Dharma: a Base da Vida Humana

por Swami Paratparananda

(*) Publicado na edição de Nov/Dez de 1984 da revista “Vedanta Kesari”

(Cedo ou tarde o homem descobre que os prazeres que os sentidos trazem a ele são extremamente transientes e até contra-produtivos. É o Dharma que o coloca em contato com o mundo supra-sensório da Realidade e o eleva da existência do bruto para a vida Divina. Swami Paratparananda, dirigente do Ramakrishna Ashrama, Argentina (**) e um ex-editor da “Vedanta Kesari”, explica como Sri Ramakrishna enfatiza que o principal ingrediente do Dharma ou disciplina religiosa é a renúncia – externa, se possível, mas interna, categoricamente).

(**) de 1973 a 1988.

Vários são os significados deste termo sânscrito, Dharma. Por exemplo, retidão, a natureza inata de algo, deveres devido ao nascimento e posição na vida, são alguns deles. Nós lidaremos aqui com o mencionado em primeiro lugar, isto é, retidão, retitude ou religião como é algumas vezes definido. É claro que na Índia a religião inclui deveres de acordo com varna e âsrama (nascimento e posição na vida) apesar de que estes são conceitos não tão rigidamente praticados hoje em dia. Religião ou Dharma é algo mais do que a mera conformidade com obrigações sociais, restrições ou regras; mais do que meros dogmas e credos. Regras sociais e códigos morais podem e realmente mudam de acordo com a época e lugar. Por exemplo, o que é considerado como imoral em alguns países pode ser aceito como totalmente normal ou natural em outros, etc. Mas mera moralidade não é a meta e finalidade do homem. É apenas o meio para atingir algo superior, algo eterno e este algo é o sujeito da religião ou Dharma. Pode-se chamar este sujeito como Deus ou Espírito ou por qualquer outro nome.

A questão que surge na mente do homem moderno é: que papel pode a religião desempenhar na atual era de ciência e tecnologia? Poderá ela sobreviver aos ataques destas forças? Devemos lembrar que a ciência e a tecnologia lidam com a matéria, coisas perecíveis e não eternas. A matéria, por mais que possa durar, um dia se destrói; ela não pode durar para sempre, não pode ser permanente. Tendo sido composta de elementos, deve retornar mais cedo ou mais tarde aos seus elementos; e aquilo que não é permanente não pode dar felicidade duradoura. O homem nunca consegue felicidade duradoura. O homem nunca se satisfaz com a riqueza. Quanto mais ele tem, mais ele deseja. Assim também é o caso com os prazeres dos sentidos. O corpo pode ficar fraco, mas o desejo por eles não deixa o homem. Habilmente Bhartrihari disse no seu Vairagya Sataka: bhogâ na bhuktâ vayam eva bhuktâh, “Os prazeres mundanos não foram desfrutados por nós; pelo contrario nós mesmos temos sido devorados”. E ele continua: trsnâ na jirnâ vayam eva jirnâh, “O desejo não é enfraquecido, apesar de que nós mesmos nos debilitamos”. E mais: valibhir mukham âkrântam pâlitena ankitam sirah, gâtrâni sithilâyante trsnaikâ tarunâyate, “A face está coberta por rugas, a cabeça pintada de branco (por causa dos cabelos grisalhos), os membros se tornaram fracos, apesar de que apenas o desejo é sempre rejuvenescido”. Esta é a condição do homem entregue à satisfação dos sentidos. A ciência e a tecnologia ainda não descobriram métodos de parar ou prevenir este declínio ou deterioração das forças físicas e mentais do homem nem trazer a ele a satisfação que pode durar mesmo sob circunstâncias adversas como enfermidade e senilidade, etc.

Contudo, nós não dizemos que não existam pessoas que ignorem as realidades da vida e tentem desfrutar dos prazeres. Como o avestruz, que quando caçado, se diz, corre tanto quanto pode e enfia sua cabeça na areia e acredita que não há mais perigo ou inimigos. Para estas pessoas este mundo é tudo quanto existe.

No Kathopanishad, Yama diz: “O além nunca aparece diante das pessoas tolas, enganadas pela ilusão da riqueza. Aqueles que pensam: ‘Este é o único mundo e não há nenhum outro’, caem sob meu domínio inúmeras vezes”. Swami Vivekananda diz: “Somente os tolos correm atrás dos gozos dos sentidos. É fácil viver nos sentidos. É mais fácil andar pelo velho caminho com o piso batido, comendo e bebendo, mas o que estes modernos filósofos querem dizer a você é que peguem estas idéias confortáveis e coloquem o selo da religião nelas. Tal doutrina é perigosa. A morte jaz nos sentidos. A vida no plano do Espírito é a única vida, a vida em qualquer outro plano é apenas a morte”. Aqui nós encontramos a resposta também para aqueles que querem fazer da religião algo confortável, adaptada ao plano sensório.

O homem busca a felicidade e acha que pode obtê-la nos objetos dos sentidos; mas, tristemente, ele descobre que a felicidade que estes objetos podem dar é de muito pouca duração e que ele tem que ganhá-la a um custo muito elevado. Ele começa com tremendo otimismo, mas quando fica velho, gradualmente torna-se um pessimista. Swami Vivekananda declara: “A felicidade real não está nos sentidos, mas acima dos sentidos e está em todos os homens. O tipo de otimismo que vemos no mundo é o que levará até a ruína através dos sentidos.”

Novamente, por mais que o homem tenda a ignorar o fato de que o sofrimento, físico e mental é inevitável no plano sensório e mergulhe completamente nele, um dia chegará quando ele perguntará a si mesmo: “É isto tudo? Será a meta da vida viver como plantas e animais por alguns anos e morrer?” Isto é um imperativo, pois enquanto o homem retiver a faculdade do raciocínio, ele não pode deixar de colocar estas questões para si mesmo quando deparar com terríveis e insuperáveis circunstâncias. E este raciocínio deveria levá-lo a auto-análise e gradualmente à Religião, pois tendo sofrido no plano dos sentidos ele não tem outra alternativa além de tentar conseguir consolo de algo superior e não perecível.

Agora vamos ver o que a Religião realmente significa e o que ela pode fazer por nós. Religião é um sistema de disciplinas que traz uma penetração intuitiva na natureza real do mundo espiritual, pelo controle dos sentidos e a conquista da mente. Com esta penetração intuitiva, nós chegamos a conhecer o propósito real da vida humana, como também sobre a vacuidade do mundo sensual. Swami Vivekananda afirma: “Este nosso universo, o universo dos sentidos, racional, intelectual, está cercado de ambos os lados pelo ilimitado, o não-conhecível, o sempre desconhecido. Nisto está a busca, nisto estão as investigações, aqui estão os fatos; disto vem a luz que é conhecida para o mundo como religião. A Religião pertence ao Supra-sensório e não ao plano sensório. Está além de todo raciocínio e não está no plano do intelecto. É uma visão, uma inspiração, um mergulho no desconhecido e não-conhecível, fazendo o não-conhecível mais do que conhecido, pois ele jamais poderá ser conhecido.” Isto parece ser um paradoxo, à uma primeira leitura, mas se nós pararmos e refletirmos, poderemos ser capazes de compreender a verdade por detrás desta afirmação. A mente humana em sua forma impura pode conhecer apenas coisas apresentadas a ela pelos cinco sentidos e nada mais. É por isso que o Espírito é chamado de não-conhecível; mas quando esta mesma mente se livra de sua impureza, seu apego e desejos, ela é capaz de perceber o não-conhecível, fazendo-o mais do que conhecido. Pergunta Yajnavalkya: “Com o quê você conhecerá o Conhecedor”- vijnataram are kena vijaniyat. Este desconhecido pode ser percebido somente através de uma mente pura, afirma o Kathopanishad: manasaivedam aptavyam, “Somente pela mente isto será realizado.”

O melhor testemunho com relação à vida interior é daqueles que mergulharam profundamente nela e eles são os homens capazes de falar sobre o assunto. Vamos ver o que Swami Vivekananda diz sobre a necessidade desta buscado que está além: “A vida será um deserto, a vida humana será em vão, se nós não pudermos conhecer o que está além. É muito bom dizer: Contente-se com as coisas do presente. As vacas e os cães estão e estão também todos os animais e isto é o que os faz animais. Portanto se o homem contenta-se com o presente e abandona toda busca do que está além, a humanidade terá que voltar ao plano animal de novo.

É a religião, a investigação do que está além que faz a diferença entre um homem e um animal”. Respondendo à uma pergunta sobre o que a religião pode fazer por nós, ele afirma: “A salvação não consiste na quantidade de dinheiro que em seu bolso ou na roupa que você veste ou na casa em que você vive, mas na riqueza do pensamento espiritual em seu cérebro. Isto é o que promove o progresso humano, esta é a fonte de todo progresso material e intelectual, o poder motivador atrás do entusiasmo que empurra a humanidade para a frente.”

Além disto, a Religião pode nos dar a vida eterna, trazer-nos a Luz que jamais falha e a paz e tranqüilidade constantes. Contudo a religião não deveria ser julgada do ponto de vista das posses ou coisas materiais. Swami Vivekananda comenta: “Várias vezes você escuta esta objeção levantada: ‘Pode ela retirar a pobreza dos pobres?’ Suponha que ela não possa, isto provaria a inverdade da religião? Suponha que uma criança se levante entre vocês quando você está tentando demonstrar um teorema astronômico e diz, ‘Isto vai me dar biscoitos de gengibre?’ ‘Não, isto não vai dar’, você responde. ‘Então’, diz a criança, ‘não serve para nada’. Crianças julgam o universo inteiro de seu ponto de vista, de produzir biscoitos de gengibre; e assim também fazem as crianças do mundo. Nós não devemos julgar as coisas superiores de um baixo ponto de vista… A Religião interpenetra toda a vida do homem, não apenas o presente, mas o passado, presente e futuro… É lógico medir seu valor por sua ação sobre cinco minutos da vida humana?” Ele continua: “A Religião fez do homem o que ele é e fará deste humano animal um Deus. Isto é o que a religião pode fazer. Tire a religião da sociedade humana e o que restará? Nada além de uma floresta de brutos.”

Do que foi dito nós vemos como a religião está inerentemente absorvida na estrutura da existência humana, mais ainda, a própria existência do homem depende dela. E é por isso que o Senhor se encarna sempre que houver o declínio de Dharma e o crescimento de Adharma, como Ele mesmo diz no Bhagavad Gita. Agora nós veremos quais são as disciplinas que a religião recomenda para atingir o supremo estado da Eterna Bem-aventurança que ela promete. A primeira e mais importante destas disciplinas é a renúncia, sem ela o homem não pode avançar em direção à meta. Pode-se perguntar: são todas as pessoas capazes de renunciar ao mundo? Certamente que não. Então a salvação que a religião promete é para uns poucos? Se for assim, por que deveria a maioria da humanidade ter interesse nela? Sri Ramakrishna responde: “Não é possível adquirir a renúncia de forma repentina. O fator tempo deve ser levado em consideração. Mas também é verdade que um homem deveria escutar sobre ela. Quando a hora certa chegar, ele dirá a si mesmo: ‘Ó, sim, eu escutei sobre isto.’ Você deve também se lembrar de outra coisa. Constantemente ouvindo sobre a renúncia, o desejo pelos objetos do mundo gradualmente se desvanece”. Sri Ramakrishna aconselha aos chefes de família a cultivarem a renúncia interna e amor por Deus, a serem desapegados as coisas do mundo e a buscarem a companhia de pessoas santas. Mas ele categoricamente diz que sem a renúncia, pelo menos a interna, não se pode atingir a Meta.

#Budismo

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/dharma-a-base-da-vida-humana

O Dharma e a Base da Vida Humana

(*) Publicado na edição de Nov/Dez de 1984 da revista “Vedanta Kesari”

(Cedo ou tarde o homem descobre que os prazeres que os sentidos trazem a ele são extremamente transientes e até contra-produtivos. É o Dharma que o coloca em contato com o mundo supra-sensório da Realidade e o eleva da existência do bruto para a vida Divina. Swami Paratparananda, dirigente do Ramakrishna Ashrama, Argentina (**) e um ex-editor da “Vedanta Kesari”, explica como Sri Ramakrishna enfatiza que o principal ingrediente do Dharma ou disciplina religiosa é a renúncia – externa, se possível, mas interna, categoricamente).

(**) de 1973 a 1988.

Vários são os significados deste termo sânscrito, Dharma. Por exemplo, retidão, a natureza inata de algo, deveres devido ao nascimento e posição na vida, são alguns deles. Nós lidaremos aqui com o mencionado em primeiro lugar, isto é, retidão, retitude ou religião como é algumas vezes definido. É claro que na Índia a religião inclui deveres de acordo com varna e âsrama (nascimento e posição na vida) apesar de que estes são conceitos não tão rigidamente praticados hoje em dia. Religião ou Dharma é algo mais do que a mera conformidade com obrigações sociais, restrições ou regras; mais do que meros dogmas e credos. Regras sociais e códigos morais podem e realmente mudam de acordo com a época e lugar. Por exemplo, o que é considerado como imoral em alguns países pode ser aceito como totalmente normal ou natural em outros, etc. Mas mera moralidade não é a meta e finalidade do homem. É apenas o meio para atingir algo superior, algo eterno e este algo é o sujeito da religião ou Dharma. Pode-se chamar este sujeito como Deus ou Espírito ou por qualquer outro nome.

A questão que surge na mente do homem moderno é: que papel pode a religião desempenhar na atual era de ciência e tecnologia? Poderá ela sobreviver aos ataques destas forças? Devemos lembrar que a ciência e a tecnologia lidam com a matéria, coisas perecíveis e não eternas. A matéria, por mais que possa durar, um dia se destrói; ela não pode durar para sempre, não pode ser permanente. Tendo sido composta de elementos, deve retornar mais cedo ou mais tarde aos seus elementos; e aquilo que não é permanente não pode dar felicidade duradoura. O homem nunca consegue felicidade duradoura. O homem nunca se satisfaz com a riqueza. Quanto mais ele tem, mais ele deseja. Assim também é o caso com os prazeres dos sentidos. O corpo pode ficar fraco, mas o desejo por eles não deixa o homem. Habilmente Bhartrihari disse no seu Vairagya Sataka: bhogâ na bhuktâ vayam eva bhuktâh, “Os prazeres mundanos não foram desfrutados por nós; pelo contrario nós mesmos temos sido devorados”. E ele continua: trsnâ na jirnâ vayam eva jirnâh, “O desejo não é enfraquecido, apesar de que nós mesmos nos debilitamos”. E mais: valibhir mukham âkrântam pâlitena ankitam sirah, gâtrâni sithilâyante trsnaikâ tarunâyate, “A face está coberta por rugas, a cabeça pintada de branco (por causa dos cabelos grisalhos), os membros se tornaram fracos, apesar de que apenas o desejo é sempre rejuvenescido”. Esta é a condição do homem entregue à satisfação dos sentidos. A ciência e a tecnologia ainda não descobriram métodos de parar ou prevenir este declínio ou deterioração das forças físicas e mentais do homem nem trazer a ele a satisfação que pode durar mesmo sob circunstâncias adversas como enfermidade e senilidade, etc.

Contudo, nós não dizemos que não existam pessoas que ignorem as realidades da vida e tentem desfrutar dos prazeres. Como o avestruz, que quando caçado, se diz, corre tanto quanto pode e enfia sua cabeça na areia e acredita que não há mais perigo ou inimigos. Para estas pessoas este mundo é tudo quanto existe.

No Kathopanishad, Yama diz: “O além nunca aparece diante das pessoas tolas, enganadas pela ilusão da riqueza. Aqueles que pensam: ‘Este é o único mundo e não há nenhum outro’, caem sob meu domínio inúmeras vezes”. Swami Vivekananda diz: “Somente os tolos correm atrás dos gozos dos sentidos. É fácil viver nos sentidos. É mais fácil andar pelo velho caminho com o piso batido, comendo e bebendo, mas o que estes modernos filósofos querem dizer a você é que peguem estas idéias confortáveis e coloquem o selo da religião nelas. Tal doutrina é perigosa. A morte jaz nos sentidos. A vida no plano do Espírito é a única vida, a vida em qualquer outro plano é apenas a morte”. Aqui nós encontramos a resposta também para aqueles que querem fazer da religião algo confortável, adaptada ao plano sensório.

O homem busca a felicidade e acha que pode obtê-la nos objetos dos sentidos; mas, tristemente, ele descobre que a felicidade que estes objetos podem dar é de muito pouca duração e que ele tem que ganhá-la a um custo muito elevado. Ele começa com tremendo otimismo, mas quando fica velho, gradualmente torna-se um pessimista. Swami Vivekananda declara: “A felicidade real não está nos sentidos, mas acima dos sentidos e está em todos os homens. O tipo de otimismo que vemos no mundo é o que levará até a ruína através dos sentidos.”

Novamente, por mais que o homem tenda a ignorar o fato de que o sofrimento, físico e mental é inevitável no plano sensório e mergulhe completamente nele, um dia chegará quando ele perguntará a si mesmo: “É isto tudo? Será a meta da vida viver como plantas e animais por alguns anos e morrer?” Isto é um imperativo, pois enquanto o homem retiver a faculdade do raciocínio, ele não pode deixar de colocar estas questões para si mesmo quando deparar com terríveis e insuperáveis circunstâncias. E este raciocínio deveria levá-lo a auto-análise e gradualmente à Religião, pois tendo sofrido no plano dos sentidos ele não tem outra alternativa além de tentar conseguir consolo de algo superior e não perecível.

Agora vamos ver o que a Religião realmente significa e o que ela pode fazer por nós. Religião é um sistema de disciplinas que traz uma penetração intuitiva na natureza real do mundo espiritual, pelo controle dos sentidos e a conquista da mente. Com esta penetração intuitiva, nós chegamos a conhecer o propósito real da vida humana, como também sobre a vacuidade do mundo sensual. Swami Vivekananda afirma: “Este nosso universo, o universo dos sentidos, racional, intelectual, está cercado de ambos os lados pelo ilimitado, o não-conhecível, o sempre desconhecido. Nisto está a busca, nisto estão as investigações, aqui estão os fatos; disto vem a luz que é conhecida para o mundo como religião. A Religião pertence ao Supra-sensório e não ao plano sensório. Está além de todo raciocínio e não está no plano do intelecto. É uma visão, uma inspiração, um mergulho no desconhecido e não-conhecível, fazendo o não-conhecível mais do que conhecido, pois ele jamais poderá ser conhecido.” Isto parece ser um paradoxo, à uma primeira leitura, mas se nós pararmos e refletirmos, poderemos ser capazes de compreender a verdade por detrás desta afirmação. A mente humana em sua forma impura pode conhecer apenas coisas apresentadas a ela pelos cinco sentidos e nada mais. É por isso que o Espírito é chamado de não-conhecível; mas quando esta mesma mente se livra de sua impureza, seu apego e desejos, ela é capaz de perceber o não-conhecível, fazendo-o mais do que conhecido. Pergunta Yajnavalkya: “Com o quê você conhecerá o Conhecedor”- vijnataram are kena vijaniyat. Este desconhecido pode ser percebido somente através de uma mente pura, afirma o Kathopanishad: manasaivedam aptavyam, “Somente pela mente isto será realizado.”

O melhor testemunho com relação à vida interior é daqueles que mergulharam profundamente nela e eles são os homens capazes de falar sobre o assunto. Vamos ver o que Swami Vivekananda diz sobre a necessidade desta buscado que está além: “A vida será um deserto, a vida humana será em vão, se nós não pudermos conhecer o que está além. É muito bom dizer: Contente-se com as coisas do presente. As vacas e os cães estão e estão também todos os animais e isto é o que os faz animais. Portanto se o homem contenta-se com o presente e abandona toda busca do que está além, a humanidade terá que voltar ao plano animal de novo.

É a religião, a investigação do que está além que faz a diferença entre um homem e um animal”. Respondendo à uma pergunta sobre o que a religião pode fazer por nós, ele afirma: “A salvação não consiste na quantidade de dinheiro que em seu bolso ou na roupa que você veste ou na casa em que você vive, mas na riqueza do pensamento espiritual em seu cérebro. Isto é o que promove o progresso humano, esta é a fonte de todo progresso material e intelectual, o poder motivador atrás do entusiasmo que empurra a humanidade para a frente.”

Além disto, a Religião pode nos dar a vida eterna, trazer-nos a Luz que jamais falha e a paz e tranqüilidade constantes. Contudo a religião não deveria ser julgada do ponto de vista das posses ou coisas materiais. Swami Vivekananda comenta: “Várias vezes você escuta esta objeção levantada: ‘Pode ela retirar a pobreza dos pobres?’ Suponha que ela não possa, isto provaria a inverdade da religião? Suponha que uma criança se levante entre vocês quando você está tentando demonstrar um teorema astronômico e diz, ‘Isto vai me dar biscoitos de gengibre?’ ‘Não, isto não vai dar’, você responde. ‘Então’, diz a criança, ‘não serve para nada’. Crianças julgam o universo inteiro de seu ponto de vista, de produzir biscoitos de gengibre; e assim também fazem as crianças do mundo. Nós não devemos julgar as coisas superiores de um baixo ponto de vista… A Religião interpenetra toda a vida do homem, não apenas o presente, mas o passado, presente e futuro… É lógico medir seu valor por sua ação sobre cinco minutos da vida humana?” Ele continua: “A Religião fez do homem o que ele é e fará deste humano animal um Deus. Isto é o que a religião pode fazer. Tire a religião da sociedade humana e o que restará? Nada além de uma floresta de brutos.”

Do que foi dito nós vemos como a religião está inerentemente absorvida na estrutura da existência humana, mais ainda, a própria existência do homem depende dela. E é por isso que o Senhor se encarna sempre que houver o declínio de Dharma e o crescimento de Adharma, como Ele mesmo diz no Bhagavad Gita. Agora nós veremos quais são as disciplinas que a religião recomenda para atingir o supremo estado da Eterna Bem-aventurança que ela promete. A primeira e mais importante destas disciplinas é a renúncia, sem ela o homem não pode avançar em direção à meta. Pode-se perguntar: são todas as pessoas capazes de renunciar ao mundo? Certamente que não. Então a salvação que a religião promete é para uns poucos? Se for assim, por que deveria a maioria da humanidade ter interesse nela? Sri Ramakrishna responde: “Não é possível adquirir a renúncia de forma repentina. O fator tempo deve ser levado em consideração. Mas também é verdade que um homem deveria escutar sobre ela. Quando a hora certa chegar, ele dirá a si mesmo: ‘Ó, sim, eu escutei sobre isto.’ Você deve também se lembrar de outra coisa. Constantemente ouvindo sobre a renúncia, o desejo pelos objetos do mundo gradualmente se desvanece”. Sri Ramakrishna aconselha aos chefes de família a cultivarem a renúncia interna e amor por Deus, a serem desapegados as coisas do mundo e a buscarem a companhia de pessoas santas. Mas ele categoricamente diz que sem a renúncia, pelo menos a interna, não se pode atingir a Meta.

#Budismo

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/o-dharma-e-a-base-da-vida-humana

Kether

Trecho extraído de “A Cabala Mística”, de Dion Fortune

1. Kether, a Coroa, localiza-se na cabeça do Pilar Medial do Equilíbrio, e nele estão suspensos os Véus Negativos da Existência. Já comentei a utilização desses Véus Negativos como estrutura para o pensamento, de modo que não repetirei esse ponto, mas lembro ao leitor qúe Kether, a Primeira Manifestação, representa a cristalização primordial na manifestação do que era até então imanifesto e, por conseguinte, incognoscível. Nada podemos saber a respeito da raiz da qual brota Kether; mas, quanto à própria Kether, podemos adiantar alguma coisa. Ela pode representar para nós, em nosso estágio de desenvolvimento, o Grande Desconhecido, mas não é o Grande Incognoscível. A mente do mago pode abarcá-la em suas visões mais elevadas. Em minhas próprias experiências com a operação conhecida como Elevação nos Planos, que consiste em elevar a consciência pelo Pilar Médio, por meio da concentração nos sucessivos símbolos a nos Caminhos, Kether, numa ocasião em que lhe toquei as fímbrias, surgiu como uma cegante luz branca, anulando por completo o pensamento.

2. Não existe forma em Kether, apenas puro ser, qualquer que seja ele. Poderíamos dizer que se trata de uma latência que se encontra a apenas um grau da não-existência. Tais conceitos são necessariamente vagos a não estou capacitada para dar-lhes a precisão que devem ter, mas ficarei satisfeita se pudermos reconhecer os graus do devir, compreendendo que a rude diferenciação entre Ser a Não-Ser não representa os fatos. Quando a existência se toma manifesta, os pares de opostos penetram o ser; mas em Kether não existe divisáo nos pares de opostos, pois estes, para se manifestarem, precisam esperar a emanação de Chokmah a Binah.

3. Kether, portanto, é o Um, que existia antes mesmo de dispor de um reflexo de si mesmo, para apresentar-se como imagem na consciência e aí estabelecer a polaridade. Devemos acreditar que ela transcende todas as leis conhecidas da manifestação – apenas existe, sem reação. Cabe lembrar, contudo, que, quando falamos de Kether, não significa uma pessoa, mas um estado de existência, a tal estado de substância existente deve ter sido completamente inerte, puro ser, sem atividade, até iniciar-se a atividade, que emana Chokmah.

4. A mente humana, não conhecendo outro modo de existência além do da forma a da atividade, tem muita dificuldade para conceber um estado inteiramente informe de passividade, o qual é, não obstante, muito distinto do não-ser. Mas precisamos realizar esse esforço, se quisermos compreender os fundamentos da filosofia cósmica. Não devemos lançar os Véus da Existência Negativa à frente de Kether ou nos condenar a uma perpétua dualidade insolúvel; Deus e o demônio lutarão para sempre em nosso cosmo, e não há finalidade em seu conflito. Devemos treinar a mente para conceber o estado de puro ser sem atributos ou atividades; podemos pensar nele como a luz branca cegante, não diferenciada em raios pelo prisma da forma; ou como a escuridão do espaço interestelar, que é nada, embora contenha as potencialidades de todas as coisas. Esses símbolos, sobre os quais repousa o olho interior, constituem um auxilio mais proveitoso para a compreensão de Kether do que todas as definições da filosofia exata. Não podemos definir a Sephirah Kether; só podemos indicá-la.

5. Constitui sempre uma experiência iluminadora descobrir o extraordinário significado das pistas contidas nas tabelas de correspondências, e o modo pelo qual elas conduzem a mente de um conceito a outro. A Primeira Sephirah chama-se Coroa, não cabeça, note-se. A Coroa é um objeto que se põe sobre a cabeça, a esse fato nos dá uma clara indicação de que Kether pertence ao nosso Cosmo, embora não esteja nele.

Descobrimos também a sua correspondência microscómica no Lótus das Mil Pétalas, o chakra Sahamsara, que se localiza na aura, imediatamente acima da cabeça. Penso que isso nos ensina claramente que a essência espiritual mais íntima de alguma coisa, seja no homem ou no mundo, nunca está na manifestação real, sendo antes a base ou raiz subjacente de onde tudo brota a pertencendo, na verdade, a uma dimensão diferente – a uma ordem diferente de ser. Esse conceito dos diferentes tipos de existência é fundamental para a filosofia esotérica a devemos tê-to sempre presente quando consideramos os reinos invisíveis do mago ou do ocultista prático.

6. Na filosofia vedanta, Kether equivaleria sem dúvida a Parabrahmâ; Chokmah, a Brahman; a Binah, a Mulaprakriti. Nos outros grandes sistemas do pensamento humano, Kether equivale ao seu conceito primário, correspondendo ao Pai dos Deuses. Se foram estes que criaram o universo no espaço, então Kether é o Deus do céu. Se o universo se originou na água, Kether é o oceano primordial. Kether relaciona-se sempre com o sentido do informe a do eterno. Os deuses de Kether são deuses terríveis que devoram suas crianças, pois Kether, embora seja o pai de todos, reabsorve o universo ao final de uma época de evolução.

7. Kether é o abismo donde se originam todas as coisas, a para onde estas voltarão ao final de sua era. Nos caminhos exotéricos associados a Kether,descobrimos, por conseguinte, a implicação da não-existência. Nos conceitos esotéricos, contudo, aprendemos que esse conceito é errôneo. Kether é a forma mais intensa de existência, ser puro, não-limitado por forma ou reação; mas essa existência pertence a um tipo diverso daquele a que estamos acostumados, aparecendo-nos, portanto, como não-existência, porque não combina com nenhum dos requisitos que a nosso ver determinam a existência. A idéia da existência de outros modos de ser está implícita em nossa filosofia a devemos tê-la sempre em mente, porquanto é a chave de Kether, a Kether é a chave da Árvore da Vida.

8. O texto yetzirático descritivo de Kether, como todos os dizeres da Sepher Yetzirah, é uma sentença oculta. Afirma ele que Kether se chama Inteligência Oculta, a os diversos títulos conferidos a Kether na literatura cabalística confirmam essa denominação. Kether é o Segredo dos Segredos, a Altura Inescrutável, a Cabeça Que Não É. Temos aqui novamente a confirmaçáo da idéia de que a coroa está acima da cabeça do Homem Celestial, o Adão Cadmo; o ser puro está atrás de toda manifestação, a não é por ela absorvido, sendo antes a causa de sua emanação ou manifestação. Tal como nos expressamos em nossas obras, assim se expressa Kether na manifestação. Mas as obras de um homem não constituem a sua personalidade, sendo, ao contrário, a expressão de sua atividade natural. Ocorre o mesmo com Kether; seu modo de existência não é manifesto, mas constitui a causa da manifestação.

9. Temos até agora considerado Kether em Atziluth, isto é, em sua natureza essencial a primordial. Devemos considerá-la agora tal como aparece nos outros três Reinos distinguidos pelos cabalistas.

10. Cada Reino, ou plano de manifestação, tem sua forma primária: a matéria, por exemplo, é, com toda probabilidade, primariamente elétrica, a essa forma primordial, segundo os esoteristas, consiste no subplano etérico que subjaz aos quatro planos elementais: Terra, Ar, Fogo a Água; ou, em outras palavras, os quatro estados da matéria densa: sólido, líquido, gasoso a etéreo.

11. Os cabalistas concebem a Árvore em cada um dos quatro Reinos, a saber: Atziluth, espírito puro; Briah, mente arquetípica; Yetzirah, consciência imagética astral; a Assiah, o mundo material em seus aspectos densos e mais sutis. As operaçáes das forças de cada Sephirah são representadas em cada mundo sob a presidência de um Nome Divino, ou Mundo do Poder, e esses mundos dão as chaves das operações do ocultismo prático nos diversos planos. O Nome de Deus representa a ação da Sephirah no Mundo de Atziluth, espírito puro; quando o ocultista invoca as forças de uma Sephirah pelo Nome de Deus, isso significa que ele deseja entrar em contato com sua essência mais abstrata, pois está buscando o princípio espiritual que sustenta a condiciona esse modo particular da manifestação. Reza uma máxima do Ocultismo Branco que toda operação deve começar pela invocação do Nome Divino na Esfera em que ocorrerá a operação. Isso assegura que a operação estará em harmonia com a lei cósmica. Nunca se deve descurar o equilíbrio da força natural, pois o equilíbrio é essencial para que o mago conduza em segurança as operações de acordo com a lei cósmica; por conseguinte, o mago deve procurar compreender o princípio espiritual envolvido em cada problema a operá-to convenientemente. Toda operação, por conseguinte, precisa ter sua unificaçâo ou resolução final em Eheieh, o nome de Deus de Kether em Atziluth.

12. A invocação da divindade sob o nome de Eheieh, isto é, a afirmação do ser puro, eterno, imutável, sem atributos ou atividades, que tudo sustém, mantém a condiciona, é a fórmula primária de toda operação mágica. Somente ao ser penetrada pela compreensão desse ser imutável a sem fim, de extraordinária concentração a intensidade, pode a mente ter qualquer compreensão do poder ilimitado. A energia derivada de qualquer outra fonte é uma energia limitada a parcial. A fonte pura de toda energia localiza-se tão-somente em Kether. As operações do mago visando à concentração da energia (e que operação não o faz?) devem sempre começar por Kether, porquanto deparamos nessa Sephirah com a força emergente que brota do Grande Imanifesto, o reservatório do poder ilimitado. É graças a Kether, o Grande Imanifesto oculto atrás dos Véus da Existência Negativa, que o poder tem origem. Se extrairmos poder de qualquer esfera especializada da natureza, estaremos, por assim dizer, tirando de Pedro para dar a Paulo. O poder vem de alguma parte a vai para algum lugar, a deve ser responsável no ajuste de contas final. É por essa razão que se diz que o mago paga com sofrimento o que obtém por meios mágicos. Isso é verdade se sua operação é realizada em qualquer uma das esferas inferiores da natureza; mas se tal operação tem início com Kether em Atziluth, o mago estará extraindo força imanifesta para colocá-la na manifestação; ele aumenta as fontes do universo e, desde que as forças se mantenham em equilíbrio, nenhuma reação rebelde ocorrerá, bem como nenhum pagamento em sofrimento pelo use dos poderes mágicos.

13. Esse é um ponto de extraordinária importância prática. Os estudantes aprenderam que as Três Sephiroth – Kether, Chokmah e Binah estão fora do alcance de qualquer obra prática enquanto estamos encarnados. Na verdade, elas estáo fora do alcance da consciência cerebral, a constituem a base essencial de todos os cálculos mágicos. Se não operamos a partir dessa base, não temos nenhum fundamento cósmico, colocando-nos entre céu e a terra a não encontrando nenhum lugar de repouso seguro. Devemos, ao contrário, manter a tensão mágica que mantém vivas as formas astrais.

14. A grande diferença entre a ciência cristã a as formas mais rudes do novo pensamento e da auto-sugestâo consiste no fato de que a primeira inicia todas as suas operações pela vida divina; e, por mais irracionais que sejam suas tentativas para filosofar o seu sistema, seus métodos são empiricamente sãos. O ocultismo, e especialmente o praticante da Magia Cerimonial, se não foi instruído nessa disciplina, tende a começar sua operação sem qualquer referência à lei cósmica ou ao princípio espiritual; conseqüentemente, as imagens mentais que ele forma são como corpos estranhos no organismo do Homem Celestial, ou Macrocosmo, a todas as forças da natureza se dirigem espontaneamente para a eliminação dá substância estranha e para a restauração do equilíbrio normal das tensões. A natureza luta contra o mago com unhas a dentes; conseqüentemente, todo aquele que recorre à Magia não-consagrada jamais pode descansar sua espada, pois precisa estar sempre na defensiva a fim de manter o que conquistou. Mas o adepto que inicia sua obra com Kether em Atziluth, isto é, no princípio espiritual, e opera esse princípio de cima para baixo a fim de expressá-to nos planos da forma, empregando para esse propósito o poder extraído do Imanifesto, integra sua operação no processo cósmico, e a natureza se coloca a seu lado, em vez de hostilizá-lo.

15. Não podemos esperar entender a natureza de Kether em Atziluth, mas podemos abrir nossa consciência à sua influência, a esta é muito poderosa, conferindo-nos uma estranha sensação de eternidade e imortalidade. Podemos saber quando a invocação de Eheieh em seu puro esplendor branco é efetiva, pois compreendemos, com completa convicção, a impermanência a insignificáncia superior dos planos da forma e a supremá importância da Vida única, que condiciona todas as formas, tal como as mãos do oleiro moldam a argila.

16. A meditação sobre Kether confere-nos a compreensão intuitiva de que o resultado de uma operação tem pouco valor. “Que o sujo brinque com o sujo, se este lhe agrada.” Uma vez obtida essa compreensão, temos domínio sobre as imagens astrais e podemos operá-las à vontade. É apenas quando o operador não tem qualquer interesse pela operapão no plano físico que ele atinge esse completo domínio sobre as imagens astrais. Só a manipulação das forças lhe diz respeito, assim como a sua condução por meio da manifestação na forma; mas ele não cuida da forma que as forças podem finalmente assumir, a as deixa por si mesmas, visto que assumirão a forma mais afim a suas naturezas, sendo assim mais fiéis à lei cósmica do que a qualquer desígnio que seu limitado conhecimento poderia conferir-lhes. Essa é a chave real de todas as operações mágicas, a sua única justificativa, pois não podemos alterar o Universo para adaptá-to ao nosso capricho a conveniência, mas só nos justificamos na operação deliberada da Magia quando operamos com a grande maré da vida evolutiva a fim de chegarmos à plenitude da vida, seja qual for a forma que a experiência ou manifestação possa assumir. “Vim para que eles pudessem ter vida, a para que a tivessem em abundáncia”, disse o Senhor, a essas poderiam ser as palavras do mago.
Vida, a somente a vida, deveria ser a sua divisa, a não qualquer manifestação especializada dela como Sabedoria, Poder ou mesmo Amor.

17. Aqueles que seguiram atentamente a exposição precedente estarão em condições de descobrir algum significado nas palavras criptográficas do Texto Yetzirático atribuído a Kether. As palavras “Inteligência Oculta” dão uma pista da natureza imanifesta da existência de Kether, que é confirmada pela afirmação de que “Nenhum ser criado pode alcançar-lhe à essência”, ou seja, nenhum ser que utiliza, como veículo de consciência, um organismo dos planos da forma. Quando, contudo, a consciência foi exaltada ao ponto de transcender o pensamento, ela recebe da “Glória Primordial” o “poder de compreensão do Primeiro Princípio”; ou, em outras palavras, “Compreenderemos da mesma maneira pela qual somos compreendidos”.

18. Eheieh, Eu Sou O Que Sou, ser puro, é o Nome divino de Kether, e sua imagem mágica é um velho rei barbado visto de pèrfil. O Zohar afirma que o velho rei barbado só tem o lado direito; não vemos a imagem mágica de Kether em sua face plena, isto é, completa, mas apenas uma parte dela. Há um aspecto que deve sempre permanecer oculto para nós, como o lado escuro da lua. Esse lado de Kether é o lado que está voltado para o Imanifesto, que a natureza de nossa consciência manifesta nos impede de compreender, a que constitui um livro selado para nós. Mas, aceitando essa limitação, podemos contemplar o aspecto de Kether, o perfil do velho rei barbado, que se reflete para baixo na forma.

19. Velho é esse rei, o Antigo dos Antigos, o Velho dos Dias, que existe desde o início, quando o rosto não contemplava rosto algum. Ele é um rei, porque governa todas as coisas de acordo com sua suprema e inquestionável verdade. Em outras palavras, é a natureza de Kether que condiciona todas as coisas, porque todas as coisas surgiram dela. Ele é barbado porque, no curioso simbolismo dos rabinos, todo pêlo de sua barba tem um significado.

20. A manifestação das forças de Kether em Briah, o mundo da mente arquetípica, efetua-se por meio do arcanjo Metatron, o Príncipe das Faces, a quem a tradição atribui o papel de mestre de Moisés. A Sepher Yetzirah afirma a respeito do Décimo Caminho, Malkuth, que ele “emana uma influéncia do Príncipe dos Rostos, o arcanjo de Kether, e é a fonte de iluminação de todas as luzes do universo”. Aprendemos, assim, claramente, que não apenas o espírito flui para a manifestação na matéria, mas a matéria, por sua própria energia, lança o espírito na manifestação. Esse é um importante ponto para o praticante da Magia, pois afirma que este tem justificativas para as suas operações a que o homem não precisa esperar a palavra do Senhor, podendo invocar a Deus para ouvi-Lo.

21. Os anjos de Kether, operando no Mundo Yetziático, são os Chaioth ha Qadesh, as Criaturas Vivas a Sagradas, a esse Nome traz à mente a visão do Carro de Fogo de Ezequiel a as Quatro Santas Criaturas diante do Trono. O fato de que os quatro ases do Tarô, atribuídos a Kether, representam as raízes dos quatro elementos, Terra, Ar, Fogo a Água, confirma igualmente essa associação. Podemos, pois, considerar Kether como a fonte primordial dos elementos. Esse conceito esclarece muitas das dificuldades ocultas a metafísicas com que nos deparamos se limitamos sua operação ao plano astral a encaramos os elementais como seres pouco melhores do que os demônios, como parecem fazer algumas escolas de pensamento transcendental.

22. A questão dos anjos, archons a elementais é um tema muito discutido e muito importante no ocultismo, porque a sua aplicação prática à Magia é imediata. O pensamento cristáo pode tolerar com algum esforço a idéia dos arcanjos, mas os espíritos auxiliares, os mensageiros que são as chamas do fogo a os construtores celestes são estranhos à sua Teologia; Deus, sem ajuda a num átimo, fez os céus e a Terra. O Grande Arquiteto do Universo é também o pedreiro. A ciencia esotérica pensa de modo diferente. O iniciado conhece as legiôes de seres espirituais que são agentes da vontade de Deus e os veículos da atividade criativa. É por meio desses que ele opera, pela graça de seu arcanjo dirigente. Mas um arcanjo não pode ser conjurado por nenhum encantamento, por mais potente que este seja. Deveríamos mesmo dizer que, quando efetuamos uma operação da Esfera de uma Sephirah particular, o arcanjo opera por meio de nós para o cumprimento de sua missão. A arte do mago repousa, por conseguinte, em alinhar-se à força cósmica, a fim de que a operação que ele deseja realizar possa produzir-se como parte da operação de atividades cósmicas. Se ele for verdadeiramente puro a devoto, esse será o caso de todos os seus desejos; mas, se ele não for verdadeiramente puro a devoto, não será então um adepto, a sua palavra não será uma Palavra de Poder.

23. É interessante notar que, no Mundo de Assiah, o título da Esfera de Kether é Rashith ha Gilgalim, ou Primeiros Remoinhos, indicando, assim, que os rabinos estavam familiarizados com a teoria das nebulosas antes que a ciência tivesse conhecimento do telescópio. A maneira pela qual os amigos deduziram os fatos básicos da cosmogonia graças a meios puramente intuitivos a mercé da utilização do método de correspondências, séculos antes da invenção a aperfeiçoamento dos instrumentos de precisão que permitiram ao homem moderno realizar as mesmas descobertas de outro ângulo, será sempre um assunto de perpétua perplexidade para todo aquele que estuda a filosofia tradicional sem fanatismo.

24. Como em cima, tal é embaixo. O microcosmo corresponde ao macrocosmo, a precisamos, por conseguinte, buscar no homem a Sephirah Kether que está acima da cabeça que brilha com um puro esplendor branco em Adão Cadmo, o Homem Celeste. Os rabinos a chamam Yechidah, a Centelha Divina; os egípcios a chamam Sah; os hindus a chamam Lótus de Mil Pétalas – o núcleo do espírito puro que emana as múltiplas manifestações nos planos da forma, mas nelas não habita.

25. Enquanto estivermos encarnados, jamais poderemos nos elevar à consciência de Kether em Atziluth e reter o veículo físico intato antes de nosso regresso. Tal como Enoch caminhou com Deus e desapareceu, assim também o homem que tem a visão de Kether se desvanece no que respeita ao veículo da encarnação. Isso se explica facilmente se nos lembrarmos que não podemos entrar num modo de consciência a não ser reproduzindo-o em nós mesmos, assim como uma música nada significa para nós a menos que o coração cante com ela. Se, por conseguinte, reproduzimos em nós mesmos o modo de ser daquilo que não tem forma nem atividade, segue-se que devemos nos livrar da forma a da atividade. Se conseguirmos fazé-lo, o que foi reunido pelo modo de forma da consciencia desaparecerá a voltará aos seus elementos. Assim dissolvido, ele não pode ser reunido ao retornar à consciência. Por conseguinte, quando aspiramos à visão de Kether em Atziluth, devemos estar preparados para penetrar na Luz a nunca mais sair dela.

26. Isso não implica ser o Nirvana aniquilação, tal como uma tradução ignorante da filosofia oriental ensinou ao pensamento europeu; mas também náo implica uma completa mudança de modo ou dimensão. O que seremos, quando nos descobrirmos no mesmo nível das Criaturas Vivas a Sagradas, não o sabemos, a ninguém que alcançou a visão de Kether em Atziluth retomou para contar-nos; mas a tradição afirma que existem aqueles que o fizeram, a que eles estáo intimamente relacionados com a evolução da humanidade a são os protótipos dos super-homens, a respeito dos quais todas as raças têm uma tradição – uma tradição que, infelizmente, tem sido envilecida a degradada nos últimos anos pelos ensinamentos pseudo-ocultistas. O que quer que seja que esses seres possam ser ou não, é seguro dizer que eles não têm nem forma astral nem personalidade humana, mas são como chamas no fogo que é Deus. O estado da alma que atingiu o Nirvana pode ser comparado a uma roda que perdeu seu aro a cujos raios penetram e interpenetram toda a criação; um centro de radiação, a cuja influência não se pode determinar um limite, exceto o de seu próprio dinamismo, a que mantém a sua identidade como um núcleo de energia:

27. A experiência espiritual atribuída a Kether é a união com Deus. Esse é o fim e o objetivo de toda a experiência mística e, se procurarmos qualquer objetivo, seremos como aqueles que edificam uma casa no mundo da ilusão. Tudo o que pode reter o místico em seu caminho direto para esse objetivo produz-lhe a impressão de um grilhão, que o prende, e, que, como tal, deve ser quebrado. Tudo aquilo que sujeita a consciência à forma, todos os desejos que não sejam o da união com Deus são males para ele e, desse ponto de vista, ele está certo; agir de outra maneira invalidaria sua técnica.

28. Mas essa não é a única prova que o místico deve enfrentar; exigese-lhe que satisfaça os requisitos dos planos da forma antes de estar livre para começar sua retirada a escapar da forma. Há o Caminho da Mão Esquerda que conduz a Kether, a Kether das Qliphoth, que é o Reino do Caos. Se o adepto aspirante se aventura pelo Caminho Místico prematuramente, é para lá que ele vai, a não ao Reino da Luz. Para o homem que é naturalmente do Caminho Místico, a disciplina da forma é incompatível. E uma das mais sutis tentações é abandonar a batalha da existência na forma, a qual resiste ao seu domínio, a retirar-se pelos planos antes que o nadir tenha sido atravessado a as lições da forma tenham sido aprendidas. A forma é a matriz na qual a consciência fluídica é mantida até adquirir uma organização à prova de dispersão; até tomar-se um núcleo de individualidade diferenciada do mar amorfo do puro ser. Se a matriz for quebrada muito cedo, antes que a consciência fluídica se tenha formado como um sistema organizado de tensões estereotipadas pela repetição, a consciência se retrairá para o amorfo, assim como a argila retomará à lama se libertada do amparo do molde antes de ser queimada. Se há um místico cujo misticismo produz incapacidade mundana ou qualquer tipo de disposição da consciência, sabemos que o molde se quebrou muito cedo para ele, a ele deve retomar à disciplina da forma até que a sua lição tenha sido aprendida a sua consciência tenha alcançado uma organização coerente a coesa que nenhum Nirvana possa destruir. Que ele corte lenha a carregue água a serviço do Templo, se desejar, mas que não profane o local sagrado com suas patologias a imaturidades.

29. A virtude atribuída a Kether é a da consecução; a realização da Grande Obra, para utilizar um termo pedido de empréstimo aos alquimistas. Sem a realização não há consecução a sem consecução não há realização. Boas intenções pesam pouco na escala da justiça cósmica; é por nossa obra completada que somos conhecidos. Temos, é verdade, toda a eternidade para completá-la, mas devemos fazê-to até o Yod final. Não há misericórdia na justiça perfeita, a não ser a que nos permite tentar novamente.

30. Kether, contemplada do ponto de vista da forma, é a coroa do Reino do Esquecimento. A não ser que compreendamos a natureza vital da Pura Luz Branca, sentiremos pouca tentação de lutar por essa Coroa que não é dessa ordem de ser; e, se tivermos essa compreensão, entáo estaremos livres da limitação da manifestação a poderemos falar a todas as formas como quem realmente tem a autoridade para fazê-lo.

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/kether

Ganesha Concorda em Escrever o Mahabharata

Por Nanda Dulal Dasa

O roteiro de Mahabharata mostra um clima especial de amor mútuo.

As deidades védicas são muito populares no subcontinente indiano e em seu entorno. Não é raro encontrar deidades antigas como o Senhor Ganesha e o Senhor Rama, mesmo em terras distantes como a Malásia e  a Indonésia. Por mais que tente, o homem moderno tem dificuldade de abandonar sua afinidade por eles. Algumas vezes, porém, esta multidão de deidades parece criar uma ideia de panteísmo nas mentes imaturas dos desinformados. Alguns chegam ao ponto de imaginar alguma forma de rivalidade entre essas deidades. Para entender melhor a realidade, examinemos um incidente central do tempo passado.

Temos que viajar no tempo cerca de 5.000 anos atrás. O fim do Dvapara-yuga se aproxima no horizonte do tempo. Srila Vyasadeva, impelido pela compaixão pelas massas do futuro, pensou em colocar por escrito todo o conhecimento que estava disponível naquela época em forma sólida. As pessoas avançadas de seu tempo, descritas como srutidhara, lembraram para a posteridade tudo o que se ouvia mesmo uma vez durante suas vidas. Prevendo o mundo de Kali-yuga, Vyasadeva previu a próxima era como uma era de competência decrescente. As capacidades humanas diminuiriam e as fragilidades aumentariam. A inteligência e a memória diminuiriam. Muitas outras limitações se tornariam proeminentes. Para ajudar os necessitados, Vyasadeva compilou o Veda e depois o dividiu em quatro, ou seja, Sama, Yajur, Rg e Atharva. Depois disso, ele explicou melhor o texto em histórias chamadas Puranas. Neste ponto, ele sentiu que estes textos seriam difíceis de compreender para o homem comum de Kali-yuga. Ele desejava compilar para eles algo que explicasse o mesmo assunto dos Vedas de uma forma simples, atraente e lúcida, facilmente compreensível pelo homem comum. Neste ponto ele pensou em compilar o Mahabharata, a narração épica das atividades da maior dinastia de Bharata-varsa.

Querendo expressar sua aprovação, o Senhor Brahma deu suas bênçãos a Srila Vyasadeva mencionando, asya kavyasya kavayo na samartha visesane (Mahabharata, Adi, 1.73): os maiores poetas deste mundo não serão capazes de compor uma composição melhor do que esta. Ele então aconselhou Vyasa a pedir a ajuda do Senhor Ganesha para escrever a composição.

Embora Vyasadeva tivesse um filho do calibre de Srila Sukadeva Goswami e discípulos como Vaisampayana, a seleção do Senhor Brahma para esta valiosa tarefa foi Ganesha. É também interessante notar que o próprio Vyasa é uma encarnação de Narayana e sempre que alguém canta a literatura védica, oferece-lhe reverências. Antes de chegar a este ponto, Srila Vyasadeva já havia compilado os Vedas e até resumido na forma dos Vedanta-sutras. Claramente, não há dúvidas sobre as capacidades do próprio compilador ou de seus seguidores na forma de seu filho ou de seus discípulos. No entanto, o Senhor Brahma ordenou que Vyasa comissionasse o Senhor Ganesha para este importante serviço. Claramente, o Senhor Ganesha é uma personalidade especialmente escolhida para este importante serviço.

Seguindo a grande autoridade do Senhor Brahma, quando Srila Vyasadeva chamou o Senhor Ganesha, o texto estava pronto na mente de Vyasadeva, mas como aconselhado pelo Senhor Brahma, ele pediu a Ganesha que o ajudasse a escrevê-lo. Ele é mencionado no Mahabharata (Adi Parva, 1.78-79).

srutvaitat praha vighneso
yadi me lekhani ksanam

likhato navatistheta tada
syam lekhako hyham

“Ao ouvir este Senhor Ganesha dizer, ‘Ó Vyasa! concordarei com uma condição enquanto escrevo, minha caneta não deve parar nem por um momento””.

Vyasa respondeu, vyaso ‘pyuvaca tam devama-buddhva ma likha kvacit omityuktva ganeso ‘py babhuva kila lekhakaù: “Você também não pode escrever um único alfabeto sem entender corretamente seu significado”. O Senhor Ganesha deu seu consentimento respondendo com o som ‘Om’ e assim concordou em escrever.

A contracondição apresentada por Vyasa é outra característica marcante de todo este episódio. O Mahabharata segue principalmente a vida dos Pandavas, que, como devotos inabaláveis e convictos do Senhor Krishna, enfrentaram muitas dificuldades em suas vidas. No entanto, diante das reviravoltas, sua devoção ao Senhor Krishna nunca vacilou. O ápice desta poesia está na grande guerra. A melhor de todas as instruções, o Bhagavad-gita, foi dita pelo Senhor Krishna pouco antes do início desta guerra para guiar seu querido devoto Arjuna. O Bhagavad-gita é glorificado como um sucinto livro de texto espiritual, levando seu ouvinte (ou leitor) do básico aos níveis avançados de espiritualidade. Por isto, ele é altamente respeitado em todo o mundo.

O texto explica claramente como o panteísmo alegado pelo homem moderno contra a concepção védica de autoridade não é verdadeiro, e estabelece claramente a posição do Senhor Krishna e Sua relação com outras deidades (Bg. 7.20-23 e 9.20-24). É claro e transparente para o estudante compreender que não existe tal coisa como rivalidade mesmo em uma forma sutil entre as diferentes divindades védicas. Os textos Védicos certamente não promovem qualquer tipo de panteísmo. E se isto foi escrito por Ganesha, então, de acordo com a condição de Vyasa, ele deve ter compreendido estes conceitos claramente antes de escrevê-los. Se estas palavras tivessem explicado algo contraditório ao entendimento real, o Senhor Ganesha não o teria posto por escrito. Assim, este simples incidente prova que as divindades védicas estão em harmonia umas com as outras e o Senhor Ganesha está feliz em prestar serviço de glorificação ao Senhor Krishna, glorificando Suas palavras que fazem parte do Mahabharata.

Sobre o autor:

Nanda Dulala Dasa tem bacharelado em Engenharia Mecânica. Ele faz parte da equipe editorial do inglês indiano BTG. Ele permanece na ISKCON Mumbai onde ensina a consciência de Krishna aos estudantes universitários.

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Fonte:

DASA, Nanda Dulal. Ganesha agrees to Write. Back to Godhead India, 2009.  Disponível em: <https://www.backtogodhead.in/ganesa-agrees-to-write-by-nanda-dulal-dasa/>. Acesso em 13 de março de 2022.

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Texto revisado e enviado por Ícaro Aron Soares.

Postagem original feita no https://mortesubita.net/yoga-fire/ganesha-concorda-em-escrever-o-mahabharata/

Espiritismo e Consciência de Krishna

Um Estudo Comparativo em Transmigração da Alma, Posição dos Espíritos (Bhutas), Epistemologia e Objeto de Culto.

Lembro-me como se fosse hoje. Em minhas mãos, aquele livro que comprei sob a propaganda de que desdobraria os temas da palestra que eu havia acabado de ouvir com grande interesse. Na capa da obra, ao fundo, o topo de vários templos no que parecia ser o amanhecer ou o entardecer. Quando cheguei em casa, deitei em minha cama ainda com a roupa do corpo e li novamente na capa o título do livro, o qual me dizia muito, pois era o que eu vivia. Seu título: Em Busca da Verdade. Seu autor: A.C. Bhaktivedanta Swami Prabhupada, fundador da Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna

Devorei cada página como se estivesse com muita fome. Tanto aprendi que mentalmente agradecia a Deus por aquele livro. Fui introduzido a temas como a impossibilidade de ser obediente a Deus sem uma descrição clara de Seus desejos e ordens, a necessidade fundamental de conhecermos em detalhes a personalidade de Deus para podermos amá-lO, a compreensão derradeira da ordenação do universo com base nos três modos da natureza material, a inutilidade de tentar ser honesto sem ter o conhecimento de que Deus é o proprietário de tudo e vários outros temas que, tamanha sua profundidade, sequer sabia de sua existência, menos ainda que haveria alguém capaz de apresentá-los de maneira tão acessível como o autor que agora eu lia.

Nem tudo me foi alegria ao término da leitura, no entanto. Em meu coração, além do contínuo agradecimento a Deus, estava o desejo de divulgar esse livro tanto quanto eu pudesse, a tantos amigos quanto eu tivesse. Porém, uma única página desta obra me desmotivava. Pensei então em comprar vários desse livro e presenteá-lo a amigos sem essa página que me incomodava, porém veriam que uma folha havia sido arrancada. Uma segunda ideia: Fotocopiá-lo tirando essa página e apagando os números das páginas, de modo que ninguém saberia do excerto. Por fim, não tomei nenhuma de minhas medidas cogitadas, pois minha ocupação em distribuir esse conhecimento teria de aguardar um pouco mais meu amadurecimento.

A referida passagem, enfim, era esta: “Como espíritos puros, todas as almas são iguais, inclusive nos animais”*. (p. 34) Ai de mim, como dizem os poetas. Por que a vida não pode ser mais fácil? Por que um autor que julguei conhecer tudo perfeitamente tinha essa “mácula” de tamanho contrassenso de afirmar que a alma que anima os animais e os homens é a mesma, com o agravante que descobri mais tarde, de que é a mesma alma também que pode passar inclusive por corpos vegetais?

*PRABHUPADA, A.C. Bhaktivedanta Svami. Perguntas Perfeitas Respostas Perfeitas. São Paulo: BBT, 2012, p. 34. Perguntas Perfeitas Respostas Perfeitas é o novo título que em português que se deu ao então Em Busca da Verdade, esta edição agora com tradução literal do título original da obra, Perfect Questions Perfect Answers.

Minha dificuldade se dava por minha formação espírita, a qual, embora me tenha conduzido a buscar a reunião que assisti sobre a consciência de Krishna, em virtude de utilizar termos da mesma, como karma e chakra*, tinha diferentes concepções acerca destes conceitos e outros, e, como foi o espiritismo a religião que me convenceu da existência de Deus, livre-arbítrio, transmigração da alma e outros tópicos, era-me difícil lidar com os conflitos entre ela e meu novo achado da consciência de Krishna.

*Karma e chakra não são, a rigor, conceitos doutrinários do espiritismo. Seu uso entre os espíritas é considerado fruto de hibridismo com religiões orientais. Tais termos não se encontram na obra kardeciana, sendo encontrados apenas em obras subsidiárias.

Hoje, passados oito anos desde este meu primeiro contato com a consciência de Krishna, graduei-me em Bhakti-sastri* após residência no Seminário de Filosofia e Teologia Hare Krishna de Campina Grande e traduzi para a ISKCON mais de dez livros, cem artigos e outros materiais, além de ter-me dado a leituras diversas sobre o assunto da consciência de Krishna. Esse acúmulo de conhecimento de minha parte tanto da doutrina espírita quanto da consciência de Krishna faz-me sentir obrigado a produzir este material de estudo comparado, para o benefício tanto dos espíritas quanto dos adeptos da consciência de Krishna. Para os primeiros, uma oportunidade de diálogo inter-religioso não muito explorada. Embora os espíritas promovam sua religião em conflito com religiões que duvidam do contato com os espíritos; a consciência de Krishna é um desafio inteiramente novo, dado que acredita plenamente nesta comunicação, mas a tem como irrelevante para investigações acerca de Deus, da alma e da matéria inerte. Aos adeptos da consciência de Krishna, este tenta esclarecer algumas das zonas de conflito entre as duas religiões para fortalecimento da fé de tais adeptos com argumentos científicos, lógicos e teológicos. As zonas de conflito a serem analisadas são reencarnação em oposição a metempsicose, conhecimento descendente em oposição a conhecimento ascendente, equivalência de espíritos de luz e almas espirituais semipiedosas identificadas com o corpo, e culto a tais indivíduos e adoração exclusiva a Deus.

*Título obtido pelo sucesso em uma prova internacional a que se submetem os membros do Movimento Hare Krishna e outros interessados após estudo básico de sânscrito e estudo profundo das obras O Bhagavad-gita Como Ele É, Isopanisad, Néctar da Devoção (Bhakti-rasamrta-sindhu) e Néctar da Instrução (Upadesamrta).

Transmigração da Alma: Reencarnação e Metempsicose

Ambas as religiões em análise têm como princípio básico que a alma espiritual indestrutível tem a faculdade de transmigrar para um corpo novo ante a destruição do corpo em que se encontrava anteriormente. Em O Livro dos Espíritos*, encontramos: “Chamamos alma ao ser imaterial e individual que em nós reside e sobrevive ao corpo” (Introdução, p. 15), “A alma passa então por muitas existências corporais? ‘Sim, todos contamos muitas existências’” (2.4.166b), e, em seguida, afirma-se que “vivemo-las em diferentes mundos” (2.4.172).

*KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 1995

Todos estes três pontos são comuns à consciência de Krishna, como evidenciamos por estes versos introdutórios do Bhagavad-gita*. No atinente à continuidade da alma após a morte do corpo: “Para a alma, em tempo algum existe nascimento ou morte. Ela não passou a existir, não passa a existir e nem passará a existir. Ela é não nascida, eterna, sempre existente e primordial. Ela não morre quando o corpo morre”. (2.20) No atinente às múltiplas existências: “Assim como alguém veste roupas novas, abandonando as antigas, a alma aceita novos corpos materiais, abandonando os velhos e inúteis” (2.22), e também “Assim como, neste corpo, a alma corporificada seguidamente passa da infância à juventude e à velhice; do mesmo modo, chegando a morte, a alma passa para outro corpo. Uma pessoa ponderada não fica confusa com tal mudança”. (2.13) No atinente à existência em diferentes planetas: “Aqueles situados no modo da bondade gradualmente elevam-se aos planetas superiores; aqueles no modo da paixão vivem nos planetas terrestres; e aqueles no abominável modo da ignorância descem para os mundos infernais”. (14.18)

*Todas as citações do Bhagavad-gita aqui contidas são as traduções de O Bhagavad-gita Como Ele É, disponível gratuitamente e em português em vedabase.com/pt-br/bg.

Os pontos de conflito entre o espiritismo e a consciência de Krishna, como analisaremos aqui, estão no fato de que o espiritismo advoga, ou parece advogar, que a alma que ocupa os corpos humanos jamais habitou corpos animais ou então que, uma vez que tenha deixado os corpos animais em sua evolução a partir de sua criação por Deus “simples e ignorantes” (Livro dos Espíritos 2.1.115), jamais poderia retornar a um corpo animal dado que isto contradiz a lei do progresso, lei esta que dá título ao capítulo sexto da obra O Livro dos Espíritos. Tal ensinamento é chamado “reencarnação”, em oposição a “metempsicose”, cuja transmigração de uma mesma categoria de alma – categoria única, distinta apenas de Deus e da matéria inerte – se dá por todos os corpos.

Nesta passagem de O Livro dos Espíritos, nega-se a transmigração de uma mesma espécie de alma por corpos humanos e animais, atribuindo a eles “almas diferentes”:

Pois que os animais possuem uma inteligência que lhes faculta certa liberdade de ação, haverá neles algum princípio independente da matéria?

“Há e que sobrevive ao corpo”.

Será esse princípio uma alma semelhante à do homem?

“É também uma alma, se quiserdes, dependendo isto do sentido que se der a esta palavra. É, porém, inferior à do homem. Há entre a alma dos animais e a do homem distância equivalente à que medeia entre a alma do homem e Deus”. (2.11.597 e 597a)

A alma animal, ainda segundo a mesma obra (2.11.601), evolui por diferentes corpos animais, tal como a alma humana:

Os animais estão sujeitos, como o homem, a uma lei progressiva?

“Sim; e daí vem que nos mundos superiores, onde os homens são mais adiantados, os animais também o são, dispondo de meios mais amplos de comunicação. São sempre, porém, inferiores ao homem e se lhe acham submetidos, tendo neles o homem servidores inteligentes.”

A consciência de Krishna, baseada nos Vedas, declara, no entanto, que existe uma só alma que habita por diferentes corpos, passando por todas as formas inferiores até atingir a forma humana. No Brahma Vaivarta Purana, por exemplo, figura os seguintes versos: “Atinge-se a forma humana de vida após a transmigração por milhões de espécies ao longo do processo gradual de evolução, e essa vida humana é arruinada pelos tolos orgulhosos que não se refugiam nos pés de lótus de Govinda [Deus]”*. O Padma Purana descreve esse número de formas antecedentes à forma humana pelas quais passa a alma: “Em todo o universo, existem 900.000 espécies aquáticas; 2.000.000 de entidades vivas imóveis, como árvores e plantas; 1.100.000 espécies de insetos e répteis, e 1.000.000 de espécies voadoras. No que diz respeito aos animais terrestres, existem em número de 3.000.000, e as espécies humanas existem em número de 400.000”**.

*VedaBase: 25. Song, Prayer and Verse Books / Srila Prabhupada Slokas / Selected Verses From the Puranas / Brahma Vaivarta Purana. info.vedabase.com. O verso original diz: asitim caturas caiva laksams tan jiva-jatisu/ bhramadbhih purusaih prapyam manusyam janma-paryayat/ tad apy abhalatam jatah tesam atmabhimaninam/ varakanam anasritya govinda-carana-dvayam.

**VedaBase: 25. Song, Prayer and Verse Books / Srila Prabhupada Slokas / Selected Verses From the Puranas / Padma Purana. O verso original diz: jalaja nava-laksani sthavara laksa-vimsati/ krmayo rudra-sankhyakah paksinam dasa-laksanam/ trimsal-laksani pasavah catur-laksani manusah.

No Srimad-Bhagavatam* (3.29.28-32), encontramos uma descrição ainda mais detalhada, a qual nos informa que o tato é o primeiro sentido que se experimenta, o qual se desenvolve ao se ter um corpo de árvore. Em seguida, experimenta-se paladar ao se obter um corpo de peixe. Após o corpo de peixe, pode-se obter um corpo como de abelha e desenvolver olfato. A audição então se faz presente rudimentarmente em um corpo de cobra, e, mais adiante, pode-se ter um corpo que tem todos os sentidos e ainda é capaz de distinguir formas, como os corpos de algumas aves e, por fim, de quadrupedes. Finalmente, tem-se o corpo humano. Os seres humanos ainda são divididos entre diferentes níveis de estruturação social e rendição a Deus, partindo dos seres humanos incivilizados e indo até “o devoto puro de Deus, que Lhe presta serviço devocional sem nenhuma expectativa”.

*As citações do Srimad-Bhagavatam são traduções minhas da tradução inglesa de Srila Prabhupada, disponível em vedabase.com/en/sb.

O leitor mais arguto deve ter atentado que, na ocasião em que eu disse que o espiritismo advoga que a alma que ocupa os corpos humanos jamais habitou corpos animais ou então que, uma vez que tenha deixado os corpos animais em sua evolução a partir de sua criação, jamais poderia retornar a um corpo animal, eu intercalei o seguimento “ou parece advogar”. A explicação para isto é que, como veremos em discussões acerca de epistemologia, a revelação dos espíritos não é um sistema fechado e concluído como o da consciência de Krishna, isto porque seus reveladores são investigadores no modelo de investigação científico-filosófico, isto é, baseado respectivamente na percepção dos sentidos e da mente, motivo pelo qual certamente terão conflitos entre si como têm os cientistas e filósofos encarnados. Assim é que um mesmo espírito pode ter diferentes opiniões em diferentes momentos ou variados espíritos terem diferentes opiniões contemporâneas, e encontramos no Livro dos Espíritos (p. 303) que isso de fato se dá com a dicotomia reencarnação e metempsicose e acerca da relação entre os homens e os animais:

O ponto inicial do espírito é uma dessas questões que se prendem à origem das coisas e de que Deus guarda o segredo. Dado não é ao homem conhecê-las de modo absoluto, nada mais lhe sendo possível a tal respeito do que fazer suposições, criar sistemas mais ou menos prováveis. Os próprios espíritos longe estão de tudo saberem e, acerca do que não sabem, também podem ter opiniões pessoais mais ou menos sensatas. É assim, por exemplo, que nem todos pensam da mesma forma quanto às relações existentes entre o homem e os animais. Segundo uns, o espírito não chega ao período humano senão depois de se haver elaborado e individualizado nos diversos graus dos seres inferiores da Criação*. Segundo outros, o espírito do homem teria pertencido sempre à raça humana, sem passar pela fieira animal. O primeiro desses sistemas apresenta a vantagem de assinar um alvo ao futuro dos animais, que formariam então os primeiros elos da cadeia dos seres pensantes. O segundo é mais conforme à dignidade do homem. (grifo nosso)

*Emmanuel, por exemplo, em várias psicografias de Chico Xavier, defende esta primeira teoria contra a opinião daqueles que compuseram O Livro dos Espíritos: “O animal caminha para a condição do homem tanto quanto o homem evolui no encalço do anjo”. (Alvorada do Reino, Na Senda da Ascensão) Em sua obra Emmanuel: Dissertações Mediúnicas sobre Importantes Questões que Preocupam a Humanidade, encontramos:

“Como o objetivo desta palestra é o estudo dos animais, nossos irmãos inferiores, sinto-me à vontade para declarar que todos nós já nos debatemos no seu acanhado círculo evolutivo. São eles os nossos parentes próximos, apesar da teimosia de quantos persistem em o não reconhecer. Considera-se, às vezes, como afronta ao gênero humano a aceitação dessas verdades. E pergunta-se como poderíamos admitir um princípio espiritual nas arremetidas furiosas das feras indomesticadas, ou como poderíamos crer na existência de um rio de luz divina na serpente venenosa ou na astúcia traiçoeira dos carnívoros. Semelhantes inquirições, contudo, são filhas de entendimento pouco atilado”. (XAVIER, Chico. FEB. p. 119)

Interessante notar que o espiritismo diz que sua validade está em não haver contradição entre os espíritos: “Uma só garantia séria existe para o ensino dos espíritos: a concordância que haja entre as revelações que eles façam espontaneamente, servindo-se de grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares”. (O Evangelho Segundo o Espiritismo, p. 31)

Assim, não há uma base sólida acerca do posicionamento dos espíritos em relação a se a alma anima primeiramente corpos animais ou começa já em corpos humanos, logo não há um posicionamento absoluto acerca de se a alma animal progride unicamente por corpos animais ou se é a mesma sorte de alma que anima agora corpos humanos. Contudo, como a obra O Livro dos Espíritos mostra predileção pela teoria de que existem dois tipos de almas, humanas e animais, ou mais precisamente, três, uma também apenas a animar vegetais*, tomaremos isso como o fundamento espírita e o iremos expor aos ensinos conscientes de Krishna.

A primeira dificuldade para sustentar a teoria espírita de que os animais sempre serão animais e sempre foram animais é que ela é contraditória com o senso de justiça vinculado a que alguém sofre por mau uso de seu livre-arbítrio e que alguém tem conforto por bom uso de seu livre-arbítrio, o que é aceito por ambas as religiões em estudo. No entanto, como os animais não têm livre-arbítrio (Livro dos Espíritos 2.11.599), o que ambas as religiões concordam, Deus Se torna injusto na teoria espírita, pois todo o sofrimento excruciante pelo qual passam, por exemplo, as vacas, porcos, galinhas e outros animais em fazendas-fábricas e abatedouros* é um sofrimento desmerecido, não decorrente de nenhuma escolha ruim, tampouco há justiça ou justificativa em uma vaca viver livremente e outra não. Deste modo, Deus torna-Se alguém horrendo que criou almas animais apenas para animarem corpos animais inferiores e irem progredindo por corpos animais superiores sempre sofrendo as dores do nascimento, da morte, da velhice e da doença mesmo não tendo feito nenhuma má escolha ou ato contrário à vontade de Deus. Tais almas animais são submetidas a um processo automático (idem. 2.11.602) de evolução por diferentes corpos – reitero, dolorosíssimo – e evoluem sem nenhum mérito para chegarem ao estágio máximo delas, estágio máximo este no qual não conhecem Deus (idem. 2.11.603)**.

*Aqueles que não estão inteirados deste “avanço” da civilização podem se inteirar do mesmo assistindo ao documentário Terráqueos [Earthlings] ou similares. O referido documentário está disponível neste weblink: terraqueos.org. Outros documentários similares se encontram na mesma página.

**Desenvolvi, a princípio, estar argumentação sob o norteamento de Santo Anselmo, que diz que o conceito perfeito de Deus é, entre outras coisas, de um ser absolutamente justo e infinitamente bom, e que o conceito em que se tenha uma justiça e uma bondade insuperáveis é o conceito verdadeiro. Semelhante argumentação que apresento, no entanto, parece também estar inteiramente em A Gênese (3.12), onde se diz: “Se os animais são dotados apenas de instinto, não tem solução o destino deles e nenhuma compensação os seus sofrimentos, o que não estaria de acordo nem com a justiça, nem com a bondade de Deus”.

A única maneira de se conciliar existir sofrimento no mundo e Deus ser onipotente e bom é a exigência do amor ser precedido por livre-arbítrio, haja vista que um amor forçado não é amor, dado que amar exige a espontaneidade de ter o direito de não amar. Agora, se os animais jamais conhecerão Deus para amá-lO e não têm livre-arbítrio, por que os criar e os submeter a uma evolução dolorosa e sem sentido até o estágio de perfeição em que não conhecem seu criador? Certamente é absurdo atribuir a Deus tamanho capricho, em virtude do que o Livro dos Espíritos só pode dizer sobre isso as palavras com que encerra o capítulo nono da parte segunda: “Quanto às relações misteriosas que existem entre o homem e os animais, isso, repetimos, está nos segredos de Deus”.

O conhecimento da consciência de Krishna, no entanto, mantém Deus como justo ao colocar que os animais sofrem porque as almas que habitam tais animais que estão sofrendo com nascimento, morte, doenças e velhice fizeram mau uso de seu livre arbítrio, isto é, não procederam de acordo com a vontade de Deus, quando possuíam corpos humanos ou no ato de se desconectarem de Deus. Assim é que um açougueiro ou aqueles que comem carne terão de nascer, pelas reações de seus pecados, em corpos de animais que serão brutalmente criados e abatidos. Os corpos animais para as almas também têm um propósito muito amável, que é que uma alma em condição pecaminosa pode dar vazão a suas tendências pecaminosas sem criar novo mau karma. Deste modo, alguém afeito a dormir excessivamente pode ter um corpo de urso; alguém afeito a comer carne, um corpo de tigre; alguém afeito à promiscuidade, um corpo de macaco e assim por diante. Caso se fizesse tais atos no corpo humano, incorreria em grandes reações pecaminosas. Porém, com a oportunidade de fazer tais coisas em corpos animais, o indivíduo dá vazão a seus pecados e pode, quando Deus considerar apropriado, habitar novamente um corpo humano já esgotado desse hábito. Assim é que o Garuda Purana (2.46.9-10) afirma sobre as almas pecaminosas que estão deixando os planetas infernais: “Quando as torturas expiatórias e restringentes cessam, as entidades vivas nascem novamente na forma humana ou em uma forma animal com os traços característicos de seus pecados”. Por traços característicos dos pecados, entende-se uma pessoa incestuosa nascer cão ou alguém que não discrimina o que comer e o que não comer nascer como porco.

Com a metempsicose, a justiça de Deus é preservada, pois o sofrimento da alma no corpo animal tem um porquê imediato, isto é, suas ações passadas, e tem um propósito futuro: uma vez que atinja a perfeição em um dos 400.000 tipos de corpos humanos que propiciam o livre-arbítrio de poder render-se a Deus, conhecerá Deus e se relacionará com Ele em serviço devocional e bem-aventurança eterna.

Embora o espiritismo diga, como citado anteriormente, que talvez as almas que hoje habitam os corpos humanos tenham sim habitado corpos animais, o espiritismo em momento algum assume que a alma possa involuir, o que eles acreditam acontecer na metempsicose. Isto é um erro, no entanto; ao menos na metempsicose mais antiga que se conhece – a metempsicose consciente de Krishna. No Bhagavad-gita (2.40), Krishna diz: “Neste caminho [o caminho da gradual rendição a Deus] não há perda nem diminuição, e um pequeno esforço neste caminho pode proteger a pessoa do mais perigoso tipo de medo”. Em outras palavras, como explica Prabhupada em seu comentário, qualquer avanço que uma alma tenha feito em se render a Deus está eternamente no crédito dela, e ela sempre continuará daquele ponto, e Krishna diz que, desde que ela continue fazendo o mínimo progresso (pequeno esforço) ela estará livre do mais perigoso tipo de medo (cair em uma forma sub-humana). Aqui pode parecer haver uma contradição: Não há perda nem diminuição, ou involução, mas, se ela parar de progredir, cairá em corpos animais. Isso não é uma contradição assim como os espíritas aceitam que alguém que foi doutor em Letras pode, caso aja pecaminosamente, nascer como alguém cego, surdo, mudo e paralítico. Tal aparente involução, isto é, alguém antes pesquisador acadêmico sequer ter sentidos e consciência o bastante para interagir ou se movimentar, é um estado temporário de “inferioridade” à vida passada, o qual, quando superado e terminado, terá sido um grande aprendizado para o doutor, que poderá então continuar seu progresso novamente em um corpo com inteligência, mas temeroso de pecar e reconsiderando se o mero conhecimento acadêmico realmente constitui progresso.

Assim é que, quando alguém cai em um corpo animal após ter tido um corpo humano, ao deixar o corpo animal – ou os vários corpos animais, a depender de seus atos –, retoma sua vida com livre-arbítrio do ponto de rendição a Deus em que estava, e sua experiência em determinado corpo animal serve-lhe de lição ou de esgotamento de alguma tendência animalesca que tinha mesmo no corpo humano.

A história do rei Bharata, por exemplo, relatada no Quinto Canto do Srimad-Bhagavatam – para o qual já fornecemos um weblink – relata a história de um rei que renunciou seu reino quando mais velho e se recolheu para a floresta para se dedicar a práticas espirituais. Contudo, porque negligenciou sua vida espiritual tendo-se atraído por um veadinho na floresta, adquiriu um corpo de veado na vida seguinte. No corpo de veado, intuitivamente rumou para a casa de grandes devotos de Deus e lá ficou até morrer. Uma vez de volta ao corpo humano, na vida seguinte, ele retomou sua vida espiritual com muito mais seriedade e cuidado. Assim, é evidente que, embora tenha adquirido um corpo sub-humano após ter tido um corpo humano, não houve involução da consciência, mas uma experiência chocante tal qual alguém que alguma vez enxergou porém teve um nascimento cego. Assim, negar a metempsicose porque a mesma pressupõe a involução da consciência é ignorância de todos os sistemas de metempsicose*, visto que a metempsicose dos Vedas, escrituras estas que formam a base do movimento Hare Krishna, conciliam perfeitamente a transmigração por diferentes corpos sem aceitar a involução da consciência. Tal aparente “involução” pode ser comparada a alguém que estava caminhando para frente e, ao se deparar com um buraco à sua frente, recua um pouco para saltá-lo. Tal recuo não é um retrocesso em seu caminhar para frente, mas parte de seu progresso.

*Parece que o espírito que se posiciona contra a metempsicose se informou insuficientemente, apenas em fontes semelhantes àquelas consultadas por Jung, que também possuía conhecimento incompleto da metempsicose: “O conceito de renascimento é multifacetado. Em primeiro lugar destaco a metempsicose, a transmigração da alma. Trata-se da ideia de uma vida que se estende no tempo, passando por vários corpos, ou da sequência de uma vida interrompida por diversas reencarnações. O budismo especialmente centrado nessa doutrina – o próprio Buda vivenciou uma longa série de renascimentos – não tem certeza se a continuidade da personalidade é assegurada ou não; em outras palavras, pode tratar-se apenas de uma continuidade do karma. Os discípulos perguntaram ao mestre, quando ele ainda era vivo, acerca desta questão, mas Buda nunca deu uma resposta definitiva sobre a existência ou não da continuidade da personalidade”. (JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 119). Quando tal afirmação de Jung, que não conseguiu estender-se para a psicose mais antiga que se conhece, a metempsicose védica ou pré-budista, foi apresentada a Srila Prabhupada, este comentou:

“Srila Prabhupada: Uma personalidade está sempre presente, e mudanças corpóreas não mudam isso. A pessoa, entretanto, identifica-se de acordo com o seu corpo. Quando, por exemplo, a alma está dentro do corpo de um cachorro, ela pensa de acordo com aquela construção corpórea particular. Ela pensa: “Sou um cachorro, e tenho minhas atividades particulares”. Na sociedade humana, a mesma concepção está presente. Por exemplo, quando alguém nasce na América, ele pensa: “Sou americano, e tenho meu dever”. De acordo com o corpo, a personalidade se manifesta, mas, em todos os casos, a personalidade está presente. Discípulo: Mas essa personalidade é contínua? Srila Prabhupada: Certamente a personalidade é contínua. À morte, a alma passa para outro corpo grosseiro juntamente com suas identificações mentais e intelectuais. O sujeito obtém diferentes tipos de corpos, mas a pessoa é a mesma”. (Beyond Illusion and Doubt. Cap. 15. vedabase.com/en/bid/15)

Então, porque o espiritismo não possui uma resposta clara sobre se a alma que atualmente ocupa corpos humanos já ocupou corpos animais, e porque seu argumento de que a metempsicose não pode ser real porque implica a involução da consciência é produto de ignorância da metempsicose consciente de Krishna, temos aqui, acredito, bastante espaço para reflexão.

Algo muito interessante é que Krishna deixou-nos já uma fórmula no Bhagavad-gita, cinco mil anos atrás, que nos informa que a opinião de quem reside onde residem aqueles que conversaram com Allan Kardec é, em geral, de que existem diferentes tipos de almas. Tal fórmula é dada no Bhagavad-gita (18.20-22):

Você deve compreender que está no modo da bondade aquele conhecimento com o qual se percebe uma só natureza espiritual indivisa em todas as entidades vivas, embora elas se apresentem sob inúmeras formas. O conhecimento com o qual se vê que em cada corpo diferente há um tipo diferente de entidade viva, você deve entender que está no modo da paixão. E o conhecimento pelo qual alguém se apega a um tipo específico de trabalho como se fosse tudo o que existe, sem conhecimento da verdade, e que é muito escasso, diz-se que está no modo da ignorância.

O universo, segundo os Vedas, é regido por três cordas, ou modos da natureza material, os quais se chamam bondade, paixão e ignorância. Assim, classifica-se tudo nos três modos, como alimentação, caridade etc. Pode-se ler sobre os mesmos nos capítulos 14, 17 e 18 do Bhagavad-gita. Aqui Krishna está dizendo que, quando alguém está no modo da ignorância, esse alguém quer apenas trabalhar, sendo indiferente a discussões se a alma existe ou não existe, se ela é a mesma tramitando por diferentes corpos ou se cada tipo de corpo comporta um tipo de alma. Em seguida, superiores são as pessoas controladas pelo modo da paixão, as quais já aceitam a existência da alma, embora, por seus sentidos imperfeitos e por seu desejo de explorar os outros, digam que a alma da mulher, do índio, do negro ou dos animais é inferior. Por fim, existem aqueles no modo da bondade, o melhor de todos, os quais percebem que é a mesma alma que aparece em diferentes corpos, assim como a mesma luz branca às vezes parece azul, vermelha ou amarela a depender da cor do invólucro que recebe.

Assim, as escrituras conscientes de Krishna dizem que onde residem aqueles que conversaram com Allan Kardec é uma morada no modo da paixão (Srimad-Bhagavatam 4.29.28, significado), a qual se chama, em sânscrito, Antariksa, daí a opinião deles. A tese espírita ser prevista milênios antes do surgimento do espiritismo e ainda propor uma tese superior é certamente algo que deve promover buscadores sinceros a considerarem se não há livros na Terra mais avançados do que os cinco livros codificados por Kardec e similares. A leitura do Bhagavad-gita Como Ele É, na companhia daqueles que já o estudam há mais tempo, é um começo recomendável. Acerca da localização das colônias espíritas e sua identificação com o modo da paixão, falaremos mais adiante, na seção denominada “Uma análise da posição dos espíritos segundo a consciência de Krishna”.

Ainda nos argumentos na dicotomia reencarnação e metempsicose, além dos argumentos da questão do sofrimento a quem nunca teve livre-arbítrio para fazer algo que merecesse sofrimento e de que Krishna previu esse argumento para aqueles que habitam Antariksa, há o argumento moral, possivelmente o mais forte, de que perceber outras entidades vivas como ontologicamente inferiores é a inconsciência fundamental para se explorar o outro. Só me é possível explorar o negro, a mulher, o judeu ou o índio, por exemplo, depois que eu me convencer de que são menos importantes para Deus ou inferiores a mim, pois, se são iguais a mim, dou o direito de que façam comigo o mesmo que faço com eles, e se são tão importantes para Deus quanto eu sou, Deus me punirá de alguma forma. Assim, vê-se rotineiramente que, conquanto os espíritas se apiedem de seres humanos em sofrimento, são promotores do sofrimento dos animais em seus hábitos alimentares, de vestes etc., hábitos estes tendo em vista o gozo dos sentidos. No Movimento Hare Krishna, todo membro faz o voto vitalício de não comer carne, peixe ou ovos, e as verduras e outros alimentos também são ingeridos apenas após serem consagrados a Deus. Assim, é visível a superioridade moral e caridosa naqueles possuidores da visão de que a alma que anima os animais e plantas não é por natureza inferior ou sem o propósito de um dia alcançar Deus, mas uma alma tal como nós que agora estamos em corpos humanos*.

*Esta questão de que o fundamento para não explorarmos os animais ou humanos de diferentes categorias se encontra na necessidade de os vermos como indivíduos na mesma categoria que nós, uma categoria única abaixo de Deus, fica evidente caso contrastemos, por exemplo, espíritos que acreditam que os animais possuem almas constitucionalmente inferiores e aqueles que pensam diferente. Vemos, por exemplo, que os reveladores do Livro dos Espíritos, partidários da ideia de que a alma em um corpo animal é distinta, e eternamente distinta, da alma em um corpo humano, não promovem o vegetarianismo e o consequente bem-estar dos animais: “Dada a vossa constituição física, a carne alimenta a carne, do contrário o homem perece. A lei de conservação lhe prescreve, como um dever, que mantenha suas forças e sua saúde, para cumprir a lei do trabalho. Ele, pois, tem que se alimentar conforme o reclame a sua organização” (O Livro dos Espíritos 3.5.723). O já mencionado espírito Emmanuel, partidário da ideia de que as almas que ocupam corpos animais e humanos são as mesmas, defende o vegetarianismo: “A ingestão das vísceras dos animais é um erro de enormes consequências, do qual derivaram numerosos vícios da nutrição humana. É de lastimar semelhante situação, mesmo porque, se o estado de materialidade da criatura exige a cooperação de determinadas vitaminas, esses valores nutritivos podem ser encontrados nos produtos de origem vegetal, sem nenhuma necessidade dos matadouros e frigoríficos… Consolemo-nos com a visão do porvir, sendo justo trabalharmos, dedicadamente, pelo advento dos tempos novos em que os homens terrestres poderão dispensar da alimentação os despojos sangrentos de seus irmãos inferiores”. (O Consolador, questão 129) Assim fica aparente que, por trás do empenho em categorizar o outro como ontologicamente inferior, está o desejo e o ato degradado de explorá-lo.

Deste modo, apresentado o sistema de metempsicose do Movimento Hare Krishna, que remonta mais de 50 séculos na história registrada, sistema este que não nega a evolução permanente da consciência e que a evolução da alma pelos animais é progressiva, a metempsicose passa a ser verdadeira segundo estes dizeres da página 303 do Livro dos Espíritos: “Seria verdadeira a metempsicose se indicasse a progressão da alma, passando de um estado a outro superior, onde adquirisse desenvolvimentos que lhe transformassem a natureza”.

Uma análise da posição dos espíritos segundo o espiritismo

Em O Evangelho Segundo o Espiritismo*, o espiritismo promove-se como sucessor de Jesus em ensinamentos, valendo-se das passagens bíblicas que se referem ao “Espírito de verdade”, a saber, João 14:17, 15:26 e 16:13: “O Espírito de verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece; mas vós o conheceis, porque habita convosco, e estará em vós. Mas, quando vier o Consolador, que eu da parte do Pai vos hei de enviar, aquele Espírito de verdade, que procede do Pai, ele testificará de mim. Mas, quando vier aquele, o Espírito de verdade, ele vos guiará em toda a verdade; porque não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará o que há de vir”**.

*KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Brasília: FEB, 1996
**bibliahabil.com.br

Podemos identificar quatro atributos (mais do que isso tornaria este muito longo) para análise do Espírito de Verdade segundo os referidos versos bíblicos: O Espírito de Verdade procede do Pai; não ensinará algo diferente do que Jesus disse; guiará as pessoas em toda a verdade; e não falará de si mesmo, mas antes do que houver ouvido.

O Consolador é identificado nas obras canônicas do espiritismo como o próprio espiritismo, como em A Gênese* (1.42): “O espiritismo realiza todas as promessas do Cristo a respeito do Consolador anunciado”, e o Espírito de Verdade é aquele que inspira (1.39) e preside (1.40) essa doutrina. Em termos práticos, podem-se analisar os quatro atributos no espiritismo como uma análise paralela do Espírito de Verdade, pois, uma vez que o espiritismo, o Consolador, é “inspirado” e “presidido” pelo Espírito de Verdade, não pode haver diferença ou contradição doutrinária entre os dois.

*KARDEC, Allan. A Gênese. Brasília: FEB, 1995

Então, um estudo esmerado do espiritismo mostra os quatros atributos que selecionamos acima? Analisemos cada um.

O Espírito de Verdade “procede do Pai” significa que ele já esteve com o Pai, isto é, já O viu e O conhece, o que é possível segundo o Livro dos Espíritos (1.1.11): “Será dado um dia ao homem compreender o mistério da Divindade? ‘Quando não mais tiver o espírito obscurecido pela matéria. Quando, pela sua perfeição, se houver aproximado de Deus, ele O verá e compreenderá’”. Assim, o Espírito de Verdade, que procede do Pai, deve ser alguém que viu Deus e O conhece, o que nenhum espírito que se comunicou conosco disse ter feito. Dizer que “vem do Pai” significa que os espíritos são partes de Deus e criados por Ele, daí “virem do Pai”, seria algo sem sentido, pois os espíritos em estado encarnado também veem do pai, de modo que “vir do Pai” não pode ser uma questão ontológica.

O Espírito de Verdade não ensinará algo diferente do que Jesus ensinou. No velho testamento, aceito por Jesus, visto que não veio negar a lei, mas cumpri-la (Mateus 5:17), encontramos: “Entre ti não se achará quem faça passar pelo fogo a seu filho ou a sua filha, nem adivinhador, nem prognosticador, nem agoureiro, nem feiticeiro. Nem encantador, nem quem consulte a um espírito adivinhador, nem mágico, nem quem consulte os mortos. Pois todo aquele que faz tal coisa é abominação ao SENHOR; e por estas abominações o SENHOR teu Deus os lança fora de diante de ti”. (Deuteronômio 18:10-14)

Jesus também ensinou que o mandamento maior é Amar a Deus, e o segundo mandamento é amar o próximo: “Mestre, qual é o grande mandamento na lei? E Jesus disse-lhe: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus 22:36-39). O capítulo do Evangelho Segundo o Espiritismo que trata deste assunto, curiosamente, traz o título do segundo mandamento mais importante, Amar o Próximo como a Si Mesmo. Embora seja citada toda a passagem bíblica que aqui citei, quando os espíritos a comentam, eles não dizem absolutamente nada sobre o primeiro mandamento, que Jesus disse ser o mais importante, mas comentam apenas o segundo. Seu comentário completo a estes dois mandamentos é este:

“Amar o próximo como a si mesmo: fazer pelos outros o que quereríamos que os outros fizessem por nós” é a expressão mais completa da caridade, porque resume todos os deveres do homem para com o próximo. Não podemos encontrar guia mais seguro, a tal respeito, que tomar para padrão, do que devemos fazer aos outros aquilo que para nós desejamos. Com que direito exigiríamos dos nossos semelhantes melhor proceder, mais indulgência, mais benevolência e devotamento para conosco, do que os temos para com eles? A prática dessas máximas tende à destruição do egoísmo. Quando as adotarem para regra de conduta e para base de suas instituições, os homens compreenderão a verdadeira fraternidade e farão que entre eles reinem a paz e a justiça. Não mais haverá ódios, nem dissensões, mas, tão-somente, união, concórdia e benevolência mútua. (Evangelho Segundo o Espiritismo 11.4)

Assim, fica claro que o espiritismo estabelece a comunicação com os mortos, tida pelo velho testamento como “abominação ao Senhor”, e coloca o segundo mandamento de Jesus como o primeiro, alteração esta facilmente assimilável à primeira constatação de não conhecerem Deus, prerrogativa para amá-lO. A adoração a Deus é irrelevante em uma religião cuja lei de ação e reação é soberana, haja vista que um ateu caridoso tem o mesmo destino de um teísta caridoso que louva a Deus em oração e cânticos. Deus é mero dador das reações, quer boas, quer ruins, o que O torna mecânico ou impessoal e, logo, irrelevante*.

*As primeiras perguntas de Allan Kardec são sobre Deus, e as respostas são descrições meramente mecânicas: “Que é Deus? ‘Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas’. Onde se pode encontrar a prova da existência de Deus? ‘Num axioma que aplicais às vossas ciências. Não há efeito sem causa. Procurai a causa de tudo o que não é obra do homem e a vossa razão responderá’”. (Livro dos Espíritos 1.1.1 e 4)

O Espírito de Verdade também guiará as pessoas em toda a verdade. Contudo, se os espíritos não conhecem tudo, como já citamos – “Os próprios espíritos longe estão de tudo saberem e, acerca do que não sabem, também podem ter opiniões pessoais* mais ou menos sensatas” (Livro dos Espíritos p. 303) – como poderão ensinar tudo? O Espírito de Verdade tem mesmo de ser alguém que vem do Pai, pois apenas semelhante pessoa pode tudo saber, ou então ser o próprio Pai, como defendem os Católicos, que afirmam o Espírito de Verdade ser o Espírito Santo, termo este equivalente na consciência de Krishna a Paramatma**.

*Não haveria problema algum nessa divisão de opiniões caso o espiritismo se reduzisse à posição de pesquisa científica e filosófica, como por vezes faz. Contudo, ao se atribuir valor divino, como ter vindo do Pai e só dizer o que ouve, a existência de diversas opiniões lança-lhe descrédito. Os mestres do Movimento Hare Krishna também atribuem a si o valor divino de só dizerem o que ouviram de Deus – como registradas Suas palavras pelo avatara Vyasadeva no Bhagavad-gita – porém, em coerência, jamais se vê que tenham opiniões diferentes, pois todos respondem as perguntas pelo que ouviram do Bhagavad-gita; no caso da transmigração da alma, que a alma que habita corpos humanos atualmente pode e passa por corpos animais. Sobre isso, Srila Prabhupada comenta:

“Mediante avanço especulativo, ninguém é capaz de chegar à plataforma real de conhecimento. No presente momento, muitíssimos filósofos, cientistas, estão tentando avançar em conhecimento através da especulação: ‘Eu acho’, ‘Na minha opinião’, ‘Talvez’ e assim por diante. Isso continua. Grandessíssimos filósofos, cientistas, eles dão sua opinião. Todos estão achando. ‘Eu acho…’. E isso está sendo apoiado. Conhecimento tornou-se sinônimo de poder pensar de qualquer maneira, e, no momento atual, isso está sendo aceito”. (palestra em 19 de abril de 1974, Hyderabad)

Sobre o guru, ou mestre, fidedigno, diz:

“O guru [mestre] é um. Embora centenas e milhares de acaryas [mestres exemplares] tenham ido e vindo, a mensagem é a mesma. Portanto, o guru não pode ser dois. O verdadeiro guru não falará algo diferente. Alguns gurus dizem: ‘Na minha opinião, você deve ser assim’, e alguns gurus dirão: ‘Na minha opinião, faça assim’ – eles não são gurus; são todos velhacos. O guru não tem opinião pessoal. O guru tem apenas uma opinião: a opinião que foi expressa por Krishna [Deus]”. (Palestra em 22 de agosto de 1973, Londres)

**Palestra de Srila Prabhupada em Londres sobre o Bhagavad-gita 1.15, em 15 de julho de 1973

Outro atributo do Espírito de Verdade é que “não falará de si mesmo, mas antes do que houver ouvido”. Este é o atributo essencial de um mestre espiritual segundo a consciência de Krishna, que ele tem de ter ouvido de uma autoridade, que ouviu de outra autoridade e assim por diante até que a primeira autoridade tenha sido alguém que ouviu do próprio Deus, como descrito no já citado Livro dos Espíritos 1.1.11. Para maior credibilidade, é importante também que essa ordem de Deus que é transmitida adiante também possa ser uma fonte primária para quem a recebe, isto é, deve-se poder consultar tanto o mestre que traz o conhecimento acerca de Deus como Deus diretamente na obra que registra as palavras de Deus, ou, caso contrário, a relação com o mestre será de mera fé em alguém cuja autenticidade não se pode determinar. Vemos que os espíritos, no entanto, não têm essa posição de que receberam instruções superiores e assim por diante até alguém que está em contato com Deus, supostamente o Espírito de Verdade, senão que têm opiniões e investigam o universo, Deus etc. através de suas experiências. Por exemplo, o estudo da origem do Universo e dos mundos se dá pela disciplina da Ciência, e não por revelação de uma autoridade infalível:

A história da origem de quase todos os povos antigos se confunde com a da religião deles, donde o terem sido religiosos os seus primeiros livros. E como todas as religiões se ligam ao princípio das coisas, que é também o da Humanidade, elas deram, sobre a formação e o arranjo do Universo, explicações em concordância com o estado dos conhecimentos da época e de seus fundadores. Daí resultou que os primeiros livros sagrados foram ao mesmo tempo os primeiros livros de ciência, como foram, durante largo período, o código único das leis civis.

Nas eras primitivas, sendo necessariamente muito imperfeitos os meios de observação, muito eivadas de erros grosseiros haviam de ser as primeiras teorias sobre o sistema do mundo. Mas, ainda quando esses meios fossem tão completos quanto o são hoje, os homens não teriam sabido utilizá-los. Aliás, tais meios não podiam ser senão fruto do desenvolvimento da inteligência e do consequente conhecimento das leis da Natureza. À medida que o homem se foi adiantando no conhecimento dessas leis, também foi penetrando os mistérios da criação e retificando as ideias que formara acerca da origem das coisas.

Impotente se mostrou ele para resolver o problema da criação, até ao momento em que a Ciência lhe forneceu para isso a chave. Teve de esperar que a Astronomia lhe abrisse as portas do espaço infinito e lhe permitisse mergulhar aí o olhar; que, pelo poder do cálculo, possível se lhe tornasse determinar com rigorosa exatidão o movimento, a posição, o volume, a natureza e o papel dos corpos celestes; que a Física lhe revelasse as leis da gravitação, do calor, da luz e da eletricidade; que a Química lhe mostrasse as transformações da matéria e a Mineralogia os materiais que formam a superfície do globo; que a Geologia lhe ensinasse a ler, nas camadas terrestres, a formação gradual desse mesmo globo. À Botânica, à Zoologia, à Paleontologia, à Antropologia coube iniciá-lo na filiação e sucessão dos seres organizados. Com a Arqueologia pode ele acompanhar os traços que a Humanidade deixou através das idades. Numa palavra, completando-se umas às outras, todas as ciências houveram de contribuir com o que era indispensável para o conhecimento da história do mundo. Em falta dessas contribuições, teve o homem como guia as suas primeiras hipóteses.

Por isso, antes que ele entrasse na posse daqueles elementos de apreciação, todos os comentadores da Gênese, cuja razão esbarrava em impossibilidades materiais, giravam dentro de um círculo, sem conseguirem dele sair. Só o lograram, quando a Ciência abriu caminho, fendendo o velho edifício das crenças. Tudo então mudou de aspecto. Uma vez achado o fio condutor, as dificuldades prontamente se aplanaram. Em vez de uma Gênese imaginária, surgiu uma Gênese positiva e, de certo modo, experimental. O campo do Universo se distendeu ao infinito. Acompanhou-se a formação gradual da Terra e dos astros, segundo leis eternas e imutáveis, que demonstram muito melhor a grandeza e a sabedoria de Deus, do que uma criação miraculosa, tirada repentinamente do nada, qual mutação à vista, por efeito de súbita ideia da Divindade, após uma eternidade de inação.

Pois que é impossível se conceba a Gênese sem os dados que a Ciência fornece, pode dizer-se com inteira verdade que: a Ciência é chamada a constituir a verdadeira Gênese, segundo a lei da Natureza. (A Gênese 4.1-3)

É claro que, assim como os atuais cientistas acreditam que, embora todos os cientistas antes deles estivessem errados, eles agora não o estarão pelo aprimoramento de suas ferramentas; serão muitos aqueles, na mentalidade cientificista da contemporaneidade, a acreditarem que as ferramentas dos espíritos desencarnados serão suficientes para esse exame. Em todo caso, não é possível atribuir a tais espíritos o caráter de “falam o que ouvem”.

Assim, parece evidente que o espiritismo não tem todos ou nenhum dos atributos que se espera no que Jesus descreveu como Espírito de Verdade e Consolador, fazendo parecer, destarte, que o uso bíblico é apenas um artifício de autopromoção com a atitude de aproveitar de um corpo textual bem estruturado e famoso para isso, tal qual fez Gandhi em relação ao Bhagavad-gita. Contudo, façamos outra reflexão. Se o espiritismo veio para adicionar aos ensinamentos de Jesus a explicação de como as pessoas sofrem por reações a atos de vida passada*, o que não podia ser explicado 2.000 anos atrás onde Jesus pregou, o que podemos esperar dos ensinamentos da Índia, onde se falou o Bhagavad-gita 5.000 anos atrás, no qual se fala claramente de tudo o que o espiritismo fala apenas hoje? No Bhagavad-gita, temos instruções claras sobre caridade, reencarnação, amor a Deus e assim por diante. Se 5.000 anos atrás, 3.000 anos antes de Jesus poder falar limitadamente, e quase 5.000 anos antes do espiritismo poder falar o que fala hoje, o povo da Índia estava pronto para esse conhecimento, o que será que podemos aprender com a Índia hoje, especialmente em uma sucessão ininterrupta de mestres e discípulos desde o Bhagavad-gita 5.000 anos atrás, sucessão esta representada, entre outros, por Prabhupada, o fundador do Movimento Hare Krishna?

*“[O espiritismo] vem, finalmente, trazer a consolação suprema aos deserdados da Terra e a todos os que sofrem, atribuindo causa justa e fim útil a todas as dores”. (Evangelho Segundo o Espiritismo 6.4)

Sobre caridade, entre outros versos, Krishna, ou Deus, diz no Bhagavad-gita (17.20-22, 18.22,68):

A caridade dada por dever, sem expectativa de recompensa, no local e hora apropriados e dada a alguém digno, está no modo da bondade. Mas a caridade executada com expectativa de alguma recompensa, ou com desejo de resultados fruitivos, ou com má vontade, diz-se que é caridade no modo da paixão. E a caridade executada em lugar impuro, em hora imprópria e feita a pessoas indignas ou sem a devida atenção e respeito diz-se que está no modo da ignorância. Os atos de sacrifício, caridade e penitência não devem ser abandonados, mas sim executados. Na verdade, sacrifício, caridade e penitência purificam até as grandes almas. Para aquele que explica aos devotos este segredo supremo, o serviço devocional puro está garantido, e, no final, ele voltará a Mim. Não há neste mundo servo que Me seja mais querido do que ele, tampouco jamais haverá alguém mais querido.

Sobre reencarnação, diz (22.12-17, 20-25 e 28-30):

Nunca houve um tempo em que Eu não existisse, nem você, nem todos esses reis, e, no futuro, nenhum de nós deixará de existir. Assim como a alma encarnada passa seguidamente, neste corpo, da infância à juventude e à velhice, da mesma maneira, a alma passa para outro corpo após a morte. Uma pessoa sóbria não se confunde com tal mudança. Ó filho de Kunti, o aparecimento temporário da felicidade e da aflição, e o seu desaparecimento no devido tempo, são como o aparecimento e o desaparecimento das estações de inverno e verão. Eles surgem da percepção sensorial, ó descendente de Bharata, e precisa-se aprender a tolerá-los sem se perturbar. Ó melhor entre os homens [Arjuna], quem não se deixa perturbar pela felicidade ou aflição e permanece estável em ambas as circunstâncias, está certamente qualificado para a liberação. Aqueles que são videntes da verdade concluíram que não há continuidade para o inexistente [o corpo material] e que não há interrupção para o existente [a alma]. Eles concluíram isto estudando a natureza de ambos. Saiba que aquilo que penetra o corpo inteiro é indestrutível. Ninguém é capaz de destruir a alma imperecível. Para a alma, em tempo algum existe nascimento ou morte. Ela não passou a existir, não passa a existir e nem passará a existir. Ela é não nascida, eterna, sempre existente e primordial. Ela não morre quando o corpo morre. Assim como alguém veste roupas novas, abandonando as antigas, a alma aceita novos corpos materiais, abandonando os velhos e inúteis. A alma nunca pode ser cortada em pedaços por arma alguma, nem pode ser queimada pelo fogo, ou umedecida pela água ou definhada pelo vento. Esta alma individual é inquebrável e indissolúvel, e não pode ser queimada nem seca. Ela é permanente, está presente em toda a parte, é imutável, imóvel e eternamente a mesma. Diz-se que a alma é invisível, inconcebível e imutável. Sabendo disto, você não deve se afligir por causa do corpo. Todos os seres criados são imanifestos no seu começo, manifestos no seu estado intermediário, e de novo imanifestos quando aniquilados. Então, qual a necessidade de lamentação? Alguns consideram a alma como surpreendente, outros descrevem-na como surpreendente, e alguns ouvem dizer que ela é surpreendente, enquanto outros, mesmo após ouvir sobre ela, não podem absolutamente compreendê-la. Ó descendente de Bharata, aquele que mora no corpo nunca pode ser morto. Portanto, você não precisa afligir-se por nenhum ser vivo.

Sobre o amor a Deus, diferentemente do espiritismo, a consciência de Krishna sabe conciliá-la com a lei do karma, sem retirar o panorama de misericórdia e a importância do louvor exclusivo a Deus. Na consciência de Krishna, não se alcança Deus através do acúmulo de bom karma, senão que este conduz a alma apenas a dimensões superiores de conforto, conhecimento e bondade. Contudo, a lei do karma é a resposta de Deus às almas que não quiseram morar no reino dEle, onde Ele controla tudo. Assim, rebeldes do controle de Deus, Deus cria-lhes o mundo material – que inclui a morada dos espíritos –, onde elas mesmas são as controladoras e Ele nada faz, isto é, os atos das almas condicionadas determinam sua ventura ou desventura, não Deus. Querer chegar a Deus pelo acúmulo de bom karma é manter a mentalidade de ser o controlador e autossuficiente: “Sou alguém que pode sair do mundo material por meu próprio esforço e mérito”. Quando alguém se rende a Deus, ele se livra tanto do bom karma quanto do mau karma, tornando-se akarma*, isto é, tornando-se alguém que não terá mais nenhuma existência promovida por seus próprios atos, mas existirá no reino de Deus, onde Deus é o controlador direto. Estas e outras instruções estão no Bhagavad-gita claramente.

*“Aquele ocupado em serviço devocional se livra tanto das boas quanto das más reações, mesmo nesta vida. Esforça-te, portanto, pelo yoga, que é a arte de todo trabalho”. (Bhagavad-gita 2.50)

Em resumo, pode-se ver o espiritismo como uma revelação inválida porquanto não sustenta os atributos que diz ter, lembrando, proceder do Pai; não ensinar algo diferente do que Jesus disse; guiar as pessoas em toda verdade; e não falar de si mesmo, mas antes do que houver ouvido.

Neste ponto, algumas perguntas interessantes podem estar visitando a inteligência do leitor. Por exemplo, o Bhagavad-gita não descreve com toda a lucidez de detalhes as colônias e planetas superiores, como faz o espiritismo. Isto não faria do espiritismo superior? O Bhagavad-gita possui uma justificativa para não fazer semelhante descrição. Os Vedas o fizeram profusamente, e a crítica de Krishna, no Bhagavad-gita (2.27), é esta: “Os homens de pouco conhecimento estão muitíssimo apegados às palavras floridas dos Vedas, que recomendam várias atividades fruitivas àqueles que desejam elevar-se aos planetas celestiais, com o consequente bom nascimento, poder e assim por diante. Por estarem ávidos por gozo dos sentidos e vida opulenta, eles dizem que isto é tudo o que existe”. E completa, em Bhagavad-gita 8.16, dizendo que mesmo a morada de Brahma, a morada mais elevada que existe, em seis camadas superiores à residência dos espíritos, ou bhutas, é miserável. Assim, ouvir as descrições de tais lugares apenas aumenta o nosso desejo de tentarmos ser felizes longe de Deus: “Aqui está ruim, mas lá, apesar de Deus não residir lá pessoalmente, vai ser bom”. Contudo, na opinião de Krishna, lá também é ruim, até a residência de Brahma, sendo bom apenas onde Ele mora em Seu aspecto pessoal*, morada esta chamada Vaikuntha. Krishna chama as descrições de tais lugares de “linguagem florida” porque aqueles que os descrevem não os descrevem de modo justo, senão que descrevem impressionados em ter um local onde têm mais conforto do que tinham na superfície da Terra ou em outros lugares.

*“Transcendentalistas doutos, os quais conhecem a Verdade Absoluta, chamam essa substância não dual de Brahman [a refulgência de luz que emana do aspecto pessoal de Deus], Paramatma [Deus como a testemunha e o mestre espiritual residente no coração do corpo sutil] ou Bhagavan [Deus em Si, em Seu aspecto pessoal com o qual interage sobretudo com as almas liberadas de todo condicionamento grosseiro e sutil]”. (Srimad-Bhagavatam 1.2.11)

No filme Nosso Lar, por exemplo, encontramos:

“Aos poucos, tudo começava a fazer sentido. Nosso Lar era a vida real, e a Terra apenas uma passagem”. (36:00) Se o espírito progride por várias moradas, por que o Nosso Lar não é tratado apenas como passagem, tal como se chamou de passageira a Terra? Em outra cena, André Luiz diz: “Eu ainda era o mesmo homem, preso aos meus próprios erros, ao meu egoísmo, ao meu passado”. (36:40) Diante disso, não é possível ter os moradores de tal local como autoridades, o que dizer de autoridades livres de todo erro, embora eles se vejam assim, com na cena em 1:04:00, onde uma servidora da colônia Nosso Lar leva para André Luiz o registro de orações feitas a ele, gravadas em uma espécie de pen drive, e diz que ali não há erros:

– Nossa, demorei a achar. Faz tempo não é? Só tem dois arquivos.

– Como assim?

– O registro de duas pessoas.

– Só duas? Você colocou meu nome correto? “André Luiz”.

– Não há erros aqui, senhor.

Como pode não haver erros em um local onde trabalha pessoas presas em seus próprios erros, egoísmo e passado? Se ela teve dificuldade em encontrar – como aponta com os dizeres “Nossa, demorei a achar” – as duas pessoas que oraram a André Luiz, como pode não haver possibilidade de erros ou de não encontrar? Isto é o que define linguagem florida: Descrever um local temporário, com sofrimento e pessoas imperfeitas como sendo “Nosso Lar, a vida real, um local onde não há erros, etc.”; é precisamente o que Krishna diz ser produto de pessoas que estão ávidas por conforto e gozo dos sentidos.

O Bhagavad-gita e as escrituras que o sucedem, no entanto, após condenarem semelhante audição ou leitura, descrevem com minúcias o mundo onde Deus reside com as almas puras e toda a interação que se dá entre os mesmos. Destacamos a obra Krishna, a Suprema Personalidade de Deus, de Srila Prabhupada, a leitura da qual se recomenda após a leitura de O Bhagavad-gita Como Ele É, do mesmo autor.

Uma análise da posição dos espíritos segundo a consciência de Krishna

Hare krishna hare RamaAntes de colocarmos a posição dos espíritos na consciência de Krishna, esclareçamos questões conceituais. A consciência de Krishna chama de espiritual aquilo que é eterno, pleno de conhecimento e pleno de bem-aventurança, de modo que jamais chamará a colônia Nosso Lar, por exemplo, de espiritual, haja vista que, segundo a obra homônima, foi fundada no século XVI, é a residência de pessoas egoístas que precisam renascer etc. e é um local onde há variados sofrimentos. Temporariedade: “‘Nosso Lar’ é antiga fundação de portugueses distintos, desencarnados no Brasil, no século XVI”. (p. 48) Ignorância: “Notando-me a dificuldade para apreender todo o conteúdo do ensinamento, com vistas à minha quase total ignorância dos princípios espirituais, Lísias procurou tornar a lição mais clara”. (p. 66) Tristeza: “Notando que a senhora Laura entristecera subitamente ao recordar o marido, modifiquei o rumo da palestra” (p. 116).

*XAVIER, Francisco Cândido. Nosso Lar. Brasília: FEB, 1996.

Assim, as colônias também são chamadas de materiais por nós. A morada de Deus, Krishna, sim é chamada espiritual, haja vista que não possui data de fundação nem se a deixa uma vez que se a tenha alcançado, todos lá possuem conhecimento perfeito acerca de tudo simplesmente por lá estarem e desconhecem qualquer espécie de sofrimento. Residência eterna para os que a alcançam: “Essa Minha morada suprema não é iluminada pelo Sol ou pela Lua, nem pelo fogo ou pela eletricidade. Aqueles que a alcançam jamais retornam a este mundo material”. (Bhagavad-gita 15.6) A morada em si: “Quando todo este mundo é aniquilado, aquela região [a morada de Deus] permanece inalterada. Aquilo que os vedantistas descrevem como imanifesto e infalível, aquilo que é conhecido como o destino supremo, aquele lugar do qual jamais se retorna após alcançá-lo – essa é Minha morada suprema”. (idem. 8.20-21)

Aqueles que se comunicam com os médiuns não são chamados de espíritos, pois eles não estão na morada espiritual de Deus, de modo que seus corpos têm que ser feitos da mesma substância da morada deles. Aqueles que moram na morada de Deus, que é eterna, plena de conhecimento e de bem-aventurança, têm um corpo dessa natureza, chamado em sânscrito de siddha-deha, ao passo que aqueles que residem na parte sutil do mundo material possuem corpos sutis materiais. Para se entrar no reino de Deus, é preciso abandonar também o corpo sutil, o que se chama liberação, ou moksha. Caso se abandone o corpo sutil sem o desejo de servir Deus, mas apenas por se atingir um estágio de não possuir nenhum desejo egoísta, a alma, sem nenhum corpo, funde-se na refulgência do corpo de Deus (Brahman). Caso abandone o corpo sutil, tendo atingido a perfeição de não ter nenhum desejo egoísta, mas possuindo o desejo de servir Deus, recebe um corpo da mesma natureza do corpo de Deus, lembrando, um corpo eterno, pleno de conhecimento e de bem-aventurança.

Aqueles chamados pelo espiritismo de espíritos de luz e espíritos de pouca luz são chamados ambos de bhutas, que significa “apegados ao passado”. Quando errantes, ficam nesta condição:

Aqueles que são muito pecaminosos e apegados à sua família, casa, vila ou país não recebem um corpo grosseiro feitos dos elementos materiais, senão que permanecem em um corpo sutil, composto de mente, ego e inteligência. Aqueles que vivem em tais corpos sutis são chamados de fantasmas (ghosts*). Essa posição fantasmagórica é muito dolorosa, porque um fantasma tem o corpo sutil e quer desfrutar da vida material, mas, porque ele não tem um corpo material grosseiro, tudo o que ele pode fazer é criar perturbações** devido à falta de satisfação material. (Srimad-Bhagavatam 4.18.18, significado)

*A palavra que Prabhupada usa em inglês é ghost, a qual parece ser cognato com a palavra sânscrita guha. Guha significa literalmente tanto “conhecido por poucos” como “residente no coração”. A palavra que atualmente traduz ghost nos livros de Prabhupada em português, no entanto, é bastante infeliz, porque a raiz de fantasma é fantasia, isto é, algo que não existe fatualmente. Por ora, utilizaremos “fantasma”, embora um termo mais apropriado em português esteja em debate pelos responsáveis pelas traduções em português das obras de Prabhupada e outras.

**Algumas de tais perturbações são descritas no Garuda Purana (2.9.57-62): “Falar-te-ei agora acerca dos tormentos ocasionados pelos fantasmas contra as pessoas na Terra. Quando uma mulher menstrua em vez de engravidar, não havendo crescimento da família apesar de vida sexual saudável, isso é influência de fantasmas. Também é influência de fantasmas quando alguém morre jovem, perde repentinamente seu emprego, é objeto de insultos, quando há repentino incêndio em uma casa, vê-se que em uma casa há constante desunião e brigas, falsos elogios, sofrimento devido à ganância, e doenças que suscitam vergonha. Quando o dinheiro investido da maneira correta não rende, mas se perde, isso se deve à perseguição de um fantasma. Quando safras se perdem mesmo após chuva apropriada, quando atividades comerciais fracassam, quando a esposa ou o esposo se mostra irritado, isso se deve à influência de fantasmas”.

Quando se enfartam de causar perturbações, caso tenham algum mérito piedoso, podem ir para Antariksa, ou podem ir diretamente para lá caso sejam semipiedosos, como descreve o Srimad-Bhagavatam (5.24.5): “Abaixo de Vidyadhara-loka, Caranaloka e Siddhaloka, no céu conhecido como Antariksa, estão os locais de desfrute dos yaksas, raksasas, pisacas, bhutas e assim por diante”. Estes são diferentes nomes para designar aqueles que não têm corpos grosseiros. O mais comum é bhuta. Parece-me seguro dizer que essa morada descrita como Antariksa é a mesma descrita pelos espíritas, tanto por ser a morada paradisíaca dos bhutas, aqueles apegados à família e com algum envolvimento mais ou menos recente com pecados, e por sua descrição espacial mais adiante no mesmo verso: “Antariksa se estende até onde o vento sopra e as nuvens flutuam no céu. Acima de Antariksa, não há mais ar”, o que coincide com a maior parte das descrições espíritas.

Assim, a condição de não ter um corpo grosseiro é tida como algo negativo, e embora tenham uma morada confortável destinada para eles, essa morada continua sendo a morada de pessoas identificadas com o corpo, apegadas à família, sujeitas aos defeitos das almas condicionadas – a saber, a tendência a enganar os outros, a enganar a si mesmos, possuir sentidos imperfeitos e cometer erros*. Logo não é uma posição desejável estar com eles, tampouco suas instruções devem ser tidas como de pessoas abalizadas nos entendimentos acerca de Deus e de Sua vontade. O conhecimento consciente de Krishna então divide as moradas acima de Antariksa, todas também materiais na definição consciente de Krishna, em seis agrupamentos: Bhuvarloka, Svargaloka, Maharloka, Janaloka, Tapoloka e Satyaloka.

*Cf. Sri Caitanya-caritamrta Adi-lila 7.107 e 2.86. (vedabase.com/en/cc)

Há aqui, no entanto, duas divergências entre a consciência de Krishna e o espiritismo. Primeiramente, não se chega a essas moradas apenas com o corpo sutil, corpo de bhuta, no sentido de que das colônias, ou de Antariksa, evolui-se mais e se continua sutilizando o corpo até as moradas superiores. Tais moradas possuem corpos grosseiros refinadíssimos para seus residentes, os quais lhe dão mais oportunidades do que possui o corpo sutil sozinho*. Em Satyaloka reside Brahma, que é a entidade viva mais poderosa e pura do mundo material, o qual preside todos os planetas, e Brahma possui um corpo grosseiro. Outra divergência é que nenhum dos moradores destes planetas, para não falar dos residentes de Antariksa, com seu peculiar apego aos laços familiares, pode estabelecer o caminho religioso para os terrestres ou qualquer outra pessoa. Isso é declarado no Srimad-Bhagavatam (6.3.19): “Os verdadeiros princípios religiosos são enunciados pela Suprema Personalidade de Deus. Embora completamente situados no modo da bondade, nem mesmo grandes sábios que ocupam os planetas mais elevados podem determinar os princípios religiosos verdadeiros, tampouco o podem os devas [residentes de Svargaloka] ou os líderes de Siddhaloka [um planeta da esfera Bhuvarloka], isso para não falar dos asuras [literalmente, pessoas sem (a-) luz (sura)], dos seres humanos comuns, os Vidyadharas e Caranas [outros residentes de outros dois planetas de Bhuvarloka]”.

*Uma vez que não obter um corpo grosseiro é prerrogativa dos pecadores, não é possível aceitar que Brahma, por exemplo, a entidade que preside a morada material [material na acepção daqueles conscientes de Krishna] mais elevada não tenha um corpo grosseiro dado que, apenas para residir em seu planeta, para não falar de ter o seu cargo, exige-se que, ao longo de 100 vidas, o indivíduo aspirante não se desvie de nenhum dever prescrito (Brhad-bhagavatamrta 1.2.49, dig-darsini). Além disso, vê-se que personalidades como Indra, de Svargaloka; Hanuman, de Bhuvarloka, e Manu e outros interagem com os seres humanos sem qualquer dificuldade ou necessidade de um médium ou algo similar. Em 28 de dezembro de 1972, em Bombaim, transcorreu a seguinte conversa entre Prabhupada e seus discípulos:

“Devota: Na Lua, há corpos de uma natureza mais sutil de modo que, se fôssemos lá, não seríamos capazes de vê-los? Prabhupada: Não. Você pode vê-los. Eles têm corpo material. Devota: Poderíamos vê-lo com nossos olhos? Prabhupada: Sim. Por que não? Na água, por exemplo, os corpos dos aquáticos são diferentes, mas você pode vê-los. Por que não? Se não fosse visível, como você está vendo a Lua? Se você está vendo a Lua, então não é invisível. A Lua é uma morada celestial [Svargaloka]; os semideuses [devas] vivem lá. Temos essas informações. Eles também são inteligentes: ‘Essas pessoas [os astronautas] estão vindo do planeta terrestre desautorizadamente. Então, divirjamo-los para a porção desértica’. Se a Lua é celestial, seus habitantes são mais inteligentes do que vocês; logo, se vocês têm uma máquina para chegar lá, eles têm uma máquina para divergi-los. ‘Esses sujeitos infames estão vindo aqui sem nenhuma licença de imigração. Que eles sejam divergidos para a porção desértica e, desapontados, irão embora’. Devoto: Há terra nos corpos deles ou seus corpos são feitos de ar? Prabhupada: Não. Estes corpos têm cinco elementos: terra, ar, água, fogo e éter. O corpo sutil: mente, inteligência e ego. Em algum planeta, a porção de terra pode ser maior ou a porção de fogo ou a porção de éter, mas são todos corpos materiais; não são corpos espirituais. O corpo espiritual está dentro. A qualquer lugar que você vá dentro do universo, você obtém o corpo material, e, segundo o corpo, a duração de vida é diferente”.

Assim fica evidente que ter apenas o corpo sutil é desprivilegio, não sintoma de estado de consciência superior. Segundo citado anteriormente, a não obtenção de um corpo grosseiro decorre de apego familiar, ou do passado de modo geral, e acúmulo de pecados, e não de sintoma de “evolução da consciência”.

Enquanto as escrituras descrevem os residentes de Antariksa como bhutas, “pecadores apegados à família imediata ou estendida”, as escrituras descrevem os residentes de planetas superiores, por exemplo, como indivíduos com o seguinte mérito: “Vosso mundo [Brahmaloka] pode ser auferido somente por pessoas santas que observam sem nenhum pecado seus deveres sociais prescritos, livres de orgulho e outros vícios, ao longo de cem vidas”. (Brhad-bhagavatamrta 1.2.49, dig-darsini) Se mesmo tais pessoas muito superiores não podem estabelecer códigos de religião, certamente não o podem os bhutas.

Neste ponto talvez já tenha surgido um questionamento muito interessante no leitor. “Você, um membro da Sociedade Internacional para a consciência de Krishna, está negando a autoridade dos espíritos, ou bhutas, bem como de personalidades mais elevadas do que eles em dimensões superiores, mas, acaso, você também não é alguém falível, tanto você quanto Srila Prabhupada? O verso supracitado do Srimad-Bhagavatam diz que os devas, siddhas etc. não podem estabelecer os princípios religiosos, mas também menciona que não o podem os ‘seres humanos comuns’”.

Certamente Prabhupada, como apenas uma centelha de Deus, e não Deus em pessoa, é falível. Contudo, diferentemente dos bhutas, ou espíritos, ele assume sua condição de não poder chegar a algum conhecimento perfeito através de seus sentidos e deduções, isto é, através de ciência e filosofia. Algumas vezes, acredita-se que os espíritos que ditam estão em contato com outro espírito mais elevado que está em contato com outro espírito mais elevado e assim por diante até alguém perfeito em contato com Deus. Contudo, analisando as obras, sabemos que não é isso o que acontece. Em A Gênese (17.32), por exemplo, encontramos a ideia de que o espiritismo se tornará a religião mundial de todos por meio da razão e da ciência:

Entretanto, a unidade se fará em religião, como já tende a fazer-se socialmente, politicamente, comercialmente, pela queda das barreiras que separam os povos, pela assimilação dos costumes, dos usos, da linguagem. Os povos do mundo inteiro já confraternizam, como os das províncias de um mesmo império. Pressente-se essa unidade e todos a desejam. Ela se fará pela força das coisas, porque há de tornar-se uma necessidade, para que se estreitem os laços da fraternidade entre as nações; far-se-á pelo desenvolvimento da razão humana, que se tornará apta a compreender a puerilidade de todas as dissidências; pelo progresso das ciências, a demonstrar cada dia mais os erros materiais sobre que tais dissidências assentam e a destacar pouco a pouco das suas fiadas as pedras estragadas. Demolindo nas religiões o que é obra dos homens e fruto de sua ignorância das leis da Natureza, a Ciência não poderá destruir, malgrado a opinião de alguns, o que é obra de Deus e eterna verdade. Afastando os acessórios, ela prepara as vias para a unidade.

Interessante notar a analogia de que haverá uma só religião pela força da ciência e da razão humana assim como os povos estão se unindo social e politicamente. Algumas décadas após esses dizeres, irrompeu-se a primeira guerra mundial, e algumas décadas mais à frente, com a ciência e a dita razão em seu auge, a segunda guerra mundial, na qual se conseguiu matar muito mais do que na primeira. Hoje a globalização comercial se mostra um evento que tornou o mundo um grande supermercado de futilidades e artigos degradantes – com a grandiosa internet tendo como dois terços de seu conteúdo pornografia – e o sucesso em reproduzir a alimentação e o entretenimento americanos é o parâmetro de se um país é desenvolvido ou não. Se o espírito for tão feliz em sua previsão do espiritismo como a religião que unirá todos os religiosos do mundo quanto foi feliz em dizer que o mundo caminhava para uma união social, política e comercial, então certamente a ciência e a razão não são meios para se conhecer os desígnios de Deus e unificar as crenças. A razão e a ciência da pós-modernidade mostram como algo percebido com os sentidos, a mente e a inteligência sempre será subjetivo e, logo, jamais unificador, mas produtor das mais diferentes teorias, todas necessariamente falhas.

Que os espíritos usam de seus sentidos e inteligência falíveis para suas conclusões já foi exposto em suas conclusões permeadas de dúvidas, e que se valem de ciência e especulação é algo que expressam com frequência e vaidade, sobretudo em A Gênese. É interessante notar que Allan Kardec se opõe à razão e à percepção direta como meios válidos, mas falhou em perceber que, embora os espíritos tenham melhores recursos – supostamente – para poderem perceber a reencarnação como fato, têm recursos insuficientes para dizerem tudo o que dizem, como falar sobre Deus ou a origem e o propósito do Universo.

O homem que julga infalível a sua razão está bem perto do erro. Mesmo aqueles, cujas ideias são as mais falsas, se apoiam na sua própria razão e é por isso que rejeitam tudo o que lhes parece impossível. Os que outrora repeliram as admiráveis descobertas de que a Humanidade se honra, todos endereçavam seus apelos a esse juiz, para repeli-las. O que se chama razão não é muitas vezes senão orgulho disfarçado e quem quer que se considere infalível apresenta-se como igual a Deus. Dirigimo-nos, pois, aos ponderados, que duvidam do que não viram, mas que, julgando do futuro pelo passado, não creem que o homem haja chegado ao apogeu nem que a Natureza lhe tenha facultado ler a última página do seu livro. (Livro dos Espíritos, p. 30)

Soube muito bem Allan Kardec determinar os percalços da razão e da vaidade, mas não os soube identificar nesses mesmos homens esses defeitos depois de mortos – algo bastante próprio para alguém deslumbrado ante o conhecimento da reencarnação, o que jamais aconteceria se fosse nascido na Índia e estudioso da consciência de Krishna. Neste caso, poderia analisar tudo sem deslumbramento, haja vista a popularidade do conhecimento das existências múltiplas – mero pressuposto.

Sobre a questão epistemológica, os Vedas dizem que a ciência e a filosofia, ou o conhecimento ascendente, sempre será imperfeito, em especial no que diz respeito a Deus, uma vez que Deus é inalcançável pelos esforços das almas em corpos materiais*, o que inclui os bhutas, em virtude dos já mencionados quatro defeitos das almas condicionadas. No entanto, os Vedas falam de uma terceira epistemologia, chamada sabda-pramana, ou o conhecimento revelado – revelado necessariamente por Deus, é claro. Assim é que, embora Prabhupada e eu sejamos seres humanos comuns, superamos toda a nossa condição precária ao não expressarmos nenhuma opinião reunida de pesquisas, reflexões pessoais ou revelações de pessoas falíveis. Srila Prabhupada diz:

*“Adoro Govinda, o Senhor primordial, aquele além da concepção material, aquele cuja ponta dos dedos dos pés de lótus é tudo o que abordam os yogis que aspiram ao transcendente e recorrem a pranayama exercitando a respiração, ou o que abordam os jnanis que tentam encontrar o Brahman não-diferenciado por meio do processo de eliminação do mundano, alongando-se nisso por milhares de milhões de anos”. (Brahma-samhita 5.34)

Porque eles são todos infames e néscios, o que eles [aqueles que adotam o método científico como epistemologia] podem descobrir? Eles simplesmente teorizam com base em sua necedade – isto é tudo. Esse é o afazer deles. Não há fatos. E aqueles que são infames acreditam neles – isto é tudo. Então, não somos semelhantes sujeitos, porque o nosso conhecimento é recebido a partir do maior cientista, Krishna [Deus]. Eu, pessoalmente, posso ser um patife, mas, porque sigo o maior cientista, minha proposição é científica.

Prabhupada aceita que ele, pessoalmente, possa ser um “patife”, mas, diferentemente dos espíritos reveladores, ele não dá vazão à sua “patifaria” ao tentar produzir algum conhecimento por suas reflexões e observações, senão que aceita Krishna, Deus, o cientista supremo e infalível, e repete apenas o que Ele diz. Eu, do mesmo modo, repito o que Prabhupada diz.

O Movimento Hare Krishna, no entanto, não é uma religião de algum “velhinho indiano” que recebeu uma revelação magnífica de Deus e passou a liderar as pessoas. A revelação de Deus, ou do cientista supremo, a que se refere Prabhupada está inteiramente registrada no Bhagavad-gita e outras obras similares, às quais todos têm acesso direto para constatar como Prabhupada e seus seguidores estão ensinando e fazendo apenas o que Deus falou. Por que aceitar que esse livro é infalível e realmente revelado por Deus? Quanto a isso, Krishna diz que a religião se dá por experiência direta (Bhagavad-gita 9.2), ou seja, cada leitor deste terá de tirar sua conclusão após ler o Bhagavad-gita como o próprio Gita diz que ele deve ser lido: Na companhia dos devotos de Deus e com os esclarecimentos de um devoto de Deus entendido. Não tenho interesse no “eu acredito que seja realmente revelada”, tampouco podemos agrupar o Bhagavad-gita em “todas as outras obras ditas reveladas que li sei que não eram”, pois seria um preconceito.

Em resumo, analisando as obras canônicas do espiritismo, encontramos que parece que os espíritos não são quem dizem ser, e, segundo a consciência de Krishna, apenas Deus pode revelar a religião à humanidade, e quem quiser ensinar às pessoas o caminho da religião deverá conhecê-lo diretamente com Deus ou, mais possivelmente, com alguém que esteja em uma sucessão que comece com o próprio Deus e não subordine a revelação de Deus ao que se pode entender com os sentidos e a mente, independente de quão refinado seja o corpo que reveste a alma pura. As almas que atualmente se encontram no estado de bhutas não possuem nenhuma qualificação especial que lhes permita esclarecer outros acerca de vedanta, a conclusão de todo conhecimento, salvo caso digam apenas o que Deus falou ou o que disse alguém que ouviu diretamente de Deus. Não se vê isso nos reveladores do espiritismo.

No Srimad-Bhagavatam e, mais sinteticamente, na introdução do Bhagavad-gita Como Ele É, de Srila Prabhupada, encontramos como o conhecimento perfeito da consciência de Krishna chegou à Terra, tendo sido ensinado por Deus a Brahma, que o ensinou a Narada, que, com seu corpo especial, veio à Terra e o ensinou a Vyasadeva, que o escreveu sobretudo no Srimad-Bhagavatam, cuja introdução é o Bhagavad-gita*.

*Embora o Bhagavad-gita e o Srimad-Bhagavatam abordem os mesmos temas, o Srimad-Bhagavatam é considerado superior porque seus ouvintes eram sábios autocontrolados e santos, com tempo disponível para desdobramento de muitos assuntos, ao passo que o Bhagavad-gita foi falado a um guerreiro pouco tempo antes do começo de uma guerra.

Entre os espíritas às vezes se acredita que desencarnados piedosos são em geral superiores a piedosos encarnados. Contudo, isso pode ser mera crença, pois, afinal, não era Jesus, encarnado, mais elevado do que todos os Espíritos*? Assim, não há fundamento para dizer que os mestres encarnados que seguem a sucessão discipular que começa com o próprio Krishna, Deus, sejam inferiores por terem misericordiosamente vindo a este mundo. Além disso, há a vantagem de que não é possível ser alguém passando por outrem, como frequentemente acontece em psicografias. Insisto no ponto anterior. Se os cristãos apenas agora estão prontos para a temática da reencarnação, por que um buscador sincero não beberia do Bhagavad-gita e do Srimad-Bhagavatam, falado a um povo que, 3.000 anos antes do nascimento de Jesus, já estava pronto para esse conhecimento, analisado a fundo, bem como prontos para tópicos jamais explorados pelos espíritas, como as dinâmicas da vida junto a Deus, a Personalidade de Deus, os três modos da natureza material, uma descrição completa do Universo de uma perspectiva revelada, desde o planeta mais baixo ao mais elevado?

*À pergunta de se Jesus seria médium, isto é, alguém cujas palavras e obras decorrem de inspiração de Espíritos, é dada a seguinte resposta, que atesta que a visão espírita é que alguém encarnado pode ser superior a todos os Espíritos e unicamente prestar-lhes serviço, sem receber deles nenhum: “Não, porquanto o médium é um intermediário, um instrumento de que se servem os Espíritos desencarnados, e o Cristo não precisava de assistência, pois que era ele quem assistia os outros. Agia por si mesmo, em virtude do seu poder pessoal… Que Espírito, ao demais, ousaria insuflar-lhe seus próprios pensamentos e encarregá-lo de os transmitir? Se algum influxo estranho recebia, esse só de Deus lhe poderia vir. Segundo definição dada por um Espírito, ele era médium de Deus”. (A Gênese 15.2)

Caso alguém insista que a consciência de Krishna não descreve as colônias e outras residências materiais tão bem quanto o espiritismo, julgo válido citar este verso do Bhagavad-gita (8.6): “Qualquer que seja o estado de existência de que alguém se lembre ao deixar o corpo, ó filho de Kunti, esse mesmo estado ele alcançará impreterivelmente”. Deste modo, caso Krishna Se detivesse a descrever a fundo moradas que não são o verdadeiro lar eterno das almas, nem um local onde elas finalmente encontrarão o néctar pelo qual sempre ansiaram, de ter uma existência contínua, plena de conhecimento e plena de bem-aventurança junto a Deus, Ele estaria encaminhando as almas para uma nova situação material pós-morte. Ele diz: “Aqueles que adoram os semideuses nascerão entre os semideuses, aqueles que adoram os ancestrais irão ter com os ancestrais, aqueles que adoram espíritos [bhutani] nascerão entre tais seres, e aqueles que Me adoram viverão coMigo”.

Quanto à inferioridade de nascer entre os bhutas, Krishna sequer se detém em fazê-lo, senão que o faz apenas em relação aos semideuses, pois, sendo muito mais elevados e residentes de planetas muito superiores*, dizer que ir ter com eles após a morte não é uma atitude inteligente basta para que entendamos que o destino junto aos bhutas é igualmente ruim. “Homens de pouca inteligência adoram os semideuses, e seus frutos são limitados e temporários. Aqueles que adoram os semideuses vão para os planetas dos semideuses, mas Meus devotos acabam alcançando Meu planeta supremo”. (Bhagavad-gita 7.23) Planeta este sobre o qual já citamos ser um planeta do qual jamais se retornará após ter sido alcançado e ser um planeta livre de qualquer sofrimento e permissor de contato direto com Deus.

*”Abaixo de Vidyadhara-loka, Caranaloka e Siddhaloka, no céu conhecido como Antariksa, estão os locais de desfrute dos Yaksas, Raksasas, Pisacas, Bhutas e assim por diante”. (Srimad-Bhagavatam 5.24.5) (grifo nosso)

Que não se pode morar eternamente nos planetas dos semideuses, para não falar da dimensão dos bhutas, é confirmado por este verso, também do Bhagavad-gita: “Após desfrutarem desse imenso prazer celestial dos sentidos e terem esgotado os resultados de suas atividades piedosas, eles regressam a este planeta mortal” (9.21). Aqui é preciso mais um esclarecimento aos espíritas, que, ao confundirem a evolução da consciência em rendição a Deus com o acúmulo de bom karma, acreditam que o acúmulo de bom karma jamais se perde. É verdade que o progresso da consciência jamais se perde, mas esse nada tem a ver com onde se reside – não era Jesus superior a todos os atuais desencarnados residentes das melhores colônias? –, daí que o bom karma, o grande fator a determinar onde se reside, ser algo que se esvai, como explicado por Krishna neste verso. Krishna conclui Seu parecer sobre aqueles que buscam comprar residência em tais moradas temporárias, portanto, dizendo que são “homens de pouca inteligência”. (7.23)

Como apenas a residência de Deus, ou Krishna, pode nos satisfazer, e onde quer que esteja a nossa consciência na hora da morte, para lá iremos, Krishna recomenda: “Ocupa tua mente em pensar sempre em Mim, torna-te Meu devoto, oferece-Me reverências e Me adora. Estando absorto por completo em Mim, com certeza virás a Mim”. (9.34) É o mesmo mandamento maior, como ensinado por Jesus, “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento”, o qual os espíritas caprichosamente colocam em segundo plano, absorvem seu pensamento, seu coração e sua alma em bhutas, superestimam a morada celestial dos mesmos e consideram que chegarão a Deus acumulando méritos cármicos, comprando Deus assim como se compra uma morada material.

Esse caminho de ascensão pelo bom karma é chamado em sânscrito de karma-kandha, sobre o qual Bhaktivinoda, um mestre da sucessão discipular a que pertence a Sociedade Internacional para a consciência de Krishna, comenta: “Não é possível utilizar a causa de uma doença para curar essa mesma doença. O processo karma-kandha é a causa da doença material das entidades vivas. Tal processo jamais produzirá o fruto de destruir a existência material das entidades vivas”. (Sri Manah-Siksa, capítulo 10) A causa da doença das entidades vivas não estarem mais morando com Deus, de onde vieram, é que desejaram ser independentes dEle, para o que Ele lhes deu a lei do karma, uma lei automática, ou seja, que não depende de Sua presença ou intervenção pessoal. As entidades vivas quererem se elevar por meio de seus atos e pelas instruções de outras almas falíveis, e não se rendendo a Deus, é apenas um sintoma de que preservam sua doença de quererem ser independentes do controle de Deus.

Objeto de Culto

Alguém talvez diga: “Mas os seguidores de karma-kandha também adoram a Deus”. No concernente a isso, Bhaktivinoda comenta: “Karma não é nada senão atividades egoístas. Os karmis [seguidores do caminho karma-kandha] não buscam exclusivamente a misericórdia de Krishna. Embora respeitem Krishna, seu propósito principal é obter alguma sorte de felicidade”. (Sajjana Tosani 11.11)

Certamente os seguidores de karma-kandha nunca buscam exclusivamente a misericórdia de Krishna, ou Deus, mas é possível inclusive que indivíduos desenvolvam até mesmo o pensamento ateísta conhecido como karma-mimamsa, o qual, já mencionado antes, diz que, se alguém adora Deus, mas não age piedosamente, ele é castigado pela lei do karma, ao passo que alguém que não adora a Deus, mas age piedosamente, é elevado pela lei do karma. Diante desta fórmula, adorar ou não a Deus se torna irrelevante, logo a existência ou inexistência de Deus também se torna irrelevante. Seria este o pensamento que conduziu os espíritos a promoverem o “fazer ao próximo o que desejaria para si” acima do “adorar a Deus de toda sua alma”?

Neste ponto, o amigo leitor talvez tenha três possíveis questionamentos, os quais responderemos antes de chegarmos às considerações finais. “O espiritismo, ao menos, não aprimorou o conhecimento católico? Não é injusto categorizar os trabalhadores das colônias com os obsessores ambos sob o mesmo título de bhutas? Krishna diz que aqueles que adoram os bhutas vão ter com os bhutas, mas os espíritas não adoram os bhutas”.

O espiritismo teria aprimorado o catolicismo caso houvesse apenas adicionado a lei do karma a este e houvesse mantido a salvação por misericórdia de Deus por render-se inteiramente a Ele. Contudo, deslumbrados com a lei do karma, ofuscaram a adoração a Deus por esta. Além do mais, se o progresso se faz por conduta moral, e não por inteligência, de que adianta os espíritas terem mais conhecimento do que os católicos, supostamente, mas não terem projetos de caridade ou princípios morais superiores aos primeiros? Embora desconhecedores da lei do karma, os católicos nem se dão à prática proibida no velho testamento, de interrogar os mortos, nem querem alcançar Deus por seus próprios méritos, salvo o mérito de se renderem. Onde está o aprimoramento do espiritismo, então, que não soube conciliar lei do karma e rendição a Deus?

Krishna exemplifica de maneira simples que aqueles que adoram os bhutas irão ter com os bhutas, mas disse mais amplamente também que onde quer que esteja nosso estado de consciência, para lá iremos. Assim, aqueles que se absorvem em pensar e servir bhutas que tomam corpos para beber e fumar irão ter com tais bhutas, ao passo que aqueles que pensam e servem os bhutas que residem em Antariksa, irão para Antariksa. Há diferentes nomenclaturas sim em sânscrito para designar diferentes bhutas. Pode-se chamar alguns de yaksas, traduzidos no Srimad-Bhagavatam da BBT, a editora do Movimento Hare Krishna, como “superprotetores” (3.10.28) e “espíritos semipiedosos” (10.85.41), e outros de raksasas, “aqueles contra quem temos de nos proteger”. Contudo, dentro da dicotomia ir para Deus ou ir para os bhutas; diante de Deus, tanto os bhutas de mais luz quanto os de menos luz são apenas bhutas: Quem compararia o prazer de estar com eles com o prazer de estar com Deus?

Quanto ao espiritismo não adorar bhutas, teremos de analisar qual acepção da palavra adorar comportaria essa negação. A etimologia de adorar, “oferecer ouro”, certamente é algo mais peculiar a escolas de herança africana; contudo, se entendermos adorar como ensinam a Bíblia e o Bhagavad-gita, respectivamente “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu pensamento” e “Ocupa tua mente em pensar sempre em Mim”, os espíritas sim adoram os bhutas, conferindo-lhes parte do pensamento que Deus exige inteiramente para Si.

Considerações Finais

Enfim, aqueles adeptos da consciência de Krishna não devem se confundir nem se dar a sincretismos ou duplas pertenças com o espiritismo, haja vista que a consciência de Krishna explica-o inteiramente e vai além. Alguém consciente de Krishna deve estar convicto desta declaração de modo a não desejar elevação a moradas superiores dentro do mundo material:

O nascimento como um ser humano é o melhor de todos. Mesmo o nascimento entre os semideuses nos planetas celestiais não é tão glorioso quanto o nascimento como um ser humano na Terra. Qual é a utilidade da posição de um semideus? Nos planetas celestiais, devido a profusos confortos materiais, não há possibilidade de associação com os devotos. (Srimad-Bhagavatam 5.13.21)

Assim, é aqui na Terra, na companhia dos devotos que adoram exclusivamente Deus em completo esclarecimento pelas escrituras reveladas por Deus, companhia esta facilitada pela Sociedade Internacional para a consciência de Krishna, que nos valeremos dos meios para, no momento da morte, estarmos inteiramente absortos em Deus para com Ele irmos estar. Assim como alguém que acumula mau karma é obrigado a sofrer, aquele que acumula bom karma é obrigado a experimentar felicidade, saúde e bem-estar aqui neste mundo material, o que o faz achar que é feliz e que pode obter felicidade por seu próprio esforço, mesmo desconectado de Deus – certamente necedade.

Não há dúvidas que obter o estado de consciência de Krishna é difícil*, porém devemos dar o nosso melhor certos de que, onde o nosso melhor não chegue, chega a misericórdia de Krishna**. É válido lembrar que caso, neste esforço de estarmos absortos em Krishna, ou Deus, no momento de nossa morte, não sejamos bem-sucedidos, Krishna diz que não há perda, porque Ele próprio nos coloca nos planetas superiores, para terminarmos nossos desejos de tentarmos ser felizes mesmo morando em um local onde Ele não está pessoalmente presente, e, após essa residência, faz o arranjo para que nasçamos novamente na Terra em uma família que facilitará nossas práticas religiosas da consciência de Krishna*** quer provendo-nos as necessidades materiais sem que precisemos trabalhar arduamente, quer dando-nos diretamente o conhecimento espiritual.

*“Dentre muitos milhares de homens, talvez haja um que se esforce por obter a perfeição, e, dentre aqueles que alcançaram a perfeição, é difícil encontrar um que Me conheça de verdade”. (Bhagavad-gita 7.3) Certamente quase todas as pessoas se tornarão bhutas no momento da morte com a formação que se possui atualmente no mundo, salvo as pessoas deveras religiosas. Quase todos se tornarem bhutas à hora da morte, quer errantes (com muito pecado), quer residentes de Antariksa (semipiedosos), certamente reforçará a convicção dos residentes de Antariksa de que esse é o estado normal que se alcança à hora da morte, e aqueles que acreditavam diferente, que acreditavam que se pode alcançar a morada de Deus a partir desta vida na Terra; por não terem a conduta capaz de lhes dar esse resultado de ir ter com Deus, serão doutrinados a acreditarem que tal evento de tornar-se fantasma é normal, e não produto de iniquidade. Vejamos como são praticamente universais na atualidade as condições que tornam alguém bhuta à hora da morte, segundo o Garuda Purana (2.22.68-74):

“Se um homem come alimento oferecido por um homem caído e morre com esse alimento dentro de seu estômago antes de ter sido digerido, ele se torna fantasma. Um sacerdote que preside o sacrifício de uma pessoa indigna e negligencia aquele de um sacrificante digno, e um homem que vive na companhia de pessoas desprezíveis, ambos se tornam fantasmas. Aquele que se dá à companhia de bêbados e tem relação com uma mulher viciada em vinho ou que come carne sem qualquer culpa torna-se um fantasma. Aquele que rouba a propriedade de um brahmana [intelectual religioso] ou de um templo ou de seu preceptor se torna fantasma. Aquele que abandona sua mãe, sua irmã, sua esposa, sua filha ou sua cunhada, apesar de serem inocentes, torna-se um fantasma. Todos estes certamente se tornam fantasmas: Um homem que toma posse de algo ilegitimamente, um homem traiçoeiro para com seus amigos, alguém que se atrai pela mulher de outrem, um homem infiel e um canalha mentiroso. Um homem que odeia seus irmãos, o assassino de um brahmana, aqueles que matam vacas, alguém viciado em bebidas alcoólicas, alguém que deprava a cama de seu preceptor, alguém que negligencia ritos tradicionais, alguém afeito a contar mentiras, aqueles que roubam dinheiro e indivíduos que roubam terra – todos estes tornam-se fantasmas”.

Perguntas e Respostas

As perguntas aqui apresentadas são paráfrases de questões apresentadas por diferentes leitores e respondidas pelo autor do artigo.

O artigo completo, juntamente com esta seção de perguntas e respostas, pode ser acessado online clicando aqui e obtido em formato pdf clicando aqui. (links corrigidos e em funcionamento)

PERGUNTAS DE ADEPTOS DO ESPIRITISMO

1. Será que o senhor comparar reencarnação e metempsicose não é sinal de que o senhor tem pouca convicção pessoal no que diz acreditar, a metempsicose?

Quanto a compararmos nossa crença com o que não acreditamos, o espiritismo faz bastante isso, sobretudo com o catolicismo. O senhor deve estar ciente disso, mas cito apenas duas passagens que exemplifiquem. O espiritismo não acredita nem no diabo nem em milagres, e assim fala dessas crenças católicas:

“Cumpre também colocar entre as causas da loucura o pavor, sendo que o do diabo já desequilibrou mais de um cérebro. Quantas vítimas não têm feito os que abalam imaginações fracas com esse quadro, que cada vez mais pavoroso se esforçam por tornar, mediante horríveis pormenores? O diabo, dizem, só mete medo a crianças, é um freio para fazê-las ajuizadas. Sim, é do mesmo modo que o papão e o lobisomem”. (Livro dos Espíritos, Introdução 15)

“O que, para a Igreja, dá valor aos milagres é, precisamente, a origem sobrenatural deles e a impossibilidade de serem explicados. Ela se firmou tão bem sobre esse ponto que assimilarem-se os milagres aos fenômenos da Natureza constitui para ela uma heresia, um atentado contra a fé, tanto assim que excomungou e até queimou muita gente por não ter querido crer em certos milagres. Daí vem a Igreja distinguir os bons milagres, que procedem de Deus, dos maus milagres, que procedem de Satanás. Mas, como diferençá-los? Seja satânico ou divino um milagre, haverá sempre uma derrogação de leis emanadas unicamente de Deus. Se um indivíduo é curado por suposto milagre, quer seja Deus quem o opere, quer Satanás, não deixará por isso de ter havido a cura. Forçoso se torna fazer pobríssima ideia da inteligência humana para se pretender que semelhantes doutrinas possam ser aceitas nos dias de hoje”. (A Gênese 13.16)

Assim, o contraste pode ser falta de convicção pessoal, como o senhor colocou. No meu caso específico, acho que não é o caso. Acho que é mesmo como fazem os espíritas com a igreja católica: comparação com fim de argumentação lógica para quem tiver interesse nessa modalidade de estudo comparado. O senhor deve ter notado no meu texto, no entanto, que não uso tratamentos como nos livros espíritas, que chamam uma crença central do catolicismo de “bicho papão”, uma invenção que “só mete medo a crianças”, e sua crença em milagres de uma tentativa de “fazer pobríssima ideia da inteligência”.

2. Deus é castigador? É um castigo de Deus alguém que come carne nascer como tigre?

O senhor perguntou se seria um castigo alguém nascer como tigre. A resposta depende do entendimento que o senhor tenha da palavra castigo. Se castigo é uma maldade, então não. Não é possível entender que Deus faça alguma maldade com as almas, pois, no conceito védico de Deus, como Ele próprio Se apresenta no Bhagavad-gita (5.29), Deus é “o melhor amigo de todas as entidades vivas”. Se castigo é entendido no valor verdadeiro da palavra, que é “tornar casto”, quer dizer, “tornar puro”, então sim: é um castigo. A alma se torna mais casta ou pura ao esgotar uma tendência animalesca em corpos animais em vez de o fazer em corpos humanos, e, uma vez em corpos humanos, pode prosseguir em seu empenho de render-se exclusivamente a Deus. Mesmo em termos de saúde é algo melhor para ela, pois o consumo de carne no corpo humano acarreta, além de reações pecaminosas sutis, várias doenças imediatas, como câncer, ao passo que o corpo de tigre é uma máquina bastante poderosa para digerir esse tipo de alimento.

Em relação à alma vir em condições materialmente inferiores, encontramos vários espíritos cogitando isso. Em Exilados de Capela, encontramos que os residentes dessa morada superior foram enviados de volta para a Terra, não por castigo, mas porque chegaram àquele planeta e não tiveram a condição moral de ficar nele, tal como uma alma que chega a um corpo humano porém é “exilada” dele por não corresponder ao que se espera de um humano civilizado. Isso é um castigo? Não, tais pessoas apenas não mantiveram a consciência que as levou para aquele estado, assim como alguém que foi aprovado no vestibular de Medicina pode ser jubilado do curso por excesso de faltas ou sucessivas reprovações. Quando um ser humano desenvolve todos os sentidos plenamente, não é possível que nasça surdo, mudo e tetraplégico? Isto é um castigo de Deus? Não, é um castigo do próprio homem não ter usado o corpo humano apropriadamente. Assim, por analogia a isso e contando que os espíritos “longe estão de tudo saberem”, por que não considerar a possibilidade da opinião védica estar certa? Esta é a reflexão que proponho.

3. Se o Tigre tem espírito, ele não poderia se alimentar de algum outro alimento, sem ter de fazer tantas crueldades? Por que tantas maldades e crueldades?

Salvo engano, entendo que o argumento do senhor é que onde está o espírito não há maldades e crueldades; logo, maldades e crueldades estarem presentes em animais selvagens, como o tigre, é um indício da não presença do espírito, é isso? Se crueldades e maldades são indício de ausência do espírito, então o que dizer de Hitler, muito mais cruel do que milhares de tigres? O que dizer do prolongado sofrimento aos animais que os homens promovem nas fazendas fábricas, muito mais cruel do que a morte rápida que promove o tigre às suas presas? O homem moderno é muito mais cruel do que o tigre. O tigre, por exemplo, jamais promove o aborto de seus filhos, ao passo que o homem é responsável por 126.000 abortos por dia. O tigre mata o que ele vai comer, ao passo que o homem mata seus próprios filhos apenas para, segundo a maioria dos abortistas entrevistados, “ter mais dinheiro” e “não atrapalhar minha carreira”. Não haver maldade e crueldade, portanto, não é distinção entre o homem e o tigre em favor do homem, mas em favor do tigre. O tigre é muito menos cruel do que o homem; e não estamos falando de tribos canibais, mas dos países mais desenvolvidos, haja vista que o total de aborto do mundo se concentra 78 por cento nos países de primeiro mundo e 22 por cento nos países de terceiro mundo. Vamos comparar o índice de estupro entre os humanos e entre os animais? Armas de destruição em massa? Escravidão? O já mencionado antisemitismo? O homem é muito mais cruel e maldoso do que o instintivo tigre. Assim como não negamos a presença do espírito nos escravistas, antisemitas, abortistas, estrupadores etc., esse argumento de que o tigre não pode ter um espírito porque se alimenta de carne não faz sentido, ao meu entender.

4. Em relação a Emmanuel ensinar algo diferente do que os primeiros espíritos ensinaram, os espíritos do pentateuco espírita, pode ser entendido como algo análogo a Jesus não ter ensinado tudo, mas deixado para esclarecimento posterior. Assim, Emmanuel dá mais um passo na revelação espírita.

Jesus pode não ter ensinado tudo, mas tampouco ensinou algo errado, senão que apenas ensinou algo que precisa de esclarecimento para entendermos como é certo. Se o começo do espiritismo ensinou que “o espírito da ostra não se torna sucessivamente o do peixe” (O Livro dos Espíritos 2.11.613), e Emmanuel e outros espíritos mais atuais estão certos em dizer que se tornam sucessivamente sim, então o espiritismo ensinou algo errado, e não algo certo porém velado, como fez Jesus, pois não é possível interpretar os dizeres sublinhados como uma parábola que quer dizer o contrário do que claramente dizem. Assim, todo ensino espírita é duvidoso, ao meu entender, tanto por contradições como pelos espíritos dizerem o que observam, e não o que ouvem de uma fonte infalível, como disse Jesus que faria o seu sucessor Espírito de Verdade: “Não falará de si, mas do que houver ouvido”. Se todos os espíritos ouvissem de uma mesma autoridade infalível, supostamente o Espírito de Verdade, então não haveria opiniões diferentes.

No meu entendimento, não haveria problema caso o espiritismo mudasse de opinião caso fosse apenas ciência e filosofia, mas, como se atribui valor infalível ao se dizer “vindo do Pai”, “ensinará todas as coisas” e os outros atributos analisados no artigo, essas contradições e revisões dos textos primários do espiritismo lançam-lhe descrédito, a meu ver.

5. Por que irmãos devotados ao amor a Deus, entendidos no espiritismo como espíritos de luz, não são igualmente estimados na consciência de Krsna, mas tratados pelo pejorativo termo bhuta?

A etimologia da palavra que designa aqueles que têm apenas o corpo sutil vem da raiz bheu/bhu, que é o verbo ser do sânscrito, que aparece em várias línguas, como irlandês (bha), inglês (be), letão (but) e persa (budan). Bhuta é ser no passado, daí a tradução de bhuta como “ligados ao passado”. Tais pessoas são assim entendidas porque, mesmo após a morte, preservam as impressões que tinham durante a vida – forma, nome, identificação familiar etc. – o que, para os Vedas, é uma condição anormal. O normal é que a alma, ao ter um corpo humano, deve desenvolver inteiramente sua consciência de Krsna, o que tem por consequência que ela vai para o Reino de Deus, onde obtém sua forma eterna, seu nome eterno, não tem nenhuma identificação familiar material etc. e de onde nunca mais renasce (Bhagavad-gita 8.16). Aqueles que são mal sucedidos em desenvolver amor puro por Deus, mas morrem após terem feito bom progresso no caminho, nascem, isto é, obtêm um corpo grosseiro, nos planetas superiores, chamados svarga (Bhagavad-gita 6.41), e de lá nascem na Terra, e não de antariksa, as colônias, que são inferiores a svarga.

Aqueles que antes de novamente nascerem ficam apenas no corpo sutil são tidos como pessoas que fizeram pouco desenvolvimento no amor a Deus, ao menos no amor a Deus entendido não como sentimento, mas como observação de Suas leis. As leis que foram quebradas para a pessoa ficar apenas no corpo sutil são estas, segundo o Garuda Purana: “Se um homem come alimento oferecido por um homem caído e morre com esse alimento dentro de seu estômago antes de ter sido digerido, ele se torna fantasma. Um sacerdote que preside o sacrifício de uma pessoa indigna e negligencia aquele de um sacrificante digno, e um homem que vive na companhia de pessoas desprezíveis, ambos se tornam fantasmas. Aquele que se dá à companhia de bêbados e tem relação com uma mulher viciada em vinho ou que come carne sem qualquer culpa torna-se um fantasma. Aquele que rouba a propriedade de um brahmana [intelectual religioso] ou de um templo ou de seu preceptor se torna fantasma. Aquele que abandona sua mãe, sua irmã, sua esposa, sua filha ou sua cunhada, apesar de serem inocentes, torna-se um fantasma. Todos estes certamente se tornam fantasmas: Um homem que toma posse de algo ilegitimamente, um homem traiçoeiro para com seus amigos, alguém que se atrai pela mulher de outrem, um homem infiel e um canalha mentiroso. Um homem que odeia seus irmãos, o assassino de um brahmana, aqueles que matam vacas, alguém viciado em bebidas alcoólicas, alguém que deprava a cama de seu preceptor, alguém que negligencia ritos tradicionais, alguém afeito a contar mentiras, aqueles que roubam dinheiro e indivíduos que roubam terra – todos estes tornam-se fantasmas”.

Assim, pode-se entender muitos espíritos como amantes de Deus no sentido sentimental, mas todos eles, segundo o Garuda Purana, infringiram alguma das leis de Deus acima relatadas. Com efeito, quantas pessoas, enquanto encarnadas, conhecemos que seguem todas estas regras? Assim, é tão frequente a quebra dessas leis de Deus que praticamente todos ficam em corpos sutis após a morte, daí o espiritismo entender que é uma condição normal. Segundo os Vedas, os espíritos, ou aqueles que têm apenas o corpo sutil, podem ser classificados entre ímpios e semipiedosos, porém, até onde estudo, nunca encontrei a descrição de um espírito santo (sadhu). São ímpios porque, por má conduta, não receberam a oportunidade de nascer novamente, quer na Terra, quer em planetas superiores, e são semipiedosos porque, apesar de terem tido alguma má conduta, são bem-intencionados, tementes a Deus, esperançosos em Jesus etc. Contudo, segundo os Vedas, se alguém é verdadeiramente santo, ele vai para o Reino de Deus ou, se quase santo, nasce em planetas superiores para esgotar seus desejos por conforto, saúde etc. e então termina sua purificação na Terra.

O espiritismo preza mais a distinção entre bhutas de luz e bhutas de pouca luz, no meu entender, porque entende que os bhutas de luz, até onde entendo o espiritismo, são os indivíduos mais esclarecidos que os humanos têm para contato e, logo, para esclarecimento. Na consciência de Krsna, diferentemente, entende-se que Deus veio à Terra como Vyasadeva e deixou todo o conhecimento conclusivo, logo qualquer um que se proponha rever os Vedas será mal visto, o que em geral fazem os espíritos.

Por exemplo:

Sobre a metempsicose, dogma que percorre todas as tradições ortodoxas da Índia, encontramos:

Entre a metempsicose dos antigos e a moderna doutrina da reencarnação, há, como também se sabe, profunda diferença, assinalada pelo fato de os Espíritos rejeitarem, de maneira absoluta, a transmigração da alma do homem para os animais e reciprocamente. Ensinando o dogma da pluralidade das existências corporais, os Espíritos renovam uma doutrina que teve origem nas primeiras idades do mundo e que se conservou no íntimo de muitas pessoas, até aos nossos dias. Simplesmente, eles a apresentam de um ponto de vista mais racional, mais acorde com as leis progressivas da Natureza e mais de conformidade com a sabedoria do Criador, despindo-a de todos os acessórios da superstição. (Livro dos Espíritos 5.222)

Sobre astrologia, encontramos:

Donde vem a expressão: Nascer sob uma boa estrela? “Antiga superstição, que prendia às estrelas os destinos dos homens. Alegoria que algumas pessoas fazem a tolice de tomar ao pé da letra.” (Livro dos Espíritos 3.10.867)

Sobre a cosmologia védica, que divide as moradas celestiais em sete (antariksa, bhuvarloka, svargaloka, maharloka, janaloka, tapoloka, satyaloka), e coloca a morada de Deus para além delas, na transcendência, encontramos:

Segundo a opinião mais comum, havia sete céus e daí a expressão – estar no sétimo céu – para exprimir perfeita felicidade. As diferentes doutrinas relativamente ao paraíso repousam todas no duplo erro de considerar a Terra centro do Universo, e limitada à região dos astros. É além desse limite imaginário que todas têm colocado a residência afortunada e a morada do Todo-Poderoso. Singular anomalia que coloca o Autor de todas as coisas, Aquele que as governa a todas, nos confins da criação, em vez de no centro, donde o seu pensamento poderia, irradiante, abranger tudo! A Ciência, com a lógica inexorável da observação e dos fatos, levou o seu archote às profundezas do Espaço e mostrou a nulidade de todas essas teorias. (O Céu e o Inferno 3.1-2)

Sobre os deuses, ou devas, encontramos:

A mitologia dos antigos se fundava inteiramente em ideias espíritas, com a única diferença de que consideravam os Espíritos como divindades. Representavam esses deuses ou esses Espíritos com atribuições especiais. Assim, uns eram encarregados dos ventos, outros do raio, outros de presidir ao fenômeno da vegetação, etc. Semelhante crença é totalmente destituída de fundamento? “Tão pouco destituída é de fundamento, que ainda está muito aquém da verdade”. (Livro dos Espíritos 2.9.537)

Assim, não me parece possível a alguém que tenha os Vedas como revelados por Deus aceitar que ao menos estes espíritos que foram aceitos por Kardec como de luz, tendo passado pelo CUEE (Controle Universal do Ensino dos Espíritos) aplicado por Kardec, sejam-no, ao menos não no nível que o Evangelho Segundo o Espiritismo coloca: “Ensinarão tudo”, “veem do Pai” (6.3), “concluirão o que Moisés e Jesus começaram” (1.9). Contudo, se um Espírito se submete à autoridade dos Vedas e encaminha alguém ao estudo dos mesmos tal como os próprios Vedas ensinam, então esse espírito deve ser prezado como um vartma-pradarshaka-guru autêntico, isto é, o guru que mostra o caminho correto, em virtude do que ofereço meus respeitos aos espíritos que a encaminham seus interrogadores para o estudo da consciência de Krsna.

Parece-me que o valor que Jesus deu às escrituras submete todos à infalível autoridade escritural, e não o contrário, isto é, que os espíritos podem dizer o que nas escrituras é certo e o que não é, segundo suas experiências sensoriais e mentais.

No novo testamento, por exemplo, encontramos: “À lei [de Moisés] e ao testemunho! Se eles não falarem segundo esta palavra, é porque não há luz neles”. (Isaías 8.20)

Contudo, os espíritos no espiritismo se libertam da revelação mosaica, aceita por Jesus, e colocam-na como humana:

“Em face dos progressos da Física e da Astronomia, é insustentável semelhante doutrina. Entretanto, Moisés atribui ao próprio Deus aquelas palavras. Ora, visto que elas exprimem um fato notoriamente falso, uma de duas: ou Deus se enganou em a narrativa que fez da sua obra, ou essa narrativa não é de origem divina. Não sendo admissível a primeira hipótese, forçoso é concluir que Moisés apenas exprimiu suas próprias ideias”. (A Gênese 12.10)

Assim, o espiritismo coloca Moisés como duplamente ruim: Ruim por ter inventado algo insustentável, e, o que acho ainda pior, ter atribuído sua história inventada a Deus. O espiritismo faz o mesmo com a revelação védica.

Outra hipótese que tenho de por que o espiritismo trabalha mais com a dicotomia espírito bom e espírito de pouca luz do que o vaisnavismo é que o leque de indivíduos com os quais o primeiro trabalha é menor do que na consciência de Krsna. A consciência de Krsna hierarquiza as entidades vivas até Brahma, que é a entidade viva mais elevada dentro do mundo material, e entendemos que podemos ter contato com Brahma pelas obras que são atribuídas a ele, como o Brahma-samhita. Assim, se temos acesso a Brahma, a entidade viva mais elevada, para esclarecimentos doutrinários, bem como a Deus, os residentes da parte sutil de nosso planeta não são nada além de “impiedosos” e “semipiedosos”. O espiritismo, em contrapartida, tende a duvidar, até onde entendo, que Deus tenha feito realmente alguma revelação pessoalmente, e tampouco que uma alma tão elevada como Brahma possa vir à Terra tão simplesmente e falar um conhecimento perfeito, daí o espiritismo, em seu primórdio lidando com encarnados que não sabiam nem que existe vida após a morte, terem os espíritos como autoridades dignas de reverências.

Outra hipótese que tenho para os espíritas prezarem mais os bhutas de luz, ou yaksas semipiedosos, do que os vaisnavas é que o espiritismo tende a acreditar que os anjos da Bíblia e os deuses (devas) dos Vedas são espíritos de luz, o que os vaisnavas não aceitam. Para os vaisnavas, os anjos, entendidos como análogos aos gandharvas da literatura védica, e os devas, dirigentes de vários departamentos do universo, são indivíduos que residem em outros planetas e têm corpo grosseiro próprio, corpo grosseiro este que lhes permite se comunicarem sem a necessidade de um médium, necessidade esta própria daqueles que têm apenas o corpo sutil, isto é, uma instrumentária incompleta. Assim, a grandiosa personalidade que falou com Maria que ela teria um filho, por exemplo, não é entendida por nós como alguém que só tem o corpo sutil, um espírito, mas alguém que possui um corpo grosseiro com poderes especiais para vir à Terra e ficar invisível e inaudível ou não à sua vontade. O mesmo para os devas.

Outra hipótese para por que a tradição védica tende a atribuir impiedade, ou, no máximo, semipiedade, a todos aqueles que têm apenas o corpo sutil, é o fato de que, no tempo em que os Vedas foram escritos, segundo eles próprios e aparentemente pela longevidade que a Bíblia atribui a pessoas antigas (vivendo quase 1000 anos), os humanos no passado eram mais avançados e esclarecidos espiritualmente. Assim, os humanos, orientados pelos Vedas, aprendiam em vida que não eram o corpo, que existe a reencarnação, que Deus é assim e assado, que devemos nos desapegar do que é temporário à hora da morte etc. Então, se alguém morre em tal condição que está identificado com seu estado material passado ou tem algum dos desvios morais enumerados acima, no Garuda Purana, ela é vista como caída por assumir a posição de bhuta. Na atualidade, os homens mais bondosos que conhecemos no mínimo comem alguma carne, comem alimento preparado sem consciência espiritual entre outras coisas que deixam a pessoa apenas no corpo sutil na hora da morte. Assim, quando alguém, apenas no corpo sutil, conhece pelo menos a reencarnação, o que não exige nenhuma piedade, mas apenas a observação, se comunica com os encarnados ignorantes dos Vedas e praticamente de qualquer conhecimento, tal pessoa parece uma autoridade ilustre, sobretudo se, junto do conceito de reencarnação, traz consigo alguma integridade herdada dos ensinamentos morais de Jesus, para colocá-la na posição semipiedosa de ter comido pouca carne, por exemplo na semana santa, ter bebido apenas socialmente, ter tentado perdoar de vez enquanto etc. Vale apontar, no entanto, que os ensinamentos morais de Jesus foram todos comunicados por Jesus encarnado, e não é mérito de espíritos. Ao contrário, haver espíritos piedosos o bastante para estruturarem o espiritismo é mérito do mestre encarnado Jesus – o que a senhora certamente sabe. Assim, se somarmos os ensinamentos de Jesus com os de Vyasadeva, parece mesmo que os encarnados ensinam mais do que os desencarnados, o que adiciona ao conceito védico de que nascer na Terra é melhor do que estar em sua dimensão sutil em um corpo apenas sutil.

Bem. A pergunta da senhora é muito difícil: Por que os Vedas não estimam os espíritos, isto é, as entidades vivas que estão apenas no corpo sutil. Minhas hipóteses para isso, em resumo, são estas: (1) O Espiritismo parece aceitar a possibilidade de espíritos serem superiores às escrituras (mosaicas e védicas), podendo dizer qual parte delas é fidedigna e qual não é e revelar coisas novas, logo são indivíduos de grande interesse para os encarnados. O vaisnavismo, em contrapartida, tem as escrituras como perfeitas e revelas por Deus, logo todos, mesmo o espírito mais elevado, tem de se submeter a elas, daí preferirmos ler as escrituras a ouvi-los, sobretudo caso sejam espíritos, como os do pentateuco espírita, que criticam os ensinamentos védicos sob vários adjetivos pejorativos, como apontado acima. (2) No espiritismo, analisam-se os indivíduos com os quais podemos ter contato entre espíritos de luz e de pouca luz, e, obviamente, preza-se os espíritos de luz como guias, os quais são entendidos como os anjos, arcanjos, deuses etc. em tradições variadas. No vaisnavismo, entretanto, anjos, arcanjos e deuses não são espíritos, isto é, não são residentes do plano sutil, mas de planetas superiores e indivíduos que não podem ser incorporados, pois têm corpo grosseiro próprio. Assim, o vaisnavismo, ao considerar possível a comunicação com indivíduos entendidos como superiores aos espíritos de luz, e a comunicação até mesmo direta com Deus através das escrituras que são entendidas como as exatas palavras dEle próprio, mostra desinteresse nos contatos mediúnicos.

6. Há muitos casos provados cientificamente de que tratamentos com espíritos curam pessoas de doenças, e os romances espíritas estão cheios de relatos de pessoas que foram promovidas para as superiores colônias à hora da morte por terem seguido as instruções dos espíritos.

Krsna não diz que é mentira que o refúgio em tais indivíduos pode trazer resultados como saúde e promoção a planetas superiores; na verdade, diz até mesmo que tais indivíduos – semideuses, espíritos de luz etc. – dão resultados muito rapidamente (Bhagavad-gita 4.12). A crítica de Krsna é que tais personalidades, diferentemente dEle, dão coisas limitadas e temporárias (Bhagavad-gita 7.23); por exemplo, são limitadas as respostas dos espíritos de luz, pois dão respostas incompletas, imperfeitas e contraditórias, pois “longe estão de tudo saberem”, como coloca o Livro dos Espíritos, e promovem seus discípulos a moradas onde não se pode permanecer eternamente feliz.

7. Por que os Hare Krsnas não podem seguir os ensinamentos do Bhagavad-gita, e os cristãos, os ensinamentos da Bíblia? A Bíblia traz várias descrições de comunicações mediúnicas, como os anjos em Gênese 16.7-10 e o anjo que anuncia a Maria que terá um filho e deverá chamá-lo Jesus.

Prabhupada aceita Jesus como um mestre inteiramente qualificado para guiar as pessoas, e certamente julgo bem encaminhados aqueles que o seguem. Contudo, tenho minhas dúvidas quanto a se todos os espíritas são fundamentalmente cristãos. Um espírita que conheci recentemente, empolgadíssimo com a leitura de Exilados de Capela, me dizia que os egípcios foi uma das civilizações mais avançadas que já esteve na Terra. Fiquei me perguntando como alguém pode ser cristão e, ao mesmo tempo, considerar que os egípcios sejam avançados espiritualmente. Segundo a religião de Jesus, o judaísmo, cuja escritura Jesus aceitava como revelada por Deus, até onde entendo, os egípcios eram tão degradados que Deus os puniu pessoalmente. Os egípcios foram um povo politeísta, idólatra e construíram grandes edificações para tal idolatria politeísta com o sangue de 400 anos de escravidão aos hebreus, cujo objeto de culto Jesus aceitou como o Pai, o Deus único e supremo. Prabhupada não ensina que seja necessário seguir os Vedas para seguir Deus, mas disse que se pode seguir sim seguir o cristianismo e o judaísmo. Um de meus questionamentos é precisamente este: O espiritismo é realmente o que Jesus idealizou para a continuação de seus ensinos na Terra ou o espiritismo não se encaixa no que Jesus chamou de Espírito de Verdade e Consolador?

A senhora apresentou exemplos bíblicos falando de aparição de anjos, mas esse conceito, até onde entendo, não se confunde com “mortos” e “espíritos” na Bíblia. Encontro na Bíblia que há casos em que pessoas são possuídas por espíritos, mas nunca por anjos. Podemos ver também que o anjo aparece para Maria e fala com ela, mas Maria nunca viu ninguém mais, de modo que não é possível aceitá-la como médium vidente e auditiva. Se fosse médium vidente e auditiva, veria e ouviria espíritos frequentemente, e não apenas o anjo. Prabhupada explica que anjos são indivíduos chamados gandharvas, e os gandharvas podem aparecer para quem quiserem quando quiserem pelos poderes místicos que têm, siddhis, e não dependentes de que quem os veja seja médium vidente e menos ainda “entrando” em um corpo alheio para que se psicografem ou ouçam sua mensagem.

8. O espiritismo não adora os espíritos.

No final do Gita, Krsna diz que devemos abandonar tudo (sarva-dharma parityajya) e buscar unicamente (eka) a Ele como refúgio (saranam). Essa rendição, ou sarana, é entendida como variadas práticas: Contar que Deus nos levará para Seu reino na hora da morte, tê-lO como aquele que nos esclarece em momentos de dúvidas e assim por diante. Assim, se alguém, à hora da morte, fica na expectativa de que um semideus o levará para o seu planeta, ou que um espírito de luz o levará para uma colônia, isso pode ser entendido como adoração a semideuses ou a espíritos de luz, nesta definição de adoração. Se, quando alguém quer entender algo, busca por um filósofo, cientista, doutor em direito – encarnado ou desencarnado –, em vez de buscar pela revelação de Deus, isso é entendido como adoração a tais indivíduos: a busca deles por refúgio doutrinário. Certamente os espíritas não adoram espíritos no sentido etimológico de “adorar”, isto é, “oferecer ouro”, e um espírita que busque o refúgio de espíritos de luz por acreditar plenamente que eles são dotados de poder por Deus para dar refúgio, e a morada deles e as instruções deles são, respectivamente, a máxima morada que Deus reservou para alguém que morrerá agora na Terra e a revelação máxima à humanidade, então não posso dizer que são espíritas que não adoram a Deus, mas apenas discordar de que o máximo que Deus permite à humanidade, a partir do estado encarnado da Terra, seja o alcance dessas moradas e dessas revelações. Entendo que só poderia ser justo dizer que algum espírita adora os espíritos caso esse espírita acreditasse que a revelação de Moisés é perfeita, que é possível, a partir da Terra, alcançar a morada perfeita de Deus, onde Deus mora pessoalmente, e ainda assim preferir as revelações dos espíritos e ainda assim querer ir para a morada deles.

9. Os espíritos e a Bíblia ensinam que nossa evolução é gradual, em virtude do que é impossível ir da Terra para onde Deus mora pessoalmente.

Os espíritos certamente ensinam que a evolução é gradual, pois, pela experiência deles, não chegaram ao Reino de Deus após a morte. Na Bíblia, entretanto, é fundamentável a possibilidade de irmos da Terra para o Reino de Deus, assim como é fundamentável pelos Vedas. Na Bíblia (João 8.29), encontramos que quem enviou Jesus para a Terra foi o Pai, Deus: “Aquele que me enviou está comigo. O Pai não me tem deixado só, porque eu faço sempre o que Lhe agrada”. Assim, não é aceitável dizer que Jesus foi enviado por outrem senão diretamente por Deus. Em João (7.33), encontramos: “Disse-lhes, pois, Jesus: Ainda um pouco de tempo estou convosco, e depois vou para aquele que me enviou”. Assim, pela autoridade da Bíblia, Jesus não voltará para nenhuma morada, sutilíssima ou grosseira, mas para aquele que o enviou, o qual – já colocamos com a citação de João (8.29) – é Deus, o Pai. Por fim, em Lucas (23.43), encontramos que Jesus se dirige ao ladrão que estava ao seu lado, também sendo crucificado, com estas palavras: “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso”. Não é possível deturpar esse “Paraíso” dizendo que é outro lugar senão onde Deus mora, pois, relembrando, Jesus disse que, quando fosse embora da Terra, iria para aquele que o enviou, e “hoje” não permite nenhuma interpretação para fundamentar “evolução gradual”.

PERGUNTAS DE PESSOAS SEM VÍNCULOS RELIGIOSOS

10. É fácil entender que alguém que fica no corpo sutil, ou em condição de fantasma, na casa onde viveu é alguém bhuta, “ligado ao passado”. Contudo, os espíritos que ficam vagando ou fazendo travessuras pela Terra também carregam consigo essa marca de serem ligados ao passado?

A etimologia da palavra que designa aqueles que têm apenas o corpo sutil é bhuta. Bhu vem da raiz bheu/bhu, que é o verbo ser do sânscrito, que aparece em várias línguas, como irlandês (bha), inglês (be), letão (but) e persa (budan). Bhuta é ser no passado, daí a tradução de bhuta como “ligados ao passado”.

Krsna diz que onde quer que esteja nosso estado de consciência na hora da morte, para lá iremos (Bhagavad-gita 8.6). Assim, o devoto não tem nenhuma absorção em seu passado no sentido de se identificar com “este é o meu corpo, esta é a minha família, esta é a minha casa, este é o meu país, este é o meu planeta, esta é a minha vida” etc. O devoto pensa: “Eu não sou este corpo, e o senso de posse a esta família, casa, país e planeta tem ligação apenas com este corpo, e minha vida não é estar aqui, mas estar no mundo espiritual com Krsna”. Assim, quando o devoto morre, ele não se torna bhuta, isto é, alguém que fica no corpo sutil com a mesma mentalidade que tinha em vida – “este é o planeta onde moro, este sou eu, este é o meu nome” – senão que ele está pronto para o futuro que construiu segundo as instruções de Krsna: “Deixei de ser o Thiago de Alcântara, brasileiro, branco, o que nunca fui, e agora sou o que sou eternamente: uma gopi aos pés de Krsna”, ou “deixei de ser a Joana e agora sou um vaqueirinho amigo de Krsna, o que eu havia me esquecido”. O devoto também não ficará vagando pelo “seu” planeta atormentando as pessoas, pois já abandonou a ideia de que ele é deste planeta, senão que estará colhendo no mundo espiritual os frutos de sua consciência de Krsna, a consciência de que ele não é deste mundo.

Assim, embora menos evidente do que alguém que fica em sua casa após a morte, alguém que está no corpo sutil errando por vários lugares “fazendo travessuras” também exibe o sintoma de apego ao passado por carregar consigo o mesmo nome que tinha antes, em geral a mesma forma, residir no mesmo planeta e, sobretudo, ter o desejo de interagir com os mesmos objetos materiais.

O devoto está pronto para o futuro, isto é, pronto para deixar seu corpo material porque mesmo enquanto no corpo material se treinou a interagir com objetos espirituais: os nomes de Deus, as escrituras reveladas, como o Bhagavad-gita e o Srimad-Bhagavatam, os templos, as almas liberadas, como Prabhupada, e assim por diante. Aqueles que se tornam bhutas, entretanto, embora estejam sendo punidos na forma de não ter um corpo grosseiro, ainda estão mentalmente com a impressão passada de que precisam e querem interagir com os objetos materiais. “Precisam” porque sentem fome – segundo o Garuda Purana, eles sentem tanta fome que quando os antepassados oferecem alimento santificado (prasada) para a purificação deles, eles veem muito rapidamente –, e “querem” porque gostam de bebidas alcoólicas e outras atividades desconectadas da manutenção do corpo grosseiro.

Prabhupada explica assim o que é fantasma: “O fantasma também é um indivíduo. Contudo, porque os fantasmas não obtêm este corpo material, eles são invisíveis. Eles criam perturbações por falta deste corpo. Aqueles que têm experiência de algum fantasma em alguma casa, o fantasma está lá, ele é uma alma individual, mas, porque ele não tem esta cobertura material, isso é uma punição. Para a pessoa mais pecaminosa, essa é a punição, que ele não obtém este corpo, embora ele queira este corpo, porque, para o desfrute, queremos este corpo. O corpo é a combinação dos sentidos, o instrumento. Se quero tocar você, preciso da mão, e, através desta mão, sentirei o prazer de tocá-lo. Assim, o fantasma quer tocar, mas ele não tem o instrumento. Isso é fantasma… Enquanto estivermos contaminados materialmente, precisamos deste corpo material para desfrutarmos dos sentidos. E, no mundo espiritual, obtemos nosso corpo espiritual”. (12/12/76, Hyderabad, Bhagavad-gita 2.12)

Assim, acho que podemos entender que o fantasma é apegado à sua passada atividade de interagir com os objetos materiais do planeta grosseiro onde viveu. O devoto, por outro lado, como coloquei, é apegado ao desfrute de objetos espirituais, e, quando sua consciência se absorve por inteiro nesses objetos – Deus na forma de Seu nome, Deus na forma de Sua escritura – ele deixa de bom grado seu passado de ter um corpo grosseiro para interagir com o gozo material e obtém seu corpo espiritual para interagir com Deus.

Sobre eles ficarem, como o senhor disse, “vagando e fazendo travessuras pela Terra”, eles os fazem, como também explicam os espíritas, para poderem interagir com os objetos materiais através daqueles que têm corpos materiais, o que os espíritas chamam de obsessão e nós de “graha-grasto” ou “preta-dosa”. Assim, quando vagam pelos bares, bordéis, churrascarias e cassinos, eles mantêm as pessoas nesses locais e hábitos para poderem interagir com tais coisas através dessas pessoas que têm corpos materiais. Prabhupada explica:

Prabhupada: …Algumas vezes, o fantasma ataca um homem. Porque ele não tem corpo material, ele quer agir através do corpo de outrem… Devoto: Srila Prabhupada, a alma, o fantasma, entre no corpo de outra pessoa? A alma está ocupando um corpo, e o fantasma, como outra alma, entra verdadeiramente naquele corpo? Há duas almas em um corpo? Prabhupada: Não exatamente entra, mas ele pega o corpo. Mas porque o fantasma não tem corpo grosseiro – ele tem seu corpo sutil: mente, inteligência e ego –, você não o pode ver, como ele atacou aquele corpo. Você não pode ver o corpo da mente, da inteligência. Você sabe que eu tenho minha mente; eu sei que você tem sua mente. Mas você não vê a minha mente; eu não vejo sua mente. Assim, o fantasma está dentro do corpo sutil: mente, inteligência e ego. Então, com esse corpo sutil, ele ataca o homem, mas você não pode ver. Ele não entra nele. Quem está dentro é a alma dentro do corpo. (12 de maio de 1975)

Em conclusão, os espíritos que vagueiam fazendo travessuras querem interagir com os hábitos pecaminosos que tinham no passado, porém, não o podendo fazer por não terem um corpo grosseiro, fazem suas “travessuras” pela Terra através de pessoas que estão usando seus corpos nessas mesmas atividades pecaminosas. Esta classe de bhutas errantes talvez não esteja apegada à sua família ou casa, mas estão apegados ao hábito que desenvolveram no passado, enquanto vivos, de gozar da interação com objetos materiais.

11. Na lógica de não fazer ao outro o que não gostaria que fosse feito a você, não seria prudente o senhor não sugerir que os espíritas devem buscar outra fonte de conhecimento senão sua própria revelação? O senhor gostaria caso eles dissessem para o senhor buscar outro guru em vez de Prabhupada?

A minha sugestão aos espíritas de que estudem outro guru tem valor apenas caso a pessoa aceite que o guru dela não é o que ele dizia ser, isto é, se um espírita se convencer de que os espíritos não são organizados pelo Espírito de Verdade, enviado por Jesus, e os outros atributos discutidos no artigo. Caso se convençam disso, eles naturalmente quererão buscar outro guru. Eu buscaria outro guru caso fosse convencido de que Prabhupada não é quem diz ser, isto é, não é um devoto exemplar de Krsna, não é alguém que não mudou nada dos ensinamentos de Krsna etc. Coloco-me inteiramente aberto a semelhante discussão da posição de Prabhupada porque sei que posso fundamentar toda a vida e todos os ensinamentos de Prabhupada nos ensinamentos de Krsna. Se um espírita, da mesma maneira, consegue colocar todos os atributos do Consolador bíblico no espiritismo, então ele não precisa se perturbar com meu artigo. Meu artigo será, neste caso, um fortalecimento da fé dos espíritas, que, ao defenderem a posição do espiritismo contra os argumentos que apresentei, terão uma base sólida para sua crença.

12. Gostei do conteúdo de seu artigo, mas não sei se a linguagem foi a mais adequada. Acho que há um tom depreciativo que poderia ser evitado.

Muito embora eu discorde da possibilidade do Espiritismo ter o caráter de infalível que se atribuiu ao se colocar como “ensinará tudo” – para o que é necessário onisciência (Krsna diz no Gita que ensina tudo e, coerentemente, diz-Se onisciente) – entre outros atributos que reivindica para si, sobretudo em virtude de usar essa prerrogativa para fazer análises categóricas de ensinamentos védicos e de outras tradições, como o catolicismo e o judaísmo, análises estas muito questionáveis, a meu ver, é muito importante que eu diga algo da importância do Espiritismo também.

Aqueles que se propõem a cantar o santo nome de Krsna deve fazê-lo evitando dez ofensas, entre as quais figura a ofensa de número quatro, que é sruti-sastra-ninda. Esta ofensa consiste em ter predileção fanática pelas escrituras smrtis, como o Srimad-Bhagavatam e o Ramayana, em virtude destes terem um conceito teísta claro, com claras instruções da vontade e da personalidade de Deus, bem como por colocarem a supremacia do serviço devocional sobre o processo de atividades fruitivas com vista à ascensão a planetas superiores (karma) e sobre o processo de especulação filosófica (jnana), entre outros. É sabido que nas escrituras srutis, como os Vedas e Upanisads, o aspecto pessoal de Deus é pouco discutido e se prima karma e jnana. Apesar de haver a predileção pelos smrtis nos ensinamentos do vaisnavismo gaudiya (dentro do que está o Movimento Hare Krsna) – Caitanya e Seus discípulos primam o Srimad-Bhagavatam acima de qualquer sruti – é uma ofensa, também segundo os ensinamentos deles, não reconhecer o valor das outras revelações, o que é uma ofensa porque, segundo Visvanatha Cakravarti, essas obras que “propõem o processo do conhecimento empírico e da ação fruitiva […] muito misericordiosamente ajudam as pessoas mais desqualificadas, que não estão seguindo nenhuma regra ou regulação védica e que estão cegas pelos desejos materiais, a se elevarem ao caminho do serviço devocional seguindo suas leis divinas”. (Madhurya Kadambini, capítulo 3)

Assim, embora eu entenda o espiritismo como uma religião que adicionou à bhakti, ou devoção, de Jesus o conhecimento empírico, isto é, submetem a revelação à mental análise científica, e promovam a ação fruitiva, isto é, a caridade com vista à ascensão pessoal, tenho de reconhecer aqui que ajudam pessoas que as escrituras védicas entendem como desqualificadas – a saber, pessoas com fé na ciência humana e na faculdade especulativa da mente, e pessoas com o desejo de terem nascimentos mais confortáveis em moradas mais confortáveis – a seguirem normas de conduta próprias de santos, como a propensão a perdoar, o autocontrole sexual, a abstinência de drogas e outras, e mesmo a adorarem a Deus, embora, no meu entender, sem um entendimento claro do que é bhakti pura, a saber, bhakti livre de karma e jnana.

Enfim, aproveito esta oportunidade para reconhecer que os espíritas são pessoas compassivas e interessadas no bem-estar daqueles que estão confusos por estarem no estado de possuírem apenas o corpo sutil, e são pessoas que, tanto quanto entendem, promovem a bondade entre as criaturas e projetos sociais de beleza ímpar.

Peço desculpas a todos a quem levei mal-estar com a linguagem do meu texto e peço que saibam que isso é uma deficiência minha em obedecer às ordens de Krsna, e não algo que Krsna promova, pois Krsna ensina que as falas de Seus servos devem ter os seguintes atributos: “A austeridade da fala consiste em proferir palavras verazes, agradáveis, benéficas e que não perturbam os outros”. (Bhagavad-gita 17.15) Tanto quanto possível, tentarei reescrever o presente artigo em uma segunda edição de forma a me conformar às diretrizes cobradas por Krsna e por alguns leitores do meu artigo. Conto com as bênçãos de todos.

PERGUNTAS DE ADEPTOS DO MOVIMENTO HARE KRSNA

13. Conheço um devoto Hare Krsna que se descobriu médium vidente e auditivo. O que ele deve fazer?

A principal característica do devoto Hare Krsna é que ele tem o Srimad-Bhagavatam como a autoridade suprema, autoridade esta apontada cientificamente pela primeira vez por Jiva Gosvami em seu Tattva-sandarbha e aceita, desde então, por todo devoto Hare Krsna. Assim, o devoto Hare Krsna tem como autoridade unicamente aquela pessoa que ensina o que o Srimad-Bhagavatam ensina, logo um devoto médium jamais se submeterá a indivíduos desencarnados que queiram ensinar algo a mais do que o Srimad-Bhagavatam ou esclarecê-lo melhor do que o próprio avatara de Krsna na atualidade, Sri Caitanya, e seus discípulos diretos, os Seis Gosvamis, esclareceram. Se o indivíduo desencarnado fizer o papel de guru autêntico de dizer que o Srimad-Bhagavatam é perfeito e nada nele precisa ser revisto, basta ao devoto continuar estudando o Bhagavatam como o Bhagavatam ensina, isto é, através da sucessão discipular que começa com o próprio Krsna e atualmente termina, entre outras bifurcações, em Prabhupada e em seu Movimento Hare Krsna.

Deste modo, parece-me inimaginável que um devoto utilize sua mediunidade para ser esclarecido por espíritos. Por outro lado, a mediunidade de um devoto pode ser utilizada para esclarecer os espíritos que querem conhecer a consciência de Krsna ou ocupar em serviço devocional aqueles que já a conhecem e a aceitam. No Padma Purana, por exemplo, na seção das glórias do Srimad-Bhagavatam, encontramos um devoto médium vidente e auditivo, Gokarna, que utilizou essas faculdades mediúnicas para purificar seu irmão, Dhundhukari, perdido em um corpo de fantasma, através da audição do Srimad-Bhagavatam. Encontramos no Padma Purana que eles conversaram:

O fantasma Dhundhukari observou Gokarna retornar [para casa], em razão do que assumiu formas muito violentas e apareceu perante ele… Com coragem e paciência, ele falou: “Quem é você? Por que você está exibindo todas essas formas assustadoras? Como você caiu nessa condição?”… Quando Gokarna o questionou, o fantasma chorou sonoramente. Ele não conseguia falar [havia sido morto sendo incendiado a partir da boca], em virtude do que gesticulava com suas mãos. Gokarna chuviscou um pouco de água sagrada no fantasma. Isto o aliviou de reações pecaminosas o suficiente para ser capaz de falar. “Sou seu irmão, Dhundhukari”, disse o fantasma. “Por causa de meus erros, caí de meu nascimento respeitável como um brahmana. Em decorrência de completa ignorância, matei muitas pessoas. Não é possível contar meus pecados. Eu era viciado ao convívio com cinco prostitutas, as quais, por fim, mataram-me, e, como resultado, estou sofrendo as reações de minhas atividades perversas e assim obtive esta forma de fantasma… Meu querido irmão, você é um oceano de misericórdia. Por favor, de uma maneira ou outra, livre-me desta forma fantasmagórica”.

Esse devoto médium vidente e auditivo salvou seu irmão da condição em que estava recitando para ele, por sete dias, o Srimad-Bhagavatam. Ao término da leitura, descreve-se que “o céu ficou refulgente, e um aeroplano de Vaikuntha apareceu transportando associados do Senhor. Diante de toda a assembleia, Dhundhukari embarcou no aeroplano”.

Assim, as escrituras védicas não deixam os devotos médiuns desamparados, senão que têm, entre outros, este Gokarna como exemplo. O exemplo de Gokarna nos ensina que um devoto que tem contato com desencarnados deve organizar recitações do Srimad-Bhagavatam em locais sagrados e com devotos puros e convidar aqueles que têm interesse em serem ajudados pela consciência de Krsna a ouvirem o Srimad-Bhagavatam e seguir as práticas gerais da consciência de Krsna, como ouvir os santos nomes, reverenciar os templos de Krsna, oferecer orações a Krsna sentindo-se caído etc.

Quanto aos espíritos que não têm interesse na consciência de Krsna, há práticas para os evitarmos, assim como evitamos os encarnados que não têm fé, a condição preliminar para aproximação da consciência de Krsna. A prática mais fundamental que Prabhupada ensinou para evitar tais desencarnados impiedosos é cantar puramente os santos nomes:

Se você vai a uma casa mal-assombrada, se você canta o mantra Hare Krsna, eles vão embora… Na minha vida, houve vários casos assim. Na minha vida como chefe de família, eu estava fazendo negócios em Lucknow. Assim, havia uma casa, uma casa muito grande, cujo aluguel custaria milhares de rúpias, mas era mal-assombrada. Então, ninguém morava naquela casa. Eu passei a morar nela pagando duzentas rúpias (risos), e era uma casa muito grande… Todos os criados se queixavam: “Senhor, há um fantasma”. Então, eu estava cantando. Ele estava vivendo em vários locais, especialmente perto do portão. Então, eu pude entender que ele estava ali, mas eu cantava Hare Krsna, e fui salvo. Todos foram salvos. (Havaí, 03/02/75, aula do Bhagavad-gita 16.7)

Estas são instruções que apuro das escrituras, mas, obviamente, um devoto que se descubra médium deve, antes de qualquer coisa, consultar seu mestre espiritual iniciador ou um mestre espiritual instrutor que ele entenda ser um mestre fidedigno e esclarecido.

14. Prabhupada tem uma postura bem mais cortês com as outras religiões do que o seu texto. Não lhe seria apropriado, como seguidor de Prabhupada, apontar as qualidades do espiritismo?

Certamente algo que aprendi com as repostas que recebi a este artigo é que, infelizmente, não tenho essa virtude de Prabhupada de buscar pelas qualidades. Tentarei, na medida do possível, reescrever o artigo de forma a não ser ofensivo. Os espíritas que entraram em contato comigo, apesar de questionados em sua doutrina, mostraram-se pessoas educadíssimas e estudiosas de sua própria tradição religiosa, duas qualidades dos espíritas que posso começar por apontar. Independente de o espiritismo ser ou não coordenado pelo Espírito de Verdade, é notável que seus adeptos têm um amor muito grande por Jesus, que Prabhupada disse ser um devoto completamente puro, logo é inaceitável que algum seguidor de Prabhupada diga que os espíritas não têm, ao menos da parte de que aceitam Jesus, um princípio de norteamento infalível. Também são dignos de menção os projetos sociais dos espíritas, desde atendimento a famílias carentes, auxílio a deficientes, pessoas com depressão e toda sorte de indivíduos, encarnados ou não, que buscam por ajuda. Peço desculpas pelo meu texto não ter enfatizado estas qualidades, mas faço-o agora oportunamente e peço em troca as bênçãos de todos os meus leitores para que eu desenvolva a visão apropriada, com as bênçãos de Krsna, de Seus planos, muitas vezes insondáveis, na pluralidade religiosa. Hare Krsna!

Fonte: Amigos de Krishna

Quem, senão Srila Prabhupada e outros propagadores da consciência de Krishna, ensina a evitação de tudo isto, desde o não consumo de carne e a não alimentação em estabelecimentos mundanos até a castidade e a abstinência de todo intoxicante, quer lícito, quer ilícito nas diferentes constituições dos diferentes países do mundo? E ainda, quem, senão a consciência de Krishna, fornece gosto superior suficiente nas práticas espirituais para que tais atos não sejam meramente reprimidos?

**“Embora ocupado em todas as espécies de atividades, Meu devoto puro, sob Minha proteção, alcança, por Minha graça, a morada eterna e imperecível”. (Bhagavad-gita 18.56)

***“Após muitos e muitos anos de gozo nos planetas habitados por entidades vivas piedosas, o yogi [aquele que está tentando se reconectar com Deus] malogrado nasce em uma família de pessoas virtuosas ou em uma família aristocrata e rica. Ou [se fracassa após longa prática] ele nasce numa família de transcendentalistas que com certeza têm muita sabedoria. É claro que semelhante nascimento é raro neste mundo”. (Bhagavad-gita 6.41-42)

Os irmãos adeptos do espiritismo, por sua vez, valendo-se de sua qualidade de aceitar ouvir de autoridades e de aceitar a possibilidade de sempre progredir estão convidados a conhecerem a fundo a consciência de Krishna, e, quer com a ajuda da consciência de Krishna, quer por outro recurso que achem sensato, analisar se não há na Terra ensinamentos superiores aos trabalhos psicografados dentro da doutrina espírita. O que há de se perder?

Sobre o Autor

Bhagavan Dasa Adhikari (Thiago Costa Braga) é mestrando em Letras pela PUC-Minas e graduando em Filosofia pela UFJF. Possui a titulação internacional Bhakti-sastri, adquirida após residência no Seminário de Filosofia e Teologia Hare Krishna de Campina Grande, onde foi iniciado por Sua Santidade Dhanvantari Swami. Ministra palestras regulares sobre a consciência de Krishna desde 2005. Já traduziu mais de 10 livros e mais de 100 artigos sobre filosofia e teologia gaudiya-vaishnava e atualmente é chefe do departamento de tradução e revisão da BBT Brasil, a maior editora no Ocidente de livros sobre o pensamento indiano.

Contato

Aqueles interessados em conversar com o autor acerca da temática deste podem se corresponder pelo e-mail bgdasa@hotmail.com. Pede-se a cortesia da leitura prévia das obras O Bhagavad-gita Como Ele É e Krsna, a Suprema Personalidade de Deus .

por Thiago Costa Braga (Bhagavan Dasa Adhikari Bhakti-sastri)

Postagem original feita no https://mortesubita.net/yoga-fire/espiritismo-e-consciencia-de-krishna/

Em busca do vampiro indiano

No livro O Culto do Vampiro o ocultista francês Jean-Paul Bourre queixa-se de que “atualmente a maioria dos adeptos da magia já não ousa reconhecer os poderes do sangue. Para eles, magia vermelha e magia negra são a mesma magia diabólica, e preferem acender bastões de incenso sob as imagens de ‘Maha-qualquer-coisa’”, preferindo “cobrir-se de flores cantando que o mundo é bom, luminoso e pacífico”. Mas, “os verdadeiros mágicos são raros… e quando eles surgem, afastamo-nos deles, horrorizados”. [1] Devo também me confessar pasma por haver encontrado fiéis “correndo horrorizados” de certas passagens de seus próprios textos sagrados.

 

 

Sangue e carne:

 

Segundo as instruções do Bardo Thödul, se o espírito do morto mentir no estado de chönyid, Yama, o Senhor da Morte, “colocará uma corda em volta do teu pescoço e te puxará adiante; ele cortará a tua cabeça, extrairá teu coração e arrancará teus intestinos, devorará teu cérebro, beberá teu sangue, comerá tua carne e roerá teus ossos”. [2] No mesmo livro sagrado lemos que Yama é antecedido pelos 28 detentores do poder e pelas 58 deusas sinistras bebedoras de sangue. Desde que creia nelas o moribundo delirante poderá ver tais entidades, como ocorreu no momento de agonia de um policial hindu, na casa dos 40 anos, que sofria de tuberculose pulmonar. Os pesquisadores Osis e Haraldsson relataram o caso:

 

De sua cama no hospital, ele gritava: “O Yamdoot (mensageiro da morte) está vindo para me levar. Tirem-me desta cama para que o Yamdoot não me encontre”. Apontando para a janela, ele disse: “Lá está ele”. Naquele momento, como se alguém tivesse disparado um tiro, “um bando de corvos em cima de uma árvore, vista da janela, voou em disparada”. A enfermeira ficou “aterorizada” e correu para fora, mas não viu nenhum motivo para aquele tumulto, concluindo que “até os corvos pressentiram algo terrível”. Alguns minutos após essa experiência negativa, o paciente entrou em coma profundo e morreu. [3]

 

Desde a mais alta divindade até o mais insignificante fantasma, todas as entidades indianas relacionadas à morte apreciam sangue e carne humana. E mesmo no piedoso marasmo da segunda metade do século XX toda e qualquer divindade poderia converter-se num agente da morte em determinadas circunstâncias. Assim, por exemplo, A. C. Bhaktivedanta Swami Prabhupada narra-nos a parábola do demônio Hiraņyakaśipu que viu Kŗşņa como a morte personificada enquanto o devoto Prahlāda contemplou-o como seu Senhor querido, pois “aqueles que desafiam Deus irão vê-lo sob Seu aspecto horroroso, mas aqueles que se dedicam a Ele, irão vê-lo sob Sua forma pessoal”. [4] Por vezes até pessoas comuns podem ser elevadas ao status de espectro da morte. Por exemplo, em maio de 1973 cadáveres de mendigos surgiram misteriosamente nos becos de Calcutá. Tinham marcas de mordidas no pescoço, aparentemente produzidas por aparelhos mecânicos (a polícia não esclareceu de que tipo). Conforme o repórter André Machado, “assim que soube da onda vampiresca, a população ficou em pânico e saiu às ruas armada de tacapes e estacas de madeira”.[5] Cinco maltrapilhos com aparência suspeita acabaram linchados pela multidão enfurecida, e outros 20 saíram feridos.

Noutro caso, investigado por Idries Shah, em 1956, difundiu-se a história de que uma viúva inglesa que vivia em Bombaim teria sugado o sangue de uma das vítimas de um acidente na estrada. Ela morreu alguns meses depois do acidente, sendo que a lenda da vampira continuou e cresceu. Diziam que comia carne crua e bebia sangue humano sempre que possível. Shah encontrou uma amiga da viúva, que lhe explicou o incidente:

 

Quando circulava o rumor de que era vampira – contado por algum dos sobreviventes do acidente e não por mim – ela me procurou para “confessar” que ia voltar à Inglaterra para tratamento. Perguntei-lhe se ela era vampira e ela disse que não. A verdade é que, quando criança, ela tinha sofrido de uma doença e tinha de comer sanduíches de carne crua. Ela se acostumou tanto com isso que nunca comia carne cozida. Seu médico via isso como um estado psicológico mais ou menos inofensivo. E assim continuou ela com a dieta. Ao ir para a Índia, ela descobriu que era difícil conseguir carne crua, apesar de sentir muita vontade e, finalmente, ela conseguiu arranjar fornecedor. Mas ela se “controlava”, tanto quanto possível. Na noite do acidente, ela me contou que não comia carne crua há semanas e que, ao se curvar sobre um ferido, aquilo foi demais para ela e então encostou seu rosto no dele como para beija-lo. Um indiano que estava presente, conhecendo talvez o seu gosto por carne sangrenta, deu início aos rumores. [6]

 

Resumindo, o consumo de sangue e carne humana é uma constante entre uma infinidade de caracteres do folclore da Índia e Tibet, fato que deixa os pesquisadores ocidentais completamente desnorteados sempre que tentam produzir estudos de religiões comparadas sobre o mito do vampiro. Assim, todos que se prendem ao elemento isolado “beber sangue” acabam catalogando uma infinidade de hematófagos. Matthew Bunson, o primeiro antropólogo a escrever uma enciclopédia dos mitos do vampiro ao redor do globo, encontrou na Índia um problema comum. Ele teria descoberto que muitos folcloristas referem-se ao bhuta como o vampiro indiano por excelência ao passo que outros o catalogam como um tipo específico de vampiro e incluem outros tipos, como “rakshasa, jigarkhwar, hanh saburo, hant-pare, hantu-dor dong, mah’anah, pacu-pati, penanggalan, pisacha, e vetala”. [7] Seu sucessor, Gordom Melton, acrescenta as entidades femininas yatu-dhana, churel e chedipe à lista e confessa sua incapacidade de esgotar o tema em um único artigo:

Em toda a Índia, entre os vários grupos étnicos e lingüísticos, havia uma multidão de fantasmas, demônios e espíritos malignos que viviam dentro ou perto dos cemitérios e dos locais de cremação e que tinham alguma semelhança com os vampiros da Europa. Muitos enganavam os outros assumindo a forma de uma pessoa viva. Transformavam-se, assumindo uma aparência terrivelmente demoníaca pouco antes de atacar suas vítimas. [8]

 

Para facilitar as pesquisas no campo eu gostaria de propor um novo padrão de busca. O vampiro não pode ser qualquer bebedor de sangue humano ou até os piolhos, pulgas, pernilongos e lombrigas se enquadrariam perfeitamente na descrição. Ele não pode ser um deus porque possui corpo humano nem tão pouco se deverá rotular como vampiro a qualquer pessoa que consuma sangue com regularidade, pois neste caso englobaríamos todos os membros da tribo Massái (povo do Quênia e da Tanzânia cuja dieta diária inclui uma mistura de sangue e leite extraído do gado bovino). — Lembre-se que estamos procurando por vampiros mitológicos e não por algum costume tribal, portadores de hematomania (doença mental) ou “real vampyres” entendidos na moderna concepção norte-americana do termo. — Ele não deve sequer ser apenas um morto que ressuscitou, sem necessitar ou desejar o consumo de sangue, pois na Índia e Tibet, conta-se que diversos santos e devotos, a exemplo de Sri Chaitanya Mahaprabhu (nascido em Mayapur, Índia, 1486), morreram voluntariamente e voltaram à vida. Sobretudo, ele não pode ser um ser capaz de dispensar o consumo de sangue.

Partindo daí excluímos Kali, Yama e inúmeros outros inumanos, apesar de manter ressalvas sobre determinados elementos de seu séqüito. Excluímos o Bhuta, pois como anotou corretamente Marcos Torrigo, “os Bhuta se alimentam de fezes e intestinos encontrados em corpos decompostos”, promovendo doenças nos seres humanos como “uma forma de gerar o seu alimento”. [9] Logo, não é um vampiro.

Não é preciso beber sangue ou ter asas de morcego para se ser um rakshasa (lit. malvado, perverso). O adjetivo também se aplica a um homem vivo comum que comete um ato de crueldade como, por exemplo, atirar uma criança ao fogo. (Isso significa que alguns vampiros poderão ser rakshasas, mas nem todo rakshasa será necessariamente um vampiro). A chedipe (lit. prostituta) também não precisa montar um tigre ou ter patas de animal. Pode ser uma prostituta de verdade. As bruxarias das dakinis da vida real funcionam tão bem quanto as mandingas das mães de santo de nossos terreiros, mas elas nem sequer incorporam entidades. Apenas para o vetalā não há exceção. Ele deve ser sempre um cadáver reanimado por seu próprio espírito ou pelo de outrem.  É o equivalente perfeito do vampir ou blutssauger cujos relatos começaram a circundar a Europa a partir de 1732.

 

O vampiro modelo

 

Segundo Devandra P. Varna, os Vampiros surgiram pela primeira vez na Índia e as histórias se espalharam pela Europa através da Rota da Seda. Esta tese não pode ser comprovada, mas a idéia não é absurda nem impossível.

Na Índia os relatos de ressurreição de homens santos são facilmente encontrados. Um dos casos mais recentes foi o de Sai Baba, que teria pedido a seu discípulo Mahalsapathy para tomar conta de seu corpo durante três dias enquanto seu espírito viajaria “pra Alá”. Diz-se que sua respiração diminuiu até cessar e sua circulação se interrompeu. Dado como morto, as autoridades tentaram fazer Mahalsapathy cumprir uma lei da Índia que obriga a cremação ou enterro dos corpos em 24 horas após a morte, mas ele se recusou. No terceiro dia a respiração retornou, Sai Baba abriu os olhos e voltou à vida. Contudo, o privilégio de ir e vir pelos portais da morte não deve ser legado ao homem comum. Os santos retornam para o benefício da humanidade, mas o vulgo tenta reverter o fado por motivos egoístas. O Bardo Thödul relata a reação de um espírito ordinário diante no momento posterior à morte do corpo:

Verás tua própria casa, os criados, parentes e o [teu] cadáver, e pensarás: “Agora estou morto! Que farei?”; e, oprimido por intenso pesar, este pensamento te ocorrerá: “Oh, daria tudo para possuir um corpo!” E assim pensando, vagarás de um lado para outro procurando um corpo.

 

Nas instruções do Bardo Thödul o homem comum, ignorante das artes mágicas, nunca conseguirá reentrar em seu corpo ou possuir qualquer outro. Mas sempre haverá alguém tentando burlar as leis; incluindo as da natureza. Segundo W. Y. Evans-Wentz,

 

os tibetanos fazem objeção ao enterro, pois acreditam que, quando um cadáver é enterrado, o espírito do morto, vendo isso, tenta reentrar nele, e que, se a tentativa for bem-sucedida, origina-se um vampiro, enquanto que a cremação ou outros métodos de dissipar rapidamente os elementos do corpo morto impedem o vampirismo. [10]

A fórmula admite variações como, por exemplo, trocar de corpo. Assim, na versão do Vetālapancavimsatikā de Somadeva, um yogi abandona seu corpo idoso e entra no cadáver de um jovem morto. O folclore da Índia e Tibet, bem como a literatura devocional, falam de um ser denominado pelo termo sânscrito vetāla, posteriormente traduzido para o tibetano como Baital. Isabel Burton o define como “um gigantesco morcego, vampiro ou espírito maligno que habitava e animava cadáveres”. [11] Diz respeito a uma espécie de ‘espírito’ que freqüenta o smashana (cemitério crematório), adentra e anima corpos humanos frescos nos quais a putrefação ainda teria feito maiores estragos. De acordo com Louis Renou, “os vetālas aparecem na literatura desde o Harivamsa; fazem parte da decoração semidemoníaca do tantrismo sivaíta, de onde passaram ao tantrismo budista”. [12]Sua aparição mais famosa deu-se na coletânea Vetālapancavimsatikā (Vinte e Cinco Contos do Vetāla), existente em diversas versões distintas, que constitui um episódio do Kathā-saritsāgara, composto entre 1063 e 1081. [13]No Tibet esta coletânea foi chamada de Baital-Pachisi. [14]

No Vetālapancavimsatikā de Somadeva, brâmane natural de Cachemir que viveu na segunda metade do século XI, o vetāla recebe os títulos de “mestre em Ioga”, “príncipe dos vampiros”, “mestre dos poderes sobrenaturais”, etc.[15]ua posição social parece diametralmente oposta a de seu correspondente no Baital-Pachisi, onde o espírito do filho de um oleiro reentra em seu próprio corpo após para ajudar o rei Vikram e o jovem príncipe Dharma Dhwaj a fazerem justiça contra seu malfeitor. No processo o cadáver sofre horrenda metamorfose:

Seus olhos, que estavam arregalados, eram de um castanho esverdeado e nunca piscavam. Seus cabelos também eram castanhos e castanho era seu rosto [16]— três matizes diferentes que, não obstante, aproximavam-se um do outro de forma desagradável, como em um coco seco. Tinha o corpo magro e cheio de nervuras como um esqueleto ou um bambu e, estando pendurado de um galho como uma ‘raposa voadora’,[17] pela ponta dos dedos, seus músculos contraídos ressaltavam como se fossem cordas de fibra de coco. Não parecia ter uma gota de sangue, ou este estranho líquido devia ter-se escoado todo para a cabeça, e quando o rajá tocou-lhe a pele, sentiu-a fria como o gelo e viscosa como a de uma serpente. O único sinal de vida era o furioso agitar de uma pequena cauda muito semelhante à de um bode. [18]

 

Segundo a tradição, o vetāla pode ser controlado por aqueles que alcançam a Vetāla Siddhi (poder sobre os vetālas). Helena Petrovna Blavatsky (1831-1891) teria definido esta técnica yogi como “uma prática de feitiçaria” que pretende possuir “meios de alcançar poder sobre os vivos através de magia negra, encantamentos e cerimônias executadas sobre um corpo humano morto, durante cuja operação o cadáver é profanado”.  [19]No Kathā-saritsāgara tal dom pode ser usado para causas justas como, por exemplo, quando “antigamente, o rei Trivikramasena, de gloriosa memória, obteve a soberania sobre os Vidyadharas graças a um vetāla”. [20]

Um certo número de fontes ainda preserva detalhes da ritualística, permitindo sua reconstrução parcial. A cerimônia foi concebida como assessória a uma forma extinta de culto localizado no tempo e no espaço. Numa época em que a pena de morte por enforcamento era comum e os altares de sacrifício ainda não haviam desaparecido, havia um templo branco de Kali (Gauri) propositalmente construído próximo a um smashana (cemitério crematório), nas margens do rio Godavari. A adaptação do Baital-Pachisi, pelo sábio Bhavabhuti, especifica que o rito era levado a cabo necessariamente “durante a noite de segunda-feira, no décimo quarto dia da metade escura do mês de bhadra (agosto)”. Devo adiantar que tal rito culmina com um sacrifício humano no altar de Kali.

O bom devoto (geralmente descrito como um membro da nobreza) opta pelo auto-sacrifício enquanto os homens de má fé (tradicionalmente representados como figuras sujas, pertencentes a castas inferiores e de aparência horrenda), optam por ofertar a vida alheia; caso em que a pretensa vítima fica autorizada a inverter os papeis e sacrificar seu algoz, como teria feito o semi-histórico chátria Vikramaditya ou Vikramarka, rei de Ujjayani. [21] Há também uma passagem ambígua que deixa em aberto a possibilidade de “sacrificar” não um ser humano vivo, mas o corpo de um morto recolhido do cemitério.

Um conto indiano de data incerta diz que antes de iniciar sua jornada o bom devoto deveria lavar-se em um poço e limpar-se “como para uma prece”.[22] A seguir cumpre-se a segunda etapa do rito que exige a obtenção do corpo fresco de um enforcado, usado para conjurar e prestar homenagem ao vetāla no sítio do smashana. No conto supracitado o devoto vai ao crematório e encontra uma árvore onde pendia um enforcado, mas desta vez excepcionalmente não é o corpo que ele deseja. Junto ao cadáver há o vulto de uma mulher assustadora:

 

Ela estava sugando com um ruído baboso, com pequenos soluços e gemidos de prazer, como um bebê mamando no peito da mãe. Mas é natural um bebê sugando o leite — enquanto aquilo era uma dakini, sugando o sangue do cadáver de um jovem.[23]

 

Deduzimos que na falta de um vetāla guia serve uma dakini. É digno de nota que a ressurreição real de um cadáver é algo antinatural no sentido biológico e, portanto, impossível, enquanto uma feiticeira (dakini) sugando o sangue de um morto é um fato antinatural apenas no sentido ético-religioso. A variante onde a dakini substitui o vetāla pode ter sido útil para alguém cuja fé não fosse suficientemente forte para crer que o corpo do morto – que permanece imóvel – foi reanimado.  Um outro problema em relação à escolha do corpo é que o morto deveria ter sido executado por agentes da lei em causa justa (Se o devoto levantasse falsa acusação contra um inocente para enganar a justiça, fazendo-a fornecer o corpo do qual necessitava, o vetāla/baital poderia frustrar seus planos). Portanto, a dakini poderia conduzir àquele que não conseguisse encontrar um defunto fresco na data proposta, que fosse fraco demais para carregar um corpo ou que realmente não soubesse como chegar no templo de Kali.

Optando por um vetāla, o devoto deveria carregar o cadáver-guia para dentro do templo cuja localização ele conhecia de antemão (afinal, trata-se de um devoto). Uma vez no templo, o oficiante oferece um sacrifício humano no altar da deusa. A vítima da imolação deveria posicionar-se em ashtanga, que é um tipo saudação hindu na qual as oito partes do corpo (têmporas, nariz, queixo, joelhos e mãos) tocam o solo. Então sua cabeça é cortada fora (em caso de auto-sacrifício alguém deveria auxiliar o devoto, decapitando-o). Numa animação alegórica, a estátua de Kali ganha vida:

 

Ela enfiou seus dentes no coração dele e bebeu profundamente de seu sangue. Ela sugou e engoliu até que sua face e suas mãos ficaram ensangüentadas e suas roupas manchadas.[24]

 

As dakinis, servas da deusa, cozem a vítima sacrifical e participaram do fim do banquete, consumindo a prasādam (a comida oferecida). Supondo que os relatos correspondam ao modelo de uma cerimônia real, a estátua de Kali e o vetāla comeriam tão pouco quanto um exu honrado com a oferta de um ebó de frango e farofa, enquanto as bruxas e devotos esfomeados pela miséria da Índia medieval encontrariam alívio em um grande  banquete canibal.

 

O processo de reencarnação:

 

Em caso de auto-oferta o espírito do morto receberia tratamento especial. Como recompensa, ele reviveria – reencarnaria – com o melhor karma possível e lhe seriam concedidos um ou mais desejos. Podem ser bagatelas, como sacos de ouro para distribuir aos pobres ou concessões superiores de cunho divino. Diziam-lhe que na vida futura ele governaria sobre todo o mundo. Seria um rei invencível nas batalhas, amado pelo povo e possuidor de riquezas infinitas. O mesmo é válido para a vítima que conseguisse livrar-se da armadilha de um mal devoto e sacrificasse o seu inimigo. No conto em análise uma imagem alegórica faz a estátua da deusa ganhar vida e devora-lo. Quando o esqueleto encontrou-se limpo e polido, deu-se o milagre:

 

A própria Kali pegou uma ânfora com um líquido dourado e espargiu-o sobre os ossos. Alguns músculos e cartilagens começaram a surgir sobre o esqueleto. Então ela jogou mais líquido e ele começou a criar carne, até que a carne cresceu de volta ao normal e as veias e os vasos sangüíneos embutidos nele começaram a inchar com um pouco de sangue.[25]

 

Está subtendido que uma ressurreição análoga foi levada a cabo no Kathā-saritsāgara, de Somadeva, onde o ministro Vikramakesarin foi separado de seu rei Mrgânkadatta por efeito de uma maldição, mas recebeu de um velho brâmane “um encantamento que lhe assegurará o domínio sobre a raça dos Vampiros”. [26] Seguindo o conselho do brâmane, o ministro “aceita o encantamento, conjura um Vampiro a entrar num cadáver humano, capta as simpatias dele dando-lhe de comer sua própria carne e pede-lhe, como favor, que o ajude a achar Mrgânkadatta. O Vampiro consente, e vê-se Vikramakesarin cavalgando o cadáver — dentro do qual está o Vampiro —, percorrendo os ares nesta montaria para encontrar-se milagrosamente aos pés do rei”.[27]

No Vetālapancavimsatikā de Somadeva, o deus Siva assiste a morte de Ksātisīla e presenteia o rei com a “espada que se chama Invencível” através da qual submeteria a sua vontade “a terra com suas ilhas e seus domínios infernais” e se tornaria soberano dos “Espíritos aéreos”. [28] Já na versão tibetana do Baital-Pachisi, de Bhavabhuti, o deus Indra ordena a Vikram que faça um pedido. Séculos de inalterável popularidade nacional e grande difusão internacional são provas literais da concretização de seu humilde desejo: “Ó poderoso soberano do mais baixo paraíso, que esta minha história se torne famosa através do mundo!”[29]

 

Breve citação do vetāla como agente do mal no budismo:

 

Conforme a narrativa do capítulo XXVI do Sutra de Lótus (Hokkekyo), na ocasião em que a assembléia presidida por Buda reuniu-se para a composição deste livro o Bodhisattva Dador Intrépido tomou a palavra para ensinar palavras de poder (dharanis) capazes de proteger e guardar aqueles que leiam, recitem, aceitem e/ou promovam o referido sutra, pois “se um mestre da Lei adquirir estes dharanis, mesmo que yakshas, rakshasas, putanas, krityas, kumbhandas ou espíritos esfomeados o vigiem e tentem aproveitar-se dele, serão incapazes de o fazer”.

Esta é a fórmula fornecida pelo Bodhisattva:

 

jvale mahajvale ukke mukke ade adavati nritye nrityavati ittini

vittini chittini nrityani nrityakati

 

Repare que os rakshadas foram citados na lista de entidades passíveis de banimento pelo dharani do Bodhisattva, mas os representantes desta classe de entidades demoníacas estavam presentes, acompanhados de seu séquito. Eles apressaram-se em resguardar seu espaço, esperando apenas que Vaisharavana e o protetor do leste, Dhritarasha, terminassem seu discurso (pois estes deuses guerreiros representavam o shitenōu, grupo ao qual nenhum demônio faria bem em interromper). Contrariando sua natureza maligna, os rakshasas prometeram dar proteção àqueles que lêem, aceitam e promovem o Sutra do Lótus, bem como punição exemplar a quem não o faça:

 

— Ainda que passem sobre as nossas cabeças, nunca perturbarão os mestres da Lei! Quer sejam yakshas, pakshasas, espíritos esfomeados, putanas, krityas, vetalas, skandas, umarakas, apasmarakas, yakshas krityas ou humanas, ou uma febre, quer seja de um dia, de dois, três, quatro ou até sete dias, ou mesmo uma febre constante, seja na forma de um homem, de uma mulher, de um rapaz ou rapariga, ainda que apenas num sonho, nunca os perturbará!

Então, na presença do Buda elas falaram em verso, dizendo:

— Se houver alguém que não preste atenção aos nossos encantamentos e perturbe e prejudique os pregadores da Lei, as suas cabeças serão desfeitas em sete pedaços como os ramos da árvore arjaka. O seu crime será igual ao de alguém que mate pai e mãe, ou de alguém que adultere o óleo ou que engane os outros com medidas e escalas, ou que, como Devadatta, cause dissensões na Ordem de monges. Se alguém cometer um crime contra os mestres da Lei fará recair sobre si uma culpa igual a estas!

Depois de terem recitado estes versos, as filhas de rakshasa disseram ao Buda:

— Honrado Pelo Mundo, nós usaremos os nossos próprios corpos para proteger e guardar aqueles que aceitam, lêem, recitam e praticam este sutra. Nós velaremos para que eles tenham paz e tranqüilidade, livrando-os do declínio e do mal e anulando os efeitos de todas as ervas venenosas.

 

Este é o encantamento (darani) dado pelos rakshasas, na presença de Buda, para aqueles que desejam invocar sua proteção:

 

itime itime itime atime itime

nime nime nime nime nime

ruhe ruhe ruhe ruhe

stahe stahe stahe stuhe shuhe

 

Dessa forma o mestre da lei continua protegido contra yakshas, putanas, krityas, kumbhandas e espíritos esfomeados, além de ganhar um escudo extra contra pakshasas, vetālas, skandas, umarakas, apasmarakas, humanos indesejáveis, doenças e veneno; mas permite que os rakshasas continuem transitando e atuando diante de sua presença desde que não lhe façam mal. Desta forma sabemos que o budismo também acabou incorporando uma entidade – o vetāla – que possui uma ligação muito mais estreita com o vampirismo ocidental do que o próprio rakshasa.

 

Ira divina:

 

A mais ávida sugadora de sangue da mitologia Índia é, de longe, a deusa Kali. “Porque você sabe, e todo mundo sabe”, diz um conto indiano, “que Kali é a deusa das diabas e das bruxas, bem como dos santos e dos reis, e das pessoas comuns e dos pobres. De todo mundo”[30] Noutro ponto, a narrativa nos explica:

 

“Bem, se ele está indo visitar Kali, deve ser boa gente”, pensou Vikram. Porque como você sabe, todos os reis são Kshatriyas, e Kshatriyas veneram Kali, a deusa da guerra. Seja como Durga quando ela monta um tigre, ou como Chandi engolindo gotas do Demônio Maior, ou como Kali dançando intoxicada com o sangue dos corpos dos demônios que ela matou. Seja como você a chama, ela é Poder. Mas quando é Kali, ou Bhavani ou Chandi, adora sangue. Você sabe, quando você a vê com a língua pendurada, segurando um demônio decapitado, um colar de caveiras em tomo do pescoço, e uma saia de mãos decepadas. A Terrível, a Destruidora, a Engolidora de Homens da cavernosa dentada dos dois lados. E por que não — o útero do mundo, a Criadora, o que ela pode expelir, pode sugar — por que não? Não é verdade? Uma vez ela escondeu uma espada lá, você sabe onde — mas seu Lord Shiva transformou a poderosa linga num raio! Que festanças têm esses dois! Eles fazem a Terra sacudir [31]

 

No livro Vikram and the Vampire (tradução livre do Baital-Pachisi), a estátua de Kali aparece no santuário, localizado no cemitério, e quando o rei entra, ele a vê:

 

Ali estava Smashna-Kali, a deusa, em sua forma mais horrível. Era uma mulher muito preta e nua, com uma cabeça ferida, parcialmente decepada e pintada pendendo sobre seu ombro. Sua língua se enrolava em sua grande boca bocejante. Seus olhos eram vermelhos como os de um bêbado; suas sobrancelhas eram da mesma cor; seu cabelo grosso e áspero pendia como uma manda até os joelhos.[32]

 

Richard Burton comenta ironicamente que “não podendo encontrar vítimas, essa agradável divindade, para satisfazer sua sede do curioso suco, cortou seu próprio pescoço para que o sangue jorrasse para sua boca”. [33]

Segundo Gordon Melton, Kali tinha um relacionamento ambigüo com o mundo. “Por um lado destruía os espíritos malignos e estabelecia a ordem. Entretanto, também servia como representante das forças que ameaçavam a ordem social e a estabilidade por sua embriaguez de sangue e subseqüente atividade frenética”.[34] Ela apareceu pela primeira vez nos escritos indianos por volta do século VI em invocações pedindo sua ajuda nas guerras. Nesses primeiros textos foi descrita como tento presas e usando uma guirlanda de cadáveres. Certos escritos registram que seus templos deveriam ser construídos longe das vilas e perto dos locais de cremação. Diversos séculos mais tarde, no Bhagavat-purana, ela e suas seguidoras, as dakinis, avançaram sobre um bando de ladrões, decapitaram-nos e embebedaram-se em seu sangue. No Devi-Mahatmya ela se juntou à deusa Durga, para lutar contra o espírito demoníaco Raktabija, que tinha a habilidade de se reproduzir com cada gota de sangue derramado. Kali resgatou Durga ao vampirizar Raktabija e ao comer suas duplicatas. Outros adotam-na como o aspecto irado de Durga. Ela se tornou a divindade dominante no hinduísmo tântrico, onde era louvada como a forma original das coisas e a origem de tudo o que existe.

 

No Tantra, o caminho da salvação se dava através das delicias sensuais do mundo – as coisas geralmente proibidas a um indiano devoto – tais como álcool e sexo. Kali representava as ultimas realidades proibidas e dessa forma deveria ser abrigada no íntimo e sobrepujada no que seria o ritual da salvação. Ensinava que a vida se alimentava da morte, que a morte era inevitável para todos os seres e que, na aceitação dessas verdades – confrontando Kali nos campos de cremação, demonstrando dessa forma coragem igual à sua terrível natureza – haveria libertação. Kali, como muitas divindades vampíricas, simbolizava a desordem que aparecia continuamente entre todas as tentativas de se criar a ordem. A vida era, em última instância, indomável e imprevisível.[35]

O mesmo povo que hoje se revolta ao saber que no ocidente sacrificam-se gado para o consumo alimentício tem em sua árvore genealógica ancestrais que não exultaram em verter sangue animal ou humano, adotando inclusive a prática do suicídio coletivo. Nas eras védicas — pelo ano 1200, atingindo a Idade Média — a prática de sacrifício de sangue era muito comum na Índia. As primeiras escrituras sagradas, Vedas e Brahmanas, são, de fato, um manual de sacrifícios de grande complexidade. Segundo Stanislas Guaita, ainda no século XIX a Índia abrigava a sociedade secreta dos Thuggs cujos adeptos chegavam a expatriar-se quando necessário “para atacar as vítimas, marcadas de antemão e que, prevenidas a tempo para tomar um navio, pretendem escapar a seu mau destino”.[[36] Durga, um famoso chefe capturado pela polícia inglesa e condenado à forca, resumiu sua doutrina na seguinte forma:

Nossos irmãos, — dizia o thugg a seus juízes — souberam que o estrangeiro de que vocês estão falando deveria partir com uma escolta de 50 homens. Formamos simplesmente uma tropa três vezes maior para espera-los na floresta, onde havia justamente uma imagem da deusa Khali. Como não é permitido por nossos sacerdotes entrar em combate, porque nossos sacrifícios só são agradáveis a Khali quando as vítimas são surpreendidas pela morte, demos boa acolhida aos viajantes oferecendo para caminhar juntos e preservar-nos mutuamente de qualquer perigo. Eles aceitaram, sem desconfiança; depois de três dias éramos amigos… Cada estrangeiro marchava com dois thuggs. A noite não estava completamente escura: à luz do crepúsculo estrelado, dei o sinal a meus irmãos. Imediatamente um dos thuggs que guardava cada vítima pôs no seu pescoço o laço corredio, enquanto o outro o puxava pelas pernas, para virar. Esse movimento foi executado em cada grupo com a rapidez do relâmpago. Arrastamos os cadáveres para o leito de um rio próximo, depois dispersamos. Só um homem escapou; mas a deusa Khali tem olhos abertos sobre ele: seu destino se cumprirá cedo ou tarde! Quanto a mim, eu era antes uma pérola no fundo do oceano, hoje sou cativo… A pobre pérola está acorrentada: receberá um furo para ser posta num fio e flutuará miseravelmente entre o céu e a terra. Assim quis a grande Khali para punir-me por não lhe ter oferecido o número de cadáveres que lhe pertencia. Ó deusa negra, vossas promessas não são jamais vãs, vós cujo nome favorito é Koun-Khali (a devoradora de homens), vós que bebeis sem cessar o sangue dos demônios e dos mortais. [37]

 

Atualmente os altares de sacrifício desapareceram e as oferendas são depositadas diretamente aos pés das imagens. Hoje as ofertas são geralmente de alimentos, comidas, flores e pó colorido, embora ainda haja sacrifícios de sangue em alguns templos da deusa Kali. O que era louvor transformou-se em horror e os espectros hematófagos, canibais, se multiplicaram. Os vetalās (cadáver reanimado por seu próprio espírito ou de outrem) e as dakinis (bruxas) possuem uma relação direta e necessária com o culto à Kali, devorando os restos de sacrifício humano deixados pela deusa; coisa que não impedia que um vetalā subordinado pudesse receber oferenda em nome próprio. Contudo, Kali e sua comitiva estão longe de serem os únicos consumidores de sangue e corpos vivos ou mortos.

 

 

 

 


[1] Jean-Paul Bourre. O Culto do Vampiro, p 47.

[2] EVANS-WENTZ, W. Y. (org.) O Livro Tibetano dos Mortos. São Paulo, 1994. Pensamento, p 127.

[3] HABERMAS, Gary R. e  MORELAND, J. P. Immortality: the other side of death. Nashville, 1992. Thomas Nelson Publishers, p 41. In: RAWLINGS, Dr. Maurice S. Eles Viram o Inferno. São Paulo, 1996. Multiletra, p 113.

[4] PRABHUPADA, A. C. Bhaktivedanta Swami. Pequeno Tratado Sobre Karma. Brasil, Fundação Bhaktivedanta, 1998, p 57.

[5] MACHADO, André. Vampiros de Carne e Osso. In: Incrível, nº 13, agosto de 1993, p 8-11.

[6] SHAH, Idries. Magia Oriental. Trd. ???. São Paulo, Editora Três, 1973, p 155-156.

[7] BUNSON, Matthew. The Vampire Encyclopedia. New York, Three Rivers Press, 1993, p 133.

[8] MELTON, J. Gordon. O Livro dos Vampiros: A Enciclopédia dos Mortos-Vivos. Trd. James F. Sunderlank Cook. São Paulo, Makron, 1996, p 403.

[9] TORRIGO, Marcos. Vampiros: Rituais de Sangue. São Paulo, Madras, 2002, p 9.

[10] EVANS-WENTZ, W. Y. O Livro Tibetano dos Mortos. São Paulo, 1994. Pensamento, p 18.

[11] BURTON, Isabel. Prefácio à edição comemorativa. In: BURTON, Richard Francis. Vikram e o Vampiro. São Paulo. Círculo do Livro, p. 7.

[12] ANÔNIMO. Contos do Vampiro. São Paulo, Martins Fontes, 1986, p. 186.

[13] Esta compilação é uma adaptação livre de uma obra anterior, provavelmente do século III, chamada Brhat-kathā  (A Grande História), atribuída a um certo Gunâdhya que viveu na região entre o Ujjayinî e o Kausâmbî. Esse último texto, hoje perdido, foi escrito em paisâcî, a “língua dos demônios”, dialeto meio-hindu derivado do sânscrito. Quando a tradição sânscrita se impôs, reduzindo os dialetos regionais a um papel secundário, o Brhatkatā tornou-se o primeiro objetivo de tradutores e adaptadores. Em conseqüência, a Vetālapancavimsatikā tornou-se uma das mais famosas compilações de narrativas da Índia Antiga (aparentemente, nenhuma das traduções ou adaptações que se conservam é anterior ao século XI).

[14] Entre a versão tibetana de Bhavabhuti e a indiana de Somadeva há mudança de personagens. O herói de Bhavabhuti é Vrikam, enquanto o de Somadeva é seu descendente Trivikramasena. Ao contrário de Vrikan que repreendia e batia no baital todo o tempo, aborrecido pelas histórias pornográficas e degradantes que despertavam a atenção de seu filho, Trivikramasena viajava só e fez com o vêtala um voto de silêncio. O vampiro é invariavelmente falante. Ele conta histórias e faz perguntas enquanto o rei o carrega. Quando o rei respondia suas perguntas quebrava o voto de silêncio e, conseqüentemente, o vampiro escapulia e retornava a seu refúgio na árvore simsapâ, “graças à sua força mágica” ou “poderes mágicos”. Todas as vezes o rei volta a captura-lo que ora deixava-se levar passivamente “caído na terra, gemendo” e ora relutava assumindo “as formas mais variadas”. Foram ao todo 23 fugas. Na vigésima Quarta prova o rei não soube responder a questão e permaneceu silencioso. Então, o Vampiro cumprimentou-o pela coragem, revelou que o monge mendigo Ksâtisîla/Shanta-Shil tinha maus propósitos a seu respeito e ensinou-o como vencer o inimigo.

[15] SOMADEVA. Obra citada, p. 13, 135.

[16] Os hindus atribuem cabelos castanhos aos homens de casta inferior, às feiticeiras e aos demônios.

[17] Nome popular anglo-indiano de uma espécie de morcego grande.

[18] BURTON, Richard Francis. Obra citada, p 48-49.

[19] BLAVATSK, Helena P. Glossário Teosófico. Trd. Silvia Sarzana. São Paulo, Ground, 1998, p 738.

[20] RENOU, Louis. In: Contos do Vampiro. São Paulo, 1986. Martins Fontes, p. X.

[21] “Vikrama” significa “valor”, “bravura’.

[22] ANÔNIMO. Vikram e a Dakini. In: HUSAIN, Shahrukh (comp). O Livro das Bruxas. Trd. ???? Rio de Janeiro, Objetiva, 1995, p. 221.

[23] ANÔNIMO. Vikram e a Dakini. In: HUSAIN, Shahrukh (comp). O Livro das Bruxas. Trd. ???? Rio de Janeiro, Objetiva, 1995, p. 221.

[24] ANÔNIMO. Vikram e o Dakini. Obra citada, p. 222.

[25]  ANÔNIMO. Vikram e o Dakini. Obra citada, p. 223.

[26] RENOU, Louis. Obra citada, p. X.

[27] RENOU, Louis. Obra citada. p. XI.

28] ANÔNIMO. Obra citada, p 183.

[29] BURTON, Richard Francis. Obra citada, 223.

[30] Vikram e o Dakini. In: HUSAIN, Shahrukh (comp). O Livro das Bruxas. Rio de Janeiro, Objetiva, 1995, p. 220-225.

[31] Vikram e o Dakini. In: HUSAIN, Shahrukh (comp). O Livro das Bruxas. Rio de Janeiro, Objetiva, 1995, p. 220-225.

[32] MELTON, J. Gordon. O Livro dos Vampiros: A Enciclopédia dos Mortos-Vivos. Trd. James F. Sunderlank Cook. São Paulo, Makron, 1996, p 403.

[33] MELTON, J. Gordon. O Livro dos Vampiros: A Enciclopédia dos Mortos-Vivos. Trd. James F. Sunderlank Cook. São Paulo, Makron, 1996, p 403.

[34] MELTON, J. Gordon. O Livro dos Vampiros: A Enciclopédia dos Mortos-Vivos. Trd. James F. Sunderlank Cook. São Paulo, Makron, 1996, p 428

[35] MELTON, J. Gordon. O Livro dos Vampiros: A Enciclopédia dos Mortos-Vivos. Trd. James F. Sunderlank Cook. São Paulo, Makron, 1996, p 428-429.

Shirlei Massapust

Postagem original feita no https://mortesubita.net/yoga-fire/em-busca-do-vampiro-indiano/

Último dia para apoiar o Financiamento Coletivo da História da Magia Ocidental !

O projeto

Dos mesmos editores de Kabbalah Hermética, da Enciclopédia de Mitologia, dos Livros Sagrados de Thelema, do Tarot Hermético, do Equinox e dos Livros Essenciais da Cabalá.

Apoie Já! https://www.catarse.me/historiadamagia

Reunimos neste projeto livros essenciais em várias áreas do Hermetismo, Thelema e Filosofia para definir a Magia no século XX e XXI. Este nosso vigésimo quinto projeto traz os livros que editaremos no segundo semestre de 2022, com previsão de entrega para Novembro. A grande vantagem de participar de um Financiamento Coletivo é que pretendemos publicar grimórios extras que serão entregues como presentes para os apoiadores conforme as metas estipuladas forem sendo batidas, como fizemos nos últimos dez projetos.

A HISTÓRIA DA MAGIA
A compreensão histórica da Tradição Esotérica Ocidental é o ponto de partida fundamental para todos aqueles que pretendem estudá-la e praticá-la, bem como a rota que deve nortear a nossa caminhada no seio da Tradição. Se não sabemos de onde viemos e onde se encontra cada um dos pensadores e movimentos que constituem o arcabouço do Esoterismo Ocidental, iremos correr o risco de, à moda New Age, colocar todos esses pensadores e movimentos em um único plano e compará-los como que se fizessem parte de um mesmo momento e, deste modo, incorrendo em erros primários. Um destes erros é olhar o passado como se ele fosse glorioso e o presente como um estado decadente; no outro extremo, faltar alinhamento, consonância ou correspondência com o momento histórico que iremos nos debruçar também é problemático. Compreendendo as raízes do movimento no qual decidimos trilhar a Senda da Iniciação, podemos segui-lo com mais segurança, consciência e mesmo como continuadores e perpetuadores da Tradição, nos tornarmos células vivas dela, acrescentando os nossos passos. Com tal objetivo, a obra História do Esoterismo Ocidental foi construída como uma introdução e roteiro a esse assunto tão importante ao Esoterismo Ocidental, mas, infelizmente, negligenciado. Originalmente concebida para ser um curso para os postulantes à Iniciação no seio da Irmandade dos Filósofos Desconhecidos, essa obra tomou proporções maiores e entendeu-se que ela precisaria ser disponibilizada para o benefício de todos os buscadores.

TREINAMENTO MÁGICO
Ao contrário do pensamento cada vez mais difundo na contemporaneidade, temos insistido de maneira muito categórica em que a Ordem Martinista, uma expressão da Escola Francesa da Tradição Esotérica Ocidental, é completa em si mesma. Com isso, queremos dizer que um buscador realmente implicado em sua busca encontrará tudo o que é necessário para seu crescimento espiritual dentro da Ordem Martinista. A respeito da obra que o leitor tem em mãos, ela nasceu no transcurso da pandemia de 2020. Nesse período, os conventículos martinistas das diferentes Heptadas espalhadas pelo Brasil foram suspensos e, ao contrário do que se poderia imaginar, tal situação proporcionou uma grande aproximação entre todos membros desses diversos corpos martinistas. Sob essa particular circunstância, atravessada pelo isolamento social e pela sensação de vulnerabilidade que proporcionaram uma busca mais intensa e urgente pelo aprofundamento no conhecimento e no desenvolvimento espiritual, o Treinamento Mágico que ora publicamos foi aplicado em âmbito nacional, entre estudantes de diferentes vocações e estágios no treinamento tradicional. Evidentemente, um treinamento como o que é aqui proposto exige do praticante disciplina e constância. Dentre os disciplinados que mantiveram a constância no Treinamento, destacou-se a compreensão de que um dos grandes méritos dele foi o de propor algo realmente possível de ser introduzido e realizado no cotidiano independentemente da agenda de cada qual, pois implica no máximo 15 minutos diários. Estamos enormemente satisfeitos por saber que, por meio desta publicação, muitos buscadores terão acesso ao nosso Treinamento Mágico e que poderão comprovar, por eles mesmos, a eficácia e a grandeza do que aqui é proposto. Por fim, frisamos que o nosso Treinamento Mágico não traz práticas restritas a iniciados martinistas, nem tampouco se limita ao “espírito” da Escola Francesa da Tradição Esotérica Ocidental.

THEOSOPHIA PERENNIS
Nestes artigos, ensaios e exposições, o autor Daniel Placido guiará o leitor por um passeio através de assuntos como mito, imaginário, Santo Graal, sufismo, gnosticismo, neoplatonismo, teosofia, prisca theologia, Vedanta, filosofia da natureza, esoterologia, antroposofia, Nova Era, acompanhados por expoentes ocidentais e orientais clássicos da sabedoria perene como Fílon, Plotino, Shankara, Sohravardî, Ibn ‘Arabî, Marsílio Ficino, Jacob Boehme, Emanuel Swedenborg, William Blake, Ramana Maharshi, sem falar de pensadores mais contemporâneos como N. Berdiaev, Henry Corbin, M. Eliade, F. G. Bazán, entre outros.

Subjacente à diversidade de temas e autores, existe a concepção de Theosophia Perennis (Teosofia Perene): uma sabedoria divina pertinente às diferentes tradições filosófico-esotéricas do Ocidente e do Oriente, sem negar a pluralidade e dissonância dentro dela, como uma árvore cheia de galhos e ramificações.

GNOSTICISMO THELÊMICO
Poucas palavras foram tão combatidas e incompreendidas através dos séculos do que Gnose e Gnosticismo. Sua história é longa e remonta aos primeiros anos da Era Comum, ou da Era Cristã, quando as mensagens ainda eram transmitidas majoritariamente de forma oral, através dos viajantes e comerciantes que circulavam pelo Império Romano, em uma época em que sequer o Cristianismo, como nós o conhecemos hoje existia, ele ainda engatinhava para tomar forma nos séculos seguintes, através de tratados e concílios.

No século XX o gnosticismo (ou neo gnosticismo) se aproximou de Thelema, uma lei ou filosofia que ganhava as luzes do mundo graças ao trabalho daquele que seria considerado o “O homem mais ímpio do mundo”, Aleister Crowley. A espiritualidade, porém, não para, e tanto o Gnosticismo quanto Thelema continuaram a caminhar e a se desenvolver, dentro daquilo que hoje, no século XXI, reconhecimentos como Gnosticismo Thelemico.

AUTO-INICIAÇÃO NA MAGIA ENOCHIANA
A magia enochiana é, sem duvida, um dos sistemas mágicos mais cobiçados pelos praticantes de magia cerimonial desde a Ordem Hermetica da Aurora Dourada, sendo considerada por muitos como um dos sistemas mágicos mais poderosos do mundo, rivalizando com os mais populares sistemas de magia Salomônica.

APROXIMANDO-SE DE BABALON
Aproximando-se de Babalon apresenta uma série de ensaios explorando a Deusa Babalon, o Divino Feminino, a Madona Negra e o circuito sempre revolvente do Sexo e da Morte, que se encontra no centro dos Mistérios.
Uma visão geral e uma introdução à Deusa Babalon que toma um caminho diferente daquele de Crowley e seus seguidores, Aproximando-se da Babalon se baseia nos insights de Thelema, Magia Cerimonial, Teoria Crítica, Teologia da Libertação e dos Decadentes para tecer sua poética magico-teológica.

Centralizando o corpo e a experiência corporal, a autora rejeita os misticismos patriarcais que buscam fugir do corpo e do mundo e se deslizar na pura luz branca do tédio racionalista celestial. Inspirador, erótico e profundamente poético, o texto atinge dimensões extasiantes ao oferecer uma visão caleidoscópica de magia, sexualidade, espiritualidade, ritual e do corpo no tempo do apocalipse.

A FADA DO DENTE
Dente é uma palavra que, entre outras coisas, é tradução para o português da letra hebraica שׂ (Shin). Nos tarôs tradicionais, essa letra é relacionada ao Arcano do Louco, mas no Tarô de Thoth é ligada ao arcano do Aeon, uma das mais belas lâminas pintadas por Lady Frieda Harris e um dos maiores rompimentos deste para com as cartas de tarô criadas anteriormente. E aqui temos uma chave interessante, porque o Louco e o Aeon seriam uma forma apropriada para o tarô descrever o livro que você está prestes a ler.

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/%C3%BAltimo-dia-para-apoiar-o-financiamento-coletivo-da-hist%C3%B3ria-da-magia-ocidental

Entrada no Céu Espiritual

O mundo material aparece como uma nuvem que cobre uma pequena porção do céu espiritual. As escrituras védicas explicam que, embora o mundo material sofra criação e aniquilação perpétuas, o mundo espiritual é eternamente manifesto. No mundo espiritual autoluminoso, o planeta mais alto é Goloka Vrndavana, a morada semelhante ao lótus do Senhor Sri Krsna, a Personalidade Suprema da Divindade. Ali o Senhor Krsna desfruta de trocas amorosas com seus devotos puros.

Uma palestra de Sua Divina Graça A. C. Bhaktivedanta Swami Prabhupada Fundador-Acarya da Sociedade Internacional para a Consciência Krishna

paras tasmat tu bhavo ‘nyo
‘vyakto ‘vyaktat sanatanah
yah sa sarvesu bhutesu
nasyatsu na vinasyati

“Há uma outra natureza, eterna, que é transcendental à matéria manifestada e não manifestada”. Ela é suprema e nunca é aniquilada. Quando tudo neste mundo é aniquilado, essa parte permanece como está”. (Bhagavad-gita 8.20)

Não podemos calcular o comprimento e a largura nem mesmo deste universo, mas existem milhões e milhões de universos como este dentro do céu material. E acima deste céu material existe outro céu, que é chamado de céu espiritual. Nesse céu, todos os planetas são eternos, e a vida é eterna, também. Não podemos saber estas coisas pelos nossos cálculos materiais, por isso devemos tomar esta informação de Bhagavad-gita.

Esta manifestação material é apenas um quarto de toda a manifestação, tanto espiritual como material. Em outras palavras, três quartos do total da manifestação estão além do céu coberto, material. A cobertura material tem milhões e milhões de milhas de espessura, e somente depois de penetrar nela se pode entrar no céu aberto, espiritual. Aqui Krsna usa as palavras bhavah anyah, que significam “outra natureza”. Em outras palavras, há outra natureza, espiritual, além da material que normalmente experimentamos.

Mas mesmo agora estamos experienciando tanto a natureza espiritual quanto a material. Como é isso? Porque nós mesmos somos uma combinação de matéria e espírito. Somos espírito, e somente enquanto estivermos dentro do corpo material é que ele se move. Assim que estamos fora do corpo, ele é tão bom quanto a pedra. Portanto, como todos nós podemos perceber pessoalmente que existe espírito assim como matéria, devemos também saber que existe um mundo espiritual também.

No Sétimo Capítulo de Bhagavad-gita Krsna, discute-se a natureza espiritual e material. A natureza espiritual é superior, e a natureza material é inferior. Neste mundo material, as naturezas material e espiritual são mistas, mas se formos além desta natureza material – se formos para o mundo espiritual – encontraremos apenas a natureza superior, espiritual. Esta é a informação que obtemos no Oitavo Capítulo.

Não é possível entender estas coisas através do conhecimento experimental. Os cientistas podem ver milhões e milhões de estrelas através de seus telescópios, mas não podem aproximar-se deles. Seus meios são insuficientes. O que falar de outros planetas, eles não podem se aproximar nem mesmo do planeta lunar, que é o mais próximo. Portanto, devemos tentar perceber como somos incapazes de compreender Deus e o reino de Deus através do conhecimento experimental. E como não é possível entender desta maneira, é uma tolice tentar. Ao contrário, temos que entender Deus ouvindo Bhagavad-gita. Não há outra maneira. Ninguém pode entender quem é seu pai pelo conhecimento experimental. É preciso simplesmente acreditar na mãe quando ela diz: “Aqui está seu pai”. Da mesma forma, a pessoa tem que acreditar em Bhagavad-gita; então a pessoa pode obter todas as informações.

No entanto, embora não haja possibilidade de conhecimento experimental sobre Deus, se alguém se tornar avançado na consciência de Krsna, ele perceberá Deus diretamente. Por exemplo, através da realização, estou firmemente convencido do que estou dizendo aqui sobre Krsna. Eu não estou falando cegamente. Da mesma forma, qualquer pessoa pode realizar Deus. Svayam eva sphuraty adah: o conhecimento direto de Deus será revelado a qualquer pessoa que se apegue ao processo de consciência de Krsna. Tal pessoa realmente entenderá: “Sim, existe um reino espiritual, onde Deus reside, e eu tenho que ir para lá”. “Tenho que me preparar para ir para lá”. Antes de ir para outro país, pode-se ouvir tanto sobre isso, mas quando ele realmente vai para lá, ele entende tudo diretamente. Da mesma forma, se alguém assumir o processo de consciência de Krsna, um dia entenderá Deus e o reino de Deus diretamente, e todo o problema de sua vida será resolvido.

Aqui Krsna usa a palavra sanatanah para descrever esse reino espiritual. A natureza material tem um começo e um fim, mas a natureza espiritual não tem começo e não tem fim. Como é isso? Podemos entender através de um simples exemplo. Às vezes, quando há uma queda de neve, vemos que todo o céu está coberto por uma nuvem. Mas na verdade essa nuvem está cobrindo apenas uma parte insignificante de todo o céu. Porque somos muito minuciosos, porém, quando uma nuvem cobre algumas centenas de quilômetros do céu, para nós o céu parece completamente coberto. Da mesma forma, toda esta manifestação material (chamada de mahat-tattva) é como uma nuvem cobrindo uma porção insignificante do céu espiritual. E, assim como quando a nuvem clareia, podemos ver o céu brilhante, iluminado pelo sol, assim quando nos afastamos desta cobertura de matéria, podemos ver o céu original, espiritual.

Além disso, assim como uma nuvem tem um começo e um fim, a natureza material também tem um começo e um fim, e nosso corpo material também tem um começo e um fim. Nosso corpo simplesmente existe por algum tempo. Ele nasce, cresce, permanece por algum tempo, liberta alguns subprodutos, diminui, e depois desaparece. Estas são as seis transformações do corpo. Da mesma forma, toda manifestação material passa por estas seis transformações. Assim, no final, todo este mundo material será derrotado.

Mas Krsna nos assegura, paras tasmat tu bhavo ‘nyo ‘vyakto ‘vyaktat sanatanah: “além desta natureza material destrutível e nebulosa, há uma outra natureza superior, que é eterna. Não tem princípio e não tem fim”. Então Ele diz, yah sa sarvesu bhutesu bhutesu nasyatsu na vinasyati:

“Quando esta manifestação material for aniquilada, essa natureza superior permanecerá”. Quando uma nuvem no céu é aniquilada, o céu permanece. Da mesma forma, quando a manifestação material semelhante a uma nuvem é aniquilada, o céu espiritual permanece. Isto é chamado de avyakto ‘vyaktat’.

Há muitos volumes de literatura védica contendo informações sobre o céu material e o céu espiritual. No Segundo Canto de Srimad-Bhagavatam encontramos uma descrição do céu espiritual: qual é sua natureza, que tipo de pessoas vivem lá, quais são suas características – tudo. Chegamos até a informação de que no céu espiritual existem aviões espirituais. As entidades vivas ali são todas liberadas e, quando voam em seus aviões, ficam tão bonitas quanto um raio.

Portanto, tudo no mundo espiritual é substancial e original. Este mundo material é apenas uma imitação. O que quer que vejamos neste mundo material é tudo imitação, sombra. É como uma imagem cinematográfica, na qual vemos apenas a sombra da coisa real.

Em Srimad-Bhagavatam [1.1.1] é dito, yatra tri-sargo ‘mrsa: “Este mundo material ilusório é uma combinação de matéria”. Todos nós vimos um belo manequim de uma menina na vitrine de um lojista. Todo homem são sabe que se trata de uma imitação. Mas as chamadas coisas bonitas neste mundo material são exatamente como a bela “garota” na vitrine do lojista. De fato, qualquer coisa bela que vemos aqui neste mundo material é simplesmente uma imitação da verdadeira beleza do mundo espiritual. Como diz Sridhara Svami, yat satyataya mithya sargo pi satyavat pratiyate: “O mundo espiritual é real, e a manifestação irreal, material, só aparece real”. Algo só é real se ele existir eternamente. A realidade não pode ser vencida. Da mesma forma, o verdadeiro prazer deve ser eterno. Como o prazer material é temporário, ele não é real, e aqueles que buscam o prazer real não participam deste prazer sombra. Eles lutam pelo prazer real e eterno da consciência Krsna.

Aqui diz Krsna, yah sa sarvesu bhutesu bhutesu nasyatsu na vinasyati: “Quando tudo no mundo material for aniquilado, essa natureza espiritual permanecerá eternamente”. O objetivo da vida humana é alcançar esse céu espiritual. Mas as pessoas não conhecem a realidade do céu espiritual. O Bhagavatam diz, na te viduh svartha-gatim hi visnum: “As pessoas não conhecem seus próprios interesses. Elas não sabem que a vida humana é destinada a compreender a realidade espiritual e a nos preparar para ser transferida para essa realidade”. Ela não se destina a permanecer aqui no mundo material”. Toda a literatura Védica nos instrui desta forma. Tamasi ma jyotir gama: “Não permaneçam na escuridão; vão para a luz”. Este mundo material é a escuridão. Estamos iluminando-o artificialmente com luzes e fogos elétricos e tantas outras coisas, mas sua natureza é escura. O mundo espiritual, porém, não é escuro; está cheio de luz. Assim como no planeta do sol não há possibilidade de escuridão, não há possibilidade de escuridão na natureza espiritual, porque todo planeta lá é autoiluminado.

É claramente afirmado em Bhagavad-gita que o destino supremo, do qual não há retorno, é a morada de Krsna, a Pessoa Suprema. O Brahma-samhita descreve esta morada suprema como ananda-cinmaya-rasa, um lugar onde tudo está cheio de felicidade espiritual. Qualquer que seja a variedade que se manifeste, há toda a qualidade da bem-aventurança espiritual – nada há de material. Essa variedade espiritual é a expansão espiritual da própria Suprema Divindade, pois a manifestação ali é totalmente da energia espiritual.

Embora o Senhor esteja sempre em Sua morada suprema, Ele é, no entanto, todo-penetrante por Sua energia material. Assim, por Suas energias espirituais e materiais, Ele está presente em todos os lugares – tanto no universo material quanto no espiritual. Em Bhagavad-gita, as palavras yasyantah-sthani bhutani indicam que tudo é sustentado por Ele, seja a energia espiritual ou material.

É claramente afirmado em Bhagavad-gita que somente por bhakti, ou serviço devocional, pode-se entrar no sistema planetário (espiritual) Vaikuntha. Em todos os Vaikunthas existe apenas uma única Divindade Suprema, Krsna, que se expandiu a si mesmo em milhões e milhões de porções plenárias. Estas expansões plenárias são de quatro braços e presidem a inúmeros planetas espirituais. Eles são conhecidos por uma variedade de nomes: Purusottama, Trivikrama, Kesava, Madhava, Aniruddha, Hrsikesa, Sankarsana, Pradyumna, Sridhara, Vasudeva, Damodara, Janardana, Narayana, Vamana, Padmanabha, e assim por diante. Estas expansões plenárias são como as folhas de uma árvore, sendo o tronco principal da árvore como o Krsna. Krsna, morando em Goloka Vrndavana, Sua morada suprema, conduz sistematicamente e sem falhas todos os assuntos de ambos os universos (materiais e espirituais) pelo poder de Sua omnipotência.

Agora, se estamos interessados em chegar à morada suprema de Krsna, então devemos praticar bhakti-yoga. A palavra bhakti significa “serviço devocional”, ou, em outras palavras, submissão ao Senhor Supremo. Krsna diz claramente, purusah sa parah partha bhaktya labhyas tv ananyaya. As palavras tv ananyaya aqui significam “sem qualquer outro compromisso”. Assim, para alcançar a morada espiritual do Senhor, devemos nos engajar em puro serviço devocional a Krsna.

Uma definição de bhakti é dada no autoritário livro Narada-pancaratra:

sarvopadhi-vinirmuktam
tat-paratvena nirmalam
hrsikena hrsikesa-
sevanam bhaktir ucyate

“Bhakti, ou serviço devocional, significa envolver todos os nossos sentidos no serviço do Senhor, a Suprema Personalidade da Divindade, que é o mestre de todos os sentidos”. Quando a alma espiritual presta serviço ao Supremo, há dois efeitos colaterais. Primeiro, ele se liberta de todas as designações materiais, e segundo, seus sentidos são purificados simplesmente por serem empregados no serviço do Senhor”.

Agora estamos sobrecarregados por tantas designações corporais. Índio”, “americano”, “africano”, “europeu” – estas são todas designações corporais. Nossos corpos não somos nós mesmos, mas nos identificamos com estas designações. Suponha que alguém tenha recebido um diploma universitário e se identifique como um M.A. ou um B.A. ou um Ph.D. Ele não é esse diploma, mas identificou-se com essa designação. Portanto, bhakti significa libertar-se dessas designações (Sarvopadhi-vinirmuktam). Upadhi significa “designação”. Se alguém recebe o título de “Senhor”, ele se torna muito feliz: “Oh, eu tenho este título de ‘Senhor’”.” Ele esquece que este título é apenas sua designação – que ele existirá apenas enquanto ele tiver seu corpo. Mas o corpo certamente será derrotado, juntamente com todas as suas designações. Quando um recebe outro corpo, ele recebe outras designações. Suponha que, na vida atual, um seja um americano. O próximo corpo que ele recebe pode ser chinês. Portanto, como estamos sempre mudando nossas designações corporais, devemos parar de identificá-las como nosso “eu”. Quando alguém está determinado a se libertar de todas essas designações absurdas, então ele pode alcançar bhakti.

No verso acima do Narada-pancaratra, a palavra nirmalam significa “completamente puro”. O que é essa pureza? É preciso estar convencido: “Eu sou espírito (aham brahmasmi)”. Eu não sou este corpo material, que é simplesmente minha cobertura. Sou um eterno servo de Krsna; essa é minha verdadeira identidade”. Aquele que é liberado de falsas designações e fixado em sua verdadeira posição constitucional sempre presta serviço a Krsna com seus sentidos (hrsikena hrsikesa-sevanam bhaktir ucyate). A palavra (hrsika significa “os sentidos”. Agora nossos sentidos são designados, mas quando nossos sentidos estão livres de designações, e quando com essa liberdade e nessa pureza servimos ao Krsna – isso é serviço devocional.

Srila Rupa Gosvami explica o serviço devocional puro neste verso de Bhakti-rasamrta-sindhu [1.1.11]:

anyabhilasita-sunyam
jnana-karmady-anavrtam
anukulyena krsnanu-
silanam bhaktir uttama

“Quando se desenvolve um serviço devocional de primeira classe, é preciso ser desprovido de todos os desejos materiais, de conhecimento manchado pela filosofia monística e de ação frutífera. Um devoto puro deve servir constantemente o Krsna favoravelmente, como o Krsna deseja”. Temos que servir o Krsna favoravelmente, não desfavoravelmente. Além disso, devemos estar livres de desejos materiais (anyabhilasita-sunyam). Normalmente se quer servir a Deus para algum propósito material. É claro, isso também é bom. Se alguém vai a Deus para algum ganho material, ele é muito maior do que a pessoa que nunca vai a Deus. Isso é admitido em Bhagavad-gita [7.16]:

catur-vidha bhajante mam
janah sukrtino ‘rjuna
arto jijnasur artharthi
jnani ca bharatarsabha

“Ó melhor entre os Bharatas [Arjuna], quatro tipos de homens piedosos prestam-me serviço devocional – o angustiado, o desejoso de riqueza, o inquisitivo e aquele que procura conhecimento do Absoluto”. “Mas é melhor não irmos a Deus com algum desejo de benefício material”. Devemos estar livres desta impureza (anyabhilasita-sunyam).

As próximas palavras que Rupa Gosvami usa para descrever bhakti puro são jnana-karmady-anavrtam. A palavra jnana se refere ao esforço para entender Krsna por especulação mental. É claro que devemos tentar entender Krsna, mas devemos sempre lembrar que Ele é ilimitado e que nunca podemos entendê-lo completamente. Não é possível para nós fazer isso. Portanto, temos que aceitar tudo o que nos é apresentado nas escrituras reveladas. O Bhagavad-gita, por exemplo, é apresentado por Krsna para nossa compreensão. Devemos tentar entendê-lo simplesmente ouvindo de livros como Bhagavad-gita e Srimad-Bhagavatam. A palavra carma significa “trabalhar com algum resultado frutífero”. Se quisermos praticar bhakti puro, devemos trabalhar na consciência de Krsna abnegadamente – não apenas para obter algum lucro com isso.

A seguir Srila Rupa Gosvami diz que o bhakti puro deve ser anukulyena, ou favorável. Devemos cultivar a consciência de Krsna de forma favorável. Devemos descobrir o que irá agradar ao Krsna, e devemos fazer isso. Como podemos saber o que vai agradar ao Krsna? Ouvindo Bhagavad-gita e tomando a interpretação correta da pessoa certa. Então saberemos o que Krsna quer, e poderemos agir de acordo. Nesse momento, seremos elevados a um serviço devocional de primeira classe.

Portanto, a bhakti-yoga é uma grande ciência e existe uma literatura imensa para nos ajudar a compreendê-la. Devemos utilizar nosso tempo para entender esta ciência e assim nos preparar para receber o benefício supremo no momento de nossa morte – para alcançar os planetas espirituais, onde reside a Suprema Personalidade da Divindade.

Existem milhões de planetas e estrelas dentro deste universo, mas este universo inteiro é apenas uma pequena partícula dentro da criação total. Existem muitos universos como o nosso e, como mencionado anteriormente, o céu espiritual é três vezes maior do que a criação material total. Em outras palavras, três quartos do total da manifestação estão no céu espiritual.

Recebemos informações de Bhagavad-gita de que em cada planeta no céu espiritual há uma expansão do Krsna. Todos eles são purusas ou pessoas; não são impessoais. Em Bhagavad-gita Krsna diz, purusah sa parah partha bhaktya labhyas tv ananyaya: Pode-se abordar a Pessoa Suprema somente por serviço devocional – não por desafio, não por especulação filosófica, e não se estar exercitando nesta ou naquela yoga. Não. É claramente afirmado que se pode abordar o Krsna somente por rendição e serviço devocional. Não se diz que se pode alcançá-lo através de especulação filosófica ou de uma mistura mental ou algum exercício físico. Pode-se chegar ao Krsna somente pela prática da devoção, sem se desviar de atividades frutíferas, especulações filosóficas ou exercício físico. Somente através de um serviço devocional não ligado, sem qualquer mistura, podemos alcançar o mundo espiritual.

Agora, Bhagavad-gita diz ainda, yasyantah-sthani bhutani yena sarvam idam tatam. Krsna é uma pessoa tão grande que, embora situado em sua própria morada, Ele ainda é todo-penetrante, e tudo está dentro dele. Como isto pode ser? O sol está localizado em um só lugar, mas os raios solares estão distribuídos por todo o universo. Da mesma forma, embora Deus esteja situado em Sua própria morada, no céu espiritual, Sua energia está distribuída em todos os lugares. Além disso, Ele não é diferente de Sua energia, assim como o sol e a luz do sol não são diferentes, no sentido de que são compostos da mesma substância iluminadora. Assim, Krsna se distribui em toda parte por Suas energias, e quando nos tornamos avançados no serviço devocional podemos vê-lo em toda parte, assim como se pode acender uma lâmpada em qualquer lugar, ligando-a ao circuito elétrico.

Em seu Brahma-samhita, Lord Brahma descreve as qualificações que exigimos para ver Deus: premanjana-cchurita-bhakti-vilocanena sadaiva sadaiva hrdayesu vilokayanti. Aqueles que desenvolveram o amor a Deus podem ver Deus constantemente diante deles, vinte e quatro horas por dia. A palavra sadaiva significa “constantemente, vinte e quatro horas por dia”. Se alguém é realmente Deus realizado, ele não diz: “Oh, eu vi Deus ontem à noite, mas agora Ele não é visível”. Não, Ele é sempre visível, porque Ele está em toda parte.

Portanto, a conclusão é que podemos ver Krsna em todos os lugares, mas temos que desenvolver os olhos para vê-Lo. Podemos fazer isso através do processo de consciência do Krsna. Quando vemos Krsna, e quando nos aproximamos Dele em sua morada espiritual, nossa vida será bem sucedida, nossos objetivos serão cumpridos e seremos felizes e prósperos eternamente.

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Fonte: PRABHUPADA, Sua Divina Graça A. C. Bhaktivedanta Swami. Entering the Spiritual Sky. In. Back to Godhead, September, 1980. Disponível em: <https://back2godhead.com/entering-spiritual-sky/>. Acesso em 3 de março de 2022.

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Texto adaptado, revisado e enviado por Ícaro Aron Soares.

Postagem original feita no https://mortesubita.net/yoga-fire/entrada-no-ceu-espiritual/

Empoderamento Real Para Mulheres

Por Radhika Krpa Devi Dasi.

Extrato de um discurso dado a um grupo de ONGs na lSKCON de Nova Délhi.

Este foi o tópico sobre o qual tive que falar em um seminário realizado por uma das principais ONGs representantes da ISKCON, era esperado que eu desse um toque espiritual à chamada posição fraca das mulheres. Eu, por outro lado, me sentia totalmente dócil com esta declaração!

Comecei meu discurso diante de uma multidão que glorificava sem pudor as mulheres líderes políticas de alto nível, estrelas do esporte, burocratas, figuras históricas e as modernas representantes das mulheres vencedoras de concursos de beleza. Pois nossa cultura védica foi conquistada nos discursos proferidos pelo ministro honorável e personalidades renunciadas, que defendiam soluções desprovidas de qualquer conhecimento da alma espiritual. Comecei meu discurso lembrando a multidão de nossa cultura há muito esquecida.

Entre as muitas civilizações do mundo, os mais venerados cumprimentos pela tristeza foram encontrados na cultura védica. O nível de civilidade juntamente com os padrões morais e espirituais em uma sociedade pode ser percebido pelo respeito que ela dá a suas mulheres. Não que ela as glorifica pelo papel de “doadoras progressivas” e lhes proporciona toda a liberdade que os homens querem, para que possam ser exploradas e aproveitadas. Mas ela as considera e lhes permite viver em sociedade com respeito, honra e proteção, ao mesmo tempo em que lhes proporciona uma oportunidade de alcançar seu verdadeiro potencial na vida.

A sociedade védica, sendo a sociedade ideal, é baseada nos “Princípios dados diretamente pelo Poder Supremo, Sri Krishna”. Ela acredita em dar proteção às mulheres. Para salvar a sociedade degenerada, manter a segurança das mulheres deve ser a principal preocupação. O Pai protege a criança menina antes do casamento, depois do casamento eu me torno a responsabilidade do marido e mais tarde o filho é confiável para cuidar dela. Esta é a verdadeira sociedade védica.

A sociedade védica enfatiza o papel da mulher em todas as partes do mundo. Os Vedas designam uma mulher ideal como,

Aditi – como ela não é dependente de Brhati – a de grande coração
Candra – a mais feliz
Devakama – a mais piedosa
Ksama – a mais tolerante
Sarasvati- a mais acadêmica
Sumangali – a mais auspiciosa
Visruta – a mais gloriosa
Yoga – pois ela está em relação com o homem, ela não está separada; ela é a ardharangam.

Há muito mais qualidades imbuídas nas mulheres mencionadas nas Escrituras Védicas.

Ela é o cuidado da sociedade; o pivô em torno do qual gira toda a família. As famílias formam a sociedade, que formam a nação e as nações se unem para formar o mundo. Ela é a cuidadora da nova geração. A geração vindoura está completamente em seu guia para seus filhos. As escrituras védicas informam sobre Dhruva Maharaja e Prahlada Maharaja, que seguiram as palavras de suas mães e se tornaram as mais afortunadas por terem “darsana” do Senhor supremo, Sri Krishna, apenas na tenra idade de cinco e sete anos, respectivamente.

Muitas personagens femininas embutidas nas escrituras exibem várias qualidades raramente encontradas. Como a Rainha Kunti, mãe de cinco filhos ilustres, os Pandavas. Sua glorificação espontânea do Senhor Supremo Sri Krishna e sua descrição do caminho espiritual são imortalizadas no Bhagavata Purana Suas orações, como disse Sua Divina Graça A.C Bhaktivedanta Swami Prabhupada, são simples e esclarecedoras efusão de uma grande santa devota. Elas revelam tanto as emoções transcendentais do coração quanto as penetrações teológicas mais profundas do intelecto. Suas palavras têm sido cantadas, recitadas e cantadas por sábios, devotos e filósofos por milhares de anos.

Ela é a epítome da tolerância e da devoção. Ela teve a coragem de rezar pela fortaleza e pelos defeitos para permanecer sempre no abrigo do Senhor.

Draupadi é mais uma personagem forte, impregnada de profunda convicção, cuja fé nunca vacilou no Poder Supremo, apesar de ter passado por momentos muito difíceis. Sua fé profunda e seu forte amor fizeram até mesmo o Senhor do Universo retribuir. Sua compaixão e sua força a fizeram perdoar o assassino de seus cinco filhos. Somente uma mulher tão perfeita poderia fazer isso.

Entretanto, o Criador dos Mundos espirituais e materiais, a fonte de tudo, a Personalidade Suprema da Divindade Sri Krishna, que governa tudo, é governada por sua consorte Srimati Radharani, sua potência interna. Uma devota tem que invocar Sua compaixão, que por sua vez recomenda a devota a Sri Krishna. Ele controla tudo, mas Ela o controla a Ele. Ele é o Poder Supremo, mas Ela é a Mais Suprema.

Mesmo o mundo material do Senhor Supremo Sri Krishna é colocado sob o controle de Sua energia externa Mahamaya, que mantém esta Mrtyuloka (a Terra) e provê gratificação sensata para todos.

Radhika Krpa Devi Dasi de Sua Santidade Gopal Krishna Goswami Maharaja, é a autora de “ensinamentos vaishnava, no sikhismo” e de uma coleção de poemas devocionais.

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Fonte:

DEVI DASI, Radhika Krpa. Real Empowerment For Women. Back to Godhead, 2008. Disponível em: <https://www.backtogodhead.in/real-empowerment-for-women-by-radhika-krpa-devi-dasi/>. Acesso em 8 de março de 2022.

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Texto adaptado, revisado e enviado por Ícaro Aron Soares.

Postagem original feita no https://mortesubita.net/yoga-fire/empoderamento-real-para-mulheres/

Dez Características da Misericórdia do Senhor Chaitanya

Os devotos puros do Senhor Krishna ficam extáticos e extremamente alegres por prestarem serviço devocional amoroso a Ele. Conforme revelado por Srila Krishnadasa Kaviraja Goswami no Sri Chaitanya-charitamrita, Krishna uma vez desejou experimentar a felicidade que Seus devotos sentem. Ele concluiu que, a menos que adotasse o humor de um devoto, não poderia experimentar essa felicidade. O devoto mais elevado do Senhor Krishna é Srimati Radharani. Assim, o Senhor Krishna aceitou a emoção e a compleição de Radharani e se tornou o Senhor Sri Krishna Chaitanya Mahaprabhu.

O Senhor Chaitanya é o próprio Krishna, mas na forma e humor de um devoto. Ao se tornar um devoto, o Senhor realizou bhakti-yoga e o ensinou à humanidade. Como Senhor Chaitanya, o Senhor Krishna é especialmente misericordioso ( maha-vadanya ), mesmo para com as pessoas mais pecadoras. Krishna matou pessoas sem escrúpulos, mas o Senhor Chaitanya as transformou. Ele concedeu nama (o nome de Deus) e prema ( amor de Deus) mesmo aos mais caídos, e nenhuma outra encarnação exibiu um nível tão alto de misericórdia divina.

Svarupa Damodara Goswami, um dos associados mais confidenciais do Senhor Chaitanya Mahaprabhu, ofereceu uma oração ao Senhor quando chegou para servi-Lo em Jagannatha Puri. Nessa oração, ele descreveu dez características da misericórdia divina do Senhor Chaitanya:

heloddhunita -khedaya vishadaya pronmilad – amodaya

shamyach – chastra-vivadaya rasa-daya chittarpitonmadaya
shashvad -bhakti-vinodaya sa-madaya madhurya-maryadaya

shri-chaitanya daya-nidhe tava daya bhuyad amandodaya (Chaitanya-charitamrta, Madhya 10.119, Sri Chaitanya-chandrodaya- nataka 8.10)

Tradução:

Que haja a Misericórdia do Senhor Chaitanya ( shri-chaitanya daya-nidhe tava daya bhuyad ), que:

  1. afasta a lamentação material ( hela uddhunita khedaya )
  1. purifica tudo ( vishadaya )
  1. desperta a bem-aventurança transcendental ( pronmilat amodaya )
  1. atenua as divergências das escrituras ( shamyat shastra vivadaya )
  1. distribui todas as doçuras transcendentais ( rasa-daya )
  1. causa júbilo do coração ( citta arpita unmadaya )
  1. sempre estimula o serviço devocional ( shashvat bhakti vinodya )
  1. junto com êxtase e alegria ( sa-madaya )
  1. glorifica o limite do amor amoroso ( madhurya maryadaya )
  1. desperta a boa sorte ( amanda udaya )

O que se segue é uma breve descrição dos dez aspectos acima da misericórdia divina do Senhor Chaitanya.

  1. Afasta A Lamentação:

Uma das características de bhakti , ou serviço devocional puro, é klesha-ghni , ou seja, afasta todas as misérias ( kleshas ). O Senhor Chaitanya desceu para ensinar a todos o processo de bhakti-yoga . Sarvabhauma Bhattacharya, um devoto erudito do Senhor Chaitanya, O louva em seu Shacisutashtakam :

satatam janata-bhava-tapa-haram

paramartha-parayana-loka-gatim

nava-leha-karam jagat-tapa-haram

pranamami shachi-suta-gaura-varam

 

“Ele está sempre removendo o sofrimento da existência material para a humanidade. Ele é o objetivo da vida para as pessoas que se dedicam ao seu interesse supremo. Ele inspira os homens a se tornarem como abelhas (ansiosas pelo mel de krishna-prema ). Ele remove a febre ardente do mundo material. Eu me curvo a Gaura, o lindo filho da mãe Shachi.”

brahmana espiritualmente elevado chamado Vasudeva sofria de lepra, seu corpo cheio de vermes vivos. Sua compaixão pelo sofrimento de todas as entidades vivas era tão grande que assim que um verme caía de seu corpo, ele o pegava e o colocava de volta no mesmo local. Ouvindo que o Senhor Chaitanya havia chegado ao lugar sagrado chamado Kurmakshetra, Vasudeva foi vê-Lo na casa de um brahmana chamado Kurma. Quando Vasudeva soube que o Senhor Chaitanya já havia partido, ele caiu no chão inconsciente, e o Senhor imediatamente veio até aquele local e o abraçou. Assim, sua lepra e sua angústia foram embora, e seu corpo ficou belo.

Vasudeva orou: “Ó meu misericordioso Senhor, tal misericórdia não é possível para entidades vivas comuns. Tal misericórdia só pode ser encontrada em Você. Ao me ver, até mesmo uma pessoa pecadora vai embora devido ao meu mau odor corporal. No entanto, você me tocou. Tal é o comportamento independente da Suprema Personalidade de Deus.” ( Chaitanya-charitamrita , Madhya 7.144-145 )

Sendo muito compassivo com Vasudeva, o Senhor Chaitanya o curou da lepra e o transformou em um belo homem satisfeito com o serviço devocional. Assim, o Senhor Chaitanya ficou conhecido como Vasudevamrita-prada – “o doador de néctar para Vasudeva. ”

  1. Purifica Tudo:

A próxima faceta da misericórdia do Senhor Chaitanya é vishadaya – ela purifica tudo. O Senhor Chaitanya mostrou o método supremo de purificação para as pessoas em Kali-yuga, inaugurando o processo de cantar os santos nomes de Krishna. Ceto-darpana-marjanam : pelo cantar dos nomes de Krishna, o coração da pessoa é purificado.

Srila Narottama Dasa Thakura canta as glórias do Senhor Chaitanya. Patita-pavana-hetu tava avatara : “Ó meu Senhor, Você apareceu apenas para libertar todas as almas caídas.” Mo-sama patita prabhu na paibe ara : “E entre todas as almas caídas, eu sou a mais baixa.” Assim, aquele que busca purificação e elevação de sua condição decaída deve se abrigar no Senhor Chaitanya. Krishnadasa Kaviraja Goswami escreve no Sri Chaitanya-charitamrita ( Adi 15.1):

ku -manah su-manastvam hi yati yasya padabjayoh
su-mano-‘rpana-matrena tam chaitanya-prabhum bhaje

“Ofereço minhas respeitosas reverências aos pés de lótus do Senhor Chaitanya porque simplesmente oferecendo uma flor a Seus pés de lótus, mesmo o materialista mais ardente se torna um devoto.”

  1. Desperta A Bem-Aventurança Transcendental:

Outro aspecto da misericórdia do Senhor Chaitanya é pronmilat amodaya – desperta a bem-aventurança transcendental. O Senhor Chaitanya, junto com Seus associados, realizou sankirtana , ou o canto congregacional dos santos nomes de Krishna. Kaviraja Goswami diz que eles “saquearam o depósito do amor de Deus” e distribuíram seu conteúdo a todos indiscriminadamente. A devoção amorosa a Sri Krishna é alcançada através de sankirtana , que é a essência de toda bem-aventurança ( nama-sankirtana – saba ananda-svarupa, Adi 1.96) Sri Chaitanya Mahaprabhu diz:

krishna -name ye ananda-sindhu-asvadana
brahmananda tara age khatodaka-sama

“Comparado ao oceano de bem-aventurança transcendental que se saboreia cantando o mantra Hare Krishna, o prazer derivado da realização impessoal do Brahman [ brahmananda ] é como a água rasa em um canal.” ( Adi 7,97 )

Durante Sua viagem ao sul da Índia, o Senhor Chaitanya encontrou várias pessoas e as libertou, induzindo-as a cantar os santos nomes de Krishna em êxtase. Quando as pessoas que se tornaram devotas encontraram outras pessoas, elas também as induziram a cantar em êxtase. Assim, milhares e milhares de pessoas cantaram alegremente os santos nomes de Krishna pela misericórdia do Senhor Chaitanya.

  1. Atenua Os Desacordos Das Escrituras:

Outra característica maravilhosa da misericórdia de Chaitanya Mahaprabhu é shamyat shastra vivadaya – ela atenua as divergências das escrituras. As escrituras védicas às vezes apresentam abheda-vakyas , ou declarações afirmando que todas as coisas são uma com Deus, sendo Suas expansões dependentes. Mas as escrituras também contêm muitos bheda-vakyas , ou declarações que afirmam as qualidades únicas e distintivas do Senhor Supremo, indicando que Ele é diferente de Suas expansões e energias. Assim, alguns mantras Upanishadic enfatizam a semelhança de Deus e Sua criação, enquanto outros falam sobre sua diferença.

Diferentes filósofos consideram essas afirmações de acordo com suas próprias concepções. Os impersonalistas lêem os abheda-vakyas literalmente e aceitam os bheda-vakyas apenas de forma figurada. Por outro lado, alguns filósofos enfatizam apenas os bheda-vakyas e explicam que o Senhor Supremo é totalmente diferente da criação e das entidades vivas.

Conciliando essas aparentes contradições nas declarações das escrituras, Sri Chaitanya Mahaprabhu propôs o achintya-bhedabheda-tattva, o princípio da unidade e diferença simultâneas do Senhor e Suas energias, o que é inconcebível. O Senhor Supremo é a pessoa energética original, e Dele emanam todas as Suas energias, incluindo a criação e as entidades vivas. Sem a pessoa energética, a energia não existe. E sem energia, “uma pessoa enérgica” não tem significado. Assim, a energia e o energético são um. No entanto, eles existem separadamente. E isso é inconcebível para mentes influenciadas pela energia material.

Srila Prabhupada escreve,

Somos todos um com Ele [o Senhor Supremo], assim como os ornamentos de ouro são um em qualidade com o ouro de estoque, mas o ornamento de ouro individual nunca é igual em quantidade com o ouro de estoque. O estoque de ouro nunca se esgota, mesmo que haja inúmeros ornamentos que emanam do estoque, porque o estoque é purnam , completo; mesmo que purnam seja deduzido do purnam , ainda assim o purnam supremo permanece o mesmo purnam . Este fato é inconcebível para nossos atuais sentidos imperfeitos. O Senhor Chaitanya, portanto, definiu Sua teoria da filosofia como achintya (inconcebível), e como confirmado no Bhagavad-gita , bem como no Bhagavatam , a teoria do Senhor Chaitanya de achintya-bhedabheda-tattva é a filosofia perfeita da Verdade Absoluta. ( Bhagavatam 2.6.13-16, Significado)

  1. Distribui Doçura Transcendental:

Por Sua misericórdia sem causa ( daya ), Caitanya Mahaprabhu desceu para distribuir as doçuras transcendentais ( rasa ) para as pessoas neste mundo. Assim em Vidagdha-madhava (1.2) Srila Rupa Goswami ora,

anarpita -charim chirat karunayavatirnah kalau
samarpayitum unnatojjvala-rasam sva-bhakti-shriyam

“O Senhor Chaitanya apareceu na Era de Kali por Sua misericórdia sem causa para conceder o que nenhuma encarnação jamais ofereceu antes: a mais sublime e radiante doçura do serviço devocional, a doçura do amor conjugal .” (citado em Cc. Adi 1.4)

Krishnadasa Kaviraja Goswami escreve,

Antes da criação desta manifestação cósmica, o Senhor iluminou o coração do Senhor Brahma com os detalhes da criação e manifestou o conhecimento védico. Exatamente da mesma forma, o Senhor, ansioso por reviver os passatempos de Vrindavana do Senhor Krishna, impregnou o coração de Rupa Goswami com potência espiritual. Por esta potência, Srila Rupa Goswami pôde reviver as atividades de Krishna em Vrindavana, atividades quase perdidas na memória. Desta forma, Ele espalhou a consciência de Krishna por todo o mundo. ( Madhya 19.1)

rasas primárias e secundárias , ou doçuras (sabores) transcendentais no relacionamento com Krishna, juntamente com seus sintomas. Em Benares, o Senhor Chaitanya deu ensinamentos mais elaborados a Sanatana Goswami, esclarecendo-o sobre rasas e outros aspectos de bhakti . Assim, o Senhor Chaitanya distribuiu o conhecimento de rasas para o mundo através de Rupa e Sanatana Goswamis, que os explicaram ainda mais escrevendo escrituras devocionais.

  1. Causa O Júbilo Do Coração:

A misericórdia do Senhor Chaitanya também causa júbilo no coração ( chitta arpita unmadaya ). Ouvir sobre todas as Suas atividades cheias de compaixão e afeição causa a maior felicidade ao ouvinte. Assim, Kaviraja Goswami exorta os leitores do Sri Chaitanya-charitamrita , repleto de descrições das atividades misericordiosas do Senhor Chaitanya, a estudá-lo e ouvi-lo com grande atenção para obter júbilo: “Ó devotos, que a vida transcendental e as características de Sri Chaitanya Mahaprabhu sejam sempre ouvidas , cantado e meditado com grande felicidade.” ( Antya 12.1 )

  1. Sempre Estimula O Serviço Devocional:

A misericórdia do Senhor Chaitanya sempre estimula o serviço devocional ( shashvat bhakti vinodaya ) nos corações daqueles que entram em contato com Ele. Cada entidade viva tem um relacionamento eterno com o Supremo Senhor Krishna. No entanto, devido à cobertura de maya , ou a energia ilusória, a alma condicionada esqueceu esse relacionamento. Pela execução de bhakti yoga pode-se reviver esse relacionamento. E o Senhor Chaitanya misericordiosamente desceu para ensinar bhakti-yoga , pelo qual a pessoa se identifica como um servo eterno do Senhor Krishna e age de acordo. Assim Sarvabhauma Bhattacharya O exalta:

vairagya-vidya-nija-bhakti-yoga

shikshartham ekah purushah puranah

shri-krishna-chaitanya-sharira-dhari

kripambudhir yas tam aham prapadye

 

“Deixe-me abrigar-me na Suprema Personalidade de Deus, Sri Krishna, que desceu na forma do Senhor Chaitanya Mahaprabhu para nos ensinar o verdadeiro conhecimento, Seu serviço devocional e desapego de tudo que não promova a consciência de Krishna. Ele desceu porque Ele é um oceano de misericórdia transcendental. Deixe-me render-me aos Seus pés de lótus.” ( Madhya 6.254)

O Senhor Chaitanya pregou bhakti , especialmente bhakti realizado seguindo os passos dos residentes de Vrindavan, sob a orientação dos Seis Goswamis. Sempre que o Senhor Chaitanya se despedia de Seus devotos, Ele os exortava fervorosamente a prestar serviço devocional a Krishna, que inclui cantar Seus nomes e adorá-Lo.

  1. Concede Êxtase E Alegria Completos:

Como o Senhor Chaitanya estimula o serviço devocional no coração de uma alma condicionada e sofredora neste mundo, Ele simultaneamente concede o êxtase e a alegria ( sa-madaya ) que acompanham bhakti . A entidade viva condicionada se identifica artificialmente como o mestre, desfrutador, controlador e proprietário neste mundo. No entanto, pela misericórdia do Senhor Chaitanya, pode-se desistir de tal falsa identificação realizando krishna-bhakti. Ser um servo amoroso de Krishna é a posição constitucional original de toda entidade viva, como o próprio Senhor Chaitanya ensinou: jivera ‘svarupa’ haya – krishnera ‘nitya-dasa’ ( Madhya 20.108). Uma gota de alegria e êxtase de servir a Krishna não pode ser comparada a um oceano de felicidade que se obtém ao fundir-se no Brahman impessoal ( Adi 6.44). O próprio Senhor Chaitanya prova o néctar de krishna-prema e inspira outros a provarem o mesmo. Kaviraja Goswami escreve,

vande shri-krishna-chaitanyam

krishna-bhavamritam oi yah

asvadyasvadayan bhaktan

prema-diksham ashikshayat

 

“Deixe-me oferecer minhas respeitosas reverências a Sri Chaitanya Mahaprabhu, que pessoalmente provou o néctar do amor extático por Krishna e então instruiu Seus devotos como saboreá-lo. Assim, Ele os iluminou sobre o amor extático de Krishna para iniciá-los no conhecimento transcendental.” ( Antya 16.1)

  1. Glorifica O Limite Do Amor Amoroso:

Outro aspecto da misericórdia do Senhor Chaitanya é madhurya maryadaya – glorificando o limite do amor amoroso . Existem cinco rasas primários em conexão com o Senhor Krishna, a saber, shanta (neutralidade) , dasya (servidão ), sakhya (amizade), vatsalya (fraternidade) e madhurya (amor amoroso). Por uma comparação imparcial, descobre-se que madhurya rasa é o mais alto. E Srimati Radharani é o epítome de todos os devotos em madhurya rasa . Mesmo Krishna deseja compreender a grandeza de Seu amor e experimentar a felicidade que Ela obtém ao servi-Lo. Assim Krishna desceu como Senhor Chaitanya, aceitando o humor de Radharani.

A própria aparição do Senhor Chaitanya com as emoções de Srimati Radharani é o maior testemunho da rasa amorosa . Durante Suas discussões com Ramananda Raya ( Madhya, capítulo 8), o Senhor Chaitanya estabeleceu a supremacia de madhurya rasa através das palavras de Ramananda Raya. O Senhor Chaitanya ensinou que a maior aspiração ou objetivo ( sadhya ) para um Gaudiya Vaishnava é adorar Krishna seguindo os passos das Vraja-gopis, porque não há modo de adoração melhor do que o deles. Em Seus passatempos manifestos, especialmente nos últimos dezoito anos de Sua estada em Jagannatha Puri, o Senhor Chaitanya estava constantemente absorto no humor das gopis e experimentava sentimentos extáticos de separação de Krishna. Assim Ele declarou ao mundo inteiro a glória das gopis de Vrindavan, os devotos mais elevados de Krishna em sentimentos madhurya .

  1. Desperta A Boa Sorte:

Svarupa Damodara Goswami menciona a característica final da misericórdia do Senhor Chaitanya como amanda udayam – ela desperta toda boa sorte. Através de Seus ensinamentos, atividades e interações, o Senhor Chaitanya misericordiosamente desperta a maior fortuna na vida dos devotos. Perto do fim de Seus passatempos manifestos, o Senhor Chaitanya disse a Svarupa Damodara Goswami e Ramananda Raya: “Simplesmente cantando o santo nome do Senhor Krishna, pode-se libertar de todos os hábitos indesejáveis. Este é o meio de despertar toda boa fortuna e iniciar o fluxo de ondas de amor por Krishna.” ( Antya 20.11)

O Senhor Misericordioso:

Assim, a aparência e as atividades do Senhor Chaitanya estão repletas de misericórdia incomparável sobre as entidades vivas neste mundo – os inteligentes, os tolos, os nobres, os humildes, homens, mulheres, crianças ou mesmo espécies não humanas. O Senhor Chaitanya concedeu Sua misericórdia aos animais na Floresta Jharikhand e os fez cantar os nomes de Krishna em êxtase. A suprema misericórdia do Senhor Chaitanya atua como a suprema bênção sobre as pessoas neste mundo em vários níveis – desde libertá-las dos sofrimentos da existência material até fazê-las experimentar o júbilo transcendental do amor por Krishna. E essa misericórdia é como um rio nectáreo fluindo rio abaixo e acessível até mesmo para as pessoas mais caídas e pecadoras deste mundo ( Adi 16.1 ). more — para nós; dayä — misericórdia; kari’ — mostrando; kara — fazer; sva-day€ — Sua própria misericórdia; sa-phala — bem- sucedido; akhila — por toda parte ; brahmäëòa — o universo; dekhuka — que seja visto; tomära — Seu; dayä-bala — poder de misericórdia. Assim, Kaviraja Goswami exorta os leitores do Chaitanya-charitamrita a usar sua lógica e raciocínio para entender a misericórdia do Senhor Chaitanya como “surpreendentemente maravilhosa” (Adi 8.15).

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Fonte:

Ten Characteristics of Lord Chaitanya’s Mercy.

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Texto adaptado, revisado e enviado por Ícaro Aron Soares.

Postagem original feita no https://mortesubita.net/yoga-fire/dez-caracteristicas-da-misericordia-do-senhor-chaitanya/