverá, e que assim a imortalidade não pode deixar de recolher as aspirações e os votos de minha alma que criastes imortal!

Eliphas Levi

FIM

Postagem original feita no https://mortesubita.net/alta-magia/a-chave-dos-grandes-misterios/

Queima ele, Jesus! – parte I

Postado no Sedentário em 24.09.2008.
Depois destes últimos meses estudando a origem dos demônios inventados pela Igreja Católica e fartamente utilizados pelas evangélicas, vamos retornar no Tempo e passar para dois temas que vocês estavam aguardando: Templários e Rei Arthur. Como veremos a seguir, estas duas histórias estão diretamente associadas aos descendentes de Jesus e Maria Madalena, bem como a guerra política, religiosa e mágica que Roma travou com os ocultistas/cientistas por mais de 1.600 anos.
Para quem chegou agora, eu recomendo ler os posts antigos Bota o Natal na conta do Papa, Yod-He-Shin-Vav-He e Maria Madalena, Pitágoras e Buda, os professores de Jesus e finalmente Seria Yeshua um x-men?
Continuemos, então, com um pouco de história antiga…

Terminamos nossa narrativa histórica no resgate de Yeshua da crucificação, quando os iniciados Essênios conseguem, através de acordos políticos com Pilatos, remover o corpo de Yeshua para o sepulcro (o “Santo Sepulcro”) e curá-lo através de imposição de mãos. Jesus reúne-se com seus apóstolos mais algumas vezes, e isto ficou retratado no Novo Testamento como se fosse uma “ressurreição”.

Mais tarde, ainda temendo a revolução, seus discípulos precisaram separar sua família e enviá-los para locais seguros. Maria Madalena, grávida, foi enviada sob proteção para o Egito, onde permaneceu durante quase um ano, quando se reencontrou com Yeshua no Sul da França. Falaremos sobre a Madonna Negra em posts futuros.
Outro dos filhos de Yeshua foi para Glastonbury, acompanhado de José de Arimatéia, seu tio. O terceiro filho de Yeshua, Barrabás (Barr Abas significa “filho de uma pessoa muito importante”), permaneceu com ele e muitos dizem que acabou se tornando um dos mentores intelectuais da Primeira Grande Revolta dos Judeus, que começa em 66DC. Yeshua termina seus dias na Caxemira.

A revolução começou na Cesárea, quando os judeus atacaram uma guarnição da legião romana em frente a uma sinagoga de Jerusalém, em reação à provocação de alguns gregos. Naquela época, era muito comum a disputa religiosa e filosófica entre Helenistas e Judeus: um grupo de gregos sacrificou pássaros em frente à sinagoga como uma provocação e, como os soldados romanos nada fizeram para impedir, os judeus começaram uma revolta atacando os gregos e os soldados. Esta primeira batalha ficou conhecida como a Batalha de Beth-Horon.
Os romanos estavam em vantagem de 5 homens para cada judeu, mas através de uma guerrilha bem planejada, os soldados treinados de Yeshua conseguiram matar uma legião inteira romana.
Muito puto da vida, o Imperador Nero decidiu acabar com os judeus de uma vez por todas.

Aliás, a vida de Nero não foi fácil: ele teve de lidar com revoltas na Inglaterra (60-61) orquestradas por guerreiros ligados a Boudicea, a rainha das tribos de Iceni e provavelmente pertencente aos clãs que acolheram os descendentes de Yeshua. As tribos daquela região estavam em relativa paz com os romanos, até a morte de Presutagus, marido de Boudicea. Como os romanos não reconheciam mulheres como legítimas herdeiras, o governador das Ilhas não quis reconhecer a autoridade de Boudicea, invadindo seu castelo. Boudicea foi chicoteada e suas filhas estupradas pelos romanos.
Como retaliação, os guerreiros celtas atacaram e destruíram 3 das mais importantes cidades romanas, incluindo Londinun (L0ndres) matando mais de 70.000 invasores no processo. Os rebeldes só retrocederam quando a legião comandada por Gaius Suetonius Paulinus conseguiu derrotá-los na batalha de Watling Street.

Boudicea serviu como uma das bases da heroína celta chamada Gwenhwyfach que muitos séculos depois se tornaria Guinevere, esposa do Rei Arthur. Assim como as outras rainhas celtas, Boudicea possuía concubinos (homens encarregados de lhe dar prazer sexual enquanto o rei estivesse longe em batalhas). Este costume celta irá horrorizar os púdicos católicos muitos séculos depois, e Guinevere terá um “amante” para “consertar” esta narrativa. É uma história interessante que contarei mais para a frente, mas adianto que o termo “carregar chifres” como sinônimo para adultério veio deste costume celta.

No meio destas confusões, Nero fazia o que todo Imperador e Papa romano faz melhor: mandava matar os judeus/cristãos (note que o termo “cristãos” usado aqui se refere aos judeus discípulos e seguidores de Yeshua, não aos católicos apostólicos romanos, como a Igreja mentirosamente quer que você acredite quando chama estes caras de “mártires do catolicismo”). As pessoas que iam para os leões eram judeus, maniqueístas, marcionistas, setianos, essênios, ofitas, bogomilos, valentinos e outras seitas judias.

Em 64, um incêndio de enormes proporções devastou 4 dos 14 bairros de Roma e destruiu severamente outros 7 bairros. Nero acusou os cristãos de cometerem este crime e utilizou todo este processo para dar as desculpas necessárias para inaugurar as festividades de jogar os cristãos na arena com os leões.

Flavio Josefus
Outro personagem importante em nossa história é Mattitiyahu ben Yosef ha-Kohen, fariseu que nasceu em 37 EC (Era Comum ou Depois de Cristo); a data da sua morte não é exata – algo entre 95 e 100 EC. Líder da revolta dos judeus contra o domínio de Roma na década de 60 EC e depois da derrota entregou-se aos romanos, caindo nas graças de Vespasiano – comandante das legiões romanas – ao profetizar que este se tornaria imperador. Como sua profecia se confirmou, ele tornou-se protegido do imperador romano, recebeu o título de cidadão e foi nomeado Flávio, o nome da dinastia romana dominante na época. Flávio Josefo – como é conhecido hoje – passou a residir em Roma e escreveu algumas obras históricas, entre elas “As Guerras Judaicas”, “Antiguidades Judaícas” e “Contra Apião”, fornecendo pormenores da destruição de Jerusalém em 70 EC, da qual foi testemunha ocular, e detalhes sobre outros aspectos da história dos hebreus não registradas na Bíblia.

Sei que esta parte será um pouco chata, mas é necessária para entendermos o que aconteceu com a doutrina de Yeshua após seu exílio. Enquanto o Império romano entrava em guerras cada vez mais violenta contra os judeus, sua expansão em direção às Ilhas Britânicas.

Masada

A única fonte histórica para o episódio é a obra do judeu romanizado Flavius Josephus, “Guerra dos Judeus“. Entretanto, os historiadores modernos concordam que realmente um grupo de Zelotes matou a si e às próprias famílias e incendiou algumas construções em Masada. Vocês lembram quem era um dos líderes dos Zelotes, não? Isso mesmo! Judas, o melhor amigo de Jesus.

Quando os zelotes tomaram a fortaleza em 66, após eliminar uma coorte da Legio III Gallica ali estacionada, encontraram um bem sortido estoque de armas, bem como quantidade de ferro, bronze e chumbo para o fabrico de armas e munição. Os armazéns estavam completos com grãos, óleos, tâmaras e vinho; as hortas forneciam alimentos frescos; os canais, escavados na pedra de calcário, coletavam e conduziam as águas pluviais para grandes cisternas subterrâneas, com capacidade superior a 200 mil galões.
Na Primavera de 73, a fortaleza encontrava-se ocupada por 960 zelotas, incluindo mulheres e crianças, sob o comando de Eleazar ben Yair. Outro comandante zelota, um dos envolvidos na defesa de Jerusalém, era Judas, que havia retirado para Masada após a queda de Jerusalém. A guarnição vinha resistindo por dois anos a um assédio das legiões romanas, constituindo-se no último foco de resistência judaica.
Nesse momento, o governador romano, general Flavius Silva, reassumiu as operações militares no sul da Judéia. Em fim de março, à frente da Legio X Fretensis, marchou de Jerusalém para o Mar Morto.
As tropas tomaram posição diante de Masada, passando a construir oito acampamentos de campanha na planície do lado Oeste da elevação. Foi principada ainda uma muralha de circunvalação ao redor de Masada, com cerca de três metros de altura, que se estendia por mais de duas milhas de comprimento, amparada por fortes e torres.
No lado Oeste, 137 metros abaixo do topo de Massada, e separado por um vale rochoso, havia um promontório chamado de Penhasco Branco. Os engenheiros militares romanos decidiram que, a partir desse promontório, seria construída uma única rampa para o topo do monte, iniciando-se a movimentação de terras.
A rampa assim construída, apresentava um gradiente de 1:3 e uma base de 210 metros. Em pouco tempo alvançou os 100 metros de altura e, em sua extremidade foi montada uma plataforma de 22 metros de altura por 22 de largura. Em seguida, uma torre de cerco de 28 metros de altura foi posicionada contra a muralha. Do seu alto, os artilheiros romanos faziam disparos com os escorpiões e balistas, enquanto que na sua base, um aríete golpeava a base da muralha.

Quando a muralha foi rompida, os legionários que penetraram pela brecha constataram a existência de uma segunda muralha, interna. Ao atacá-la, por sua vez, com o aríete, constatou-se que esta fora construída com vigas de madeira alternadas com pedra, técnica que absorvia os golpes de aríete. Desse modo, a 2 de Maio, promoveu-se o incêndio desta muralha, iniciando-se os preparativos para o assalto final no dia seguinte.
Enquanto isso, na fortaleza, os zelotas acompanhavam os preparativos romanos, constatando a iminência do assalto romano. Durante a noite, decidiram que preferiam morrer a ser escravizados ou mortos pelos romanos. Sacrificaram assim as mulheres e crianças, e depois os próprios defensores, até que restaram apenas dez e o comandante Eleazar ben Yair. Tiraram sortes para ver qual deles sacrificaria os demais. Após cumprir a sua tarefa, o último homem ateou fogo ao palácio, e lançou-se sobre a própria espada, ao lado da família morta.
Na manhã do dia 3 de Maio, os legionários ultrapassaram a brecha aberta na muralha interna, encontrando a fortaleza em silêncio. Chamando os rebeldes à luta, apresentou-se uma anciã seguida por uma mulher jovem, parente de Eleazar, e cinco crianças pequenas, que haviam se escondido em um dos condutos de água subterrâneos.
Masada era conhecida como uma das principais bases de resistência dos judeus. Um dos líderes deste agrupamento não era outro senão Barrabás. De acordo com as lendas templárias, Barrabás foi um dos dez últimos homens a se sacrificar, mas que seus filhos estariam a salvo fora da fortaleza antes do ataque romano. Esta lenda é interessante, porque ela explica a origem de outra lenda que surgiu na Idade Média a respeito dos romanos estarem procurando o “Santo Graal” em Masada, mas que os judeus conseguiram retirá-lo de lá antes do derradeiro ataque. Neste caso, o “Cálice Sagrado” (San Graal, Sangreal, ou simplesmente “sangue real” eram os descendentes de Jesus que estavam em Masada com os zelotes).
Estava encerrada assim a Primeira Revolta dos Judeus.

A Gnose
Gnosticismo designa o movimento histórico e religioso cristão que floresceu durante os séculos II e III, cujas bases filosóficas eram as da antiga Gnose (palavra grega que significa conhecimento), com influências do neoplatonismo e dos pitagóricos. Este movimento revindicava a posse de conhecimentos secretos (a “gnose apócrifa“, em grego) que, segundo eles, os tornava diferentes dos cristãos alheios a este conhecimento. Originou-se provavelmente na Ásia menor, e tem como base as filosofias pagãs, que floresciam na Babilônia, Egito, Síria e Grécia. O gnosticismo combinava alguns elementos da Astrologia e mistérios das religiões gregas, como os mistérios de Elêusis, com as doutrinas do Cristianismo. Em seu sentido mais abrangente, o Gnosticismo significa “a crença na Salvação pelo Conhecimento”.
Entre 100 e 300 DC surgiram muitos grupos cristãos que traziam o conhecimento pregado por Yeshua, derivado tanto da ritualística egípcia quanto dos conhecimentos do oriente.
Entre eles podemos destacar:

Mandeísmo
Mandeísmo é uma religião pré-cristã classificada por estudiosos como gnóstica.
Os mandeístas são assim classificados devido à etimologia da palavra manda em mandeu: conhecimento, que é a mesma palavra gnosis em grego. É considerada uma das religiões gnósticas remanescentes até os dias atuais, junto com o gnosticismo de Samael Aun Weor (que alguns segmentos gnósticos não aceitam).
Os mandeístas veneram João Baptista como o Messias e praticam o ritual do batismo. Possuem cerca de 100.000 adeptos em todo o mundo, principalmente no Iraque.
A religião mandeísta tem uma visão dualística mais estrita que a maioria dos gnósticos. Ao invés de um grande pleroma, existe uma clara divisão entre luz e trevas. O senhor das trevas é chamado de Ptahil (semelhante ao Demiurgo gnóstico) e o gerador da luz (Deus) é conhecido como “a grande primeira Vida dos mundos da luz, o sublime que permanece acima de todos os mundos“. Quando esse ser emanou, outros seres espirituais se corromperam, e eles e seu senhor Ptahil criaram o nosso mundo.
A escritura mandeísta mais importante é o Ginza Rba. A linguagem usada por eles é o mandeu, uma sub-espécie do aramaico.

Basilismo ou Basilíades
Basílides (circa de 117-138) foi um Filósofo gnóstico de Alexandria, possivelmente originário de Antioquia, atual cidade turca na província de Hatay. Admitiu um princípio incriado, o Pai, cinco hipóteses emanadas dele e trezentos e sessenta e cinco céus, um dos quais é o nosso mundo, comandado por YHVH (Yahweh, Jeová ou Javé). Santo Irineu e Santo Hipólito refutaram as suas doutrinas. Basílides foi, com Valentino o mais célebre dos gnósticos.

Carpocratos
Carpócrates de Alexandría foi o fundador de uma seita gnóstica na primeira metade do Século II
Filósofo e teólogo do Século II, suas opiniões são uma mescla de cristianismo e platonismo. Sustentava que o mundo foi criado por anjos caídos. Por isso, esta criação era ruim e somente poderia o homem liberar-se dela através da Gnose, ou ciência divina.
Algumas fontes ligam Carpócrates ao Mandeísmo.

Ceritios (não confundir com Coríntios)
Cerinto (c 100) foi um dos primeiros líderes do antigo gnosticismo que foi reconhecido como herético pelos primeiros Cristãos devido aos seus ensinamentos sobre Jesus Cristo e suas interpretações sobre o cristianismo. Ao contrário dos ensinamentos da Cristandade ortodoxa, a escola gnóstica de Cerinto seguiu a lei Judaica, negando que o deus supremo tinha feito o mundo físico e negando a divindade de Jesus. Na interpretação de Cerinto, o espírito de “Cristo” veio a Jesus no momento do seu batismo, guiando-lhe em todo o seu ministério, mas abandonando-o momentos antes de sua crucificação.
Cerinto, assim como os ebionitas, usava apenas uma versão do evangelho de Mateus como escritura, rejeitando os demais escritos, principalmente os do apóstolo Paulo por o considerarem apóstata da lei. Esforçava-se e se sujeitava aos usos e costumes da lei judaica e à maneira de viver dos judeus. Venerava a cidade de Jerusalém como se fosse a casa de Deus.
Cerinto ensinou numa época em que a relação do Cristianismo com o Judaísmo estava se tornando irreconciliável. Para definir o criador do mundo como Demiurgo, combinou a filosofia grega com os ensinos sincréticos dos gnósticos. Sua descrição de Cristo como um espírito sem corpo que residido temporariamente no homem Jesus combina com o gnosticismo de Valentim.
A tradição Cristã antiga descreve Cerinto como um contemporâneo e oponente de João, o Evangelista, que escreveu o Evangelho segundo João contra ele. Tudo que nós sabemos sobre Cerinto vem da escrita de seus oponentes teológicos.

Maniqueísmo
Filosofia religiosa sincrética e dualística ensinada pelo profeta persa Mani (ou Manes), combinando elementos do Zoroastrismo, Cristianismo e Gnosticismo, condenado pelo governo do Império Romano, filósofos neoplatonistas e cristãos ortodoxos.
Filosofia dualística que divide o mundo entre Bem, ou Deus, e Mal, ou o Diabo. A matéria é intrinsecamente má, e o espírito, intrinsecamente bom. Com a popularização do termo, maniqueísta passou a ser um adjetivo para toda doutrina fundada nos dois princípios opostos do Bem e do Mal.
A igreja cristã de Mani era estruturada a partir dos diversos graus do desenvolvimento interior. Ele mesmo a encabeçava como apóstolo de Jesus Cristo. Junto a ele eram mantidos doze instrutores ou filhos da misericórdia. Seis filhos iluminados pelo sol do conhecimento assistiam cada um deles. Esses “epíscopos” (bispos) eram auxiliados por seis presbíteros ou filhos da inteligência. O quarto círculo compreendia inúmeros eleitos chamados de filhos e filhas da verdade ou dos mistérios. Sua tarefa era pregar, cantar, escrever e traduzir. O quinto círculo era formado pelos auditores ou filhos e filhas da compreensão. Para esse último grupo, as exigências eram menores.
Mais tarde, no Sul da França, os maniqueístas e o druidismo formariam as bases do Catarismo.

Menandritas
Menandro foi um patriarca gnóstico da corrente caldeu-síria, uma das figuras mais importantes do Gnosticismo. Como Simão Mago, era da mesma cidade de seu Mestre e transmitiu os ensinamentos Gnósticos e como também mágicos. A sua doutrina afirmava que a Gnose podia entender e controlar as forças da Natureza. O centro de suas atividades era a cidade de Antioquia. Menandro e seus discípulos afirmavam que havia uma entidade superior ao Demiurgo, o Inefável, na administração do mecanismo Universal. Foi o primeiro Gnóstico a separar as duas entidades.

Marcionismo
Fundado em 144 DC. em Roma por Marcião de Sinope (110-160), um religioso cristão do segundo século, e um dos primeiros a serem denunciados pelos cristãos como um herético.
O Marcionismo rejeita o Antigo Testamento. Alguns cristãos julgam mesmo que os marcionistas sejam Anti-Semitas. A palavra marcionismo é mesmo por vezes usada para referir as tendências anti-judaicas nas igrejas cristãs. Seus textos foram uma das bases que muitos e muitos séculos depois serviram de inspiração para a filosofia da Thulegesselshaft (ordem secreta por trás da filosofia nazista).
Mas Marcião tornou-se famoso em sua época, o que acabou tornando os judeus muito impopulares em Roma (anote isso no seu caderno: naquela época, os judeus eram muito impopulares em Roma! Isto ajudará a entender o porquê de Constantino deturpar tanto a história de Yeshua para se adaptar aos anseios de um povo que desejava um messias mais parecido com Apolo/Mithra do que com um “rei judeu”).

Saturninos
Saturnino de Antioquia: (séc. II DC) foi outro renomado teólogo, foi também um grande Cabalista e profundo conhecedor do Zend Avesta e do Gnosticismo. Seus ensinamentos eram tão conhecidos que até mesmo Papus confessou haver tomado muitas de suas fórmulas como base de estudos. Ele pregava a castidade e abstinência sexual como forma de religação com deus.

Setitas ou Setianitas
O Setianismo foi um grupo de antigos gnósticos, que datam sua existência antes do cristianismo . São assim chamados devido à sua veneração à Sete, que teria sido o escolhido de Deus para a promessa de se organizar uma sociedade humana perfeita . Apesar de ter uma origem judaica ,suas doutrinas tem uma forte influência do platonismo.
Tome cuidado para não confundir: em inglês, este culto é chamado de Sethianism. As vezes muitos confundem com Set, Deus egípcio, a sua veneração em inglês é chamada de Setianism.
Existe um trecho de um texto gnóstico descoberto em 1945 em Nag-Hammadi, no Egito, nomeada “A Revelação de Adão“, onde Adão é referido como pai de Seth e que passou todo o conhecimento secreto a ele: “Estas são as revelações que Adão desvelou ao seu filho Seth; e o seu filho ensinou a seus descendentes. Este é o conhecimento secreto que Adão entregou a Seth; é o santo de batismo daqueles que adquirem o conhecimento eterno…”

Lá pelo século III, havia cerca de 80 a 90 seitas cujos ensinamentos variavam por toda uma gama do Budismo ao Judaísmo ortodoxo, passando pelo Helenismo clássico, com todas as variações possíveis e imaginárias a respeito da divindade de Yeshua, da virgindade de Maria, de Reencarnação e Karma até o Olimpo e Hades (que mais tarde se transformarão no “Céu e Inferno” no catolicismo), sobre a traição ou não de Judas, sobre o culto à Madonna Negra, sobre o Sangue Real, sobre o sexo sagrado e sobre o uso de magia e teurgia, além de debates intermináveis sobre quais textos sagrados cada uma destas facções adotava como verdadeiros.

Na próxima semana: O Imperador Constantino botando ordem no galinheiro.

#ICAR

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/queima-ele-jesus-parte-i

A História do Deus Mitra

Este estudo buscará enfocar o tema Mitra em cinco partes: a) as origens antigas do Deus; b) o culto e a liturgia do mitraísmo; c) a derrota frente ao cristianismo; d) resquícios mitraícos e sua influência sobre a maçonaria e e) como seria um mundo moderno mitraíco à guisa de conclusão. Utilizamos, para este trabalho, enciclopédias e diversos textos da Internet, principalmente o texto de Jean-Louis dB no “La parole circule”.

I – As Origens Antigas do Deus Mitra.

Existe muita controvérsia sobre a etimologia de Mitra. Na Índia védica, Mitra significava ‘amigo’, no persa avéstico era traduzido como ‘contrato’. Esta última definição é a que prevalece nos nossos dias, sendo pois Mitra a personificação do contrato. Segundo os etimologistas, Mit(h)tra é composto de um sufixo instrumental – “tra” – que significa instrumento de trabalho e de um prefixo “mi” que é encontrado em todas as línguas indo-européias sob diferentes raízes. “Mei” pode significar ainda “lugar, encontro”. Em sânscrito “mitram” significa “amigo”. Mitra significando, pois, ‘contrato’ e ‘amigo’ não se opõem realmente, visto que não existe amizade sem um engajamento mútuo. Não se fala em ‘pacto de amizade’? Mitra se encontra sob diferentes ortografias: Mihr, Meher, Meitros, etc.

Os trabalhos clássicos de Mircea Eliade e principalmente os de Georges Dumézil sobre a Índia védica demonstram uma estrutura fundamental da sociedade e da ideologia das diferentes sociedades indo-européias. A sociedade é dividida em três classes: sacerdotes, guerreiros e agricultores que correspondem a uma ideologia religiosa trifuncional: a função da soberania mágica, da sacrificadora e da jurídica (Varuna-Mitra, Rômulo-Júpiter e Odin); a função dos deuses da força guerreira (Indra, o etrusco Lucumão-Marte e Thor) e, finalmente, a das divindades da fecundidade e da prosperidade econômica (os gêmeos Nâsatya ou os Asvins, Tatius [e os sabinos]-Quirino e Freyr).

Encontra-se o Deus Mitra no Panteão Védico da Índia desde 1380 a. C. Este Proto-Mitra estaria associado a Varuna e forma uma dualidade antitética e complementar. Mitra seria a face jurídico-sacerdotal, conciliadora, luminosa, próxima da terra e dos homens enquanto Varuna seria o aspecto mágico violento, terrível e tenebroso. Mitra torna-se, pois, a garantia do compromisso, a força deliberante, enquanto Varuna o respeito ao bom direito pela força atuante. A antítese Mitra-Varuna encontra-se também em Roma com a oposição dos dois primeiros reis: Rómulo (Varuna-Júpiter), semi-deus violento e Tatius (ou Numa-Mitra), ponderado e sábio, instituidor das questões sagradas e das leis, ligado igualmente aos deuses da fertilidade e do solo. Mitra é o Deus soberano sob seu aspecto racional, claro, regrado, calmo, benevolente, sacerdotal. Seu papel é secundário quando esta isolado de Varuna, mas compartilha com este todos os atributos da soberania. O Sol é seu olho, nada lhe escapa. A conclusão de um acordo se fará através de um sacrifício ao Deus Mitra, mas um sacrifício incruento, pelo menos no início, pois, mais tarde, terminará por aceitar sacrifícios sangrentos. Esta evolução é metaforizada pelo papel de Mitra na história dos Deuses, pois terminará por ser associado à morte do Deus Soma. Na origem, Mitra recusa-se a participar da morte ritual, sendo amigo de todos, pois prestará sua ajuda para, no final, ser um ator ativo na morte ritual.

O Mitra avéstico, encontrado na religião iraniana, é o Mitra mais conhecido e divulgado e precede o monoteísmo zoroastriano. A influência da antiga religião iraniana para a formação religiosa do Ocidente é bastante significativa: o tempo linear, a articulação dos diversos sistemas dualistas – sejam cósmicos, éticos ou religiosos -, o mito do Salvador; a elaboração de uma escatologia ‘otimista’ que proclama o triunfo do Bem sobre o Mal; a salvação universal; a doutrina da ressurreição dos corpos; certos mitos gnósticos; a mitologia dos Magos etc.

Na religião dos aquemênidas, a oposição entre Aúra-Masda (o Bem) e os daêvas (o Mal) sempre foi presente, já que na Índia védica aconteceu o contrário: no conflito entre os devas e os asura, aqueles foram vencedores, pois tornaram-se os verdadeiros deuses, ao triunfarem sobre as divindades mais arcaicas – os asura – que nos textos védicos são considerados figuras ‘demoníacas’. Processo similar, ainda que com sinal trocado, aconteceu no Irã: os antigos deuses, os daêvas, foram demonizados (ai, dos perdedores!). Eliade argumenta que “pode-se determinar em que sentido se efetuou essa transformação: foram sobretudo os deuses de função guerreira – Indra, Saurva, Vayu – que se tornaram daêvas. Nenhum dos deuses asura foi ‘demonizado’. Aquele que, no Irã, correspondia ao grande asura proto-indiano, Varuna, torna-se Aúra-Masda”.

Aqui, a antítese Varuna-Mitra é substituída pelo duo Mitra-Aúra sendo que a função continua a mesma. Mitra é um deus da luz, da aurora, guardião que socorre as criaturas, onisciente e vitorioso. Aúra, tornando-se progressivamente Aúra-Masda, transforma, também, a significação de Mitra, metamorfoseando-o paulatinamente num deus guerreiro. Mitra continua deus do contrato e do acordo e assegura uma ligação entre os diferentes níveis da sociedade da qual é garantidor da ordem, representada pelo gado e a fecundidade. Interessante notar que aquela trilogia de Dumézil – sacerdote, guerreiro e agricultor – começa a ser baralhada. Este Mitra avéstico, mais do que o védico, beneficiará os sacrifícios, notadamente os do Touro. Seu papel de deus guerreiro, contudo, crescerá à medida que Aúra-Masda fortifica e torna dominante o seu lugar no Panteão dos Deuses. Tal ‘evolução’ é lógica, pois como deus garantidor da ordem, sempre estará ao serviço do respeito da lei e do contrato para aqueles que o reverenciam. Com o tempo metamorfoseia-se num deus violento e cruel. É um deus solar com mil olhos e orelhas e, como vimos, um deus da fertilidade dos campos e dos rebanhos. Atua, como Hermes, no papel de psicopompo, ou seja, condutor das almas dos mortos, pois como senhor dos Céus conduz as almas até o Paraíso.

Mitra foi adorados por quase todos os soberanos persas: Ciro o reverenciava; sob Dario houve um breve eclipse, pois este, segundo alguns especialistas, era partidário de Zoroastro; e reaparece com Artaxerxes. Na cerimonial da realeza persa, o dia de Mitrakana era o único dia em que o rei persa tinha o direito de embriagar-se, numa clara analogia com a morte védica.

Mitra retorna ao primeiro plano como deus do sol, dos juramentos e dos contratos, sob a influência dos Magos. Estes foram uma classe de sacerdotes dos antigos medas com um papel sacrificial importante e que entre os gregos antigos gozavam de uma reputação de serem depositários de uma sabedoria esotérica. No Panteão dos Deuses avésticos, Mitra seria filho de Anihata ou Anahita, a gênia feminina do fogo, uma espécie de Virgem Imaculada, Mãe de Deus. É a única figura feminina associada a Mitra, pois este permanecerá celibatário por toda a vida, exigindo de seus admiradores a prática do controle de si, a renúncia e a resistência a toda forma de sensualidade. Vale salientar que o maior Mithraeum (templo) construído em Kangavar na Pérsia Ocidental era dedicado a esta deusa. Segundo reza o Mihr Yasht, o extenso hino em honra a Mitra da saga religiosa persa, a história de Mitra é a seguinte: após ter sido promovido ao panteão dos Grandes Deuses, Aúra-Masda mandou construir-lhe uma mansão no cimo do Monte Hara, ou seja, no mundo espiritual, além da abóbada celeste. Postou-se aí como o protetor de todas as criaturas e não era adorado como todos os outros deuses menores com preces rotineiras. Aúra Masda consagrou Haoma como sacerdote de Mitra que o adorava e lhe oferecia sacrifícios. Aúra Masda cria e prescreve o rito próprio ao culto de Mitra no paraíso. Mitra, assim, retorna à terra para o combate contra os daêvas sem, contudo, conseguir vencê-los. Somente quando Mitra se une a Aúra Masda o destino dos daêvas será selado. Mitra será, a partir daí, adorado como a luz que ilumina todo o mundo.

No tocante aos babilônios, estes incorporarão o Deus Mitra no seu Panteão e, em troca, introduzirão, na religião persa, seu culto solar, tendo a astrologia como um dos seus pontos mais fortes. Convém salientar que a cultura judaica sofrerá uma influência marcante do dualismo zoroastriano a partir do cativeiro em 597 a.C. No judaísmo primordial, Iavé era concebido como o único criador do Mundo e do Universo, ou seja a totalidade absoluta do real, contendo inclusive o mal. O dualismo Iavé – HaShatan advém de uma crise espiritual que se seguiu ao cativeiro babilônico, personificando aspectos negativos da vida, sob a forma de Satã, que se tornará progressivamente também eterno. Satã seria, então, o fruto de uma cissão da imagem arcaica de Iavé combinado com as doutrinas dualistas iranianas. Esta tradição impactará fortemente o cristianismo nascente.

O Mitra irano-helenístico tem a sua gênese com as conquistas de Alexandre e a queda do império persa durante o ano de 330 a. C., pois Alexandre e 10.000 de seus soldados macedônios se casam com mulheres persas e mais, dentro do ritual persa. Sabe-se que alguns destes macedônios e seus filhos, iniciados pelas mães persas, introduziram o culto de Mitra na Macedônia e na Grécia. É deveras conhecido que a adoração deste Deus Mitra, advindo do inimigo persa, nunca obteve uma grande popularidade na Grécia, apesar de continuar a manter a influência junto à aristocracia meda e iraniana. Tanto assim que o nome Mitrídate (dado a Mitra) é encontrado em diversos reis partos, do Bósforo e do Ponto Euxino. A arqueologia tem descoberto diversos templos – Mitreas – na Armênia. Apesar da pouca influência junto ao povo grego, a religião iraniana entrou num vasto movimento sincrético junto à cultura helênica. Mitra era adorado em todo o império de Alexandre e os Magos continuavam a ser os sacerdotes sacrificadores. O culto repousava sobre uma cronologia escatológica de 7.000 anos, cada milênio sendo governado por um planeta. Daí advém a série dos 7 planetas, dos 7 metais, das 7 cores etc. Durante os 6 primeiros milênios, Deus e o Espírito do Mal combatem pela supremacia e, quando o Mal parecia vitorioso, Deus enviou o Deus solar Mitra (Apolo, Hélio) que domina o sétimo milênio. No fim deste período setenal, a potência dos planetas cessa e um incêndio universal recobre o mundo.

Curioso nesta época é a biografia do rei Mitrídate VI Eupator, rei do Ponto, anterior ao nascimento de Cristo. Seu nascimento foi anunciado por um cometa, um raio caiu sobre o recém-nascido, deixando-lhe uma cicatriz. A educação deste rei é uma longa série de provas iniciáticas. É visto durante sua coroação como uma encarnação de Mitra. A biografia real é muito próxima do Natal cristão. Ele será o último rei de uma longa lista de grandes reis Mitridates. Conquistou quase toda a Ásia Menor por volta de 88 a. C., mas foi derrotado pelos romanos em 66. Provavelmente aliou-se aos piratas Cilicianos dos quais falaremos a seguir. Foi, também, o primeiro monarca a praticar a imunização contra os venenos, a qual, segundo o Aurélio, se adquire por meio da repetida absorção de pequenas doses deles, gradualmente aumentadas, daí o nome mitridatismo.

A grande popularidade e o apelo do mitraísmo como uma forma refinada e final do paganismo pré-cristão foi discutida pelo historiador grego Heródoto, pelo biógrafo, também grego, Plutarco, pelo filósofo neoplatônico Porfírio, pelo herético gnóstico Orígenes e por São Jerônimo, um dos pais da Igreja.

O contato com o mundo helênico desenvolvia-se essencialmente a partir de Comageno na Ásia Menor. Daí surgem os primeiros testemunhos sobre Mitra, como um Deus dos Mistérios no primeiro século a. C., curiosamente, no seio dos piratas Cilicianos em luta contra os romanos. É dentro deste contexto de resistência e luta que Mitra pode tornar-se um Deus iniciático. Plutarco diz que celebravam em segredo ‘os mistérios de Mitra’. Sua capital era Tarso, onde nasceu S. Paulo, e Perseu era o seu Deus fundador. O símbolo da cidade era o combate do Leão com o Touro. Paralelamente a isto, os Magos medas se fixaram na Ásia Menor e na Mesopotâmia, infiltrando-se cultural e religiosamente no mundo helênico, principalmente, como vimos, na aristocracia. Cita-se que o rei Tiridate quando veio a Roma para ser coroado rei da Armênia por Nero, dirigiu-se ao imperador chamando-o por Mitra (Deus Sol).

O Mitra romano faz sua ‘rentrée’ no Império através dos Mistérios. O termo “mistério” possui um sentido muito preciso. Os mistérios gregos, e depois romanos, foram numerosos: Dionísio, Elêusis, Cibele, Átis e Deméter. Podem ser ainda citados os de Ísis, Sarápis, Sabázios, Júpiter Doliqueno etc. Uma certa bruma enigmática envolvia todos estas cerimônias dos mistérios, mas o comum entre eles, era o aspecto ‘solar’, apesar de todos esconderem sua identidade essencial. Desnecessário dizer que, por serem os mistérios, secretos e ocultos, poucos documentos escritos chegaram até nossos dias. O pouco que se sabe sobre eles advém da patrística cristã que, na ânsia de combater o mitraísmo, terminou por nos legar uma série de descrições sobre o mesmo. Alguns autores gauleses chegam a afirmar que assim como a maçonaria foi a religião clandestina da IIIª República Francesa, o mitraísmo sustentava subterraneamente a ideologia da Roma Imperial.

A inoculação do veneno mitraíco no seio do Império, segundo Plutarco (Vita Pompeu), foi o transplante, feito por Pompeu em 67 a. C., de 20.000 prisioneiros Cilicianos (uma província na costa sul oriental da Ásia Menor) que praticavam os “ritos secretos” de Mitra. Daí, a epidemia mitraíca se alastrou por todo o mundo romano, reforçada ainda pelos múltiplos contatos das tropas de ocupação romana com as outras culturas mitraícas, tendo atingido o seu zênite no século III, quando começou a travar uma luta de vida e morte com o cristianismo. Tanto assim que do século II ao IV da nossa era, os Mithrae (ou Mithraeum no singular) – templos dedicados ao culto do deus – chegaram a ser mais de 40 em Roma. Um dos maiores templos construídos podem ser encontrados hoje nos subterrâneos da Igreja de São Clemente, perto do Coliseu. Esta adoração não se restringia somente à capital do Império, mas principalmente às cidades portuárias da atual Itália: Óstia, Antium, no mar Tirreno; Aquiléia, no Adriático, Siracusa, Catânia, Palermo etc. Paralelamente, a propagação se dá na Áustria, na Germânia, nas províncias danubianas, na Polônia, na Hungria e Ucrânia e num movimento de volta, nas províncias da Trácia e da Dalmácia, num retorno à Grécia e a Macedônia. No terceiro século, encontram-se traços mitraícos na Criméia, no Eufrates, no Egito e sobretudo no Maghreb. Curioso é que a Espanha e Portugal sofreram pouquíssima influência. A Gália oriental, renana e belga, pagou o seu tributo, assim como também a Aquitânia. Encontram-se vestígios na região parisiense, como também em Boulogne sur Mer. Na Inglaterra, a concentração se dá em Londres e na região norte, ao longo do muro de Adriano, até Canterbury. Locais de adoração mitraíca foram encontrados também, na Bretanha, na Romênia, na Alemanha, na Bulgária, na Turquia, na Pérsia, na Armênia, na Síria, em Israel etc. No final do século III, Mitra era adorado da Escócia à Índia, chegando até a oeste da China, onde era conhecido como Amigo, nome que indica uma filiação védica.

Mitra passa a ser representado como um general militar. É o Amigo do homem durante a sua vida e seu protetor contra o mal após a sua morte. Mitra não é só propagado pelos militares romanos como também pelos funcionários, comerciantes, artistas, meio jurídico e financeiro e, principalmente nos círculos do conhecimento. Ao contrário da Grécia, penetra nos meios mais modestos e populares. Por mais de trezentos anos, os romanos adorarão Mitra.

Em meados do segundo século, seu culto atinge a cúpula militar. Os neófitos começaram a congregar-se sob os Flávios, espalhando-se o culto na época dos Antoninos e Severos. Os próprios Imperadores se fizeram iniciar nos mistérios, havendo suspeitas de que Nero tenha sido um deles. Contudo, é Cômodo (185-192) que parece ter sido o primeiro a se converter ao culto, seguido por Sétimo Severo. Caracala (211-217) encoraja o culto do Deus solar sob a forma de Sol invictus. O culto foi reintroduzido por Aureliano (270-275). O apoio oficial virá, entretanto, no reinado de Diocleciano em 307. Apesar destas emanações, não parece que Mitra tenha recebido uma preponderância imperial na corte dos Césares pagãos. Deve-se notar, ainda, que do mesmo modo que o cristianismo, sua influência não foi estendida ao meio rural. Alguns autores sugerem que isto se deveu à exclusão das mulheres nas funções litúrgicas.

II – Representações Litúrgicas e Ritualísticas do Deus Mitra

Mitra é um Deus de forma humana. É representado sob a forma de um jovem montado num touro e, com uma das mãos, empunha uma adaga para o degolar. Alguns afrescos, encontrados na parte mais central do Mithraeum (templo subterrâneo de adoração), representam Mitra com a cabeça voltada para o alto ou para o lado, significando desgosto com o que está fazendo. Sincreticamente, encontram-se ainda imagens de Teseu matando o Minotauro ou Perseu chacinando a Górgona ou, ainda, Hércules esfolando o Touro. Mitra está vestido em trajes orientais e muitas vezes circundado por dois meninos ou pastores que podem simbolizar o levante e o ocaso, o Outono ou a Primavera, as marés – montante e vazante – e ainda, a vida e a morte. A cena possivelmente se passa numa gruta. Um corvo, mensageiro do sol, está quase sempre na borda do rochedo. Vê-se ainda um cão se aproximando para beber o sangue da vítima, uma serpente enroscada dentro de uma pequena cratera e ao redor de um recipiente, um leão ameaçador, espigas de trigo sobre o rabo do touro e um escorpião que pica os testículos do animal morto.

A figura do touro tem sido exaltada através do mundo antigo pela sua força e vigor. Os mitos gregos falavam sobre o Minotauro, um monstro metade-homem metade-touro que vivia no Labirinto nos subterrâneos da ilha de Creta e que exigia um sacrifício anual de seis mancebos e seis donzelas antes de ter sido morto por Teseu. Peças de arte minóica representavam ágeis acrobatas saltando bravamente sobre o dorso de touros. O altar, em frente ao Templo de Salomão em Jerusalém, era adornado com chifres de touros que acreditavam ser portadores de poderes mágicos. O touro era também um dos quatro tetramorfos, ou seja um dos símbolos animais associados com os quatro evangelhos. A mística deste poderoso animal ainda sobrevive atualmente nas touradas da Espanha e do México, no rodeio dos ‘cowboys’ dos EEUU e agora, também, no Brasil.

Os estudos clássicos do belga Franz Cumont (1913) que provaram ser os mistérios mitraícos derivados das antigas religiões iranianas explica parcialmente como a cena da morte do Touro – conhecida como tauroctonia – inexiste na mitologia iraniana com a figura de Mitra. Cumont responde que teria encontrado textos que apresentavam o matador do touro como Ahriman, ou seja a força cósmica do mal na religião iraniana.

Somente a partir do Primeiro Congresso Internacional de Estudos Mitraícos (1971) levantaram-se novas hipóteses para explicar esta incongruência. A iconografia tauroctônica seria, na verdade, um mapa astronômico! Tais hipóteses, segundo os estudos de David Ulansey, baseiam-se em dois fatos: i) cada figura, na tauroctonia padrão, teria um paralelo com um grupo de constelações ao longo de uma faixa contínua no céu: o boi tem um paralelo com a constelação do Touro, o cachorro com o Cão Menor, a serpente com a Hidra, o corvo com o Corvus e o escorpião com Scorpio; ii) a iconografia mitraíca, em geral, é permeada por imagens astronômicas explícitas: o zodíaco, os planetas, o sol, a lua e as estrelas são permanentemente encontrados na arte mitraíca.

A pesquisa de Ulansey sobre cosmologia antiga, principalmente a astronomia greco-romana, focaliza o seu caráter “geocêntrico” no tempo dos mistérios mitraícos, no qual a terra era fixa e imóvel no centro do universo e tudo girava à sua volta. Nesta cosmologia, o universo era imaginado como estando contido numa grande esfera no qual as estrelas eram fixadas em várias constelações. Hoje sabemos que a terra tem um movimento de rotação sobre o seu eixo cada dia, mas na antigüidade acreditava-se que, uma vez por dia a grande esfera das estrelas fazia a sua rotação sobre a terra, oscilando num eixo que corria da abóboda do polo norte para o do sul. No seu giro, a esfera cósmica carregava o sol, explicando assim a oscilação do mesmo sobre a terra.

Além deste movimento, os antigos atribuíam um segundo movimento mais vagaroso. Enquanto hoje sabemos que a terra gira ao redor do sol durante o ano, na antigüidade acreditava-se que, durante o ano, o sol – que estava bem mais próximo do que as outras estrelas – viajava sobre a terra, traçando um grande círculo no céu tendo como fundo as outras constelações. Este círculo, traçado pelo sol durante o ano, era conhecido como o zodíaco, uma palavra significando ‘figuras vivas’, pois o sol passeava, durante o ano, sobre doze diferentes constelações que representavam diversas figuras de animais e formas humanas. Visto que os antigos acreditavam na existência real de uma grande esfera de estrelas, suas várias partes – tais como os eixos e os pólos – jogavam um papel crucial na cosmologia de seu tempo. Particularmente, um importante atributo da esfera das estrelas era muito mais bem conhecido do que hoje: o equador, denominado na época de equador celeste. Assim como o equador terrestre é definido como um círculo ao redor da terra eqüidistante dos pólos, também o equador celeste era entendido como um círculo ao redor da esfera das estrelas eqüidistante dos pólos desta mesma esfera. O círculo do equador celeste era visto como tendo uma importância especial por causa dos dois pontos em que ele cruzava com o círculo do zodíaco: estes dois pontos eram os equinócios, ou seja, o local onde o sol, no seu movimento através do zodíaco, cortava-o no primeiro dia da primavera e no primeiro dia do outono. Assim, o equador celeste era responsável pela definição das estações e, por esta razão, tinha uma significação concretíssima ao lado seu significado astronômico mais abstrato.

Um outro fato sobre este equador celeste é decisivo: como não estava fixo, possuía um movimento lento alcunhado de “precessão dos equinócios”. Este movimento, sabemos hoje, é causado por uma oscilação na rotação da terra sobre seu eixo. Como resultante desta leve oscilação, o equador celeste parece mudar sua posição no curso de milhares de anos. Este movimento é conhecido como a precessão dos equinócios por que o seu efeito observável mais facilmente é uma mudança na posição dos equinócios ou seja, os locais onde, como vimos acima, o equador celeste cruza o zodíaco. Desta maneira, esta precessão resulta num movimento vagaroso para trás ao longo do zodíaco, passando sobre uma constelação do zodíaco a cada 2.160 anos e percorrendo todo o zodíaco a cada 25.920 anos. Hoje, por exemplo, o equinócio da primavera está no final da constelação de Peixes, mas, em algumas dezenas de anos, estará entrando em Aquário – já se fala muito, atualmente, na Era de Aquário. A grosso modo, o equinócio da primavera estava em Touro entre 4.000 a 2.000 a.C. mais ou menos; em Áries de 2000 a.C. até o nascimento de Cristo, ou seja nos tempos greco-romanos; a Era de Peixes – o cristianismo –, da gênese do mesmo até a nossa mudança de milênio e de 2000 e poucos em diante, a tão decantada Era de Aquário.

Ulansey descobriu que, neste fenômeno da precessão dos equinócios, estaria a chave para desvendar o segredo do simbolismo astronômico da tauroctonia mitraíca. Para as constelações desenhadas nas tauroctonias mais comuns havia uma coisa constante: todos eles estavam posicionados no equador celeste como na época imediatamente precedente à Era de Áries dos tempos greco-romanos. Durante esta idade anterior, que podemos chamar de Era de Touro (como vimos durou mais ou menos de 4.000 a 2.000 a.C.), no equador celeste da época estavam Taurus (Touro, o equinócio da primavera), Canis Minor (o Cão), Hydra (a serpente), Corvus (o Corvo) e Scorpio (o Escorpião que estava no extremo oposto do Touro, ou seja, o equinócio do Outono). A coincidência é impressionante, todos estas constelações estão representadas nas tauroctonias.

Em muitas ilustrações tauroctônicas, a cabeça de Mitra é nimbada de estrelas. Assim, a morte do Touro representaria, no zodíaco, o fim da Era de Touro e o começo da Era de Aries no equinócio da primavera e Mitra, o deus Todo-Poderoso, que poderia reger e mudar todo o sistema cósmico. Nos escritos do filósofo neoplatônico Porfírio, encontra-se a alusão de que a caverna, onde se posiciona o Mithraeum e está desenhada a tauroctonia, na sua parte mais recôndita, seria, na verdade, uma ‘imagem do cosmos’.

Como curiosidade, Freud e Jung tiveram uma divergência básica sobre a interpretação psicanalítica do morte do touro, sendo um dos pontos básicos de divergência e conflito entre ambos, resultando, posteriormente, em separação definitiva.

Mitra, Deus solar, também é representado com a cabeça de um Leão quando é saudado com o título de Sol invictus. São os afrescos, encontrados em Mênfis, com as coxas peludas, patas de caprino e a cabeça radiada. Mitra Leoncéfalo, portando as chaves, é outra imagem lapidar, pois fora das cenas tauroctônicas, ele é representado em momentos de refeição ou de iniciação.

No tocante ao culto e à liturgia, estes se faziam no interior do Mithraeum e na presença dos fiéis. A liturgia constava de ofícios e orações; manducação de pão e sumpção de água e vinho, acompanhadas de fórmulas sagradas; danças de luzes e fórmulas de êxtase; orações ao nascer do Sol, ao meio-dia e ao ocaso. As festas realizavam-se no sétimo mês do ano, mas todos os meses se festejava uma semana inteira, sendo cada dia destinado a um planeta. Comemorava-se, de modo especial, o dia natalício do deus (Natalis Invicti), a 25 de dezembro. Os ofícios dos templos faziam-se à luz de velas, com toques de sinos e com hinos, cujo teor não se conhece, porque se perderam.

O Mithreum típico era uma pequena câmara retangular subterrânea (25x10m) com um teto arqueado. Um corredor dividia o templo ao meio, com bancos de pedra dos dois lados de 80 cm de altura no qual os membros do culto podiam descansar durante suas reuniões. Um mithraeum podia comportar de 20 a 30 pessoas. No fundo do templo, no final do corredor, havia sempre uma representação – normalmente um relevo entalhado e algumas vezes uma escultura ou pintura – do ícone central do mitraísmo: a tauroctonia ou a cena da morte do touro, conforme descrito acima. Outras partes do templo eram decoradas com várias cenas e figuras. Deveria ser implantado perto de uma fonte ou curso d’água ou, na falta destes, de um poço. Havia centenas, talvez milhares, de templos mitraícos no Império Romano.

Os adeptos de Mitra não se contentavam com um misticismo contemplativo. O seu culto encorajava a ação e um grande rigor moral. Para os soldados, a resistência ao mal e às ações imorais representavam uma vitória tão importante quanto as militares.

Reuniam-se, em pequenos grupos, unidos e solidários pelo ritual iniciático. Partilhavam o banquete sacramental com os deuses e finalizavam com uma aliança entre o sol e Mitra. O repasto, sobre os despojos de um touro, era seguido de um sacrifício, muitas vezes de um touro, ou de animais simbolizando o touro: cabras, javalis e/ou galináceos.

Consagrava-se o pão e a água, bebia-se o vinho que simbolizava o sangue do touro e comia-se a carne. O processo da iniciação mitraíca requeria a subida simbólica de uma escada cerimonial com sete degraus, cada um feito de um metal diferente para simbolizar os sete corpos celestiais. Simbolicamente galgando esta escada cerimonial através de sucessivas iniciações, o neófito podia atravessar os sete níveis do céu. Os sete graus do mitraísmo eram: Corax (Corvo), Nymphus ( Noivo), Miles (Soldado), Leo (Leão), Peres (Persa), Heliodromus (Corrida do Sol) e Pater (Pai); cada grau era protegido por um planeta (na cosmologia da época): Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter, a Lua, o Sol e Saturno. Cada dignitário apresentava a vestimenta e a máscara correspondente ao seu grau. Como todo rito mitraíco a estrutura hierárquica era setenária. Os adeptos tinham a sua divisão de papéis: o chefe (pater), o papel de Mitra, o heliodromo (sol), o corvo apresentavam as carnes e as bebidas aos convivas dentro de uma ordem hierárquica. A carne era assada sobre os altares dentro da concepção do sacrifício do mundo greco-romano.

Os rituais iniciáticos constavam da admissão dos fiéis por “inductio”. Antes de serem admitidos, os candidatos eram interrogados, sondados, informados num local distinto do templo. Em seguida, eram submetidos a uma série de provas, nus e com os olhos vendados, marchavam às apalpadelas diante de um mistagogo para finalizar se ajoelhando diante de um personagem que portava uma tocha diante de seus olhos. A seguir, com as mãos atadas às costas, colocavam um joelho no chão ao mesmo tempo que um sacerdote cingia-lhes a cabeça com uma coroa. No final, prostravam-se como mortos. Tudo isto faz parte da tipologia iniciática das sociedades secretas em geral: olhos vendados, resistência física, morte simbólica, etc.

Reprova-se, nos adeptos de Mitra, a propensão aos sacrifícios humanos. Tal suposição advém de se ter encontrado, nos diversos Mithrae, restos de esqueletos humanos.

Apesar de todos os estudos antigos e modernos, conhece-se mal a “teodicéia” mitraíca. Sabe-se, contudo, que os “mistérios” da Antigüidade revelam um mito ou uma história santa que legitima a liturgia. É uma certa explicação do Mundo e da passagem do homem sobre o mesmo que dá toda a força aos “mistérios”, sejam eles de Mitra, de Elêusis, em suma de quase todos. A religião de Mitra se independentizou de suas origens orientais, agindo como um imã que atraiu diversos aportes: gregos, babilônicos, romanos etc. Finalizou como um Deus adaptado ao Império Romano, explicando assim o seu sucesso. Uma das grandes ironias da história é o fato de que os romanos terminaram por adorar um deus de um de seus maiores inimigos políticos: os persas. O historiador romano Quintius Rufus assinala no seu livro História de Alexandre que antes de ir batalhar contra os “países anti-mitraícos” de Roma, os soldados persas oravam a Mitra pela vitória. Sem embargo, tendo as duas civilizações inimigas estado em contato de conflito aberto ou latente por mais de mil anos, os adoradores de Mitra migraram dos persas, através do frígios da Turquia, até os romanos.

Numa análise simbólica final, o culto de Mitra revela uma história do Mundo. Saturno (ou Cronos, representando o Tempo) reinava soberano sobre o Mundo, quando entregou a Júpiter o raio, uma arma letal que serviu para derrotar os gigantes e gênios do mal. Alguns autores hipotetizam que este gênio do mal poderia ser o Oceano que cobria a Terra.

Mitra, Deus petrógeno, não descende aqui do Céu, pois surge miraculosamente de uma rocha com um barrete asiático, tendo em uma das mãos uma tocha luminosa e na outra, a adaga. Pastores assistem e ajudam este nascimento. Mitra, em seguida, é encontrado junto de uma árvore ceifando o trigo. Depois é visto atirando com um arco sobre uma parede rochosa onde jorra uma fonte que sacia os pastores. Alguns autores concluem que as forças do mal (Oceano?) tentaram aniquilar os humanos pela fome e pela sede e que Mitra, salvador dos homens e Deus protetor, interveio para os alimentar e saciar sua sede, não só dos homens como dos rebanhos. Nota-se, também, que o papel “justiceiro” das tradições asiáticas não desapareceu, pois Mitra vem em socorro do Mundo para fazer respeitar a Lei Divina.

Começa, agora, a perseguição ao Touro. O touro está em conjunção com a lua, seus dois chifres formam o crescente. O touro contem os elementos vivos (o esperma do touro purificado pelo raio da lua produzirá os espécimens animais). Mitra tem a missão de subtrair estas forças vivas das tentações maléficas. O touro se refugia numa construção mas dois pastores ateiam fogo ao local. Mitra alcança o animal, agarra os seus cornos e consegue cavalgá-lo. Depois, prende as patas traseiras do animal, arrasta-o até a gruta onde um corvo, mensageiro do Sol, impõe-lhe a tarefa de matar o animal insubmisso. A morte do touro atrai uma serpente e um cachorro que se apressam em sugar o sangue que jorra da ferida enquanto um escorpião (algumas vezes um caranguejo ou um ‘câncer’) fisga os testículos da vítima para aspirar sua força vivificante.

Cumont afirma que espigas de trigo saem da ferida, juntamente com o sangue que escorre da calda do touro. Do corpo da vítima moribunda nascem as ervas e as plantas salutares… De sua medula espinal germina o trigo que dá o pão, de seu sangue, a vinha que produz a beberagem sagrada dos mistérios.

É após a morte do touro que um conflito se abate entre Hélio e Mitra. O Sol, ajoelhado diante da tauroctonia, perde sua prerrogativa de astro soberano. Mitra torna-se o verdadeiro Sol Invictus que vem salvar a criação. O Sol reconhece a preeminência de Mitra pois se faz iniciar no grau de Soldado (Miles).

III – O Cristianismo Triunfante

O fim do mitraísmo coincide com o seu zênite no século III d.C. e vem acompanhado da entronização do cristianismo como religião do Império Romano. Como vimos, o mitraísmo sofria o passivo de praticar uma liturgia elitista em pequenas sociedades secretas na qual as mulheres eram excluídas. Não se propunha ser uma reli-gião de massa, aberto a todos, como o cristianismo. Era uma religião otimista e Mitra teve o grande defeito de não ter morrido para salvar o mundo.

Como os persas eram inimigos hereditários do Império Romano, os cristãos fizeram de tudo para ligar o mitraísmo a uma religião “inimiga”, persa por excelência, pois os romanos não deveriam adorar um deus importado do adversário. Apesar de tudo parece que Constantino manifestou uma certa simpatia pelo mitraísmo, principalmente na sua versão de “Sol invictus”. Quando este primeiro imperador cristão colocou todas as religiões pagãs na clandestinidade, poupou os mitraístas pois estes possuíam muita influência junto aos militares que eram o cimento do Império. O ‘punctus saliens’ no qual os cristãos atacavam os mitraístas era a sua propensão aos sacrifício animais. Quando estes sacrifícios foram interditados, bloqueou-se um dos fundamentos vitais do culto mitraíco.

O combate mortal entre o cristianismo e o Mitra pagão pode ser lido nos escritos de Tertuliano (160-220 d.C.) ao afirmar que esta religião utilizava indevidamente o batismo e a consagração do pão e do vinho. Dizia, ainda, que o mitraísmo era inspirado pelo diabo que desejava zombar sobre os sacramentos cristãos com o intuito de levá-los para o inferno. Não obstante, o mitraísmo sobreviveu até o século Vº em remotas regiões dos Alpes entre as tribos dos Anauni e conseguiu sobreviver no Oriente Próximo até os dias de hoje.

No curto reinado do imperador Juliano, sobrinho de Constantino, Gibbon afirma que se assistiu a um retorno temporário ao mitraísmo, tendo este Imperador se reconhecido até mesmo como adepto e chegando a construir um Mithraeum nos calabouços de seu palácio em Constantinopla. Seguiu-se um período de tolerância quando, sob o reinado de Teodósio (375-395), o cristianismo tornou-se religião de Estado e o paganismo foi definitivamente interditado. O mitraísmo sobreviveu em Roma até 394 sendo que a Basílica de São Pedro foi construída sobre o local do último culto mitraíco: o Phrygianum. A partir daí, o cristianismo construiu, boa parte de seus templos, acima de cavernas que continham Mithrae, seja em Roma seja nas províncias do Império. A catedral de Canterbury e a de São Paulo em Londres, o mosteiro do Monte Saint-Michel e algumas catedrais em Paris estão construídas sobre antigos Mithrae em ruínas.

Os pontos comuns entre o cristianismo e o mitraísmo são inúmeros. O nascimento de Cristo é anunciado por uma estrela assim como o de Mitridate Eupator. Ambos são nascidos de uma Virgem Imaculada que toma o nome de Mãe de Deus. A caverna, a gruta são os locais de nascimentos tanto de Cristo quanto de Mitra. A presença de pastores e de seu rebanho também estão presentes em ambos os nascimentos. A gruta de Belém é prenhe de luz e Mitra é um deus solar. Além do mais, o ouro, símbolo do Sol, tem uma importância crucial na liturgia cristã. Deus é Amor mas também Luz. O nascimento dos dois deuses foi a 25 de dezembro, solstício de Verão no Hemisfério Norte. Sabe-se que Cristo não teria nascido no dia 25 e que, somente com o fim do mitraísmo, a Igreja Cristã, “cristianizou” o dia como a festa do Natal. Tanto Cristo como Mitra eram castos e celibatários. Todas as duas religiões são fundadas sobre um sacrifício salvador do Mundo, mas com a morte de Cristo, o cristianismo tira a sua vantagem e sua superioridade. A morte do Touro encontra um símile na luta de São Jorge com o dragão. A vontade de neutralizar as potências do mal, a guerra entre as duas potências e a vitória do Bem. A consagração do pão e do vinho estão presentes entre os cristãos e os iniciados de Mitra. No grau de Soldado (Miles), o iniciado é marcado com uma cruz de ferro em brasa sobre a fronte. A imortalidade da alma e a ressurreição final. As igrejas antigas possuem criptas subterrâneas que evocam os templos mitraícos. A fraternidade e o espírito democrático das primeiras comunidades cristãs se assemelham muito ao mitraísmo. A fonte jorrando da rocha, a utilização de sinos, os livros e as velas, a água santa e a comunhão, a santificação do Domingo (fora da tradição judaica do Sábado), a insistência numa conduta moral, o sacrifício ritual, a angeologia, a teologia da luz, dualidade deus-diabo, o fim do mundo e o apocalipse são também comuns em ambas as religiões.

Outro símile interessante seria entre Mitra e Papai Noel. Vestimentas vermelhas e barrete frígio são comuns a ambos como também as velas incrustadas em árvores (de Natal) nas cerimônias natalinas.

IV – Sobrevivência Mitraíca e sua Influência na Maçonaria

Encontram-se traços mitraícos nas diversas gnoses e principalmente nas heresias dualistas cristãs. O esoterismo do gnosticismo cristão foi muito influenciado pelas religiões egípcias e iranianas. Os segredos, revelados aos “Perfeitos”, referiam-se aos mistérios da ascensão e descida de Cristo através dos Sete Céus habitados pelos anjos. Autores modernos chegam a afirmar que o gnosticismo é um fenômeno pré-cristão de origem iraniana que poluiu o cristianismo nascente. A influência dos cultos iranianos e especificamente mitraícos sobre a gnose de Mani são insofismáveis. Desde o século III d. C., o segredo mitraíco força as portas da barca de São Pedro. A pressão deste dualismo maniqueísta percorre toda a Idade Média. O bogomilismo da Europa Oriental inicia a sua trajetória a partir do século X colocando Satã no lugar de Deus, infligindo um poder considerável sobre as heresias Cátaras e Albigenses no alvorecer do século XII na Europa Ocidental. Estas heresias gnósticas cristãs professavam a asserção de que Deus não teria criado o Mundo, estando este sob o domínio de Satã – assimilado ao demiurgo Yahvista. O verdadeiro Deus estaria tão distante da Terra onde se dão estes embates entre o Bem e o Mal. Apesar disto teria enviado Cristo para salvar os homens ao mostrar-lhes o método da libertação.

Outra difusão de um mitraísmo mitigado estaria entre os Cavaleiros do Templo, pois estes sofreram a influência dos maniqueus. No culto a Baphomet, também conhecido como o filho de Mitra, havia um ícone representado por um Touro ornado com uma chama entre seus cornos…

O culto de Mitra enquanto sociedade iniciática tem certas semelhanças com a maçonaria propriamente dita. A fraternidade entre os membros, a exigência de uma conduta moral, a vontade de defender, de maneira ativa e não contemplativa, o bem e a virtude são, ao mesmo tempo, padrões maçônicos e mitraícos. A defesa da ordem política e social, o culto exclusivamente masculino são também pontos comuns. Ritualisticamente encontram-se os seguintes traços: a mania pelo número 7, a existência de graus iniciáticos, as velas, os altares, a Luz, as palavras de passe, etc. O templo maçônico pode ser visto como uma gruta mitraíca ou se não se quiser ir muito longe o símile poderá ser feito com a câmara de reflexões; o teto estrelado do templo tem profunda semelhança com os mitraícos. Os templários, a tradição judaica e cristã foram os grandes transmissores de símbolos mitraícos. Os dois São Joães – de Inverno e de Verão – tem profunda vinculação com os dois pastores da tauroctonia. O sacrifício ritual fundador de Hiram está muito próximo do sacrifício ritual do Touro. O corvo no acampamento militar, encontrado nos altos graus do escocesismo, é uma prova cabal da influência mitraíca.

Outro símile estaria no mais baixo grau de iniciação – o grau de Corvo (Corax) – simbolizava a morte do novo membro, o qual deveria renascer como um novo homem. Isto representava a fim de sua vida como um não-crente (ou descrente) e cancelava pretéritas alianças de outras crenças inaceitáveis. Curioso salientar que o título de Corax (Corvo) originou-se com o costume zoroástrico de expor os mortos em elevações funerárias para ser comido pelas aves de rapina. Este costume continua, até os dias de hoje, sendo praticado pelos Parsis da Índia, descendentes dos persas seguidores de Zaratustra.

O simbolismo sexual, encontrado em diversos rituais maçônicos, poder ter um paralelo com o touro, pois este era uma óbvia representação da masculinidade pela natureza de seu tamanho, de sua força e de seu vigor sexual. Ao mesmo tempo, o touro simbolizava as forças lunares em virtude de seus cornos e as forças telúricas em virtude de ter as quatro patas assentadas no solo. O sacrifício do touro simboliza a penetração do princípio feminino pelo masculino, a vitória da natureza espiritual sobre a animalidade, tendo um paralelo com as imagens simbólicas de Marduk destruindo Tiamat, Gilgamesh aniquilando Huwawa (grafia de Eliade), São Miguel dominando Satã, São Jorge vencendo o dragão, o Centurião lancetando Cristo e, por que não nos referirmos a um ícone moderno: Sigourney Weaver lutando contra o Alien?

Finalmente, o mitraísmo era, concomitantemente, um culto dos mistérios e uma sociedade secreta. Tal como os ritos de Deméter, Orfeu e Dionísio, os rituais mitraícos admitiam candidatos em cerimônias secretas cujo significado era do conhecimento somente do iniciando. Como todos os outros ritos de iniciação institucionalizados do passado e do presente, este culto dos mistérios permitia aos iniciados ser controlado e posto sob o comando de seus líderes. Ao ser iniciado, o neófito tinha que provar sua coragem e devoção nadando através de rio caudaloso, escalando um rochedo íngreme ou pulando através das chamas com suas mãos atadas e os olhos vendados. Ao iniciado era também ensinado o segredo das palavras de passe mitraícas que eram usadas para identificação mútua como também era auto-repetida freqüentemente como um mantra pessoal.

V – Como seria um Mundo Mitraíco à Guisa de Conclusão

O legado mitraíco resulta em comportamentos usados ainda hoje em dia, tal como o apertar as mãos e o uso da coroa pelo monarca. Os adoradores de Mitra foram os primeiros no Ocidente a pregar a doutrina do direito divino dos reis. Foi a adoração do sol, combinada com o dualismo teológico de Zaratrusta, que disseminou as idéias sobre as quais o Rei-Sol Luis XIV (1638-1715) na França e outros soberanos deificados na Europa mantiveram o seu absolutismo monárquico.

Alguns estudiosos afirmam que, durante o IIº e o IIIº século d.C., nunca a Europa esteve tão perto de adotar uma religião indo-ariana quando Diocleciano, oficialmente, reconheceu Mitra como o protetor do Império Romano, nem mesmo durante as invasões muçulmanas.

Especulações teóricas anglo-saxãs hipotetizam que se um golpe de estado, dado pelos centuriões adoradores de Mitra, tivesse impedido Constantino de estabelecer o cristianismo como a religião oficial do Império, o mitraísmo poderia possivelmente sobreviver através dos séculos seguintes com a assistência teológica da heresia maniquéia e seus epígonos, assumindo “ipso facto” que os ensinamentos de Jesus teriam, de alguma maneira, sido simultaneamente anulados e, talvez, com um número crescente de crucificações. Esta ausência do cristianismo, devido à continuação do mitraísmo no Ocidente, teria obstado o crescimento do Islã no século VII e a violência das Cruzadas necessariamente não teria ocorrido. Assumindo, ainda, que o Islã não teria, assim, conquistado religiosamente a Pérsia, a adoração de Mitra poderia ter continuado no panteão de Zaratrusta. Como conseqüência, o mitraísmo poderia ter penetrado com mais força nos panteões da Índia e da China e, possivelmente, teria aportado nos países do Extremo-Oriente.

Continuando com a especulação saxã que resultou na “lenda negra” da dominação espanhola no Novo Mundo, Colombo realizou os seus descobrimentos em pleno período da Inquisição, fenômeno este representativo da culminância de mais de mil anos de uma das maiores religiões monoteístas semítica – o cristianismo. Se o mitraísmo tivesse sobrevivido o milênio até o ano de 1492, os povos indígenas das Américas poderiam ter sido expostos à adoração de Mitra no lugar dos missionários católicos. Imaginaríamos, assim, o Taurobolium – ritual de regeneração ou sacrifício do touro, no qual o sangue do animal era derramado sobre o iniciado – sendo sido transposto e sincretizado com o ritual da caça do búfalo dos índios das planícies do Oeste americano e a cerimônia do sacrifício dos maias, incas e astecas, e provavelmente, estes impérios não teriam sido aniquilados pelos brutais conquistadores europeus em nome do Rei e de Cristo.

Autor: Ven. Irmão WILLIAM ALMEIDA DE CARVALHO

#Mitologia #Religiões

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/a-hist%C3%B3ria-do-deus-mitra

O Diabo não é tão feio quanto se pinta – I

[Update: Links corrigidos]
Post publicado no S&H em 26/4/2008,

Estou tendo alguns problemas técnicos para escrever as colunas (todos os meus livros sobre mitologias, ocultismo e história ainda estão encaixotados, o que torna um tanto quanto problemático fazer as pesquisas de dados, já que não gosto de pesquisar nada na internet) mas espero poder resolver este problema nos próximos quinze ou vinte dias.
Pretendo intercalar as matérias sobre o Sefirat haOmer com nossa programação normal. Fizemos a explicação sobre o Jesus Histórico AQUI, AQUI, AQUI e AQUI e o mais lógico para continuarmos nossa jornada através da história (até mesmo para explicar o que seria o Baphomet dos Templários mais adiante) será explicar como a Igreja Católica transformou todos os deuses das outras religiões em demônios, deturpando seus significados.
Nas próximas colunas, apresentarei a vocês Lucifer, Lilith, Astarte, Belial, Poseidon, Cernunnos, Exú e muitas outras divindades que foram covardemente desonrados pela Igreja, tornando-se caricaturas sinistras com a finalidade de causar medo aos fiéis e garantir um bom dízimo.
Para começar, Pan: o bode e os chifres…

Especialmente para a coluna de hoje, como convidado especial, tomei a liberdade de pegar emprestado um texto maravilhoso do irmão Wagner Veneziani Costa, do sensacional Blog do Editor da editora Madras.

UPDATE – Fiz uma revisão no texto para deixá-lo mais fluido e mais próximo do meu estilo do texto, pois muita gente achou o estilo do Wagner meio truncado.

O Pan (pão) Nosso de Cada Dia – A Grande Dádiva de Deus
Durante todo o texto, tentarei fazer uma análise comparativa do Deus Pan em todas as civilizações, como suas lendas, mitos, histórias infantis e as diversas palavras que surgiram do nome dele, tais como pânico, panacéia, panteísmo entre tantas outras. O Deus Pan é muitas vezes chamado de Fauno, Sylvanus, Lupercus, o Diabo (no Tarô). Seu lado feminino é a Fauna; é Exú (na Umbanda), o Orixá fálico; Capricórnio (na Astrologia); Dionísius (deus do vinho); Baco (dos famosos bacanais). Muitas vezes é comparado aos deuses caçadores; ou ainda, a Tupã (Pajé, Caboclo).

O deus Pan é uma antiqüíssima divindade grega, cultuada originalmente na região da Arcádia (uma área rural muito importante na antiguidade, pois foi o local onde muitas das Escolas de Hermetismo se reuniam). Pan é o guarda dos rebanhos que, tem por missão fazer multiplicar. Deus dos bosques e dos pastos, protetor dos pastores, veio ao mundo com chifres, orelhas e pernas de bode. Pan é filho de Mercúrio.
A explicação para a alegoria de um deus misto (bode+humano) ser filho de Mercúrio é muito simples: era bastante natural que o mensageiro dos deuses, sempre considerado intermediário, estabelecesse a transição entre os deuses de forma humana e os anteriores, de forma animal. Parece, contudo, que o nascimento de Pan provocou certa emoção em sua mãe, que ficou assustadíssima com tão esquisita conformação. De acordo com Hesíodo, quando Mercúrio apresentou o filho aos demais deuses, todo o Olimpo desatou a rir.

“Mercúrio chegou à Arcádia, que era fecunda em rebanhos. Ali se estende o campo sagrado de Cilene; nesses páramos, ele, deus poderoso, guardou as alvas orelhas de um simples mortal, pois concebera o mais vivo desejo de se unir a uma bela ninfa, filha de Dríops. Realizou-se enfim o doce himeneu. A jovem ninfa deu à luz o filho de Mercúrio, menino esquisito, de pés de bode e testa armada de dois chifres. Ao vê-lo, a nutriz abandona-o e foge. Espantam-na aquele olhar terrível e aquela barba tão espessa. Mas o benévolo Mercúrio, recebendo-o imediatamente, colocou-o no colo, rejubilante. Chega assim à morada dos imortais, ocultando cuidadosamente o filho na pele aveludada de uma lebre. Depois, apresenta-lhes o menino. Todos os imortais se alegram, sobretudo Baco, e dão-lhe o nome de Pan, visto que para todos constituiu objeto de diversão.”

As ninfas zombavam incessantemente do pobre Pan, por causa do seu rosto repulsivo, e o infeliz deus, ao que se diz, tomou a decisão de nunca amar. Mas Cupido é cruel, e afirma uma tradição que Pan, desejando um dia lutar corpo a corpo com ele, foi vencido e abatido diante das ninfas que riam.
Existem diversas lendas associadas a Pan. Uma delas diz respeito à flauta que sempre o acompanhava. Esta história diz o seguinte: Certa vez, Pan se apaixonou pela ninfa Sirinx, mas não foi correspondido. Sendo assim, Sirinx vivia fugindo do deus metade homem metade bode, até que se escondeu dele em um lago e se afogou. No lugar da sua morte, nasceram hastes de junco que Pan cortou e transformou em uma flauta de sete tubos, a qual se tornou um atributo dele. Sirinx, então, imortalizava-se.

Pan também era o deus da fertilidade, da sexualidade masculina desenfreada e do desejo carnal. Como o nome do deus significava “tudo”, no mais amplo sentido da natureza: a fertilidade. Para os alquimistas e para os estudiosos da filosofia, Pan passou a ser considerado um símbolo do Universo e a personificação da Natureza; e, mais recentemente, representante de todos os deuses.
Celebrar a Pan é celebrar a natureza, a sexualidade de maneira primal, a bebida, o prazer e a boa música. Suas festas eram marcadas por cantos, danças, vinhos e ritos de magia sexual envolvendo fertilidade e prosperidade, dedicadas às plantações, colheitas e rebanhos.

Faunos
Os romanos tinham um panteão de deuses que foi, em sua maioria, “herdado” da cultura grega. Portanto, quase todos os deuses romanos possuem seus correspondentes gregos.
Sylvanus e Faunus eram divindades latinas cujas características são muito parecidas com as de Pan, que nós podemos considerá-las como o mesmo personagem com nomes diferentes.
Entre os romanos, faunos eram deidades de florestas selvagens com pequenos chifres, pernas de cabra e um pequeno rabo. Eles acompanhavam o deus Faunus, eram alegres, habilidosos, e viviam sempre cantando e se divertindo. Faunos são análogos aos sátiros gregos.
Faunos é o deus da natureza selvagem e da fertilidade, também considerado o doador dos oráculos. Como o protetor dos rebanhos, ele também é chamado Lupercus (”aquele que protege dos lobos”).

Uma tradição particular conta que Faunus era o rei de Latium, o filho de Picus e neto do deus Saturno. Depois de sua morte, ele foi divinizado como Fatuus, e surgiu um culto pequeno em torno da sua pessoa, na floresta sagrada de Tibur (Tivoli). Em 15 de fevereiro (a data de fundação do templo), seu festival, o Lupercalia, era célebre. Sacerdotes(chamados Luperci) vestiam peles de cabra e caminhavam pelas ruas de Roma batendo nos espectadores com cintos feitos de pele de cabra. Outro festival dedicado à sua homenagem era o Faunalia, realizado próximo das épocas de colheita, para invocar seus atributos de prosperidade.

Sua contraparte feminina é a Fauna, a deusa das florestas. Ao contrário de Pan, que possuía os atributos da virilidade associados ao bode, Fauna era a senhora das matas e de todas as plantas. Suas seguidoras eram as Ninfas e as Dríades (que curiosamente possuem a mesma origem etmológica da palavra Druida – significando “aqueles que conhecem as árvores” ).

Levando chifres
Para os católicos (e posteriormente os evangélicos), os chifres passaram a representar o Demônio, o cordeiro ou cabrito, que era sacrificado em redenção do pecado. Mas os chifres sempre foram sinais de algo Divino. Na Babilônia, o grau de importância dos deuses era identificado pelo número de chifres atribuídos a eles. Moisés fora representado plasticamente com chifres na testa (na famosíssima estátua de Michelangelo), bem como o próprio Alexandre, o Grande, encomendara uma pintura do seu retrato, mostrando-se com chifres de carneiro na testa.
Os antigos judeus conheciam esse simbolismo, recebido das mitologias circunvizinhas. Se’irim geralmente pode ser traduzido por bode. Habitam os lugares altos, os desertos, as ruínas… No Gênesis, lemos que os filhos de Jacó degolaram um bode para com seu sangue manchar a túnica de José (Gn. 37:31).
O termo vulgar “bode” é designado pela mesma palavra que se emprega em outras partes para designar um sátiro. A palavra hebraica sa’ir significa propriamente “o peludo” e se aplica tanto ao bode como a qualquer outro sátiro, elemental ou divindade inferior, na mentalidade popular.

O termo “levar chifres” como pejorativo veio mais tarde, por conta dos romanos. As rainhas guerreiras celtas possuíam haréns de homens responsáveis por lhe dar prazer enquanto o rei estivesse em batalhas (de maneira análoga aos haréns tão comuns de mulheres). Isto, para os romanos (e, posteriormente para os católicos), era um absurdo. Na sua visão machista, os reis celtas que permitiam estes concubinos eram “menos homens” que os guerreiros romanos e começaram a espalhar a associação entre o “portar chifres” (lembrem-se do que já falamos sobre a simbologia dos chifres de alce e os reis europeus) e o “sua mulher dormiu com outro homem”.
Um desdobramento interessante que falarei no futuro é a história de Gwenhwyfar, uma destas rainhas, que deu origem posteriormente à personagem chamada Guinevere, esposa do rei Arthur. Gwenhwyfar possuía concubinos enquanto o rei estava em batalhas e, mais tarde, na cristianização destes mitos, o concubino de Guinevere se torna seu “amante” (e, posteriormente, nas mãos do Francês Chrétien de Troyes, este amante do rei Inglês se torna o cavaleiro francês Lancelot… é… a história do Rei Arthue que vocês conhecem é uma salada de frutas histórica composta de várias lendas empilhadas, mas isso é tema para outra coluna outro dia)

Para os Celtas, o Deus Cornífero
O Deus Cornífero é representado por um ser com cabeça humana, chifres e pernas de cabra ou cervo. Ele é o guardião das entradas e do círculo mágico que é traçado para se começar o ritual. É o deus pagão dos bosques, o rei do carvalho e senhor das matas. É o deus que morre e sempre renasce (o Senhor das Estações do ano). Seus ciclos de morte e vida representam nossa própria existência.
Os chifres e a capa vermelha representavam o rito de iniciação (eu falei sobre isso nas colunas anteriores), tanto que estão presentes até os dias de hoje na figura alegórica da Coroa e da Capa Vermelha dos Reis europeus.

Mas por que essa imagem diabólica tão horripilante? O chifre apresentava conotação sagrada, como um sinal “divino”, desde dez mil anos a.C., no período Neolítico (thanks TH13), representando também fertilidade e vitalidade. Acreditava-se que os chifres recebiam poderes especiais vindos das estrelas e dos céus (a simbologia da cauda formada pelos cometas). Basta observar as histórias da Cornucópia, que eram chifres das quais brotavam frutas, verduras e vegetais suficientes para alimentar a todos, em um sinal de fartura e prosperidade.

Existem várias versões do Deus Cornífero, como o Deus Cernunnos (versão celta e galo-romana). Na religião pagã Wicca, criada por Gerald Gardner, acredita-se que o Deus Cornífero seja o guardião das entradas e do círculo dos ritos.
Segundo a Wicca, o Deus Cornífero nasceu da grande Deusa, divindade suprema para os wiccanianos, representada por várias faces.
Uma das versões do Deus Cornífero é a que o considera protetor dos pastores e dos rebanhos. Uma versão do Deus Osíris – considerado pelos egípcios o deus da agricultura e da vida para além da morte. Ver posts antigos onde eu relaciono Osíris com o “Green man”.
Em algumas cavernas da França, foram encontradas pinturas do período Paleolítico, com homens fantasiados de veado, representando o Deus Cernunnos. Muitas vezes, ele era representado em imagens, acompanhado de uma serpente, e em tempos mais modernos, com uma bolsa cheia de moedas.
Geralmente, ele é representado sentado e de pernas cruzadas, talvez assumindo a posição de um xamã (vamos falar mais sobre xamanismo e suas relações com os druidas nas próximas colunas).
Considerado também o deus da caça e da floresta, hoje é um deus ou ser divino quase esquecido, lembrado apenas nas religiões pagãs.

Podemos perceber claramente que nenhum destes deuses nunca foi relacionado a um ser “infernal”. Mas nos dias atuais, em que imaginamos o Diabo ou um ser infernal, o que nos vem à mente é uma imagem demoníaca, maléfica, um ser com chifres e pernas de cabra. Existiu conspiração religiosa na deturpação da imagem do Deus Cernunnos? Teriam criado essa farsa apenas para acabar com as antigas religiões? A resposta parece óbvia.

Exu – O Orixá Fálico
Exu também tem os seguintes epítetos ou atributos: Exu Lonan, o Senhor dos Caminhos; Exu Osije-Ebo, o Mensageiro Divino; Exu Bará, o Senhor (do movimento) do Corpo; Exu Odara, Senhor da Felicidade; Exu Eleru, o Senhor da Obrigação Ritual; Exu Yangi, o Senhor da Laterita Vermelha; Exu Elegbara, o Senhor do Poder da Transmutação; Exu Agba, aquele que é o ancestral; Exu Inã, o Senhor do Fogo.
Exu é o Orixá que rege o jogo de Búzios, uma modalidade divinatória. Diz um mito que Exu é o único Orixá que tinha esse poder, mas decidiu compartilhá-lo com Ifá em troca de receber as oferendas e pedidos antes de qualquer outro Orixá.
Assim como Hermes, Exú é o mensageiro dos deuses, seu poder é o de receber e transportar os pedidos e oferendas dos seres humanos ao Orum, o Mundo dos Deuses. É o Senhor dos Caminhos, das encruzilhadas, das trocas comerciais e de todo tipo de comunicação. Ele representa também a fertilidade da vida, os poderes sexual, reprodutivo e gerativo. Não podemos nos esquecer de que o sexo, diferentemente do que os católicos e evangélicos dizem (uma coisa de luxúria, de pecado), é na verdade um ATO SAGRADO. Talvez por isso, por ele ser o poder sexual, os cristãos o comparem com o Demônio.
A origem do mito de associação de Exú com o Diabo vem dos Jesuítas. Quando os escravos estavam fazendo o sincretismo de suas religiões africanas com os Santos Católicos, os Jesuítas desconfiaram que havia alguma coisa errada… nas religiões africanas, não existe a figura do diabo, apenas de deuses com características humanas. Então eles encontraram um símbolo fálico representando o exú e tiveram a “brilhante idéia” de associar o pênis ereto com o sexo (pecado) com o diabo para completar o panteão católico.
Adicione dois séculos de deturpação católica e (posteriormente) evangélica e temos a imagem do exú como ela é nos dias de hoje.
Sem falar que normalmente a figura do Senhor Exu é colocada com chifres, rabo, pintado de vermelho, imagem bem parecida com a que os cristãos “desenham” o Diabo… Então, o Exu verdadeiro das religiões africanas nada tem em comum com o diabo lúdico, e as esquisitas estátuas comercializadas e utilizadas arbitrariamente em terreiros são frutos da imaginação de visionários que não enxergam nada além das manifestações dos baixos sentimentos em formas deprimentes, nos seres que lhes são afins.
Laroiê, Senhor Exu! (”Ninguém tira a saúde e a riqueza”).

Diabo e Ayin – Caminho 26
Quando pergunto a qualquer pessoa se Deus é onipresente, onisciente e onipotente, e elas normalmente respondem que sim, concluo com a seguinte pergunta: Então, quem é o Diabo?

Elas ficam sem resposta… Ora, esse Demônio, tão difundido pelas religiões judaico-cristãs, não existe. O conceito de bem ou mal é relativo, está intrinsecamente ligado ao ser humano, dentro de cada um de nós e não fora.

O Diabo só existe dentro de nossos corações frágeis e reina naqueles que não dominam suas emoções e navegam conforme a maré dos acontecimentos, sem rumo certo. Na Kabbalah, o Diabo é o caminho que leva de Hod (a Razão) a Tiferet (a Iluminação). É o caminho da esquerda, o entendimento de que para atingirmos a iluminação devemos encarar nossos erros e medos de frente e nos tornarmos responsáveis por tudo aquilo que fazemos, de maneira fria. O arcano do tarot representa nossas paixões, vontades verdadeiras e intrínsecas, removidas de falsidade ou falsas hipocrisias. Talvez por isso seja tão temida entre os leigos que mexem com o tarot, que o associaram à “maldade”. Seu signo associado é Capricórnio, o signo da tradicionalidade, da severidade, das linhas corretas.

Tupan
Tupã ou Tupan (que na língua tupi significa “trovão”) é uma entidade da mitologia tupi-guarani.
Os indígenas rezam a Nhanderuvuçu e a seu mensageiro Tupã, que não era exatamente um deus, mas sim uma manifestação de um deus.
Tupã não era “deus” como os jesuítas quiseram fazer com suas “brilhantes idéias” para catequizar à força os índios, mas sim um Mensageiro dos Deuses, ou seja, possuía as mesmas características de Hermes e Exú.
Para os que acham que isso é exagero, basta verificar o que o nosso amigo jesuíta Padre Quevedo inventa e distorce sobre a Umbanda e o kardecismo nos dias de hoje e veremos que os Jesuítas CONTINUAM com essa mania de mentir e distorcer a cultura alheia, mesmo em pleno 2008.

Câmara Cascudo afirma que Tupã “é um trabalho de adaptação da catequese”. Na verdade, o conceito “Tupã” já existia, não como divindade, mas como conotativo para o som do trovão (Tu-pá, Tu-pã ou Tu-pana, golpe/baque estrondeante); portanto, não passava de um efeito, cuja causa o índio desconhecia e, por isso mesmo, temia. Osvaldo Orico é da opinião de que os indígenas tinham noção da existência de uma Força, de um Deus superior a todos. Assim ele diz: “A despeito da singela idéia religiosa que os caracterizava, tinha noção de Ente Supremo, cuja voz se fazia ouvir nas tempestades – Tupã-cinunga, ou “o trovão”, cujo reflexo luminoso era Tupãberaba, ou “relâmpago”. Os índios acreditavam ser o deus da criação, o deus da luz. Sua morada seria o Sol.

Pandora
Na mitologia grega, Pandora (”bem-dotada”) foi a primeira mulher, criada por Zeus como punição aos homens pela ousadia do titã Prometeu em roubar dos céus o segredo do fogo.
“Caixa de Pandora” é uma expressão utilizada para designar qualquer coisa que incita a curiosidade, mas que é preferível não tocar (como quando se diz que “a curiosidade matou o gato”). Tem origem no mito grego da primeira mulher, Pandora, que por ordem dos deuses abriu um recipiente (há polêmica quanto à natureza deste, talvez uma panela, um jarro, um vaso, ou uma caixa tal como um baú…) onde se encontravam todos os males que desde então se abateram sobre a humanidade, ficando apenas aquele que destruiria a esperança no fundo do recipiente. Existem algumas semelhanças com a história judaico-cristã de Adão (Adan) e Eva em que a mulher é, também, responsável pela desgraça do gênero humano.

Desde que Zeus (Júpiter) e seus irmãos (a geração dos deuses olímpicos) começaram a disputar o poder com a geração dos Titãs, Prometeu era visto como inimigo, e seus amigos mortais eram tidos como ameaça.
Sendo assim, para castigar os mortais, Zeus privou o homem do fogo; simbolicamente, da luz na alma, da inteligência… Prometeu, “amigo dos homens”, roubou uma centelha do fogo celeste e a trouxe à terra, reanimando os homens.
Ao descobrir o roubo, Zeus decidiu punir tanto o ladrão quanto os beneficiados. Prometeu foi acorrentado a uma coluna e uma águia devorava seu fígado durante o dia, o qual voltava a crescer à noite.
Para castigar o homem, Zeus ordenou a Hefesto (Vulcano) que modelasse uma mulher semelhante às deusas imortais e que tivesse vários dons. Atena (Minerva) ensinou-lhe a arte da tecelagem, Afrodite (Vênus) deu-lha a beleza e o desejo indomável, Hermes (Mercúrio) encheu-lhe o coração de artimanhas, imprudência, ardis, fingimento e cinismo, as Graças embelezaram-na com lindíssimos colares de ouro… Zeus enviou Pandora como presente a Epimeteu, o qual, esquecendo-se da recomendação de Prometeu, seu irmão, de que nunca recebesse um presente de Zeus, o aceitou. Quando Pandora, por curiosidade, abriu uma caixa que trouxera do Olimpo, como presente de casamento ao marido, dela fugiram todas as calamidades e desgraças que até hoje atormentam os homens. Pandora ainda tentou fechar a caixa, mas era tarde demais: ela estava vazia, com a exceção da “esperança”, que permaneceu presa junto à borda da caixa.
Outra lenda grega diz que Pandora é a deusa da ressurreição. Por não nascer como a divindade, é conhecida como uma semideusa. Pandora era uma humana ligada a Hades. Sua ambição em se tornar a deusa do Olimpo e esposa de Zeus fez com que ela abrisse a ânfora divina. Zeus, para castigá-la, tirou a sua vida. Hades, com interesse nas ambições de Pandora, procurou as Pacas (dominadoras do tempo) e pediu para que o tempo voltasse. Sem a permissão de Zeus, elas não puderam fazer nada. Hades convenceu o irmão a ressuscitar Pandora. Graças aos argumentos do irmão, Zeus a ressuscitou dando a divindade que ela sempre desejava. Assim, Pandora se tornou a deusa da ressurreição. Para um espírito ressuscitar, Pandora entrega-lhe uma tarefa; se o espírito cumprir, ele é ressuscitado. Pandora, com ódio de Zeus por ele tê-la tornado uma deusa sem importância, entrega aos espíritos somente tarefas impossíveis. Desse modo, nenhum espírito conseguiu nem conseguirá ressuscitar.

Peter Pan
O menino mágico que voa sem medo de envelhecer, mas não quer crescer. Peter Pan leva-nos aos gnomos e fadas comuns em histórias européias antigas. Esses “arquétipos”, como Jung deveria dizer, têm reaparecido na “mente coletiva” com grande freqüência, ou seja, Peter, visto pela ótica mítica do deus Pan, deus dos bosques, representa a natureza selvagem que habita dentro de cada um de nós.
Peter Pan toca sua flauta com nostalgia no filme de Hogan. Sem tristeza, porém. Afinal, ele só pode ter pensamentos felizes, pois só assim se pode voar.
Terra do Nunca, fadas, imaginação… fica de lição de casa para os sedentários assistir novamente ao desenho animado do Tio Disney.

Finalizando…
Os chifres sempre foram representações da luz, da sabedoria e do conhecimento entre os povos antigos. Portanto, como podemos perceber, desde tempos imemoráveis os chifres foram considerados símbolos de realeza, divindade, fartura, e não símbolos do mal como muitos associaram e ainda associam. O chifre sempre simbolizou a força de um animal, ou o poder de uma pessoa ou nação.
Podemos dizer, então, que o Deus, a Grande Mãe e o Deus Cornífero representam juntos as forças vitais do Universo Cornífero. É o mais alto símbolo de realeza, prosperidade, divindade, luz sabedoria e fartura. É o poder que fertiliza todas as coisas existentes na Terra.

Já as patas de bode sempre representaram o contato com a terra, a virilidade, a prosperidade e a fertilidade, próprias de quem trabalha no campo e não tem medo de galgar as montanhas do espírito em direção ao seu topo.

Pan representa a Árvore da vida, a liberdade do ser humano de desfrutar a natureza em paz e harmonia, de manter o contato com a divindade e a liberdade de pensamento. pan representa o sexo como fonte de prazer para o homem e a mulher, bem como uma maneira de se chegar ao estado divino sem a necessidade de “pedágios”.

E por esta razão, foi tão necessário para a Igreja transformá-lo no “adversário” e, através de séculos de terror e mentiras que ela mesma criava (e cria até hoje) para seus fiéis, estamos hoje com uma imagem totalmente deturpada da natureza e de seus deuses antigos.

Semana que vem: O Portador da Luz.

Forte Abraço.

#ICAR

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/o-diabo-n%C3%A3o-%C3%A9-t%C3%A3o-feio-quanto-se-pinta-i

Melkisedek ou Preste João

Texto fantástico de Vitor Manuel Adrião.

O nome Melkitsedek, ou antes, Melki-Tsedek, como é designado na tradição judaico-cristã, refere-se à função de “Rei do Mundo” na cúspide dirigente de toda a Evolução Planetária, sendo Aquele que está mais próximo de Deus – o Logos Planetário – de cuja natureza participa a ponto de se confundir com Ele, mesmo estando “como a personalidade humana está para a sua individualidade espiritual”, na mais pálida definição.

Na Bíblia, tem-se aparece a primeira referência a Melki-Tsedek no Genesis (XIV, 19-20): “E Melki-Tsedek, Rei de Salém, mandou que lhe trouxessem pão e vinho e ofereceu-os ao Deus Altíssimo. E bendisse Abraão (…) e Abraão deu-lhe o dízimo de tudo”, instituindo-se a Ordem de que fala o Salmo 110, 4: “Tu és um sacerdote eterno, segundo a Ordem de Melkitsedek”. Este é assim definido por S. Paulo na sua Epístola aos Hebreus (VII, 1-3): “Melki-Tsedek, Rei de Salém, Sacerdote do Deus Altíssimo que saiu ao encontro de Abraão (…) que o abençoou e a quem Abraão deu o dízimo de tudo, é em primeiro lugar e, de acordo com o significado do seu nome, Rei da Justiça, e em seguida, Rei de Salém, isto é Rei da Paz; existe sem pai, sem mãe, sem genealogia, não tem princípio nem fim a sua vida, mas sendo feito semelhante ao Filho de Deus, permanece Sacerdote para todo o sempre”.

É assim que o sacerdócio da Igreja cristã chega a identificá-lo à Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, o Espírito Santo, mantenedor da Tradição Apostólica que vem do Apóstolo Pedro até ao Presente. De maneira que o Sacrifício de Melki-Tsedek (o pão e o vinho) é encarado habitualmente como uma «pré-figuração» da Eucaristia, pois que o próprio sacerdócio cristão se identifica, em princípio, ao Sacerdócio de Melki-Tsedek, segundo a aplicação feita a Cristo das mesmas palavras do Salmo 110, e que no Apocalipse vem a ser a “Pedra Cúbica” do Trono de Deus em que assenta a Assembleia ou Igreja Universal da Corte dos Príncipes ou Principais do mesmo Rei do Mundo.

O livro do Génesis e a epístola de S. Paulo aos Hebreus referindo-se a esse misterioso Soberano, levou a tradição judaico-cristã a distinguir dois sacerdócios: um, “segundo a Ordem de Aarão”; outro, “segundo a Ordem de Melkitsedek”. Este superior àquele, pois se liga do Presente aos Tempos do Advento do Messias, expressando os Apóstolos, os Bispos e a Igreja do Ocidente. E aquele vincula o Passado ao Presente, expressando os Profetas, os Patriarcas e a Igreja do Oriente.

Melki-Tsedek é, pois, ao mesmo tempo, Rei e Sacerdote. O seu nome significa “Rei da Justiça”, e também é o Rei de Salém, isto é, “Rei da Paz”. “Justiça” e “Paz” são precisamente os dois atributos fundamentais do “Rei do Mundo”, assim como do Arcanjo Mikael portador da espada e da balança, atributos iconográficos psicopompos designativos do Metraton, nisto como intermediário entre o Céu e a Terra, Deus e o Homem, presença indispensável do Paraninfo mercuriano ou AKBEL que é quem carrega o ANEL ou ARO prova da ALIANÇA ETERNA DO CRIADOR COM A CRIAÇÃO, e que na Natureza tem a sua expressão lídima nas sete cores do espectro do ARCO-ÍRIS, de maneira que sempre que a Humanidade declina em sua Evolução o ETERNO envia a ela o seu “Filho Primogénito” para restabelecer a Boa Lei, anular a anarquia e a injustiça e restaurar a Ordem e a Justiça, ou seja, ciclicamente descem do Céu à Terra os Avataras ou Messias. O termo Salém designa a “Cidade da Paz”, arquétipo sobre que se construiu Jerusalém, e veio a ser o nome da Morada oculta do “Rei do Mundo”, chamada nas tradições transhimalaias de Agharta e Shamballah, correspondendo ao Paraíso Terrestre, ao Éden Primordial que a Mítica Lusitana insiste em identificar ao vindouro Quinto Império do Mundo que trará um Reinado de Felicidade e Concórdia com o Imperador Universal, Melki-Tsedek, a dirigi-lo.

Melki-Tsedek tinha o seu equivalente no Antigo Egipto na função de Ptah-Ptahmer; na Índia, é chamado Chakravarti e Dharma-Raja; os antigos Rosacruzes reconheciam-no como Imperator Mundi e Pater Rotan, e foi assim que a Maçonaria o reconheceu no século XVIII, consignando-o Maximus Superius Incognitus, para todos os efeitos, o Imperador Universal.

No século XII, na época do rei S. Luís de França, os relatos das viagens de Carpin e Rubruquis invés de referirem os nomes de Melki-Tsedek substituíram-no pelo do Preste João que morava num país misterioso no Norte da Ásia distante. Preste significa tanto “Pai” como “Presbítero”, e João é referência tanto ao Anunciador do Messias, João Baptista, quanto ao Apóstolo João Evangelista que escreveu o Apocalipse, sendo referência óbvia ao Sacerdócio do Rei do Mundo, insistindo as três religiões do Livro (judaica, cristã e islâmica) que será por Ele que haverá um Reinado de Concórdia Universal sobre a Terra.

As primeiras notícias do Presbítero chegaram à Europa em 1145, quando Hugo de Gebel, bispo da colónia cristã do Líbano, informou o Papa da existência de um reino cristão situado “para lá da Pérsia e da Arménia”, governando por um Rei-Sacerdote chamado Iohannes Presbyter (João, o Presbítero, isto é, Sacerdote, Ancião) e que seria descendente de um dos Reis Magos que visitaram o Menino em Belém.

Mas o primeiro documento conhecido sobre esta misteriosa personagem, é a famosa Carta do Preste João endereçada em 1165 a Manuel Comneno, imperador bizantino de Constantinopla, assim como a Barba-Ruiva, imperador da Alemanha, e ao Papa Alexandre III, parecendo que o documento tem a sua origem em Portugal. Isto porque a versão mais antiga do texto original data dos finais do século XIV e encontra-se no Cartório do Mosteiro de Alcobaça, mas que foi impressa pela primeira vez em língua italiana, em Veneza, no ano 1478, onde se inspiraram outras obras, também na mesma língua, como a versão rimada do Tratacto del maximo Prete Janni (Veneza?, 1494), de Giuliano Dati, tudo próximo da época em que o viajante Marco Pólo regressou Oriente a Veneza falando da existência do Preste João, como soberano da Igreja etíope. Por outra parte, ao longo dos séculos XV e XVI aparece uma série de cartas enviadas pelo Preste João da Índia aos soberanos portugueses (D. João II, D. Manuel I e até D. Sebastião que, diz-se, recebeu uma embaixada no Preste João nos seus paços em Lisboa), que por sua vez enviam embaixadas à corte daquele, como foi o caso notável de Pêro da Covilhã, enviado de D. Afonso V.

O mito do Preste João foi amplamente divulgado pelos Templários e veio a servir de principal impulsor do processo das Descobertas Marítimas pelos Portugueses, aparentemente com a intenção de incentivar à conquista cristã de novas terras e obter riquezas fartas, mas realmente estabelecer a ligação de Portugal com o Centro Primordial do Mundo, chamado indistintamente Salém e Shamballah.

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Cavaleiros Templários

“Não por nós, Senhor, não por nós,

mas para que seu nome tenha a Glória.”

A Ordem Templária foi fundada em Jerusalém em 1118, logo após a Primeira Cruzada, mesmo havendo alguns indícios de ter sido fundada quatro anos antes. Seu nome está relacionado ao local de seu primeiro quartel-general, no lugar do antigo Templo de Salomão.

Nove monges veteranos dessa Primeira Cruzada, entre eles Hugues de Payens e Godofredo de Saint Omer, reuniram-se para fundar a Ordem em defesa da Terra Santa. Pronunciaram perante o patriarca de Jerusalém, Garimond, os votos de castidade, de pobreza e de obediência, comprometendo-se, solenemente, a fazer tudo aquilo que estivesse ao seu alcance para garantir as rotas e os caminhos e a defender os peregrinos contra os assaltos e os ataques dos infiéis. Foi dada a fundação da Ordre de Sion (Ordem de Sião) a Godofredo de Bouillon, por volta de 1099. A original Ordem de Sião foi estabelecida para que muçulmanos, judeus e outros indivíduos elegíveis pudessem aliar-se à Ordem cristã e tornar-se Templários.

Freqüentemente podemos encontrar os Templários sendo denominados Soldados de Cristo (Christi Milites), Soldados de Cristo e do Templo de Salomão. A regra que lhes foi concedida por ocasião do Concílio de Troyes, em Champagne, é: Regula pauperum commilitonum Christi Templique Salomonici.

Eles, no começo, viviam exclusivamente da caridade, e tamanha era sua pobreza que não podiam ter mais do que um só cavalo cada um. O antigo sinete da Ordem, no qual aparece a representação de dois cavaleiros em um só cavalo, comprova essa humildade primitiva.

O bispo de Chartres escreveu a respeito dos Templários em 1114, chamando-os de Milice du Christi (Soldados de Cristo).

O primeiro Grão-Mestre da Ordem foi Hugues de Payens, certamente um homem superior. Durante toda a sua vida, testemunhou um pensamento seguro e uma indomável coragem. Inspirado pelo espírito cavalheiresco de seu século, ele não podia ter se tornado apenas um cruzado cujo nome caiu no esquecimento, como o de tantos outros nobres e bravos senhores. Era grandioso armar-se com oito soldados contra legiões numerosas; oferecer-se, sob um céu implacável, aos golpes de um inimigo que observava atentamente sua empreitada e que podia afogá-lo definitivamente, já no primeiro combate, no sangue de seu punhado de bravos.

E foi assim que viveram durante dez anos. Sem pedir reforços nem subsídios, nenhuma recompensa, nenhuma prebenda esperava por eles. Viviam segundo suas próprias leis, vestidos e alimentados pela caridade cristã.

Martin Lunn, em seu livro Revelando o Código de Da Vinci (Madras Editora), fala-nos do Priorado de Sião, que compartilhava com a Ordem do Templo (Cavaleiros Templários) o mesmo Grão-Mestre; eram dois braços da mesma organização até algo conhecido como a “Corte do Olmo”, que aconteceu em Gisors, em 1118. Essa separação entre as duas Ordens foi supostamente causada pela chamada “traição” do Grão-Mestre Gerard de Ridefort que, de acordo com os Dossiês Secretos, resultou na perda de Jerusalém pela Europa para os sarracenos.

Quando do Concílio de Troyes (1128), Hugues e outros seis Cavaleiros compareceram diante dos mais altos dignitários da Igreja. O papa e o patriarca Étienne lhes deram um hábito, e o célebre abade de Clarval, São Bernardo de Clairvaux, encarregou-se da composição de sua regra, modificando parcialmente os estatutos primitivos da sociedade. Foi também São Bernardo quem revitalizou a Igreja Celta da Escócia e reconstruiu o mosteiro de Columba, em Iona (tal mosteiro havia sido destruído em 807 por piratas nórdicos). O juramento dos Cavaleiros Templários a São Bernardo exigia a “Obediência de Betânia – o castelo de Maria e Marta”.

Durante a era das cruzadas, que perfazem um total de oito e as quais continuaram até 1291 no Egito, na Síria e na Palestina, apenas a primeira, de Godofredo, foi de alguma utilidade, como afirma Laurence Gardner, um magnífico autor de nossa editora: “(…) Mas mesmo essa foi desfigurada pelos excessos das tropas responsáveis que usaram sua vitória como desculpa para o massacre de muçulmanos nas ruas de Jerusalém. Não apenas Jerusalém era importante para os judeus e cristãos, porém se tornara a terceira Cidade Santa do Islã, após Meca e Medina. Como tal, a cidade até hoje está no cerne de contínuas disputas. (Embora os muçulmanos sunitas considerem Jerusalém sua terceira cidade Sagrada, os muçulmanos xiitas colocam-na em quarto lugar após Carabala, no sul do Iraque.)

A segunda cruzada para Odessa, liderada por Luiz VII da França e pelo imperador alemão Conrado III, fracassou miseravelmente. Então, cerca de cem anos após o sucesso inicial de Godofredo, Jerusalém caiu sob o poder de Saladino do Egito, em 1187. Foi quando engatilhou a terceira cruzada de Felipe Augusto, da França, e Ricardo Coração de Leão, da Inglaterra, que, entretanto, não conseguiram recuperar a Cidade Santa. A quarta e quinta cruzadas concentraram-se em Constantinopla e Damieta. Jerusalém foi retomada brevemente dos sarracenos após a sexta cruzada, mas ficou longe de reverter a situação. Por volta de 1291, a Palestina e a Síria estavam firmemente sob o controle muçulmano e as cruzadas haviam terminado.

Vejamos alguns preceitos da nova legislação, mas é importante lembrarmos que nessa época os cavaleiros não eram classificados em graus como os nobres. Todo homem que não fosse sacerdote ou servo podia aspirar à Cavalaria e à nobreza moderna tinha aí sua origem. A partícula de não indicava seus nomes, mas a cidade, a vila ou o lugarejo que habitavam. Mais tarde, o nome de sua residência transformou-se em seu nome de família.

Todos os cavaleiros que tenham professado vestem mantos brancos de comprimento médio. Os mantos usados são entregues aos Escudeiros e irmãos servos, ou aos pobres.

Os mantos brancos que os escudeiros e servos vestiam originalmente foram substituídos por mantos negros ou cinzas.

Apenas os cavaleiros vestem mantos brancos.

Cada cavaleiro possui três cavalos, pois a pobreza não permite que tenham mais que isso.

Cada cavaleiro tem somente um escudeiro ao qual não poderá castigar, já que ele o serve gratuitamente.

Ninguém pode sair, escrever ou ler cartas sem autorização do Grão-Mestre.

Os cavaleiros casados habitam à parte e não vestem clâmides ou mantos brancos.

Os cavaleiros seculares que desejam ser admitidos no Templo serão examinados e ouvirão a leitura da regra antes de seu noviciado.

O Grão-Mestre escolhe seu capítulo dentre seus Irmãos. Nos casos importantes que dizem respeito à Ordem ou na admissão de um Irmão, todos podem ser chamados para o capítulo, se essa for a vontade do chefe.

Na obra A História dos Cavaleiros Templários, de Élize de Montagnac, da Madras Editora, encontramos um texto muito oportuno a respeito da iniciação, que passamos a transcrever: “(…) Os estatutos e regulamentos recomendavam, acima de tudo, a prece, a caridade, a esmola, a modéstia, o silêncio, a simplicidade, o desdém à riqueza e à opulência, a abnegação, a obediência, a proteção aos pobres e oprimidos; cuidar dos enfermos; o respeito aos mortos entre outros”. Tal Código de regras é composto de 72 artigos e foi descoberto em 1610, em Paris, por Aubert-le-Mire, cientista e historiador, decano de Anvers.

Mas a cada dia os regulamentos concernentes à hierarquia, à disciplina e ao cerimonial eram ajustados e adaptados ao Código Latino, assim declarado perfectível.

“Portanto não é de se surpreender que, além desse, hoje são conhecidos outros três códigos manuscritos, os quais não são nada mais do que sua continuação. Um foi descoberto em 1794, na biblioteca do príncipe Corsini, pelo cientista dinamarquês Münster; o outro foi encontrado na biblioteca Real por M. Guérard, conservador e restaurador; o terceiro foi encontrado nos arquivos gerais de Dijon por M. Millard de Cambure, mantenedor dos arquivos de Borgúndia.”

E desse último, datado de 1840, é que extraímos a descrição do modo de iniciação dos irmãos cavaleiros; a verdade sobre essas recepções nos sugere serem elas revestidas de um grande interesse, após as absurdas e terríveis lendas que as cercam. Por favor, observem a quantidade de coincidências com nossos rituais (maçônicos).

“Antes que um novo Irmão fosse recebido, era necessário sondar os espíritos para saber se ele vinha de Deus: Probate Spititus, si ex Deo Sunt. Em razão disso, ao longo de certo período, impunham-se ao candidato diversas privações de todas as naturezas; incumbiam-lhe os trabalhos mais pesados e baixos da casa, tais como: cuidar do fogão e da cozinha, girar o moinho, cuidar das montarias, tratar dos porcos, etc. Após isso, procedia-se à admissão, a qual era feita da seguinte forma:

A Assembléia reunia-se, ordinariamente, à noite. O candidato esperava do lado de fora; por três vezes, dois cavaleiros se dirigiam a ele para perguntar-lhe o que ele desejava; e por três vezes o candidato respondia que era sua vontade adentrar a Casa. A seguir, então, o candidato era conduzido à Assembléia, e o Grão-Mestre, ou aquele que presidia a sessão em seu lugar, apresentava-lhe tudo de rude e penoso que o aguardava naquela vida em que estava prestes a entrar. Dizia-lhe: ‘Devereis ficar desperto e alerta quando mais quiserdes dormir, suportar o cansaço quando mais quiserdes repousar. Quando sentirdes fome e quiserdes comer, ser-vos-á ordenado que vades aqui ou acolá, sem vos ser dada nenhuma explicação ou motivo. Pensai bem, meu querido Irmão, se sereis capaz de sofrer todas as asperezas.’ Se o candidato respondesse ‘Sim, eu me submeterei a todas, se assim agradar a Deus!’, o Mestre complementava: ‘Estai ciente, querido Irmão, de que não deveis pedir a companhia da Casa para obter benesses, honrarias e riquezas, nem satisfazer o vosso corpo, principalmente em relação a três aspectos:

1º, Evitar e fugir dos pecados deste mundo;

2º, Servir ao nosso Senhor;

3º, Ser pobre e fazer a penitência nesta vida para a santidade da alma.

Sabei também que sereis, a cada dia de vossa existência, um servo e escravo da Casa.

Estais certo de vossa decisão?’

‘Sim, se assim agradar a Deus, Senhor’.

‘Estais disposto a renunciar para sempre à vossa própria vontade, e nada mais fazer além daquilo que vos for determinado?’

‘Sim, se assim agradar a Deus, Senhor’.

‘Então, retirai-vos e orai a nosso Senhor para que Ele vos aconselhe’.

Assim que o candidato se retirava, o presidente da Assembléia continuava: ‘Beatos senhores, puderam constatar que essa pessoa demonstrou ser possuidora de um grande desejo de ingressar na Casa, e declarou estar disposta a dedicar toda a sua vida como servo e escravo. Se há entre vocês alguém que saiba alguma coisa que possa impedir que essa pessoa seja recebida como cavaleiro, que nos dê conhecimento agora, pois, após sua admissão, ninguém mais terá crédito para fazê-lo’. Caso nenhuma contestação fosse apresentada, o Mestre perguntava: ‘Admitamo-lo como oriundo de Deus?’

‘Por inexistir qualquer oposição, fazei-o retornar como vindo de Deus.’

Então um dos membros que se manifestaram saía ao seu encontro e o instruía como ele deveria pedir seu ingresso.

Retornando à Assembléia, o recipiendário ajoelhava-se e, com as mãos postas, dizia:

‘Senhor, eu compareço perante Deus, perante vós e perante os Irmãos, para vos pedir e implorar em nome de Deus e de Nossa Senhora que me acolham em vossa Irmandade, e nos benefícios da Casa, espiritual e materialmente, como um que será servo e escravo da Casa, em cada um dos dias de toda a sua vida.’

O presidente da Assembléia lhe respondia: ‘Pensastes bem? Ainda pensais em renunciar à vossa vontade em favor do próximo? Estais decidido a submeter a todas as dificuldades e asperezas que vigoram na Casa e a cumprir tudo aquilo que vos for mandado?’

‘Sim, se assim agradar a Deus, Senhor.’

E continuava o presidente, agora se dirigindo aos cavaleiros presentes à Assembléia:

‘Então levantem-se, nobres senhores, e orem a Nosso Senhor e a Nossa Senhora Santa Maria pedindo que ele seja bem-sucedido.’

Em seguida, cada um deles recitava um Pai-Nosso, enquanto os capelães recitavam a oração ao Espírito Santo, e, em seguida, traziam o Evangelho, sobre o qual o recipiendário prestava o seu juramento de responder com franqueza, sinceridade e lealdade às questões seguintes:

1º, Não tendes nem esposa nem noiva?

2º, Não estais engajado em nenhuma outra Ordem; não fizestes nenhum outro voto, juramento ou promessa?

3º, Tendes alguma dívida convosco mesmo ou com algum outro, a qual não vos seja possível pagar?

4º, Estais em plena saúde física?

5º, Não destes, ou prometestes dar, dinheiro a nenhuma pessoa para que, assim, facilitasse vossa admissão à Ordem do Templo?

6º, Sois filho de um cavaleiro e de uma dama; pertencem vossos pais à linhagem dos cavaleiros?

7º, Não sois nem padre, nem diácono, nem subdiácono?

8º, Não fostes excomungado?

Procurai não mentir, pois, se o fizerdes, sereis considerado perjuro e tereis de abandonar a Casa.

Concluído esse interrogatório, o Grão-Mestre, ou aquele que substituía, ainda se dirigindo à Assembléia, indagava se ainda havia algumas outras perguntas a serem formuladas e, caso reinasse o silêncio, ele se voltava ao recipiendário, dizendo:

‘Ouvi bem, meu caro Irmão, o que ainda vos vamos pedir:

Prometei a Deus e a Nossa Senhora que, ao longo de toda a vossa vida, obedecereis ao Mestre do Templo e ao comandante sob cujas ordens estareis sujeito.

E mais: que todos os dias de vossa vida vivereis imaculado.

E mais ainda: prometei a Deus e a Nossa Senhora Santa Maria que, em todos os dias de vossa vida, respeitareis os bons costumes vigentes na Casa e aqueles que os Mestres e os doutos haverão de acrescentar.

Mais: que, em cada um dos dias de vossa vida, ajudareis, com todas as forças e com todo o poder que Deus vos outorgou, a conquistar a Terra Santa de Jerusalém e a proteger e defender as propriedades dos cristãos.

E ainda: que jamais abandonareis essa religião em favor de outra, seja ela qual for, sem permissão do Grão-Mestre e da Assembléia, etc.’

E a cada vez o futuro Cavaleiro devia responder:

‘Sim, se assim agradar a Deus, Senhor.’

Isso feito, aquele que conduzia a Assembléia assim anunciava sua admissão:

‘Vós, por Deus e por Nossa Senhora, por São Pedro de Roma, por nosso Padre Apóstolo e por todos os Irmãos do Templo, acolhei, vosso pai e mãe, e todos aqueles que foram acolhidos em vossa linhagem e em todos os benefícios que já fizeram e farão. E vos comprometeis sobre o pão e sobre a água e sobre a pobre vestimenta da Casa, do sacrifício e do trabalho farto.’

A seguir, tomando o manto do templário, ele o colocava no pescoço do novo cavaleiro, seguido pelo Irmão capelão que entoava o salmo:

‘Ecce quam Bonum et quam jucundum habitare in unum…’ (‘Oh! Quão bom e quão agradável viverem unidos os Irmãos!…’)

Segundo M. Mignard, algumas vezes, durante as iniciações, eles entoavam alguns versículos dos Salmos, ou alguma alocução em alusão ao espírito da fraternidade, como o Salmo 133. E a oração do Espírito Santo;

‘O Espírito de Deus me criou e o sopro do Todo-Poderoso me deu a vida.’

(João 33: 4)

Veni, Creátor Spíritus

[ Ao Espírito Santo]

Veni, Créator Spíritus,

[Espírito criador ]

Mentes tuórum visita,

[Visita a alma dos teus]

Imple supérna grátia,

[Nos corações que criaste]

Quae tu creásti péctora.

[derrama a graça de Deus]

Qui díceris Paráclitus,

[Ó fogo quem vem do alto,]

Altíssimi donum Dei,

[Teu nome é consolador,]

Fons vivus, ignis, cáritas,

[Unção espiritual,]

Et spiritális únctio.

[perene sopro de amor.]

Tu septifórmis múnere,

[Por Deus Pai tão prometido,]

Dígitus patérnae déxterae,

[És dedo da sua mão,]

Tu rite promíssum Patris,

[Os teus sete dons são fonte]

Sermóne ditanas gútura.

[De toda vida e oração]

Accénde lúmen sénsibus.

[Acende o lume das mentes,]

Infunde amórem córdibus.

[Infunde em nós teu amor;]

Infirma nostri córporis,

[nossa carne tão frágil,]

Virtúte firmans pérpeti.

[sustenta com teu vigor.]

Hostem repéllas lóngius,

[Atira longe o inimigo,]

Pacémque dones prótinus,

[Conserva em nós tua paz,]

Ductóre sic te praevio,

[A ti queremos por guia,]

Vitémus omne nóxium.

[noss’alma em ti se compraz]

Per te sciámus da Patrem,

[Ao Pai e ao Filho possamos]

Noscámus atque Fíluim,

[Em tua luz conhecer;]

Teque utriúsque Spíritum

[Dos dois tu és o Espírito,]

Credámus omni témpore.

[O sol de todo saber.]

Deo Patri glória

[Louvemos ao Pai celeste,]

Et Filio qui a mórtuis

[Ao Filho que triunfou,]

Surréxit, ac Paráclito,

[E a quem, de junto ao Pai,]

In saeculórum saecula. Amen.

[à santa Igreja enviou. Amém.]

…então aquele que tornou Irmão o novo cavaleiro levanta-o, beija-lhe a boca (era costume que o Irmão capelão assim o fizesse, como também era normal que os reis se cumprimentassem dessa mesma forma) e, convidando-o a sentar-se diante de si, diz: ‘Caro Irmão, nosso Senhor vos conduziu ao vosso desejo e vos introduziu em uma fraternidade tão bela como esta Cavalaria do Templo, pela qual deveis dedicar extrema atenção para jamais cometer algo que vos faça perdê-la – que assim Deus vos conserve!’

Finalmente, depois de enumerar as causas que poderiam acarretar a perda do hábito e da Casa, depois de ter lido para ele os regulamentos disciplinares, acrescentava:

‘Já vos dissemos as coisas que deveis fazer e as coisas das quais deveis manter-se afastado… E, se por acaso não abordamos tudo o que deveria ser dito sobre os nossos deveres, vós indagareis. E Deus vos ajudará a falar e a fazer o bem. Amém!’ (referência ao maior deus egípcio Amon). (Nesse momento, o Grão-Mestre selava com os lábios o cóquis (cóccix), o fim ou início da espinha dorsal, que é o equilíbrio do homem, seu eixo central, um chacra, que são pontos energéticos no corpo humano.)

Pois bem, aí está, segundo as únicas regras conhecidas, como eram realizadas as cerimônias de iniciação qualificadas de infames, e nas quais eram ultrajadas tanto a divindade como a moral; mas nas quais, na realidade, o maior crime cometido era o de continuarem secretas.

O mistério com o qual os templários cercavam suas reuniões enchia de terror a imaginação dos contemporâneos daquela época, e não foge muito de nossa época também. Em geral, tudo o que os homens não podiam ver ou compreender adquiria, aos seus olhos, as mais sinistras tonalidades. Em 1789, quando a população sitiou a Bastilha, imaginava-se ser de boa-fé trabalhar pela libertação de grandes grupos de prisioneiros abandonados nas celas das prisões. Qual não foi o seu espanto ao ver as vítimas do despotismo real? Não havia mais do que sete, entre os quais falsários e dois desequilibrados mentais”.

A influência templária cresceu rapidamente. Os templários guerrearam heroicamente nas diversas cruzadas e também chegaram a ser os grandes financiadores e banqueiros internacionais da época; em conseqüência, acumularam grandes fortunas. Calcula-se que, antes da metade do século XIII, eles possuíam nove grandes propriedades rurais apenas na Europa. O Templo de Paris foi o centro do mercado mundial da moeda, e sua influência, assim como sua riqueza, era também muito grande na Inglaterra. No fim do mesmo século, diz-se que haviam alcançado uma receita cujo montante era equivalente a dois milhões e meio de libras esterlinas atuais, ou seja, maior que a de qualquer país ou reino europeu daqueles dias. Acredita-se que, a essa altura, os templários eram cerca de 15 ou 20 mil cavaleiros e clérigos; porém, ajudando-os, havia um verdadeiro exército de escudeiros, servos e vassalos. Pode-se conceber uma influência com base no fato de que alguns membros da Ordem tinham a obrigação de assistir aos grandes Concílios da Igreja, como o Concílio de Lateranense, de 1215, e o de Lyons, de 1274.

Os cavaleiros templários trouxeram para o Ocidente um conjunto de símbolos e cerimônias pertencentes à tradição maçônica, e possuíam um certo conhecimento que agora é transmitido somente nos Graus filosóficos e capitulares da Maçonaria. Desse modo, a Ordem era também um dos depositários da sabedoria oculta na Europa durante os séculos XII e XIII, embora os segredos completos fossem dados somente a alguns membros; portanto, suas cerimônias de admissão eram executadas pelo Grão-Mestre, ou Mestre que esse designasse, pois eram estritamente religiosas e em absoluto segredo, como já mencionamos. Por causa desse segredo, a Ordem sofreu as mais terríveis acusações.

Há também uma passagem no ritual templário, na qual o pão e o vinho eram consagrados em capítulo aberto durante uma esplêndida cerimônia: tratava-se de uma verdadeira eucaristia, um maravilhoso amálgama do sacramento egípcio com o cristão.

A Eliminação dos Templários

A supressão dessa poderosa Ordem é uma das maiores máculas na tenebrosa história da Igreja Católica Romana. Os relatos do processo francês foram publicados por Michelet, o grande historiador, entre 1851-61, e existe uma excelente compilação das provas apresentadas, tanto na França como na Inglaterra, em uma série de artigos que apareceram em 1907 na Ars Quattuor Coronatorum (XX, 47, 112, 269). Vamos apenas apresentar um esboço do que aconteceu:

Filipe, o Belo, então rei da França, necessitava desesperadamente de dinheiro. Já havia desvalorizado a moeda e aprisionado os banqueiros lombardos e judeus e, depois de confiscar-lhes suas riquezas, acusando-os falsamente de usura – algo abominável para a mente medieval –, expulsou-os de seu reino. Em seguida, resolveu desfazer-se dos templários, depois que eles haviam lhe emprestado bastante dinheiro e, como o papa Clemente V devia sua posição às intrigas de Filipe, o assunto não foi difícil de ser resolvido. Sua tarefa foi facilitada ainda mais pelas acusações apresentadas pelo ex-cavaleiro Esquin de Floyran, que tinha interesse pessoal no assunto e pretendeu revelar todo o tipo de coisas malévolas: blasfêmia, imoralidade, idolatria e adoração ao demônio na forma de um gato preto.

Essas acusações foram aceitas por Filipe com deleite. E em uma sexta-feira, 13 de outubro de 1307, todos os templários da França foram aprisionados sem nenhum aviso prévio por parte do mais infame tribunal que jamais existiu, um aglomerado de demônios em forma humana, chamado, em grotesca burla, de Santo Ofício da Inquisição que, nesses dias, tinha plena jurisdição naquele e em outros países da Europa. Os templários foram horrivelmente torturados, de modo que alguns morreram e os outros assinaram toda a classe de confissões que a Santa Igreja desejava. Os interrogatórios se relacionavam principalmente à suposta negação de Cristo e ao fato de terem cuspido na cruz e, em menor grau, com graves acusações de imoralidade. Um estudo das evidências revela a absoluta inocência dos templários e a engenhosidade diabólica mostrada pelos oficiais do Santo Ofício, encarregados da prisão dos acusados pela Inquisição, que os mantinha incomunicáveis, carentes de defesa adequada e de consulta pertinente, ao mesmo tempo em que faziam circular a versão de que o Grão-Mestre havia confessado diante do papa a existência de crueldades na Ordem. Os Irmãos foram convencidos por meio de adulações e promessas, subornados e torturados, até confessarem faltas que jamais haviam cometido, e tratados com a mais diabólica crueldade.

Assim era a “justiça” daqueles que usavam o nome do Senhor do Amor durante a Idade Média; assim era a compaixão exibida em relação a seus fiéis servidores, cuja única falta foi a riqueza, obtida legalmente para a Ordem e não para si mesmos. Filipe, o Belo, obteve dinheiro. Mas, que carma, mesmo com 20 mil vidas de sofrimento, poderá ser suficiente para um ingrato vil? A Igreja romana, sem dúvida, tem sua participação. E pergunto: como cancelar uma maldade tão incrível quanto essa?

O papa desejava destruir a Ordem e reuniu o concílio em Viena, em 1311, com tal objetivo, mas os bispos recusaram-se a condená-la sem primeiro escutá-la. Então, o papa aboliu a Ordem em um consistório privado efetuado em 22 de novembro de 1312, apesar de ter aceitado o fato de que as acusações não haviam sido comprovadas. As riquezas do Templo deviam ser transferidas à Ordem de São João; porém, o certo é que a parcela francesa foi desviada para os cofres do rei Filipe.

O último e mais brutal ato dessa desumana tragédia ocorreu em 14 de março de 1314, quando o Venerável Jacques de Molay, Grão-Mestre da Ordem Templária, e Gaufrid de Charney, Grande Preceptor da Normandia, foram queimados publicamente como hereges reincidentes, em frente à grande Catedral de Notre Dame. Quando as chamas os rodearam, o Grão-Mestre incitou o rei e o papa a que, antes de um ano, se reunissem a ele diante do trono de julgamentos de Deus e, de fato, tanto o papa como o rei morreram dentro do prazo de 12 meses.

Temos notícias que alguns cavaleiros templários franceses se refugiaram entre seus Irmãos do Templo da Escócia e, naquele país, suas tradições chegaram a fundir-se, em certa medida, com os antigos ritos celtas de Heredom, formando, assim, uma das fontes das quais mais tarde brotaria o Rito Escocês Antigo e Aceito.

Há muito pouco tempo, a escritora Barbara Frale encontrou na biblioteca do Vaticano um documento denominado “Chinon”. Trata-se de uma carta na qual o papa Clemente V perdoa o Grão-Mestre Jacques de Molay. Você poderá saber disso com mais detalhes na obra de Barbara Frale: Os Templários – E o Pergaminho de Chinon encontrado nos arquivos secretos do Vaticano, da Madras Editora.

Por Wagner Veneziani Costa

#Templários

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/cavaleiros-templ%C3%A1rios

‘Louis Claude de Saint-Martin

Louis Claude de Saint-Martin, o “Filósofo Desconhecido”, pensador profundo e grande iniciado, nasceu a 18 de janeiro de 1743 em Amboise, Tourraine, no centro da França, no seio de uma família nobre, mas pouco abastada e desconhecida. Logo depois do nascimento de Saint-Martin, sua mãe faleceu, e ele foi criado pelo pai e por uma madrasta, pessoa amável e de bom coração, que o iniciou na leitura de Jacques Abbadie, ministro protestante de Genebra. Com esse autor, apreendeu a conhecer a si mesmo, relegando a um plano secundário a análise decepcionante e estéril dos filósofos em voga na época.

“É à obra de Abbadie, A Arte de Conhecer a Si Mesmo, que devo meu afastamento das coisas mundanas; é a Burlamaqui que devo minha inclinação pelas bases naturais da razão; é a Martinez de Pasqually que devo meu ingresso nas verdades superiores; é a Jacob Böehme que devo meus passos mais importantes nos caminhos da Verdade.”(1)

Outro autor que influenciou o Filósofo Desconhecido desde sua juventude foi Pascal. Aos 18 anos, em meio às discussões filosóficas dos livros que lia, deu-se conta de que, existindo o Criador do Universo e uma alma, nada mais seria necessário para ser sábio. (2) Foi com base nessas concepções que fundou sua doutrina posterior. Na época de seus estudos no Colégio de Pontlevoi, o Ocultismo já fazia parte de suas meditações. Na Faculdade, igualmente, eram os estudos metafísicos que o atraíam. Estudou Direito conforme a vontade de seu pai, e esse ambiente proporcionou-lhe maior contato com o mundo filosófico e literário da época. Conheceu as obras de Voltaire, Rousseau, Montesquieu e outros autores não iniciados, mas sem ceder à inclinação dos enciclopedistas. “Li, vi e escutei os filósofos da matéria e os doutores que devastam o mundo com suas instruções; nenhuma gota de seus venenos penetrou-me; nem as mordidas de uma só dessas serpentes prejudicaram-me.”(3)

O jovem estudante procurava tudo o que pudesse conduzi-lo ao conhecimento da Verdade, particularmente as ciências e princípios exatos. Dedicou-se assim ao estudo filosófico dos números e, por algum tempo, esteve ligado a Lalande e sua escola filosófica, sintetizada em Ciência dos Números. Esse convívio, entretanto, não foi longo, pois seus pontos de vista eram divergentes e nosso Filósofo passou a estudar Jean Jacques Rousseau. Como ele, pensava ser o homem naturalmente bom; mas entendia que as virtudes perdidas originalmente, em razão da Queda, poderiam ser reconquistadas desde que o homem o desejasse ardentemente. Acreditava que o naufrágio no materialismo era conseqüência mais das associações viciosas e desvirtuadas do que do pecado original. E, nisso, afirma-nos seu discípulo Gence(4), ele se diferenciava de Rousseau, a quem considerava um misantropo por sua excessiva sensibilidade, ao olhar os homens, não como eram, mas como gostaria que fossem.

Saint-Martin amava a humanidade e considerava-a melhor do que parecia ser; e o encanto da sociedade da época levou nosso Filósofo a pensar que a vivência nas rodas sociais poderia levá-lo ao melhor conhecimento do homem e conduzi-lo à intimidade mais perfeita com os seus princípios. Assim, agiu conforme seu pensamento: freqüentou os saraus musicais e toda sorte de recreações da alta nobreza, desde os passeios ao campo até as conversas com amigos; os atos de gentileza eram a manifestação de sua própria alma.

“Foram de sua intimidade as pessoas da mais alta classe, dentre as quais podemos citar o Marquês de Lusignan, o Marechal de Richelieu, o Duque de Orléans, a Duquesa de Bourbon, o Cavaleiro de Fouflers e tantos outros que seria longo enumerar. Devotou-se inteiramente à busca da Verdade e à prática das Virtudes, que foram o objeto constante de seus estudos, dos seus trabalhos e das suas realizações.”(5)

Iniciado, pois no estudo das leis e da jurisprudência, aplicou-se mais à pesquisa das bases naturais da Justiça, relegando a um plano secundário as regras da jurisprudência. Paralelamente, desenvolvia seus estudos sobre os mistérios ocultos e logo descobriu que não poderia dedicar-se inteiramente à magistratura, como desejava sua família. Não encontrando sua vocação no Direito, abandonou a magistratura que exerceu em Tours durante seis meses. Alistou-se aos 22 anos de idade no Regimento de Foix, então aquartelado em Boudeaux, onde pode encontrar mais tempo para dedicar-se ao estudo do Ocultismo, que era sua verdadeira vocação. Após ter lido os autores mais em evidência no gênero, procurou a iniciação de uma maneira mais efetiva.

Foi graças a um colega do Regimento, Grainville, que bateu às portas do Templo. Grainville era iniciado em uma sociedade oculta muito importante, cujo chefe era Martinez de Pasqually. Este era casado com uma sobrinha do maior, comandante do Regimento, que se encontrava na mesma cidade de residência de Martinez. A Escola de Pasqually, seu iniciador nas práticas teúrgicas, era a Ordem dos Elus Cohens do Universo (Sacerdotes Eleitos), revigorada mais tarde pela ação de Saint-Martin e Jean Baptiste Willermoz, sob a inspiração das obras de M. Pasqually e de J. Böehme e a partir de suas próprias pesquisas.

Em fins de 1768, Saint-Martin foi iniciado nos três primeiros graus simbólicos da referida Ordem pela espada de Balzac, avô de Honoré de Balzac, o famoso romancista francês das primeiras décadas do século XIX. Com efeito, em carta de 12 de agosto de 1771, dirigida a seu colega Willermoz, de Lyon, confirmou ter sido iniciado por Balzac e que recebera de uma só vez os três graus simbólicos. “Não é comum darem-se os três graus simbólicos ao mesmo tempo; deixam-se, ao contrário”, prosseguiu Saint-Martin na referida carta, “grandes intervalos de tempo entre um grau e outro, segundo o progresso de cada um.”(6)

Assim, Saint-Martin submeteu-se em seguida ao método iniciático de Pasqually, de quem se tornou secretário particular e discípulo zeloso. Mas não deixou, logo depois, de criticar seu primeiro Mestre, por não concordar com tudo o que era feito em tal sistema. Considerava supérfluas todas as manifestações físicas exteriores e todos os detalhes do cerimonial Cohen: “São necessárias todas essas coisas para orar a Deus?”, perguntou Saint-Martin a seu mestre Martinez. “É preciso que nos contentemos com o que temos”(7), respondeu o Grão-Mestre.

Na realidade, era necessário trabalhar mais profundamente no sentido interior para produzir a luz. Isso certamente Martinez teria feito dentro de seu próprio sistema, se não tivesse partido da França e falecido em seguida. Sua semente ficou, no entanto, e coube a Saint-Martin e a Willermoz cuidar da planta que deveria nascer. A Providência Divina não os deixou abandonados; inspirou-os constantemente, colocando em seu caminho homens que os ajudaram, direta ou indiretamente, e proporcionando-lhes o conhecimento do sistema de Jacob Böehme. Esse sistema confirmou as descobertas que tinham feito e abriu as portas para a obtenção das chaves ainda não encontradas.

Na época em que conheceu Pasqually, tinha pouco mais de vinte e cinco anos e acabava de debutar no Ocultismo, de sorte que nem todas verdades da Iniciação pode receber de seu primeiro mestre, com o qual permaneceu cinco anos. Soube reconhecer mais tarde sua grandeza (porque é bom que se afirme que Martinez de Pasqually foi um adepto de grande iluminação).

“Havia coisas preciosas em nossa primeira Escola”, relata Saint-Martin a seu discípulo Kircheberger. “Sou mesmo induzido a pensar que o Sr. Martinez de Pasqually, que era nosso mestre, possuía a chave ativa referente a tudo o que nosso prezado Jacob Böehme expõe em suas teorias, mas não julgava que fôssemos capazes de entender tão altas verdades, naquela época. Ele era sabedor de alguns pontos que nosso amigo Böehme não conhecia, ou pelo menos não revelou, como a resipiscência do ser perverso, contra o qual o primeiro homem teria tido a missão de trabalhar… Quanto à Sofia e ao Rei do Mundo, ele nada nos revelou, deixando-nos com as noções comuns de Maria e do Demônio. Mas não afirmarei que ele não teve conhecimento delas e estou convicto de que chegaríamos a esse conhecimento, se o tivéssemos conosco por mais tempo…”(8)

Saint-Martin nunca concordou com a iniciação realizada fora do silêncio e da realidade invisível, que chamava de centro ou via interior. Para ele, o interior deve ser o termômetro, a verdadeira pedra de toque do que passa fora…; e o estudo da Natureza exterior só teria sentido se conduzisse à senda interior, ativa. Esse estudo poderia, pois, ser útil na medida em que conduzisse à Verdade, mas a Iniciação, explicava ele a Kircheberger, deve agir no ser central.

“Não lhe ocultarei que anteriormente entrei nesse caminho externo, e através dele me foi aberta a porta de minha carreira. Meu condutor era um homem de muitas virtudes ativas, e a maioria daqueles que o seguiram, inclusive eu, receberam confirmações que talvez tenham sido úteis para nossa instrução e desenvolvimento. Todavia, em todos os instantes, eu sentia forte inclinação para o caminho intimamente secreto, o externo nunca me seduziu, nem em minha juventude.”(9)

Entendia Saint-Martin que todo o aparato exterior não era necessário para encontrar Deus e que, ao contrário, em muitas ocasiões dificultava essa busca. Discordava das numerosas e freqüentes comunicações sensíveis de todos os tipos, manifestadas nos trabalhos de que tomava parte na sua primeira Escola, embora o signo do Reparador sempre estivesse presente, manifestando a ação da Causa Ativa e Inteligente no mundo objetivo. Afirmava, no entanto, que sua senda interior, desenvolvida depois, proporcionava-lhe resultados mil vezes superiores aos produzidos pela senda que denominava exterior e que era preconizada por Pasqually.

Afirmava, no entanto, e é bom repetir, que deveria haver trabalhos internos da Ordem que não lhes foram transmitidos por causa de sua curta passagem pelo sistema e por não terem ainda passado pelos estágios iniciais. O Mestre não poderia ter agido de modo diferente, revelam-lhes os mistérios de ordem mais elevada. Acreditava, ademais, que os Princípios Divinos poderiam mesmo nascer naquele sistema, mas os trabalhos para esse efeito deveriam ser mais alguns anos com Pasqually.

Não apenas Saint-Martin discordava do sistema de Martinez, uma vez que os resultados não se produziam de imediato; todos os discípulos reclamavam resultados espirituais que, em verdade, dependiam deles próprios. Willermoz parece ter sido o primeiro a manifestar a Saint-Martin seu descontentamento no que dizia respeito ao desenvolvimento das faculdades adormecidas do ser humano; é o que constatamos através da leitura de uma carta endereçada por Saint-Martin, do Oriente de Bordeaux, com data de 25 de março de 1771.

“Quanto à confiança que vos dignais a testemunhar-me, abrindo-me sem escrúpulos vosso pensamento sobre nossas cerimônias, não me compete, tendo em vista nossa dignidade, fazer qualquer observação a respeito; e, diante de meu juiz, eu só deveria escutar e calar. Entretanto, as disposições puras que trazeis à Sabedoria fazem-me supor que poderíeis perdoar-me antecipadamente se ouso acrescentar, às vossas, algumas idéias próprias. Procuro, como vós, esclarecer-me… Confesso que o objetivo que buscamos na iniciação parece-me muito difícil de ser atingido.

Acredito que, mesmo nos encontrando nas melhores condições, quando todas as cerimônias são empregadas com a maior regularidade, a Coisa pode ainda guardar seu véu para nós tanto quanto quiser; ela está tão pouco à disposição do homem que ele não pode, jamais, apesar de seus esforços, estar certo de obtê-la. Ele deve esperar e orar sempre, eis nossa condição. O espírito conduz seu sopro onde quer, quando quer, sem que saibamos de onde vem e para onde vai… Se o poder não se manifesta agora, ele poderá ocorrer mais tarde; se não se opera pela visão, ele prepara a forma daquele que se mantém puro para receber as impressões salutares, quando o espírito assim quiser. Não atribuais, então, o estado em que vos encontrais a algum problema de vossa parte ou à invalidade das cerimônias.”(10)

Willermoz procurava obter por carta maiores esclarecimentos acerca dos problemas que iam surgindo no transcorrer de sua jornada iniciática. Pelo que constatamos, os resultados práticos da iniciação não apareciam tão rapidamente como os discípulos desejavam. Era necessário muito trabalho, como em qualquer sistema de iniciação, para que surgisse alguma manifestação de aprimoramento espiritual.

A correspondência entre Saint-Martin e Willermoz, iniciada em 1768, estendeu-se até 1773. Em 1771, Saint-Martin abandonou a carreira militar para dedicar-se exclusivamente ao Ocultismo. Durante dois anos empregou todo o tempo disponível para trabalhar ao lado do mestre; foi durante esse período que se familiarizou com a ritualística dos Cohens e com a doutrina de Martinez, bem como com todas as suas práticas iniciáticas.

Partiu de Bordeaux em maio de 1773, na ocasião em que Martinez preparava-se para viajar para as Antilhas. Antes de se despedir, entretanto, Saint-Martin foi recebido no último grau dos Cohens, aquele de Réaux-Croix, como atesta uma carta de Martinez, datada de 17 de abril de 1772: “Após ter examinado e reexaminado os candidatos Saint-Martin e Seres, por nossa votação ordinária e em conseqüência das ordens que recebemos, nós os ordenamos Réaux-Croix…”(11)

Em 1773, finalmente, Saint-Martin conheceu Willermoz, em Lyon, após terem trocado correspondência durante cinco anos. Seu círculo de amizade limitava-se aos irmãos da Ordem: Grainville, Balzac, Hauterive, Bacon de la Chevalerie, o Abade Fournier e Willermoz. Permaneceu um ano em Lyon, seguindo para sua cidade natal e, posteriormente, para Paris. Em abril de 1785, Willermoz obteve sucesso com suas operações: a “Coisa ativa e inteligente” finalmente mostrou-se aos homens.

Saint-Martin, sabendo da notícia, partiu de Paris em junho do mesmo ano, com destino a Lyon, levando consigo uma bíblia em hebraico e um dicionário, para entreter-se na viagem. Ficou seis meses em Lyon, partindo mais tarde para Nápoles e Londres, onde tomou conhecimento das publicações de Willian Law, morto em 1761, e que pertencia à tradição de Jacob Böehme.

“Seríamos excessivamente prolixos se procurássemos seguir as pegadas do nosso Filósofo Desconhecido, ao longo de sua jornada terrena, onde a cada passo, não obstante, encontraríamos o exemplo dignificante e o traço indelével da imensa esteira de luz que marcou sua trajetória neste mundo. Difícil ainda seria penetrarmos na profundeza do seu pensamento, da sua filosofia, da sua doutrina de elevação e regeneração do homem na busca da iluminação e da paz…”(12)

Foi inicialmente de Lyon que o Filósofo Desconhecido procurou irradiar a luz, após a partida de Martinez para o Oriente Eterno. A direção da Ordem dos Elus Cohen não ficou com Saint-Martin nem com Willermoz, mas nas mãos de pessoas menos preparadas para levar adiante um sistema que ainda necessitava de aperfeiçoamento. Coube a Saint-Martin e a Willermoz a resignação de continuarem ocultamente a pesquisa da Verdade por suas próprias forças. O “Agente Incógnito” teria ditado inúmeras instruções e partes de um livro que Louis Claude de Saint-Martin publicou, destinado a lutar contra o materialismo vigente na época. (13)

Talvez por esse motivo Saint-Martin tenha iniciado uma série de viagens, verdadeiros apostolados, para realizar propaganda das idéias espiritualistas, recolher dados e informações iniciáticas e entrar em contato com discípulos e homens de ciência. Em todos esses contatos sempre conquistava novas amizades e discípulos para continuarem sua obra. Saint-Martin tinha uma conversa muito agradável, uma vez que seu verbo não fazia senão expressar sua paz interior, seus conhecimentos e a nobreza de sua alma.

Os salões mais aristocráticos de Paris disputavam sua presença. Essas qualidades eram agradáveis às mulheres, que não hesitavam em convidá-lo para as festas, pensando em casar suas filhas. Mas o Filósofo Desconhecido quis dedicar-se integralmente à sua obra de divulgação do Espírito. Em 1778, em Toulouse, esteve prestes a se casar; contudo, esse projeto desvaneceu-se como todos os demais a esse respeito. Afirmava sentir uma voz no seu interior que lhe dizia ser ele originário de um lugar onde não existem mulheres.

Agente Incógnito desapareceu de cena em 1788, época em que Saint-Martin retornou à Lyon, mas reapareceu em 1790 para destruir uma série de cadernos de instruções por ele próprio ditados: “Eu devolvi ao Agente“, conta-nos Willermoz, “a seu pedido, mais de 80 cadernos manuscritos inéditos, que destruiu.”

Com a morte de Pasqually, ocorrida em 1774 em São Domingos, o centro oculto da iniciação Cohen passou a Lyon e foi lá, como contam seus biógrafos, “que o Filósofo Desconhecido, armado com a Sabedoria Divina, passou a fazer oposição à doutrina materialista dos Enciclopedistas. Combatendo o materialismo revolucionário e sua doutrina errônea inserida em uma pretensa filosofia da natureza e da história, Saint-Martin chamou o homem de volta à Verdade, fundamentando-se no princípio do conhecimento de si mesmo e na natureza do ser inteligente”.(14)

Saint-Martin, entretanto, nunca ficou muito ligado ao rigor das instituições iniciáticas, mas, em razão da problemática da época, em pleno desenvolvimento da Revolução Francesa, procurou, para a salvaguarda das suas próprias doutrinas e das tradições de que então já era depositário, unir-se a grupos ou formar grupos cujos membros desejassem, sinceramente, dedicar-se ao culto da Verdade e à prática das Virtudes. Estudava, paralelamente, as doutrinas de Pasqually e de Swedenborg, as primeiras mostrando-lhe a ciência do Espírito e as segundas a ciência da Alma.

“A Revolução, em todas as suas fases, encontrou Saint-Martin sempre o mesmo, dedicado a seu objetivo. Por princípio, esteve acima das considerações de nascimento e opiniões, por isso não emigrou; enquanto se mantinha ao seu redor todo o horror das desordens e dos excessos, acreditou sempre que o bem podia surgir do terrível advento da Revolução Francesa, pela intermediação da Divina Providência; pensou ver um grande instrumento temporal no homem que se levantou para suprimir seus excessos.

“Foi em 1793, quando a família e a sociedade dissolviam-se, que vendeu as suas últimas posses para manter e cuidar de seu pai, velho e paralítico. Na mesma época, não obstante os estreitos limites a que ficou reduzida a sua fortuna, contribuiu para as necessidades públicas de sua comunidade. Retornando à capital, foi atingido pelo decreto de expulsão dos nobres. Saint-Martin submeteu-se e deixou Paris.(15)

Durante o terror revolucionário, era necessária muita prudência, mesmo para os assuntos iniciáticos. Saint-Martin recebeu um mandado de prisão, embora vivesse mergulhado nos estudos e na meditação, sem nunca ter feito política. Não subiu ao cadafalso porque Robespierre caiu em seguida. Havia a proteção do Alto, que o guiava na terra, obscurecida pela agitação dos homens.

“Uma corrente de prestígios inundou a inteligência humana em geral, e a dos parisienses em particular, porque a cidade, que comporta sábios e doutores de toda espécie, possui poucos que orientam seu pensamento na direção dos conhecimentos verdadeiros, e há menos ainda que buscam esses conhecimentos com um espírito reto. A maior parte deles não fazem mais que dissecar as cascas da Natureza, medir, pesar e enumerar todas as suas moléculas. Eles tentam, insensatos, a conquista de tudo que se encontra em composição no Universo, como se isso lhes fosse possível. Esses sábios, tão célebres e tão ruidosos, não sabem que o Universo (ou o Templo) é a imagem reduzida da indivisível e universal eternidade; eles podem contemplar e admirar, pelo espetáculo de suas propriedades e de suas maravilhas, … mas jamais poderão conquistar o segredo de sua existência.”(16)

Saint-Martin, para cumprir seu dever cívico, serviu na Guarda Nacional e, em Amboise, foi escolhido para ser um dos instrutores da Escola Normal Superior, que formava jovens professores; tomou parte em 1795 da primeira Assembléia Eleitoral, sem contudo tornar-se membro efetivo de qualquer corpo legislativo. O que buscava era o Conhecimento e a difusão de suas doutrinas. Jamais fez proselitismo e procurava ter por discípulos amigos fiéis da Verdade. Quem visse seu jeito humilde jamais poderia suspeitar de sua elevada espiritualidade. Sua docilidade para com o tratamento, sua serenidade, manifestava no entanto o sábio, O Novo Homem formado pela filosofia profunda do aperfeiçoamento moral e espiritual. A luz que irradiava de seu centro fazia justiça à sua condição de Homem-Espírito, o grande sol da transição ao século XIX.

Foi em 1788, em Estrasburgo, que Saint-Martin tomou conhecimento das obras de Jacob Böehme, o Teósofo Teutônico, através de Rodolphe de Salzmann. Surpreso, constatou que essa doutrina combinava com a de seu antigo mestre Martinez de Pasqually, sendo idênticas em essência.. Coube a ele a tarefa de fazer o feliz casamento das duas correntes doutrinárias, elaborando um sistema sintático, capaz de satisfazer seus anseios e colocar à disposição de todos os Homens de Desejo um caminho seguro para chegar à Iluminação.

A síntese iniciática foi obtida em poucos anos de trabalho pelo nosso Filósofo Desconhecido, secundado que foi por seu colega Jean Baptiste Willermoz. Necessitava, entretanto, de uma transmissão iniciática da corrente de Böehme para associar à sua, advinha de Pasqually. Essa corrente alemã de Jacob Böehme foi obtida ao ser iniciada pelo Barão de Salzmann, em Estrasburgo, e confirmada na linha mais antiga dos Templários, ao associar-se com a Estrita Observância Templária, do Barão de Hund.

Willermoz foi o encarregado, em Lyon, de organizar o sistema maçônico do Rito Escocês Retificado, fruto do Convento de Wilhelmsbad de 1782. Coube a Saint-Martin a chefia e a realização de iniciações individuais da Ordem Interior dos Filósofos Desconhecidos. Vários alemães foram iniciados no novo sistema (muitos dos quais já eram discípulos de Martinez de Pasqually), ingressando na iniciação real que conduz à Iluminação e à Reintegração a partir deste mundo na Unidade Divina.

Saint-Martin considerava as obras de Jacob Böehme de uma profundidade e de um valor inestimáveis e não se achava digno nem de desatar as sandálias de Jacob Böehme; entendia que seria necessário que o homem se tivesse tornado pedra ou demônio para não tirar proveito de tais obras. (17)

Foi assim que passou a estudar o alemão, com quase 50 anos de idade, para melhor penetrar no sentido oculto e no pensamento do autor. Procurou traduzir para o francês as principais obras do Mestre. A partir de então, sempre que se referia a Jacob Böehme dizia que o Iluminado teutônico foi a maior luz que veio a este mundo depois daquele que era a própria Luz, isto é, o Cristo.

Após ter percorrido parte da Europa, estabeleceu seu apostolado em Toulouse, Versailles e Lyon, sempre lançando a semente espiritual em uma terra que se tornou fecunda, recolhendo ele próprio as doutrinas mais apropriadas para o seu espírito e seu sistema. Mais tarde, centralizou sua ação em três cidades: Estrasburgo, Amboise e Paris, que eram, como confessou, seu paraíso, seu inferno e seu purgatório. Fora dessas cidades possuía membros correspondentes de sua sociedade, como o Barão de Kircheberger, que não chegou a conhecer, mas a quem enviou um emissário, o Conde Divonne, para certamente lhe transmitir a iniciação. Kircheberger era grande admirador das obras de Saint-Martin; pertencia à Escola de Böehme, da qual tomaram parte igualmente Khunrath e Gichtel.

Kircheberger escreveu a Saint-Martin que, segundo uma lenda corrente em sua Escola, a Virgem Celeste, a Divina Sofia, nos dias das núpcias compareceu com seu corpo celeste de Glória e escolheu Gichtel, vindo à sua casa, colocando em ordem seus papéis e completando com seu próprio punho os manuscritos por ele deixados inacabados. Em vida teria igualmente recebido favores de sua esposa celeste, pois como general venceu o exército de Luiz XIV, que pretendia conquistar Amsterdã, cidade onde o adepto residia. Durante toda a batalha, o general não teria saído do quarto.(18)

Não somente Saint-Martin acreditava no relato de Kircheberger, como lhe pedia maiores detalhes sobre Gichtel. “Se estivéssemos um perto do outro, escreveu-lhe Saint-Martin, eu também teria uma história de casamento para vos contar. Os mesmos passos foram dados por mim, mas de um modo um pouco diferente, embora chegando aos mesmos resultados. Creio, com efeito, ter conhecido a esposa de Gichtel…, mas não de modo tão particular como ele. Eis o que me aconteceu por ocasião do casamento de que falei: eu estava orando… e me foi dito intelectualmente, mas de modo muito claro, o seguinte: Depois que o Verbo é feito carne, nenhuma carne deve dispor dela própria sem que Ele o permita. Essas palavras penetram profundamente em meu ser; ainda que não tenham significado uma proibição formal, recusei-me a toda negociação posterior.”(19)

Acredita-se que a chave da iniciação está no desejo do homem de purificar-se, de evoluir e de atingir a iluminação. Essa evolução é necessária para remediar a degradação a que o homem se submeteu após a Queda Original. Antes, o homem podia obrar em conformidade com a Vontade do Pai, sendo dessa maneira poderoso, mas após ter se revestido de um envoltório material, suas capacidades espirituais atrofiaram-se e a Vontade e a pureza de outrora aniquilaram-se. Foi na cidade de Estrasburgo que Saint-Martin deu a um discípulo a chave de O Homem de desejo, que, por extensão, serve para a própria Iniciação:

A Chave do Homem de Desejo.

Avant qu’Adam mangeât la pomme,
Sans effort nous pouviouns oeuvrer.
Depouis, L’oeuvre ne se consomme.
Qu’au edu pur d’un ardent supir;
La Clef de l’Homme de Désir
Doit naître du désir de l’homme.

Isto é, antes de Adão ter comido a maçã, o homem podia realizar sua obra sem esforço; depois, a obra não se concretiza a não ser com a ajuda do fogo puro, emanado de um ardente suspiro, advindo do grande esforço individual. Assim, a chave do Homem de Desejo deve nascer do desejo do homem.

Seu livro O Homem de Desejo, publicado pela primeira vez em 1790, são litânias no estilo do salmista, nas quais a alma humana evolui para o seu primeiro estágio, num caminho que o Espírito pode ajudá-la a percorrer.

Saint-Martin escreveu este livro por sugestão do filósofo religioso Thiaman, durante suas viagens a Estrasburgo e a Londres. Lavater, então clérico em Zurique, elogiou essa obra como um dos livros que mais tinha gostado, embora reconhecesse não ter tido condições de penetrar nas bases da doutrina exposta. Kircheberger, mais familiar aos princípios do livro, considerou-o como o mais rico em pensamentos iluminados. O próprio Saint-Martin concordou que nesse livro encontram-se os germes do conhecimento que ignorava até a leitura das obras de Jacob Böehme.

O objetivo de seu livro O Homem de Desejo é mostrar que o homem deve confiar na Regeneração, chamando sua atenção para a necessidade de retorno ao Mundo Divino de onde saiu e ao trabalho que deverá realizar para alcançar esse objetivo, isto é, concentrando suas forças pelo desejo ardente de aperfeiçoar-se e tornar-se um homem de vontade forte.

“Não há nenhum outro mistério para se chegar a essa sagrada iniciação, senão penetrando cada vez mais no fundo de nosso ser e não esmorecendo até que possamos produzir a viva e edificante raiz; porque, então, todos os frutos que haveremos de gerar, conforme nossa espécie, serão produzidos dentro de nós e sem nós, naturalmente; é o que ocorre com nossas árvores terrestres, porque elas aderem às próprias raízes e, incessantemente, retiram sua seiva.”(20)

Compreende-se, assim, que o ensinamento deixado por Saint-Martin, e que veio de Martinez de Pasqually e de Jacob Böehme, era muito profundo e de natureza divina. Constitui-se uma Escola de Homens de Desejo, ávidos por adquirirem conhecimentos, uma elite do pensamento, embaçada em um sistema filosófico iniciático, tendo como objetivo o desenvolvimento moral e espiritual do homem. Não é uma Escola de especulação abstrata, mas um centro onde os membros procuram conhecer a doutrina e a experiência dos mestres e onde procuram vivê-la na vida diária, para atingir a perfeição interior, através de um processo de autotransformação.

Os grupos de homens livres eram formados por um pequeno número de pessoas inteligentes e de mente sã, escrupulosamente examinadas, Saint-Martin dizia que as grandes verdades só podem ser bem ensinadas no silêncio. Todos aqueles que não sabem calar, que falam mais do que observam, não podem ser recebidos na senda interior. Saber guardar o silêncio é condição indispensável para que o homem se torne digno de receber outros ensinamentos cada vez mais profundos, emanados não apenas de seu iniciador, como do próprio Mundo Invisível. Para isso, necessitamos de treinamento, que se efetua guardando-se o silêncio em relação às pequenas coisas, mesmo profanas. Qualquer sociedade iniciática não pode ser aberta, pois assim perderia a força que porventura tivesse recebido do Alto. Guardar o silêncio significa fechar-se às influências exteriores, às opiniões contrárias que só trazem ações conflitantes. Fechar-se em torno de si mesmo é magnetizar-se; é evitar que as próprias forças divinas se dispersem na Natureza, passando por nós. É criar um pólo de atração; é tornar-se um receptáculo das influências celestes; é tornar-se a taça que recebe o influxo divino.

A Iniciação é um processo interior de aperfeiçoamento do homem, tornando-o apto a receber as forças divinas. O homem é a soma de todos os problemas da existência; é a síntese, o enigma dos enigmas, a pedra bruta que deve ser talhada e aperfeiçoada. Esse desenvolvimento deve ocorrer de tal modo que o ser criado se religue ao Criador, através da aproximação da natureza impura com a natureza pura. Por isso, a primeira deve ser trabalhada até ficar quase no mesmo estado da segunda; somente depois haverá uma atração tal, que a Natureza Superior descerá até a inferior, purificando-a em definitivo e deixando-a conforme ela mesma: é a Iluminação do Iniciado.

Aquele que possuir o conhecimento de si mesmo terá acesso à ciência do mundo, dos demais seres. O conhecimento de si próprio é somente em si que deve buscar. É no espírito do homem que se devem encontrar as leis que dirigem sua origem. É preciso, pois, que o iniciado encontre seu centro iniciático, a divindade em si, para adquirir o pleno conhecimento de si mesmo. É necessário conhecer suas fraquezas para melhor dominá-las e não voltar a praticar os mesmos erros. Jesus Cristo dizia aos homens para não pecarem mais menos, até o dia em que, tendo encontrado seu equilíbrio iniciático, possam chegar a não pecar mais. Sua luta deve ser constante, contra as paixões, suas contrariedades internas e a ira. A docilidade representa a presença de Deus no centro iniciático; a ira representa a sua ausência.

“O homem não pode ser integralmente livre da ira e do pecado porque os movimentos do abismo deste mundo tampouco são totalmente puros ante o coração de Deus; o amor e a ira sempre lutam entre si.”(21)

A doutrina de Saint-Martin difundiu-se na Alemanha e na Rússia, através de seus discípulos. Na Rússia, a doutrina martinista encontrou um grande divulgador em Joseph de Maistre, que afirmava a existência de Deus no interior de cada indivíduo e, por conseguinte, que o segredo de toda a iniciação consistia em descobrir o centro iniciático próprio, a senda interior, a fim de proceder ao próprio desenvolvimento espiritual. Assim, a iniciação é uma senda real, interior, individual, e não se encontra no exterior, nas sociedades ou no Enciclopedismo.

Em 1803, o Filósofo Desconhecido dava seus últimos passos em direção à Eternidade, pois sua saúde mostrava-se débil. Mas não se afligiu com essa perspectiva; ao contrário, dizia que a Providência sempre lhe havia dispensado muito cuidado, de modo que só poderia render-lhe graças.

Conta-nos Gence que certa vez, visitando um amigo comum, Saint-Martin confessou-lhe que estava partindo para o Oriente Eterno e no dia seguinte, visitando seu amigo o Conde Lenoir la Roche, em Aulnay, após leve refeição, retirou-se para o quarto; sofreu um ataque de apoplexia e partiu. Era o dia 13 de outubro de 1803. Foi então que seus discípulos e amigos perderam a convivência física com o Mestre, mas ganharam a eterna e permanente proteção espiritual que nos envia do Reino da Glória, através dos Mundos Invisíveis.

Hoje, a obra de Louis Claude de Saint-Martin continua através dos Grupos de Iniciados que seguem sua doutrina. A Conquista da Iluminação é o objetivo último de todos os Homens de Desejo, que encontram nas obras do Mestre e no seu exemplo, como Homem e como Iniciado, o respaldo necessário para prosseguir na senda sem desânimo.

Que cada um possa transformar-se em um Novo Homem, renascido pela Luz, que resplandece na alma de todos, e que engendrará, no futuro, o Homem-Espírito, o novo Sol que acalentará os corações de todos com seu procedimento e com sua serenidade.

OBRAS DE LOUIS CLAUDE DE SAINT-MARTIN

1-) Des Erreurs et de la Vérité, ou les Hommes Rappelés au Principe Universel de la Science. Edimbourg, 1775, 2 vol.

2-) Suite des Erreurs et de la Vérité. A Salomonopolis, Androphile, 1784.

3-) Tableau Naturel des Rapports qui Existent entre Dieu, l’Homme et l’Univers. Édimbourg. 1782.

4-) L’Homme de Désir. Lyon, 1790.

5-) Ecce Homo. Paris, Cercle Social, 1792.

6-) Le Nouvel Homme. Paris, Cercle Social, 1792.

7-) Letre à un Ami, ou Considérations Philosophiques et Religieuses sur la Révolution Française. Paris, Louvet, Palais, Égalité, 1796.

😎 Éclair sur l’Association Humaine. Paris, Marais, 1797.

9-) Le Crocodille ou la Guerre du Bien et du Mal, Arrivée sous le Règne de Louis XV. Paris, Cercle Social, 1798.

10-) Réflexiones d’un Observateur sur la Question Proposée por l’Institut: “Quelles sont les Institutions les plus Propres à Fonder la Morale d’un Peuple?. Paris, 1798.

11-) De l’Influence des Signes sur la Pensée (inserido incialmente no Crocodile). Paris, 1799.

12-) L’Esprit des Choses ou Coup d’Deil Philosophique sur la Nature des Étres et sur l’Objet de leur Existence. Paris, 1800, 2 vol.

13-) Le Ministère de l’Homme-Esprit. Paris, 1802.

14-) Oeuvres Posthumes de Saint-Martin. Tours, 1807, 2vol.

15-) Traité des Nombres. S/1, M. Léon, 1844.

16-) Correspondence de Saint-Martin avec Kircheberger, Baron de Liebisdorf, des annèes 1792 a 1799, S. n. t.

TRADUÇÕES DAS OBRAS DE JACOB BÖEHME

17-) L’Aurore Naissante ou la Racine de la Philosophie, de l’Astrologie et de la Théologie. Paris, 1800.

18-)Des Trois Principes de l’Essence Divine ou de l’Eternel Engendrement sans Origine de l’Homme, d’où il a été Crée et pour quelle Fin. Paris, 1802, 2 vol.

19-)Quarente Questions sur l’Origine, l’Essence, l’Etre, la Nature et la Propriété de l’Âme, suivies des “Six Poit”. Paris, 1807.

20-) De la Triple Vie de l’Homme selon de Mystère des Trois Principes de la Manifestation Divine. Paris, 1809.

NOTAS

1- SAINT-MARTIN, L. C. Oeuvres Posthumes; Portrait Historique et Phisosophique de Saint-Martin fait par lui-même, p. 58-59.

2- Id., t.1, p.5.

3- Id., t.1, p.78-9.

4- J. B. M. Gence foi discípulo de Saint-Martin e com ele conviveu longos anos: seu relato encontra-se no prefácio de Teosophic Correspondence between L. C. de Saint-Martin and Kircheberger, Baron de Liebistorf, P. V.

5- Id., p. VI.

6- PAPUS. L’Illuminismo en France, 1771-1803: Louis-Claude de Saint-Martin, as Vie, as Voie Theurgique, ses Oeuvrages, son Oeuvre, ses Disciples, suivi de la Publicatino de 50 Letters Inédites, p. 109.

7- MATER, M. Saint-Martin, le Philosophe Inconnu. Ed. d’Aujourd’hui, p. 20.

8- SAINT-MARTIN, L. C. Theosophic Correspondense, op. Cit. Carta XCII.

9- Id. Carta IV.

10- PAPUS. Louis Claude de S. Martin. 1902.

11- Id., p. 12.

12- Comentário deixado por Ary Ilha Xavier, profundo conhecedor das obras de Saint-Martin.

13- Des Erreurs et de la Vérité. Edimbourg, 1775, 2v.

14- Gence. Op. Cit., p. IV.

15- Id., p. VII.

16- SAINT-MARTIN, L.C. Le Crocodile, Canto XV, p.53.

17- SAINT-MARTIN, L.C. Mont Portrait. Op. Cit., p. 42.

18- SAINT-MARTIN, L.C. Theosophic Correspondence. Op. Cit. Carta LVIII.

19- SAINT-MARTIN, L.C. Theosophic Correspondence Op. Cit. Carta LXII.

20- SAINT-MARTIN, L.C. Theosophic Correspondence. Carta número CX.

21- BÖEHME, J. Confesiones, p. 44.

Original foi retirado do site da Sociedade das Ciências Antigas.

1743 – 1803

[…] Postagem original feita no https://mortesubita.net/biografias/louis-claude-de-saint-martin/ […]

Postagem original feita no https://mortesubita.net/biografias/louis-claude-de-saint-martin/