A Evolução da Bíblia: da boca de Deus até as cabeceiras dos motéis

Nota desta segunda edição, corrigida e ampliada.

O objetivo desta revisão foi o de deixar o texto mais completo. Corrigir erros. Deixar a leitura mais fluída. O texto que você tem em mãos nasceu de um projeto desenvolvido pela Morte Súbita Inc. em parceria com o Jesus Freak para se criar um texto que desenvolvesse não apenas a história da Bíblia de sua origem aos dias de hoje, mas uma pesquisa com bases em achados arqueológicos e estudos modernos sobre como ela se desenvolveu através da história.

Para dar corpo a este texto resolvemos criar uma forma diferente de organizar os tópicos a serem pesquisados e desenvolvidos. No ano de 2008 pegamos crianças de escolas religiosas e deixamos que elas fizessem perguntas sobre a Bíblia, que pudessem matar a curiosidade que tivessem sobre determinados assuntos. Então organizamos as perguntas e fomos respondendo.

O texto acabou ficando longo e foi colocado no ar assim que as perguntas haviam sido respondidas, mas algumas informações acabaram ficando de fora, então o organizador deste texto resolveu acrescentar alguns dados. Além disso por ter sido originado de perguntas feitas por pessoas diferentes, num processo aleatório o texto acabou ficando meio “truncado” quando se passava de um tópico para o outro, surgiu então a idéia de tentar, mudando a ordem de algumas perguntas e rearrumando a informação das respostas, dar um pouco mais de ritmo para sua leitura.

Depois de algumas reuniões os membros do projeto acharam interessante também expor a forma como o texto foi formado nem que fosse apenas como um adendo divertido, mas com o tempo perceberam que as curiosidades das crianças eram interessantes pois mostravam que muitas questões que pessoas podem ter já em idade adulta são as mesmas que surgem em suas mentes quando ainda são crianças e seja por falta de material de pesquisa, de liberdade em casa, na escola ou no templo/igreja que frequenta, seja por pura preguiça de ir atrás de uma resposta permanecem por anos. É engraçado notar como a “inocência” da infância vira a “ignorância” adulta. Assim as perguntas, que no dia em que foram sendo feitas já eram respondidas, foram aqui reorganizadas e o texto adaptado a elas de forma a não ficar repetitivo ou com assuntos parecendo apenas soltos. Assim a entrevista original foi, com alguma liberdade, refeita aqui mas mantendo o espírito das questões originais.

E por fim, o texto foi montado em blocos separados e reunidos alguns foram revisados, outros não, então aproveitamos para revisar e corrigir vários dos erros que passaram desapercebidos na primeira edição deste texto. Se você já o leu e desejar relê-lo encontrará novas informações e um formato um pouco diferente das que já existiam. Se está lendo a primeira vez então tem a sorte de já ter em mãos um texto melhorado e mais amplo em suas respostas.

Introdução

Por séculos, a Bíblia tem sido, no ocidente, a autoridade máxima sobre diversos assuntos. A Palavra Divina capturada em papel, a vontade de Deus nua e crua. Argumente com algum religioso abrahâmico[1] que a Bíblia pode ter sido um bom livro, mas que mexeram tanto nela que do original só resta o nome e você consegue presenciar uma experiência em miniatura da formação de tornados bem na sua frente.

De fato, argumentar qualquer coisa sobre o que foi feito ou não com a Bíblia acaba se tornando um exercício de especulação ou simplesmente do bom e velho cinismo. De um lado uns a defendem com unhas e dentes, de outro atiram paus e pedras sem mirar nem ver onde acertam. Para ambos os lados a conversa se torna um simples ato de gritar e se fazer ouvir e ambos saem tão convencidos de suas certezas quanto quando começaram.

Então ao invés de assumir qualquer um dos lados – “sim, é possível uma entidade supra humana inspirar outros de forma que registrem suas impressões em papel” ou “grande parte do que existe na Bíblia não passava de folclore, poesia e leis de uma época, que foram divinizadas como forma de se controlar um povo” – vamos simplesmente fazer uma listagem de fatos sobre ela para nos entreter e nos ajudar a tirar nossas conclusões.

Antes de mais nada é importante deixar claro que a própria Bíblia, historicamente, teve um propósito muito diferente do que tem hoje em dia. Quando foi criada, seu objetivo era o de garantir que o povo fosse fiel a Deus e a si mesmo. Nos primórdios das formações de nações ou sociedades era muito dificil que um mesmo povo tivesse um mesmo consenso sobre um único assunto e a inexistência de “universidades” ou centros de estudo oficiais sobre um determinado assunto acabava criando muito disse que disse e visões pessoais sobre este assunto. E dai surge a vontade desse povo espalhado de ter a certeza não apenas de estar adorando ou sendo gratos a Deus da maneira correta, mas de também terem a mesma visão sobre Deus. Deus teria sido o responsável por tudo o que existia? Havia algo antes de Deus? Deus era Pai, Mãe ou ambos ou nenhum? Se aquele era o povo escolhido porque tanta perseguição e miséria? Deus era o responsável pelas coisas boas e más? O que esperar d’Ele? Para responder a isso começaram a ser reunidos pedaços de textos, tradições orais, histórias sobre o povo e então foram organizados e colocados em pergaminhos e tábuas, não como forma de instituir uma palavra de Deus, mas apenas como uma tentativa individual de estarem sendo fiéis à própria crença. E assim ocorre o nascimento deste livro que até hoje tem grande influência sobre o mundo, seja positivo ou negativo, não como uma rótulo mas como uma preocupação de que essa fidelidade fosse transmitida a outros e a futuras gerações. Apenas eras após seu surgimento o povo encontrou nela a expressão da vontade e a presença real de uma Palavra Santa.

Não podemos negar a influência que esse poder descoberto com o tempo deu para aqueles que foram proclamados ou se proclamaram a si mesmos os herdeiros do direito de interpretar o seu conteúdo. Mas o objetivo deste texto não é apontar dedos ou simplesmente mostrar como um registro de uma vontade se tornou uma ferramenta e sim acompanhar o desenvolvimento do livro baseado em fatos concretos que temos à disposição hoje em mãos.

Como este texto foi organizado? Foram reunidas 17 crianças com idades entre 8 e 14 anos, frequentadoras de colégios religiosos, católicos e protestantes, e a cada uma foi dada a oportunidade de escrever em uma folha de papel 3 perguntas que teriam sobre a Bíblia. Estas perguntas então foram organizadas de forma cronológica, algumas foram mudadas levemente de forma a terem uma resposta mais ampla e outras ainda foram fundidas pois eram perguntas semelhantes feitas apenas utilizandon-se palavras diferentes. O resultado desta entrevista é o texto que se segue.

1- O que é a Bíblia

Bíblia (do grego βίβλια, plural de βίβλιον, transl. bíblion, “rolo” ou “livro”) é o texto religioso central do judaísmo e do cristianismo.

2- A Bíblia sempre foi a Bíblia? Ela é o livro mais antigo do mundo?

Respondendo a primeira questão:

Na verdade não. No início era conhecida como Tanakh ou Tanach (em hebraico תנ״ך), pelos Judeus. O seu conteúdo é equivalente ao do Antigo Testamento, mas seus textos estão organizados de forma diferente e são apresentados em outra ordem.

O nome Tanakh é formado pelas sílabas iniciais dos três livros que a formam:

– A Torá (תורה), também chamado חומש (Chumash, isto é “Os cinco”) refere-se aos cinco livros conhecidos como Pentateuco, o mais importante dos livros do judaísmo.

– Neviim (נביאים) “Profetas”

– Kethuvim (כתובים) “os Escritos”

O Tanach é às vezes chamado de Mikrá (מקרא)

É importante ter em mente que a Bíblia como existe hoje é um livro cristão, ou seja, surgiu como algo que avoluiu do judaísmo. O ponto mais importante disso é que para o judaísmo os textos sagrados são aqueles que ficaram conhecidos para os não judeus como o Antigo Testamento. O Novo Testamento é uma coleção de textos, ou livros, exclusivamente cristãos, surgiram depois do advento do cristianismo. Muitos estudiosos e religiosos hoje inclusive estão trocando os termos Antigo e Novo Testamento por Primeiro e Segundo Testamento para não tornar irrelevante ou ultrapassado os textos judaicos, que fazem parte da primeira parte da Bíblia. Com o tempo o cristianismo, na sua vontade de se tornar uma religião independente do judaísmo, acabou atacando suas raízes se tornando muitas vezes anti-semita e este é um sentimento que aos poucos alguns cristãos vem tentando corrigir.

Quanto à segunda questão podemos dividí-la em duas para responder melhor:

2.1 A Bíblia é o livro mais antigo existente?

e

2.2 A Bíblia é o livro religioso mais antigo existente?

Em ambos os casos a resposta é não. O livro mais antigo que se tem notícias hoje é o I-Ching. Apesar das várias lendas que circulam a respeito de sua criação em algum momento da antiguidade os trigramas e hexagramas que formaram o seu conteúdo foram compilados tábuas de bambu entre os anos 3000 e 2000 antes da era Cristã (a.C. ou a.e.C.).

No caso de o livro religioso mais antigo ou mesmo o texto religioso mais antigo temos que ter em mente que o Judaísmo, a religião que começou a compilar e escrever os primeiros textos da Bíblia, não é a religião mais antiga, desde os primóridos da raça humana as pessoas tinham religiões, as mais antigas sendo classificadas como xamanismo, mas mesmo as mais modernas como o zoroastrismo ou o hinduísmo são bem mais antigas e já tinham seus textos sagrados respectivos.

3- E a Tanakh sempre foi a Tanakh? Ela é a versão mais antiga da Bíblia?

O nome Tanakh, ou seja a divisão refletida pelo acrônimo Tanakh está registrada em documentos do período do Segundo Templo (515 a.C. a 70 depois da era Cristã, ou d.C.) e na literatura rabínica (A Mishná e a Tosefta – compiladas a partir de materiais anteriores ao ano 200 d.C. – são as primeiras obras existentes da literatura rabínica, e a literatura rabínica já era desenvolvida por rabinos, ou seja por líderes religiosos, portanto o judaísmo já existia como religião estabelecida nesta época). Durante aquele período, entretando, o acrônimo Tanakh não era usado, sendo que o termo apropriado era Mikra (“Leitura”). Este termo continua sendo usado em nossos dias, junto com Tanakh, em referência as escrituras hebraicas.

No hebraico moderno, o uso do termo Mikra dá um tom mais formal do que o termo Tanakh.

De acordo com a tradição judaica, o Tanakh consiste de vinte e quatro livros. A Torah possui cinco livros, o Nevi’im oito livros e o Ketuvim onze.

Então o registro mais antigo dos textos já organizados na forma que temos hoje no Antigo Testamento data do século VI a.C.

4 – Mas espere ai. A Bíblia não vem desde a antiguidade? Mesmo não sendo o livro mais antigo ela não tem milhares e milhares de anos de idade?

Então, ai as coisas começam a ficam interessantes. Quando falamos da Bíblia temos que separar a tradição oral e o documento escrito. A tradição oral judaica é muito antiga, mas no que diz respeito a material sólido existente, letras registradas no papel (ou pergaminho ou papiro ou metal) o que temos é um pouco mais recente.

Para entender vamos recorrer à tradição que cerca a Bíblia. A primeira pessoa que supostamente começou a colocar o texto no papel. De acordo com a própria Bíblia, foi Moisés. Mas muita coisa que está escrita nela aconteceu muito antes de Moisés, e ai já temos o primeiro impacto que a tradição oral tem no texto. Muita coisa lá foi passada de pessoa para pessoa, algumas provavelmente já escritas e registradas, mas tudo foi juntado e compilado depois de Moisés.

O primeiro registro bíblico da passagem de uma tradição oral para uma escrita, ou seja a primeira vez que a própria Bíblia cita a escrita da tradição do povo, surge no livro do Êxodo quando Deus diz para Moisés que se prepare para receber “as tábuas de pedra, a lei e os mandamentos que escrevi para os ensinar” (Ex 24:12). Então antes da lei e dos mandamentos de Deus não havia um livro religioso oficial dos Judeus. E mesmo assim na Torá fica claro que não estão presentes todos os comandos e leis de Deus, ou seja muito da tradiçào oral não foi registrada como um texto sagrado. Um exemplo claro é o Shabat. Apesar de estar presente nos Dez Mandamento – tradição escrita – não existem detalhes de como fazer isso. Deus fala a Moisés que guarde o Shabat: “Santificai o dia de sábado, como ordenei a vossos pais” (Jeremias 17:22), mas não existe um relato dessas ordenanças, pelos textos contidos na Bíblia não existem as instruções de como guardar o sábado, mais para frente no texto existem amostras do que se podia fazer ou não, mas quando o texto foi registrado apenas se guardou o “santificar o sábado”. Outro exemplo está em Deuteronômio quando Deus diz para Moisés que “poderás degolar do teu gado e do teu rebanho … como te ordenei” (Deuteronomio 12:21) mas não existe um registro escrito na própria Bíblia que explique de que maneira isto deveria ser feito.

Assim vamos que mesmo que tenha surgido um registro escrito das leis muita coisa ficou de fora dele ainda, era uma tradição oral que foi mantida até muito depois.

E essa ausência de registros faz parte da cultura religiosa, como já afirmou o Rabino Aryeh Kaplan, “Visto que a Torá Escrita mostra-se primariamente incompleta a menos que complementada pela tradição oral…”.

Assim vemos que mesmo com a escrita a tradição oral sempre foi muito forte, e permanece assim até hoje.

5 – Mas não foi Moisés que escreveu a Torá? Essa parte não é tão antiga quanto ele? Qual o texto mais antigo da Tanakh?

De acordo com os cálculos de Jerónimo de Stridon, Moisés teria vivido entre 1592 a.C. e 1472 a.C., então se foi ele mesmo que escreveu a Torá ela teria que datar desta época. Mas embora a tradição reze que o pentateuco, os cinco livros de Moisés (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) sejam os livros mais antigos, como evidência, o pedaço de documento mais antigo encontrado até hoje datam de 100 a.C.

Em 1947 foram encontrados em uma caverna de Q’umran os textos bíblicos mais antigos. O livro bíblico mais antigo que se tem notícias hoje de existir é o Livro de Isaías, um rolo de pergaminho de 7 metros datado do ano 100 a.C.. O Livro de Isaías, com mais de dois mil anos de idade, é uma prova única da autenticidade da tradição da Sagrada Escritura, pois o seu texto concorda com a redação das Bíblias atuais.

Ou trocando a ordem, o Livro de Isaías que temos hoje nas Bíblias é o mesmo que usavam em 100 a.C.

Antes desta descoberta os manuscritos mais antigos existentes datavam principalmente do século III e IV.

Além deste, o documento mais antigo com um trecho apenas da Bíblia é uma passagem de um dos livros de Samuel, escrito em torno de 225 a.C. então como evidência real o trecho bíblico mais antigo nos chegou direto do século III a.C. e o livro bíblico mais antigo do século I a.C.

Agora isso não significa que esses textos tenham surgido nessa época. As descobertas de Q’umran mostram bem que um documento existente não prova que tenha sido o primeiro, graças ao manuscritos encontrados vimos que documentos com mais de 700 anos de idade surgiram daqueles que eram os textos mais antigos. Pergaminhos podem ser resistentes mas eles se perdem e assim evidências valiosas dos txtos se perdem com eles. E isto pode ser um problema.

Já que os textos em parte se baseavam em uma tradição oral, como podemos ter certeza de que o que foi registrado era ainda uma descrição fiel dos ocorridos, ou uma cópia exata dos fatos?

Antes de mais nada vamos imaginar que os escritores originais acreditavam em Deus e acreditavam que estavam registrando a Sua Vontade e a história de Seu povo. Imaginem o zelo de uma pessoa que deseja registrar um texto que está chegando a ela diretamente do criador. E mais, ela ainda tem o peso de ter que passar isso de forma que não existam erros ou dúvidas para as gerações presentes e futuras. Voltando para a Torá esse zelo aparece na passagem em que antes de morrer Moisés revisa a tradição passada por Deus que não havia sido registrada para esclarecer qualquer ponto que pudesse dar margens à dúvida ou interpretação: “Além do Jordão, na terra de Moab, começou Moisés a explicar esta Lei” (Deuteronômio 1:5). Mas veja que não existem registros ainda destas explicações, a preocupação não era registrar, mas passar adiante.

Ainda existe outro ponto interessante que é a resistência do próprio Deus de se registrar tudo o que se passasse. Sem querer ser leviano, era algo como: Passei os registros que impostavam ser registrados, agora obedeçam, não percam tempo escrevendo qualquer coisa que Eu diga!

Em Eclesiastes 12:12 lemos: “Escuta ainda, filho meu: escrever livros é tarefa sem fim, e muito estudo esgota a carne”. Ou em Oséias 8:12: “Se tivesse escrito a maioria de minha Torá, [Israel] seria contado igual a estranhos”, onde vemos a tradição como algo que deveria permanecer dentre o povo e não ser acessível ou passada para estranhos.

Assim temos uma relutância entre começar um registro da Vontade Divina, gravando-a para o futuro. Mas esse registro aconteceu, ao menos em parte. Para ver qual o impacto disso na acuidade do registro vamos fazer um exercício: imagine que Deus passou uma importante lei para o seu bisavô, que por sua vez a passou para seu pai, seu pai para você e você decide registrá-la para que não se perca. Você tem como saber que está registrando exatamente o que foi passado para seu antepassado não tão distante?

Claro que podemos afirmar que se algo é repetido diariamente ele permanece íntegro. Mas temos casos quotidianos que mostram que não é bem assim que a coisa funciona. Uma expressão muito conhecida hoje é “cor de burro quando foge”, mas ela acaba sendo aplicada em inúmeras situações que implicariam significados diversos. Estudando a origem da frase vemos que ela não se referia a uma mudança na coloração do asinino quando ele bate em retirada, e sim a um ditado que originalmente era: “corro de burro quando foge”. Um burro é um animal dócil, quando ele se irrita e sai correndo se torna um animal perigoso, a expressão significaria algo como: “quando a situação fica preta eu não perco tempo: dou no pé!”.

Vemos ai um caso de tradição oral que perde o sentido com o tempo e o uso. Um exemplo de outra tradição oral que não perde o sentido simplesmente mas muda de sentido completamente quando registrada é a famosa: “Quem tem boca, vai a Roma”. Se consultarmos o Dicionário de Máximas, Adágios e Provérbios, de Jayme Rebelo Hespanha (1936), a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (1948), o Grande Dicionário da Língua Portuguesa de António de Morais Silva (1949 a 1959), o Livro dos Provérbios Portugueses, da Editorial Presença (1999) e Dicionário de Provérbios, Adágios, Ditados, Máximas, Aforismos e Frases Feitas, da Porto Editora (2000) podemos atestar que este provérbio está registrado há muito tempo já, desde 1936 pelo menos, e que ainda existem variantes dele: «Quem tem língua vai a Roma»; «Quem língua tem a Roma vai e de Roma vem»; «Quem tem língua a Roma vai e vem».

Em cima disso existem estudos sobre o significado dele, como por exemplo:

” A frase «Quem tem boca vai a Roma» traduz a notoriedade da Cidade Eterna, mas também a verdade de que quem sabe perguntar consegue chegar seja onde for (literal e figuradamente), consegue obter os conhecimentos de que precisa para se orientar. As palavras-chave aqui são três: boca, vai e Roma. A boca significa a capacidade de falar, de perguntar, de comunicar; o verbo ir tem que ver com o percurso, a caminhada, significando passar de um lugar a outro, deslocar-se, mas também evoluir, progredir; Roma fora, aquando do Império Romano, a capital, a cidade mais importante do mundo conhecido dos europeus, mas uma cidade que ficava longe, sob o ponto de vista dos mais remotos territórios que constituíam o vasto império, e, por outro lado, esta é a cidade cabeça da Igreja Católica, traduz a própria Igreja, o seu governo, o papado, significando para os católicos o que de melhor existe e que se procura alcançar. Chegar a Roma poderá ser difícil, mas quem tem a capacidade de falar ultrapassará os obstáculos e alcançará o que pretende: conseguirá chegar longe, até conseguirá chegar a Roma.

Roma entrou no adagiário por causa da sua importância, do seu valor, do seu mérito, e não por aspectos negativos: «Roma locuta est» (= «Roma falou»: se Roma falou, o que ela disse deve ser seguido pelos católicos); «Roma locuta, causa finita» (= «Roma falou, a causa acabou»); «Roma e Pavia não se fizeram num dia»; «Em Roma, sê romano»; «Todos os caminhos vão dar a Roma», «O que vai aqui não vai em Roma».”

Agora se passarmos algum tempo lendo livros protestantes encontramos uma versão diferente deste adágio dizendo: Quem tem boca vaia (do verbo vaiar) Roma. Vamos nos lembrar agora que os protestantes se tornaram protestantes por protestar contra a Santa Sé Católica, personificada por Roma, como vimos no estudo acima. A origem do adágio não tinha como objetivo mostrar que com vontade chegamos ou conseguimos o que quisermos mas como crítica contra a corrupção do Clero.

Existe algum debate sobre qual o adágio original, mas isso serve apenas para mostrar como a tradição oral pode sofrer mutações nos significados de seus ensinamentos e como depois de registrados eles se tornam uma base que pode ser falha. Imagine que existisse no Novo Testamento uma passagem dizendo como Jesus, durante a Santa Ceia havia dito aos apóstolos que quem tem boca vai a Roma. E imagine que recentemente se encontrasse um pergaminho datado do século I com a mesma passagem contendo a variante “vaia Roma”. Como poderíamos ter certeza do que o Messias disse naquela noite?

Claro que nesses dois casos podemos dizer que são expressões populares que não podem ser comparadas a um ensinamento religioso passado por Deus aos Homens, mas podemos ver um outro caso onde algo semelhante ocorre.

Elvis Aaron Presley foi um homem admirado por muitos, em alguns casos essa admiração beirava a histeria e a mania. Ele nasceu em 1935 e morreu em 1977, mas se tornou febre só após os anos 1950 quando começa a sua carreira profissional.

O interessante de pensarmos em Elvis, é que este período em que virou uma febra cheio de fãs é bem recente, dos anos 1950 para os dias de hoje não transcorreram nem 60 anos. E em parte deste período ele esteve vivo ainda. No auge de sua carreira as pessoas desejavam por cada detalhe sobre sua vida que pudessem por as mãos e assim a mídia supria essas pessoas com tudo que pudesse imaginar, relatos de conhecidos e do próprio Elvis, entrevistas registradas, filmes, etc… Uma das manias de Elvis que ficou registrada era seu gosto por um sanduíche que ficou conhecido como Sanduíche de Elvis. É raro encontrar um fã que não tenha ouvido falar dele e muitos já o experimentaram, mas ai existe um problema interessante: não existe uma receita oficial aceita. As maiores biografias do Rei registram essa iguaria, dando também a receita, mas as receitas são diferentes.

O sanduíche era simples, Elvis morreu há pouco mais de 30 anos, três décadas, haviam cozinheiros, amigos, familiares, mas parece que cada um se lembra do sanduíche de maneira diferente. Alguns diziam que consistia de pão de forma, bananas fritas, manteiga de amendoim e bacon. Outros que não havia bacon, existem aqueles que dizem que havia sorvete, outros geléia.

Isto pode parecer uma comparação boba, mas não é. Se em três décadas uma simples receita de sanduíche se perde, por ficar apenas no boca a boca, imagine textos passados por Deus que ficaram no boca a boca por séculos antes de serem registrados?

Um último exemplo é talvez mais simples. Pare agora para cantar o hino nacional do Brasil. Então escreva numa folha de papel. Depois pare 5 pessoas na rua, de forma aleatória e peça para elas cantarem, anote a letra ou grave, e depois compare com a sua, veja se o hino que é cantado em escolas, jogos de futebol e pronunciamentos da república é passado oralmente da mesma forma por todas as pessoas.

Então embora a tradição oral seja tão antiga quanto um povo, essa tradição pode muitas vezes mudar desde quando foi formulada e repassada a primeira vez até finalmente ser registrada.

Portanto mesmo que Moisés tenha começado a registrar os textos da Bíblia não temos como saber o quanto eles se aproximam da tradição original que os criou. Assim temos que nos ater ainda aos textos mais antigos encontrados e compará-los com os textos que temos hoje para se ter uma idéia de a quanto tempo um texto como o que temos hoje é usado.

6 – Deixando a tradição oral de lado então, quando foi que os textos que compõe a Tanakh foram escritos originalmente?

Como vimos, a Tanakh é composta por três divisões: Torá, Neviim e Kethuvim.

A tradição judaica mais antiga defende que a Torá existe desde antes da criação do mundo e foi usada como um plano mestre do Criador para construir o mundo a humanidade e principalmente o povo judeu. No entanto, a Torá como conhecemos teria sido entregue por Deus a Moisés (que como vimos teria vivido entre 1592 a.C. e 1472 a.C.), quando o povo de Israel, após sair do cativeiro no Egito, peregrinou em direção à terra de Canaã.

Então aqui, culturalmente, teríamos uma primeira data. Apesar do mundo – de acordo com a Bíblia – ter sido criado milênios antes do cativeiro – precisamente 6000 antes de Cristo, de acordo com a tradição da época – ela teria sida recebida pelos humanos através de Moisés. Então – culturalmente – até o livro do Êxodo a Tanakh não circulava por ai. Portanto a Bíblia mais antiga, ainda culturalmente falando, deveria datar do séc. XVI a.C. A ênfase no culturalmente é: de acordo com o senso comum esta seria uma data, apesar da falta de evidências físicas para provar ou desmentir essa data.

Então, existem os que defendem que , ainda que a essência da Torá tenha sido trazida por Moisés, a compilação do texto final foi executada por outras pessoas, já que os textos tratam de assuntos que incluem a morte do próprio Moisés, tornando difícil para ele escrever sobre isso.

De acordo com Jan Astruc, pioneiro na sistematização do estudo do desenvolvimento da Torá, a mesma é constituída por três fontes básicas, denominadas jeovista, eloísta e código sacerdotal, e mais algumas outras fontes além destas três. Deixando claro que, quando se fala destas fontes, ele não se refere a autores isolados mas sim a escolas literárias.

Um estudo sobre a história do antigo povo de Israel mostra que, apesar de tudo, não havia uma unidade de doutrina e desconhecia-se uma lei escrita até os dias de Josias (16º rei de Judá, reinou durante o período de 640 a.C. a 609 a.C.). As fontes jeovista e eloísta teriam sua forma plenamente desenvolvida no período dos reinos divididos entre Judá e Israel (onde surgiria também a versão conhecida como Pentateuco Samaritano). O livro de Deuteronômio só viria a surgir no reinado de Josias (621 a.C.). A Torá como conhecemos viria a ser terminada nos tempos de Esdras, onde as diversas versões seriam finalmente fundidas. Vemos então o início de práticas que eram desconhecidas da maioria dos antigos israelitas, e que só seriam aceitas como mandamentos na época do Segundo Templo (de 515 a.C. a 70 d.C.) como a Brit milá, Pessach e Sucót por exemplo.

Então datar a Tanakh se torna complicado, pois apesar de ter condições de existir desde o século XVI a.C. – a época de Moisés – culturalmente o povo Judeu só teria condições de ter o livro nas mãos da forma que temos hoje depois do século VI a.C.

7 – E quando juntaram todos esses textos em um único volume?

Aproximadamente no século VI d.C. um grupo de escribas judeus recebeu a missão de reunir os textos inspirados por Deus que eram utilizados pela comunidade hebraica em um único escrito. Este grupo foi batizado de Escola de Massorá – o termo “massorá” provém do hebraico “mesorah” (מסורה ou מסורת) e indica “tradição”.

Os “massoretas” escreveram a Bíblia de Massorá, examinando e comparando todos os manuscritos bíblicos conhecidos à época. O resultado deste trabalho ficou conhecido posteriormente como o “Texto Massorético”.

Então na nossa linha do tempo a versão original do texto do Antigo Testamento da Bíblia, a Tanakh, se conclui finalmente no século VI d.C. 2200 anos depois de Moisés, aproximadamente.

8 – E então a Tanakh virou a Bíblia? O Antigo Testamento só ficou pronto depois de Cristo, depois do Novo Testamento?

Não, nada disso. O Texto Massorético foi extremamente importante porque deu uma unidade que não existia ainda nos textos judaicos. Apesar de ter sido escrito e compilado apenas no século VI, haviam já outras versões do Antigo Testamento circulando e muitas pessoas dão a elas mais importância do que a do Texto Massorético.

As outras versões existentes antes eram o Pentateuco Samaritano, que vimos lá atrás, e a Septuaginta.

9 – Preciso perguntar?

Não, não precisa.

O Pentateuco samaritano ou Torá samaritana é o nome que se dá à Torá usada pelos judeus samaritanos.

Os Samaritanos são um pequeno grupo étnico-religioso aparentado aos judeus que habita nas cidades de Holon e Nablus situadas em Israel e na Cisjordânia respectivamente. Designam-se a si próprios como Shamerim o que significa “os observantes” (da Lei). Os samaritanos recusam o restante dos livros do Tanakh, aceitando apenas sua Torá como livro inspirado.

O Pentateuco samaritano está escrito no alfabeto Samaritano, que é diferente do hebraico e era a forma de escrita usada antes do cativeiro babilônico (cerca de 597-586 a.C). Além da linguagem diferente existem outras discrepâncias entre o Texto Massorético e a Torá Samaritana. Um exemplo é que na versão Samaritanda dos 10 mandamentos Deus comanda o povo que construa o altar no Monte Gerizim.

Agora temos que ter em mente que o Pentateuco Samaritano ficou conhecido mundialmente quando Pietro della Valle trouxe de Damasco em 1616 uma cópia do texto.

Mesmo assim essa versão do Texto Samaritano não é absoluta. Em Q’umran foram encontrados fragmentos de textos da Torá que combinam com o Texto Massorético e são diferentes do texto samaritano, como por exemplo não trazer nenhuma referência ao Monte Gerizim. Ou seja existem diferentes versões deste texto.

Já a Versão dos Setenta, ou Septuaginta Grega, é como ficou conhecida a tradução grega do Antigo Testamento, elaborada entre os séculos IV e II a.C., feita em Alexandria, no Egito. O seu nome surgiu da lenda que dizia que essa tradução foi o resultado milagroso do trabalho de 70 (em alguns casos se citam 72) eruditos judeus que pretende exprimir que não só o texto, mas também a tradução, havia sido inspirada por Deus. De acordo com a dita lenda, cada sábio foi confinado a um aposento e não poderia ter contato com nenhum dos outros, para que não influenciassem um na tradução do outro, no final todas as traduções eram idênticas – vale notar que não existe hoje registro ou evidências arqueológicas dessas 70 ou 72 traduções originais. A Septuaginta Grega é a mais antiga versão do Antigo Testamento que conhecemos. A sua grande importância provém também do fato de ter sido essa a versão da Bíblia utilizada entre os cristãos desde que surgiram e a que é citada em grande parte do Novo Testamento. Então é importante ter em mente que grande parte das menções que o Novo Testamento faz do Antigo Testamento são tiradas não do texto original, mas da tradução que fizeram do original para o grego.

Da Septuaginta Grega fazem parte, além da Bíblia Hebraica, a Tanakh, os Livros Deuterocanônicos (aceitos como canônicos apenas pela Igreja Católica) e alguns escritos apócrifos (não aceitos como inspirados por Deus por nenhuma das religiões cristãs ocidentais).

10 – E finalmente temos a Bíblia…

Ainda não.

Preste atenção que até o momento todas essas versões que vimos do Texto da Lei, dos livros dos Profetas e dos Escritos eram usadas por Judeus. Não haviam cristãos ainda no mundo, mesmo o texto massorético do século VI d.C. ainda diz respeito aos judeus, foi compilado por judeus para os judeus. E para entender o surgimento do que os cristãos chamam de Bíblia temos que entender o que era o cristianismo, e não estamos falando de Jesus.

Os Judeus sempre se dividiram em vários grupos e todos eles, em um determinado momento, esperavam a vinda do Messias para unir o povo sob a Lei de Deus e trazer consigo um período de paz. O advento do Cristianismo foi a divulgação que de esse Messias teria finalmente chegado, na figura de Jesus, e então através de Cristo o povo teria uma nova aliança com Deus.

Mas a importância histórica disso não foi a maneira como o povo enxergava Cristo – se era ou não o messias judeu – e sim a mudança que ele trouxe para a fé judaica. Os primeiros cristãos, ou seja, as primeiras pessoas que pregavam a filosofia de Cristo e que a seguiam, eram todos judeus, a briga começou quando alguns deles começaram a defender que, como a mensagem de Cristo era para todos, os gentios – não judeus – poderiam compartilhar a mesma fé, deixando de lado alguns costumes judaicos, como por exemplo a circuncisão. Veja que a circuncisão foi usada por Abrahão para mostrar que estava a serviço de Deus, desde então todo Judeu deveria ser circuncidado; imagine o que era então para muitos dos cristãos judeus, terem que aceitar que pessoas que não faziam parte da crença judaica e que não obedeciam a certos costumes judeus fossem aceitas em seu grupo, um grupo formado por judeus que seguiam o messias do judaismo.

Isso criou a necessidade de um material para divulgar a crença judaica – não havia novo testamento ainda – para os novos convertidos, que não eram judeus, para eles se familiarizarem com as leis e a vontade divina, com o seu Deus, etc. Apesar do Judaísmo não ser a religião mais antiga, até hoje muitos afirmam que ela foi a religião monoteísta mais antiga, então os novos convertidos ao judaísmo cristão tinham que conhecer essa filosofia e essa religião antes de qualquer coisa já que Jesus não pregava uma nova religião, Jesus pregava o judaísmo, com algumas mudanças.

Quando o cristianismo começou a se espalhar pelo Império Romano, ou seja, quando o judaísmo começou a crescer e a divuldar a mensagem de que o Messias havia chegado e trazido com ele novas Leis de Deus, surgiu um novo público para a fé, não apenas os gentios que viviam na região do oriente médio, mas também os romanos, e assim nasceu uma nova necessidade de se traduzir os escritos sagrados para os cristãos que não liam nem grego nem hebraico.

Essa tradução surgiu no século I e foram realizadas por tradutores informais. Ficou conhecida como a Vetus Latina. Podemos dizer que ela foi a primeira versão da Tanakh para cristãos e mesmo assim não era carregada debaixo do braço para cima e para baixo; era usada como forma de catequese, para se criar uma base comum para todos: “se querem se beneficiar da salvação e das boas novas trazidas pelo Messias, estes textos são o mínimo que vocês tem que conhecer!” foi nesta época que a Tanakh começou a ser compartilhada com não judeus e deixou de ser um texto exclusivo da religião judaica. Um ponto importante para se ter em mente aqui é grande parte dos novos convertidos eram analfabetos, os textos eram lidos para eles, que absorviam a mensagem e tentavam viver de acordo com ela, em encontros grupais a mensagem era repetida e dúvidas tiradas. Ninguém levava para casa a cópia de um texto para ficar lendo.

11 – Então a primeira Bíblia Cristã surgiu no século I?

Não da forma como temos a Bíblia hoje. A Vetus Latina não era uma bíblia ainda. Como dissemos ela foi feita por tradutores informais, isso significa que pedaços dos textos antigos, tanto os judaicos quanto os gregos eram traduzidos de acordo com a necessidade. Assim ela não era uma Bíblia Latina. Ela era mais uma gambiarra para poder mostrar ao povo que não estava familiarizado com os textos Judeus a religião e então ter um texto que eles pudessem compreender e usar como base quando se convertessem. E mesmo assim suas primeiras versões não traziam os textos conhecidos como o Novo Testamento. Eles só surgiram nos séculos seguintes. E ainda não era um livro fechado, eram traduções avulsas de pedaços separados da Tanakh, muitas vezes nem eram os livros inteiros, mas os fragmentos que pareciam ser importantes, que foram sendo distribuídos e usados e só com o tempo foi crescendo e recebendo os livros que temos hoje do Novo Testamento.

Os textos da Vetus Latina chegaram até nós através de vários códices.

Os códices (ou codex, da palavra em latim que significa “livro”, “bloco de madeira”) eram os manuscritos gravados em madeira, em geral do período da era antiga tardia até a Idade Média. Manuscritos do Novo Mundo foram escritos por volta do século XVI.

O códice é um avanço do rolo de pergaminho e gradativamente substituiu este último como suporte da escrita. O códice, por sua vez, foi substituído pelo livro impresso.

Os códices mais conhecidos da Vetus Latina são:

Códice Bobienus (K) – séc. IV. É um manuscrito africano em Unçais. Contém fragmentos dos Evangelhos de Marcos e Mateus;

Códice Vercellensis (a) – Séc. IV. Texto em Unçais. Contém todos os quatro Evangelhos;

Códice Bezae (q) – Séc. V. É um manuscrito bilingüe, com o Grego no verso e o Latim na frente. Contém os quatro Evangelhos, Atos e 3 João;

Códice Monacensis 13 (q) – Séc. VI-VII. Texto em Unçais. Contém os quatro Evangelhos;

Palimpsest 53 (s) – Séc. VI. Conhecido também como Bobiensis ou Vindobonensis. Texto em meio unçal. Contém fragmentos dos Atos e as 14 Cartas Católicas.

Os textos da Vetus Latina organizados como um único livro foram encontrados em manuscritos tardios, datados do séc. XIII. Muitas das versões nem chegaram a ser  consideradas autorizadas como traduções bíblicas que poderiam ser usadas por toda igreja – veja que nesta época já havia uma igreja cristã regulamentando que textos podiam e não podiam ser usados. A estas traduções precedentes, muitos estudiosos adicionam freqüentemente citações das passagens bíblicas que aparecem nos escritos dos Pais da igreja Latina.

Mas para se ter uma idéia da bagunça que era, mesmo com a boa vontade dos primeiros tradutores era inevitável que diferentes traduções acabassem ficando diferentes entre si. Depois de comparar a leitura de Lucas 24,4-5 nos manuscritos da Vetus Latina, Bruce Metzger contou “não menos que 27 variações!”. Agora imaginem os pais da igreja com esses textos uns diferentes dos outros pregando o cristianismo sem uma base ainda para qual era a versão correta do texto.

Os livros bíblicos reunidos no conjunto de manuscritos disponíveis da Vetus Latina são:

VETUS TESTAMENTUM
Genesis
Exodus
Leviticus
Numeri
Deuteronomium
Josue
Judicum (Juízes)
Ruth
1-4 Regum (1 e 2 Reis (1 e 2 Samuel) e 3 e 4 Reis (1 e 2 Reis))
1-2 Paralipomenon (Paralipômenos ou Crônicas)
Esdras
Nehemias
3-4 Esdras
Tobit
Judith
Hester
Job
Psalmi (Salmos)
Proverbia
Ecclesiastes
Canticum Canticorum
Sapientia (Sabedoria de Salomão)
Sirach, Ecclesiasticus (Sabedoria de Sirac ou Eclesiástico).
Esaias (Isaías)
Jeremias (Lamentationes, Baruch)
Daniel
XII Prophetae (Doze Profetas)
I-II Macchabaeorum (1 e 2 Macabeus).

NOVUM TESTAMENTUM
Matthaeus
Marcus
Lucas
Johannes
Actus Apostolorum
Ad Romanos
Ad Corinthios I
Ad Corinthios II
Galatas
Ad Ephesios
Ad Philippenses
Colossenses
Ad Thessalonicenses
Timotheum
Ad Titum
Philemonem
Hebraeos
Epistulae Catholicae (1 e 2 Pedro; 1, 2 e 3 João; Tiago e Judas)
Apocalypsis Johannes

Mas esses livros foram surgindo com o tempo assim no século I a maioria destes textos ainda não existia e eles ainda não estavam juntos em um único livros. Muitas comunidades usavam apenas alguns deles. Se você pegar uma bíblia moderna vai ver que alguns desses textos antigos nem constam mais hoje como livros canônicos.

12 – E a Bíblia que existe hoje veio da Vetus Latina?

Não.

Como vimos, o texto “definitivo” – entre aspas porque ainda não é aceito por todo como unânime – do judaísmo, surgiu no século VI d.C., a versão destinada para cristãos ainda levou mais algum tempo para surgir.

No século IV d.C. Dâmaso (hoje conhecido como São Dâmaso ou ainda como Papa Dâmaso I) pediu que Jerônimo (conhecido como São Jerônimo, o padroeiro dos bibliotecários e das secretárias), criasse uma versão autorizada da Bíblia na língua latina. A idéia era parar com a enormidade de textos avulsos que surgiam, traduzidos por pessoas diferentes conforme a necessidade individual e criassem um texto padrão, que pudesse ser usado por todos, e assim eles saberiam que um cristão da África havia recebido exatamente a mesma doutrina de um cristão da Espanha, por exemplo, acabando assim com variações de um mesmo texto.

Jerônimo então reviu a Septuaginta grega e os textos da Vetus Latina e decidiu que a melhor coisa a fazer era jogar tudo for a e começar a criar o texto oficial da Bíblia Cristã a partir do zero. Este trabalho ele batiza de Vulgata. O nome vem da frase “versio vulgata”, isto é “versão dos vulgares”, e foi escrito em um latim cotidiano, que era a forma antiga de se dizer: “escrito em um latim atual e popular”.

Até então a igreja[2] usava textos na língua grega, foi inclusive nesta língua que se escreveu todo o Novo Testamento, incluindo a Carta aos Romanos, de Paulo, bem como muitos escritos cristãos nos séculos seguintes.

A Vulgata foi produzida para ser mais exata e mais fácil de compreender do que suas predecessoras. Foi a primeira, e por séculos a única, versão da Bíblia que possuiu os textos do Velho Testamento traduzidos diretamente do hebraico e não da versão grega (a Septuaginta). No Novo Testamento, Jerônimo selecionou e revisou textos. Ele inicialmente não considerou canônicos os sete livros, chamados por católicos e ortodoxos, de deuterocanônicos. Porém, trabalhos posteriores mostram sua mudança de conceito, pelo menos a respeito dos livros de Judite, Sabedoria de Salomão e o Eclesiástico (ou Sabedoria de Sirac), conforme atestamos em suas últimas cartas a Rufino.

13 – Perai, Jerônimo não considerou como canônico alguns livros? Mas quem decidia o que era canônico ou não? E o que é canônico?

Vamos começar de trás para frente.

Um cânone ou cânon normalmente se caracteriza como um conjunto de regras (ou, frequentemente, como um conjunto de modelos) sobre um determinado assunto, em geral ligado ao mundo das artes e da arquitetura. A canonização é a sistematização deste conjunto de modelos. Cânone, em hebraico é qenéh e no grego kanóni, têm o significado de “régua” ou “cana (de medir)”, no sentido de um catálogo.

O Cânone Bíblico designa o inventário ou lista de escritos ou livros considerados pelas religiões cristãs como tendo evidências de Inspiração Divina.

Quanto a quem decidia se um livro era canônico ou não é uma história interessante. Vamos responder juntamente com as próximas questões.

14 – Bom, então com a criação da Vulgata nós temos uma Bíblia, ou ainda não?

Glória aos Céus! Agora sim.

A Vulgata se tornou a primeira versão fechada da Bíblia, com todos os textos que temos hoje. Mesmo assim ela ainda passou por alguns ajustes que levaram mais alguns séculos. Finalmente entre os anos de 1545 e 1563 a igreja católica realizou seu 19º concílio ecumênico, também conhecido como o Concílio de Trento. Ele foi convocado pelo Papa Paulo III para assegurar a unidade da fé (sagrada escritura histórica) e a disciplina eclesiástica. O concílio tem este nome em referência à cidade de Trento, onde transcorreu, e nele foi estabelecido um texto único para a Vulgata, a partir de vários manuscritos existentes, e oficializado como a Bíblia oficial da Igreja. Esta Bíblia ficou conhecida como Vulgata Clementina.

Após o Concílio Vaticano II, por determinação de Paulo VI, foi realizada uma revisão da Vulgata, sobretudo para uso litúrgico. Esta revisão, terminada em 1975, e promulgada pelo Papa João Paulo II em 25 de abril de 1979, é denominada Nova Vulgata, estabelecendo esta como a nova Bíblia oficial da Igreja Católica.

15 – Mas a Bíblia só passou a existir desta forma no século XVI, ou no século XX?

Não extamente. Existem alguns fatos que devem ser levados em consideração quando falamos de o texto final e definitivo da Bíblia. Existe um processo por trás que durou séculos e que está em andamento até hoje.

Por exemplo, se levarmos em conta os textos sagrados em si, a Bíblia levou 1600 anos para ser escrita. Já que teoricamente ela começou a ser registrada na época de Moisés (cerca de 1500 a.C.) e terminou com o evangelho de João (cerca de 96 d.C.). Essa é a datação cultural dos textos.

Mesmo assim na época do evangelho de João, no final do século I d.C.,  não havia unidade nos textos. Para se ter idéia, os textos só passaram a ser conhecidos como Bíblia com Jerônimo (cerca de 347d.C. – 419/420 d.C.), que chamou pela primeira vez ao conjunto dos livros do Antigo Testamento e Novo Testamento de “Biblioteca Divina”. “Bíblia”, inclusive, é uma palavra que não aparece na Bíblia. Ela vem do termo grego biblos, por causa da cidade fenícia de Biblos, um importante centro produtor de rolos de papiro usados para fazer livros. Com o tempo, a palavra biblos passou a significar “livro”. Biblia é a forma plural (“livros”).

Então a primeira Bíblia oficial foi organizada, compilada e preparada pela igreja católica nos séculos IV e V d.C. como já vimos.

Mas antes de Jerônimo por a mão na massa tiveram que decidir quais dos textos existentes fariam parte da Bíblia, afinal além dos textos que temos hoje haviam dezenas, mesmo centenas de outros que circulavam na época.

E agora voltamos à pergunta 13: quem decidia que livros fariam parte da Bíblia?

Sempre houve uma preocupação muito grande de se ter as informações corretas sobre Deus e sobre as maneiras corretas de seguir suas leis e mandamentos, de honrá-lo e adorá-lo. Como dissemos lá na introdução, a Bíblia nasceu de uma necessidade dos povos de se manterem fiéis à fé, não como livro de regras a ser instituído a todos os povos. No início queriam apenas juntar os textos que julgavam pertinentes e sinceros em relação à fé. Assim durante a história muitos estudiosos, religiosos se reuniram e estudaram para analisar que textos eram de fato textos enviados por Deus ou eram textos sérios e quais seriam invenções ou simplesmente opiniões de outros religiosos e escritores.

Hoje muitas pessoas acreditam que o primeiro trabalho sério de se decidir quais seriam os textos aceitos pelos cristãos e que fariam parte da Bíblia foi o Concilio de Nicéia, realizado em 325 d.C., vinte e dois anos antes de Jerônimos começar seu trabalho. Embora algumas obras afirmem que no Concílio de Nicéia discutiu-se quais evangelhos fariam parte da Bíblia, quando pegamos os documentos que existem hoje sobre esta reunião não há menção de que esse assunto estivesse em pauta, nem nas informações dos historiadores do Concílio, nem nas Atas do Concílio que chegaram a nós em três fragmentos: o Símbolo dos apóstolos, os cânones, e o decreto senoidal.

No ano de 150 d.C. Marcião, um cristão muito influente na época, propôs uma lista dos livros que deveriam fazer parte do conjunto de livros religiosos do cristianismo. Nesta lista ele considerou apenas o Evangelho de Lucas e as cartas paulinas como textos inspirados. Essa lista ficou conhecida como o Cânone de Marcião.

No ano de 1740 foi publicado o Cânone Muratori – também conhecido por fragmento muratoriano ou fragmento de Muratori – descoberto na Biblioteca Ambrosiana de Milão por Ludovico Antonio Muratori (1672 – 1750). Apesar de ser consensual datar o manuscrito como sendo do século VII, ele é cópia de um texto mais antigo, datado como tendo sido escrito por volta do ano 170, já que nele existem menções ao Pastor de Hermas e ao papado de Pio I, morto em 157.

Na lista figuram os nomes dos livros que o autor, desconhecido até os dias de hoje, considerava admissíveis junto com alguns comentários. A lista está escrita em latim e encontra-se incompleta, daí ser chamada de fragmento.

Os livros canônicos mencionados no Cânone Muratori são aproximadamente os mesmos que se encontram hoje na Bíblia com algumas variações. O Cânone de Muraori aceita quatro evangelhos, dos quais dois são o Evangelho de Lucas e o Evangelho de João, não se conhecendo os outros dois, pois falta o princípio do manuscrito, onde estariam os nomes dos dois primeiros. A lista segue com os Atos dos Apóstolos e com 13 epístolas de Paulo de Tarso (não menciona a Epístola aos Hebreus). O autor considera falsificações as epístolas supostamente escritas por Paulo aos laodiceanos e a escrita aos alexandrinos. Nele só se mencionam duas epístolas de João, sem as descrever. Figura também no fragmento o Apocalipse de Pedro, ainda que com certas reservas (“o qual alguns dos nossos não permitem que seja lido na Igreja”).

O Livro da Sabedoria do Antigo Testamento também é citado como sendo canônico.

No Cânone de Muratori está escrito:

“…aos quais esteve presente e assim o fez. O terceiro livro do Evangelho é o de Lucas. Este Lucas ‘médico que depois da ascensão de Cristo foi levado por Paulo em suas viagens’ escreveu sob seu nome as coisas que ouviu, uma vez que não chegou a conhecer o Senhor pessoalmente, e assim, a medida que tomava conhecimento, começou sua narrativa a partir do nascimento de João. O quarto Evangelho é o de João, um dos discípulos.

Questionado por seus condiscípulos e bispos, disse: ‘Andai comigo durante três dias a partir de hoje e que cada um de nós conte aos demais aquilo que lhe for revelado’. Naquela mesma noite foi revelado a André, um dos apóstolos, que, de conformidade com todos, João escrevera em seu nome.

Assim, ainda que pareça que ensinem coisas distintas nestes distintos Evangelhos, a fé dos fiéis não difere, já que o mesmo Espírito inspira para que todos se contentem sobre o nascimento, paixão e ressurreição [de Cristo], assim como sua permanência com os discípulos e sobre suas duas vindas ´ depreciada e humilde na primeira (que já ocorreu) e gloriosa, com magnífico poder, na segunda (que ainda ocorrerá).

Portanto, o que há de estranho que João freqüentemente afirme cada coisa em suas epístolas dizendo: ‘O que vimos com nossos olhos e ouvimos com nossos ouvidos e nossas mãos tocaram, isto o escrevemos’? Com isso, professa ser testemunha, não apenas do que viu e ouviu, mas também escritor de todas as maravilhas do Senhor.

Os Atos foram escritos em um só livro. Lucas narra ao bom Teófilo aquilo que se sucedeu em sua presença, ainda que fale bem por alto da paixão de Pedro e da viagem que Paulo realizou de Roma até a Espanha.

Quanto às epístolas de Paulo, por causa do lugar ou pela ocasião em que foram escritas elas mesmas o dizem àqueles que querem entender: em primeiro lugar, a dos Coríntios, proibindo a heresia do cisma; depois, a dos Gálatas, que trata da circuncisão; aos Romanos escreveu mais extensamente, demonstrando que as Escrituras têm como princípio o próprio Cristo.

Não precisamos discutir sobre cada uma delas, já que o mesmo bem – aventurado apóstolo Paulo escreveu somente a sete igrejas, como fizera o seu predecessor João, nesta ordem: a primeira, aos Coríntios; a segunda, aos Efésios; a terceira, aos Filipenses; a quarta, aos Colossenses; a quinta, aos Gálatas; a sexta, aos Tessalonicenses; e a sétima, aos Romanos.

E, ainda que escreva duas vezes aos Coríntios e aos Tessalonicenses, para sua correção, reconhece – se que existe apenas uma Igreja difundida por toda a terra, pois da mesma forma João, no Apocalipse, ainda que escreva a sete igrejas, está falando para todas. Além disso, são tidas como sagradas uma [epístola] a Filemon, uma a Tito e duas a Timóteo; ainda que sejam filhas de um afeto e amor pessoal, servem à honra da Igreja Católica e à ordenação da disciplina eclesiástica. Correm também uma carta aos Laodicenses e outra aos Alexandrinos, atribuídas [falsamente] a Paulo, mas que servem para favorecer a heresia de Marcião, e muitos outros escritos que não podem ser recebidos pela Igreja Católica porque não convém misturar o fel com o mel.

Entre os escritos católicos, se contam uma epístola de Judas e duas do referido João, além da Sabedoria escrita por amigos de Salomão em honra do mesmo. Quanto aos apocalipses, recebemos dois: o de João e o de Pedro; mas, quanto a este último, alguns dos nossos não querem que seja lido na Igreja. Recentemente, em nossos dias, Hermas escreveu em Roma ‘O Pastor’, sendo que o seu irmão, Pio, ocupa a cátedra de Bispo da Igreja de Roma.

É, então, conveniente que seja lido, ainda que não publicamente ao povo da Igreja, nem aos Profetas ´ cujo número já está completo , nem aos Apóstolos ´ por ter terminado o seu tempo. De Arsênio, Valentino e Melcíades não recebemos absolutamente nada; estes também escreveram um novo livro de Salmos para Marcião, juntamente com Basíledes da Ásia…”

Então já na época haviam dúvidas a que textos eram de fato inspirados pelo Espírito de Deus e quais eram criações – sinceras ou não – de homens.

E como faziam para decidir?

Até hoje existem pessoas que tem um certo recentimento desses primeiros cristãos, que dizem que uma pessoa não teria como decidir que texto seria inspirado por Deus, diretamente ou via Espirito Santo, ainda mais porque os textos já existiam e estavam circulando, não haveria um modo seguro de se saber se o autor estava cumprindo a Vontade Deus ou simplesmente escrevendo o que achava ser correto. E assim se cria uma visão de que o caso foi resolvido através de puro dogmatismo e abuso de autoridade.

Existem estudiosos que citam Irineu (205 d.C.) afirmando que:

“O evangelho é a coluna da igreja, a igreja está espalhada por todo o mundo, o mundo tem quatro regiões, e convém, portanto, que haja também quatro Evangelhos… O Evangelho é o sopro do vento divino da vida para os homens, e pois, como há quatro ventos cardiais, daí a necessidade de quatro Evangelhos… O Verbo criador do Universo reina e brilha sobre os querubins, os querubins têm quatro formas, e eis porque o Verbo nos obsequiou com quatro Evangelhos.”

Ainda existem outras lendas e histórias de como se escolheram os textos como conta a obra Libelus Synddicus, de um autor anônimo: “estando os bispos em oração, os Evangelhos inspirados foram por si colocar-se em um altar…”

Outras lendas contam como todos os textos existentes foram colocados sobre um altar e aqueles que não eram inspirados caíram ou como uma pomba atravessou o vitral da igreja, durante o concilio de Nicéia e pousou no ombro de cada bispo e cochichou ao seu ouvido quais eram os livros inspirados.

Bem, como vimos o Concilio de Nicéia tem uma fama enorme em relação à escolha de que livros eram ou não inspirados, mas não existe um registro do evento que fale sobre o assunto, e já haviam listas, como o cânone Muratori onde os livros já eram escolhidos.

Isso sem contar que muitas destas afirmações mostram um certo descontentamento com a Instituição da Igreja Católica mas deixa de lado um pequeno detalhe: os livros sagrados judaicos da Bíblia, o Antigo Testamento, também foram criados a partir de livros aceitos e não aceitos, eles também foram peneirados. O mesmo trabalho de catalogação de um cânone oficial foi realizado pelos judeus, então este processo de identificar quais livros eram sagrados para fazer parte ou não da Bíblia não foi um trabalho unicamente cristão.

Em relação à Bíblia sabemos hoje que o bispo de Alexandria Anastásio, no ano de 367, propôs uma lista de livros inspirados. Essa lista foi posteriormente defendida no Concilio de Hipona, em 398, e a lista de Anastásio acabou sendo aprovada pelos bispos. Isso 50 anos depois de Jerônimo ter começado seu trabalho de criar a Vulgata.

E para se criar o concenso de que livros seriam aceitos foram criados uma série de critérios que deveriam ser observados, não apenas em ralação a textos cristãos mas a textos judaicos também. Nesta época a igreja já começava a se organizar e mesmo havendo vários grupos que possuíam textos próprios a idéia era começar a criar um corpo oficial de textos, literalmente um cânon. Assim os critérios adotados foram:

a) O livro deveria conferir identidade religiosa ao povo judeu e cristão.
b) O livro não poderia ser escrito em grego – isso em relação aos livros do Antigo Testamento.
c) Ainda em relação ao Antigo Testamento, o livro deveria ter sido escrito durante a época que vai de Moisés a Esdras.
d) Deveria ter sido catalogado na lista de Flávio Josefo, o historiador judeu.
e) O livro não deveria “manchar a mão”.

E finalmente dois critérios que refletiam muito bem o período histórico onde já haviam sinais do surgimento da igreja:

f) O livro não poderia ter origem em grupos de oposição ao pensamento dominante.
g) Deveria ser usado por muitas comunidades. Quanto maior fosse a aceitação de um livro, maior era a indicação que era um livro inspirado.

Se um texto passasse por esse crivo ele finalmente deveria ser reconhecido como

h) inspirado pelo Espírito Santo.

Assim para um texto passar pelo crivo religioso e ser aceito ele deveria primar pela consciência de que o povo judeu era o povo eleito, mantendo vivo essa fé como símbolo da indentidade nacional, também deveria professar a fé em Jesus crucificado, morto e principalmente ressuscitado. Se o texto fazia parte do Antigo Testamento deveria ter sido escrito originalmente em hebraico (com pequenas excessões onde o original se apresentava em aramaico) e deveria ter sido compilado até o século V a.C. na época de Esdras. Ele teria que ter estado presente nos escritos de Flávio Josefo e não poderia ter origem em grupos considerados subversivos. Por exemplo no Antigo Testamento temos o caso dos dois livros dos Macabeus, que era um dos grupos de judeus que lutava contra o império romano e desejava reestabelecer o judaísmo, eles eram inimigos dos Fariseus, que eram aqueles judeus que formavam o grupo religioso judaico que conduzia a religião judaica e que foi responsável pela criação do cânone judaico de Jâmnia. Assim os textos sobre os Macabeus não foram considerados inspirados pelos Judeus. Já no Novo Testamento os textos de origens gnósticas, que iam contra os grupos cristãos que estavam se tornando dominantes, foram descartados como fraudes. Deveria ser considerado um Best-Seller da época e aprovado por aquelas que eram consideradas as pessoas mais religiosas e ligadas a Deus.

Uma curiosidade sobre o critério e) é que nunca ficou muito claro o que os judeus queriam dizer com “manchar as mãos”. Se acreditavam que um livro impuro fosse uma aberração tão grande que mancharia aquele que o tocasse ou se havia o costume de algumas pessoas alterarem textos antigos escrevendo passagens novas e a tinta fresca seria a responsável pela mácula na mão daquele que o lesse.

Assim com o tempo os livros foram sendo aceitos e descartados da compilação final que existe hoje.

Além disso a Bíblia sempre foi apresentada como um longo texto corrido, ela foi dividida em capítulos apenas no século XIII d.C. (entre 1234 e 1242), pelo teólogo Stephen Langhton, então Bispo de Canterbury, na Inglaterra, e professor da Universidade de Paris, na França. Foi apenas nos séculos IX e X d.C. que estudiosos Judeus dividiram o Antigo Testamento em versículos. O Novo Testamento recebeu a divisão em versículos no ano de 1551, o responsável foi  um impressor francês chamado Robert d´Etiénne.

Até boa parte do século XVI, as Bíblias eram publicadas somente com os capítulos. Foi assim, por exemplo, com a Bíblia que Lutero traduziu para o Alemão, por volta de 1530. A primeira Bíblia a ser publicada incluindo integralmente a divisão de capítulos e versículos foi a Bíblia de Genebra, lançada em 1560, na Suíça.

E mesmo assim nem todas as Bíblias traziam os mesmos textos.

16 – Como assim? Com todo esse trabalho de escolher textos que eram ou não inspirados existiam Bíblias diferentes?

Sim.

Apesar da antiguidade dos livros bíblicos, os manuscritos mais antigos que possuímos datam a maior parte dos séculos III e IV d.C.. Tais manuscritos são o resultado do trabalho de copistas (escribas) que, durante séculos, foram fazendo cópias dos textos, de modo a serem transmitidos às gerações seguintes. Por causa desse processo manual e artesanal o texto bíblico, obviamente, está sujeito a erros e modificações, involuntários ou voluntários, dos copistas. E isso acaba se traduzindo na coexistência, para um mesmo trecho bíblico, de várias versões que, embora não afetem grandemente o conteúdo, suscitam diversas leituras e interpretações dum mesmo texto.

Por causa disso criou-se o que ficou conhecido como Crítica Textual, que é o trabalho desenvolvido por especialistas que se dedicam a comparar as diversas versões e a selecioná-las. O resultado deste trabalho são os Textos-Padrão.

Ou seja, existe um esforço para se descobrir quais as formas originais dos textos que temos hoje, e quais deles estariam mais próximos da forma como foram concebidos originalmente.

A grande fonte hebraica para o Antigo Testamento é o Texto Massorético, que como já vimos, foi fechada no século VI d.C.

Esses processos de cópia e produções de Bíblias combinados com as várias igrejas que se formaram depois do surgimento do cristianismo serviram para que várias versões da Bíblia sobrevivessem até os dias de hoje, cada uma com características próprias.

17 – Mas com o estabelecimento do cristianismo não houve um consenso sobre que textos fariam parte da Bíblia e que versões de cada texto era aceita?

Infelizmente não.

E para isso vamos voltar ao conceito de Cânone Bíblico e um pouco antes para o conceito de “cânone” judaico.

Segundo a literatura judaica Esdras, na qualidade de escriba e sacerdote, presidiu um conselho formado por 120 membros chamado Grande Sinagoga, que teria selecionado e preservado os rolos sagrados. Alguns acreditam que foi ai que o Cânone das Escrituras do Antigo Testamento foi fixado (Esdras 7:10,14). Entretanto esta tese é desacreditada pela crítica moderna. Os estudiosos concordam que foi essa mesma entidade que reorganizou a vida religiosa nacional dos repatriados e, mais tarde, deu origem ao Supremo Tribunal Judaico, denominado Sinédrio.

Curiosamente os Saduceus e os Samaritanos só aceitavam como canônicos os cinco livros de Moisés. Por esta razão, os especialistas especulam que Esdras tenha reunido apenas o Pentateuco, isto é, os cinco livros de Moisés.

O prólogo da versão grega do Eclesiástico, datado em 130 a.C. parece já confirmar a suspeita dos estudiosos modernos. Com efeito nele lemos: “Pela Lei, pelos Profetas e por outros escritores que os sucederam, recebemos inúmeros ensinamentos importantes (…) Foi assim que após entregar-se particularmente ao estudo atento da Lei, dos Profetas e dos outros Escritos, transmitidos por nossos antepassados […]”.

Nota-se que o cânon indicado neste escrito considera canônicos livros posteriores ao tempo dos profetas.

O Cânone Hebraico de 39 livros, só foi realmente fixado no Concílio de Jâmnia – criado para procurar um rumo para o judaísmo, após a destruição do Templo de Jerusalém, no ano 70 d.C – em 90 d.C.. Mesmo assim estudiosos como Leonard Rost garantem que tais decisões demoraram muito para serem aceitas e até hoje não tiveram aceitação em algumas comunidades judaicas como é o caso dos judeus do Egito.

Neste concílio os participantes decidiram considerar como textos canônicos do judaísmo apenas os que existiam em língua hebraica e que remontassem ao tempo do profeta Esdras, rejeitando todos os outros livros e demais escritos, considerando-os como apócrifos, ou seja, não tendo evidências de inspiração por Deus e fonte de fé. Houve muitos debates acerca da aprovação de certos livros, como Ester e Cântico dos Cânticos, conforme registro da Mishiná.

Apesar da crítica moderna afirmar que vários livros que constam no Cânon Hebraico são posteriores ao tempo de Esdras (como é o caso do Livro de Daniel), os estudiosos explicam que os Fariseus não dispunham do método científico que existe hoje para se datar uma obra, ou mesmo para se atribuir a ela um autor. De qualquer forma, os critérios por eles adotados excluíram os livros deuterocanônicos do Cânon Hebraico.

Para não confundir: o Concilio de Jâmnia (ano 90 d.C.) decidiu quais os livros que fariam parte do cânon. Os Massoretas, século VI, decidiram qual a forma correta dos textos que haviam sido selecionados.

Já do lado dos cristãos, temos que ter em mente que no início não havia uma igreja organizada como hoje e desde o tempo de Jesus, entre seus discípulos, sempre existiram controvérsias doutrinárias e disciplinares, como se vê em At 15, 1-5. Havia grupos em Roma, no Oriente e norte da África que, sob influência helenística, zoroastrista e de convicções pessoais, queriam adaptar a doutrina de Jesus às suas idéias. Tais foram os grupos dissidentes ou heréticos fundados por Donato, a gnose de Marcião (o “Primogênito de Satanás”), Montanus, Nestório, Paulo de Samósata e Valentinus entre outros. Os escritos de Tertuliano contra os heréticos e o “Contra as heresias” de Ireneu foram respostas às heresias. O Concílio de Nicéia foi convocado pelo imperador Constantino devido a disputas em torno da natureza de Jesus “não criado, consubstancial ao Pai”. Na Santíssima Trindade, as três pessoas têm a mesma natureza, ou seja, a divina.

Então apesar do Antigo Testamento já ter uma aceitação mais ou menos geral de que textos eram inspirados e quais não eram, o Novo Testamento ainda não possuía unidade. Mesmo com tentativas como a do Cânone Muratori, 170 d.C., o Novo Testamento ainda era um Deus nos Acuda, já que as pessoas ainda não tinham nem muita certeza sobre o que era o Cristianismo.

A partir de 325, algumas verdades do Cristianismo foram estabelecidas como dogma através de cânones promulgados por vários concílios, como o de Nicéia.

Desde Jesus Cristo (Jo 17,21) passando por todos os apóstolos, especialmente Paulo, existe um impulso para estabelecer unidade no cristianismo. A primeira forma de demonstração desse impulso foi a manutenção da unidade em torno de Pedro. Se há um só Deus, que se revelou em Jesus Cristo, que fundou Sua única Igreja (Mt 16,18) e se Jesus Cristo mesmo diz que Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida, não podem existir outras verdades verdadeiras. Uma das linhas que foi condenada como heresia eram as que divergiam da afirmação de que Cristo era totalmente divino e totalmente humano e que as três pessoas da Trindade são iguais e eternas. Este dogma (Um só Deus em Três Pessoas = Três pessoas e uma só natureza divina assim como existem bilhões de pessoas e uma só natureza humana) só foi estabelecido depois que Ário, um celebrado professor do cristianismo – e também mártir – o desafiou.

E assim, muitos textos que poderiam fazer parte da Bíblia foram banidos, por serem considerados heréticos.

Assim não apenas os textos finais foram escolhidos, mas também a forma que o cristianismo dominante teria também. Escolhendo-se textos que mostrassem certos aspectos de jesus e descartassem outros.

E ai voltamos ao cíclo vicioso da falta de gráficas, porque uma vez definidos os textos que fariam parte da Bíblia Cristã, eles estavam sujeitos à manipulação por parte dos copistas (seja essa manipulação causada por erro sincero ou pela maldade no coração do homem).

E como vimos, mesmo com a tentativa de Jerônimo de criar um texto único, muitos textos e livros ainda não haviam sido aprovados mesmo cinco décadas depois que ele começou o trabalho. Assim haviam algumas variantes dos mesmos textos.

Haviam também grupos que não estando ligados à igreja continuavam a usar textos próprios ou versões próprias de textos existentes, assim quando era o momento de se apontar que versão era a original não haviam uma base para se ter certeza.

18 – Então além do Antigos Testamento, e dos livros do Novo Testamento, haviam outros livros e textos religiosos circulando por ai?

Sim, tecnicamente esses livros receberam dois nomes: Deuterocanônicos e Apócrifos.

O termo “deuterocanônico” é formado pela raiz grega deutero (segundo) e canônico (que faz parte do Cânon, isto é do conjunto de livros considerados inspirados e normativos por uma religião ou igreja). Assim, o termo é aplicado a livros e partes de livros bíblicos que só num segundo tempo foram considerados como canônicos.

O adjetivo “deuterocanônico” é originalmente aplicado a estes textos pelos cristãos, que depois de um tempo passaram a encará-los como inspirados e fazendo parte integrante da Bíblia.

O fato de muitas pessoas, cristãs ou não, não os considerarem inspirados, eles ainda são obras muito importantes tanto para a fé cristã quanto para historiadores. Hoje eles são considerados patrimônios históricos da fé, pois refletem e fizeram parte das crenças cristãs ao longo da história.

São deuterocanônicos os seguintes livros bíblicos:

– Tobias
– Judite
– I Macabeus e II Macabeus
– Sabedoria
– Eclesiástico (também chamado Sirácide ou Ben Sirá )
– Baruc

Fora os livros deuterocanônicos podemos também encontrar fragmentos deuterocanônicas dentro de livros canônicos como:

– adições em Ester.
– adições em Daniel – especificamente os episódios da Casta Susana e de Bel e o dragão.

Estes livros eram já conhecidos pelos cristãos, que os citavam e utilizavam. Os estudiosos encontraram citações destes livros nas obras de Ireneu, Justino, Agostinho, Jerônimo, Basílio Magno, Ambrósio e muitos outros. E ainda haviam aqueles que julgavam esses textos como sendo somente eclesiásticos, isto é, não eram canônicos porém também não eram contrários à Fé. Foi o caso de Melitão, Rufino, Atanásio e outros. Como podemos ver o assunto não era pacífico, e houve bastante discórdia sobre o tema.

Jerônimo inicialmente negou a canonicidade dos deuterocanônicos. Porém, os estudiosos encontraram uma mudança posterior de sua opinião em suas cartas escritas a Rufino e a Paulino, Bispo de Nola.

Mas no fim das contas esta discórdia parece ter sido resolvida ou então não influenciou o parecer comum da igreja antiga.

Nenhum Concílio da igreja primitiva recusou a canonicidade destes livros, muito pelo contrário. Foram declarados canônicos nos Concílios regionais de Roma (382 d.C, dando origem ao Cânon Damaseno), Hipona I (cânon 36, 393 d.C), Cartago III (cânon 47, 397 d.C), IV (cânon 24, 417 d.C), Trullo (cânon 2, 692).

Um documento conhecido como Decreto Gelasiano (496 d.C) também confirma a canonicidade dos deuterocanônicos.

Mas isso não significa que todos os cristãos, fossem apenas seguidores da fé ou os sacerdotes de comunidades, aceitassem isso. Com a formação de uma igreja se destacando de outros grupos menores essa aceitação acontecia entre os cristãos católicos apostólicos romanos.

A aceitação comum dos deuterocanônicos como livros sagrados fica ainda mais clara ao encontrarmos os textos presentes nas primeiras versões Bíblicas, como a Vetus Latina e a Vulgata. Na época, no Oriente, a Septuaginta foi adotada como a versão oficial do Antigo Testamento.

Os livros deuterocanônicos foram escritos entre Malaquias e Mateus, ou seja, numa época em que segundo o historiador judeu Flávio Josefo, cessara por completo a revelação divina. Entretanto segundo os Evangelhos a revelação do Antigo Testamento durou até João Batista (cf. Mt 11,12-13 e Lc 16,16). Essa já começava a se mostrar a futura divisão que aconteceria entre o judaismo e o recém criado cristianismo.

Os textos deuterocanônicos chegaram até nós apenas em grego (alguns escritos originalmente nessa língua, outros traduzidos duma versão hebraica, que se perdeu), fazendo parte da Septuaginta. Tais textos não se encontram na Tanakh.

É importante dizer que também no Novo Testamento existem livros deuterocanônicos. São eles:

– Tiago
– Hebreus
– Apocalipse
– 2 Pedro
– 2 e 3 João.

Assim como os livros deuterocanônicos do Antigo Testamento, estes também tiveram sua canonicidade contestada por muitos séculos.

E mesmo depois deste tempo todo ainda não havia consenso. Martinho Lutero, o reformista da Igreja Católica e pai do Protestantismo, chegou até mesmo não considerar canônicos Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse, que na sua tradução da Bíblia para o Alemão deixou-os num apêndice sem numeração de páginas. Depois os demais reformadores decidiram que estes livros deveriam voltar à Bíblia, pela larga utilização nas comunidades cristãs, mas não fizeram o mesmo com os deuterocanônicos do AT.

No início do séc. XV, um grupo dissidente da Igreja Copta (também chamados de Monofisistas), conhecidos como Jacobitas questionaram muitos dos concensos cristãos da época, inclusive o Cânon Alexandrino. Em 1441, O Concílio Ecumênico de Florença, através da Bula Cantate Domino (4/2/1442) reafirma o caráter canônico do Cânon Alexandrino.

Com a Reforma Protestante, Lutero volta a questionar o caráter canônico dos Deuterocanônicos negando inclusive seu caráter eclesiástico, pois para ele estes livros eram contrários à Fé. Em 1545, é convocado o Concílio de Trento, que novamente afirma o caráter canônico do Cânon Alexandrino.

No início não houve consenso entre os Protestantes sobre o Cânon do Antigo Testamento. O Rei Jaime I da Inglaterra, responsável pela famosa tradução KJV (King James Version), defendia que os Deuterocanônicos deveriam continuar constando nas Bíblias Protestantes. Praticamente na mesma época surgiu uma tradução conhecida como Bíblia de Geneva ou Genebra, que caracterizava os Deuterocanônicos como apócrifos.

Somente após a “Confissão de fé de Westminster” (séc. XVII), protestantes ingleses que eram influenciados pelo calvinismo e puritanismo removeram das suas listas os livros deuterocanônicos, passando a adotar como lista de composição do Antigo Testamento o Cânon Hebraico conforme instituído no Concílio de Jâmnia. Princípios desta confissão foram espalhando-se por várias denominações e seu conteúdo funcionou como resposta ao concílio de Trento. Então novamente os textos do Antigo Testamento que não eram aprovados pelos Judeus foram retirados da Sagrada Escritura.

Até hoje existem muitos cristãos protestantes que chamam os deuterocanônicos de apócrifod, alegando que os textos trazem muitos erros, como por exemplo erros geográficos, e por acreditar que muitos fatos narrados neles não se concretizaram, eles chegam mesmo e remover os textos de suas Bíblias e dizem que não são textos inspirados. Outro argumento apontado é de que foram escritos no período intertestamentário (período de 400 anos compreendidos entre o novo e o velho testamento), ou seja em um período que segundo os teólogos reformadores Deus não teria levantado nenhum profeta. Este período também ficou conhecido como “silêncio profético”, e isso faz com que não reconheçam estes livros como fazendo parte da palavra de Deus.

Então se formos tentar colocar ordem nesta bagunça:

Os deuterocanônicos já faziam parte da vida dos judeus através Septuaginta, dos judeus cristãos através da Vetus Latina e da Vulgata. A primeira Bíblia impressa da história, conhecida como a Bíblia de Gutenberg (1450-1455) também já continha os livros deuterocanônicos do Antigo Testamento. Eles estavam presentes mesmo nas primeiras versões protestantes como a KJV (King James Version).

Já os Apócrifos, do grego Apokruphoi, secreto, separado ou excluído, eram conhecidos como Livros Pseudo-canônicos. O termo “apócrifo” foi cunhado por Jerônimo, no quinto século, para designar basicamente antigos documentos judaicos escritos no período entre o último livro das escrituras judaicas, Malaquias, e a vinda de Jesus Cristo. São livros considerados não  inspirados e portanto não entraram no Cânon.

No cristianismo ocidental atual existem vários livros considerados apócrifos; nos sínodos realizados ao longo da história esses livros foram banidos do canon, outros obtiveram uma reconsideração e retornaram à condição de Sagrados.

O número dos livros apócrifos é maior que o da Bíblia canônica. É possível contabilizar 113 deles, 52 em relação ao Antigo Testamento e 61 em relação ao Novo. A tradição conservou outras listas dos livros apócrifos, nas quais constam um número maior ou menor de livros. A seguir, alguns desses escritos segundo suas categorias.

Evangelhos:

– de Maria Madalena
– de Tomé
– Filipe
– Árabe da Infância de Jesus
– do Pseudo-Tomé
– de Tiago
– Morte e Assunção de Maria
– Judas Iscariotes

Atos:

– de Pedro
– Tecla e Paulo
– Dos doze apóstolos
– de Pilatos

Epístolas:

– de Pilatos a Herodes
– de Pilatos a Tibério
– dos apóstolos
– de Pedro a Filipe
– Paulo aos Laodicenses
– Terceira epístola aos Coríntios
– de Aristeu

Apocalipses:

– de Tiago
– de João
– de Estevão
– de Pedro
– de Elias
– de Esdras
– de Baruc
– de Sofonias

Testamentos:

– de Abraão
– de Isaac
– de Jacó
– dos 12 Patriarcas
– de Moisés
– de Salomão
– de Jó

Outros:

– A filha de Pedro
– Descida de Cristo aos Infernos
– Declaração de José de Arimatéia
– Vida de Adão e Eva
– Jubileus
– 1,2 e 3 Henoque
– Salmos de Salomão
– Oráculos Sibilinos

E isso para citar alguns. E todos esses textos de uma forma ou de outra passaram por aquele crivo do qual falamos anteriormente sendo banidos para sempre ou então ficando em cima do muro, aparecendo e sendo retirados e voltando a aparecer nas escrituras.

19 – Mas a Bíblia é uma zona!

Sim, mas só se você parar para pensar a respeito.

Vamos tentar criar aqui duas linhas do tempo, a primeira a cultural que representa como a Bíblia teria sido desenvolvida de acordo com a história que ela mesma conta:

A Bíblia como a que você compra hoje em uma loja foi escrita por um período de 1500/1600 anos, por cerca de 40 pessoas diferentes com profissões, origens culturais e classes sociais diferentes. Para quase todos os Judeus e Cristãos ela é a Palavra de Deus, ou seja, muito mais do que simplesmente um livro.

Ela teria sido escrita da época de Moisés entre 1592 a.C. e 1472 a.C. aproximadamente, até o último livro, o Apocalipse de São João, datado de cerca de 96 d.C., tendo passado por um período sem registros inspirados por Deus, o “silêncio profético”, que separou a época do Antigo Testamento (Judeus) do Novo Testamento (Cristãos), esse período foi de aproximadamente 400 anos.

Então lá pelo ano de 96 d.C. a Bíblia com textos de mais de 1600 anos de tradição estaria, em tese, pronta para circular e ser reproduzida integralmente até os dias de hoje para se chegar na sua mão.

Agora uma pausa para os cínicos de plantãos ou aqueles simplesmente confusos até agora antes de nos aventurarmos a montar nossa segunda linha do tempo, a criada a partir de registros e evidências históricas, arqueológicas e culturais. Nós estamos passando por uma revisão ortográfica que está definindo a nova regra da escrita da língua portuguesa. Um exemplo é a palavra Bem-Vindo sendo atualizada para Benvindo.

Se no ano de 2500 fossem realizar um estudo de capachos de portas para se publicar um desses livros de mesa de centro que algumas pessoas gostam tanto, eles teriam várias fotos de capachos dizendo SEJA BEM-VINDO anteriores a 2009 e várias fotos com capachos dizendo SEJA BENVINDO posteriores a esta data. Mesmo hoje em dia com a midia que temos e a pressão social de aceitar mudanças, podemos apostar que pelos próximos anos ainda serão produzidos muitos capachos com os dizeres BEM-VINDO, ou seja a forma que o texto foi escrito no capacho não é indicativo de que ele date de antes de 2009 ou depois de 2009.

Vamos dizer que lá pelo ano de 2050 surjam os puristas que defendem que se as pessoas cultas se reunem e decidem que BENVINDO é a melhor forma de se escrever algo então é porque deve ser seguido, pode ser que surja uma lei do INMETRO que defina que os capachos só poderão chegar no mercado caso tenham a grafia correta do termo. Ai podemos chamar esta manifestação de o primeiro Concílio de BENVINDO.

Acontece que isso acaba influenciando os maiores centros comerciais, cidades afastadas ou fabricantes de capacho que não ligam para a lei podem continuar com a sua grafia errada e assim teríamos os primeiros hereges – sejam conscientes (eu não vou comprar uma máquina nova que imprima a palavra nova), sejam os inocentes (mudou a palavra? eu não sabia).

Agora temos que levar em conta também outro fator, os capachos que tinham a grafia BENVINDO antes da mudança da norma ortográfica, ou seja, aqueles que já estavam errados antes do errado virar certo.

Só ai já teríamos problemas, 400 anos depois, de datar um capacho, simplesmente pela grafia de uma palavra, ele poderia ser anterior à data do Concílio de BENVINDO, poderia ser posterior, poderia ser um erro mais antigo ou poderia ser um capacho com a escrita antiga “gambiarrado” para apresentar a nova sem ter que mudar as máquinas, com um M deformado e o espaço entre as palavras coberto por um desenhinho qualquer.

Como isso se aplica à Bíblia?

Só porque um texto foi tomado como correto no século VI d.C. não significa que ele já não existisse 1600 anos antes, assim como um texto que começou a aparecer em determinado século não existisse com uma circulação muito mais restrita antes. Da mesma forma dois textos diferentes não querem dizer automaticamente manipulação maldosa. O fato de não termos hoje em mãos um original não significa que ele nunca tenha existido, e um texto que só se tornou oficial em um ano X não era sem valor antes. Pense que a palavra e o conceito Bem-Vindo existiam antes da correção ortográfica e provavelmente antes de inventarem a escrita e a registrarem pela primeira vez.

Vamos ver então como fica a história da Bíblia em termos de registros históricos:

640 a.C – Data em que se criou uma unidade doutrinária necessária para o reconhecimento da lei escrita.

287 – 247 a.C. – Criação da Septuaginta

225 a.C. – Trecho bíblico mais antigo: passagem de um dos livros de Samuel.

100 a.C. – O texto mais antigo conhecido da Bíblia: Livro de Isaías

0-100 d.C. – Vetus Latina & suposta época da composição do Novo Testamento

90 d.C. – Concilio de Jâmnia decidiu quais os livros que fariam parte do cânon judaico (Antigo Testamento)

125 d.C. – Texto mais antigo do Novo Testamento: fragmentos do evangelho de João, incluindo a pergunta de Pilatos a Jesus: “Você é o rei dos judeus?”

325 d.C. – Canonização do Novo Testamento

404 d.C. – Jerônimo completa a Vulgata.

500-600 d.C. – Texto Massorético (Antigo Testamento)

500 d.C. – A Bíblia começa a ser traduzida para mais de 500 línguas diferentes.

600 d.C. – Cria-se a Lei que determina que a Bíblia apenas pode ser copiada e distribuída em Latim.

995 d.C. – Surgem novas traduções anglo saxônicas da Bíblia do Novo Testamento.

1384 d.C. – Wycliffe se torna a primeira pessoa a se criar uma versão completa da Bíblia em Inglês (era uma versão manuscrita).

1455 d.C. – Gutenberg cria a primeira Máquina de Impressão e a partir de então as bíblias podem ser produzidas em massa. Até então todas as versões eram manuscritas.

1560 d.C. – Bíblia de Genebra

1611 d.C. – Surgimento da versão da Bíblia do Rei James.

1753 d.C. – Primeira publicação de uma Bíblia em Português.

1844 d.C. – Sociedade Bíblica Internacional traduz a Bíblia para os últimos idiomas vivos que restavam.

1885 d.C. – Os livros considerados apócrifos são removidos das versões impressas das Bíblias Protestantes.

1898 d.C. – Os Gideões Internacionais levam a Bíblia para as prisões, escolas e favelas, hoje qualquer quarto de hotel ou motel americano possui uma versão desta Bíblia.

1993 d.C. – Biblegateway.com é o primeiro site a colocar a Bíblia na internet com ferramenta de busca e diversas traduções sincronisadas.

20 – Mas existem muitas diferenças entre as Bíblias que circulam por ai hoje?

Novamente a resposta é positiva, e não apenas entre as Bíblias mas entre as Bíblias e os textos originais.

Tenha em mente que este texto não tem como objetivo julgar se a Bíblia é um livro sagrado ou uma arma de manipulação popular e sim estudar fatos que estejam relacionados com ela.

Como já vimos, mesmo os textos em hebraico da Tanakh possuem algumas diferenças, como no caso do pentateuco samaritano e outros que existiam. A que se devem estas diferenças? Não há como dizer.

Um grande ressentimento moderno contra a Igreja Católica afirma que todos foram causados como forma de garantir que a igreja tivesse poder e riquezas, e mesmo que este seja o caso em alguns momentos, não existe como provar isso – não que houve ou não manipulação, mas que ela foi realizada com este ou aquele objetivo específico. Muitas pessoas dizem que a igreja adotou o celibato dos padres, por exemplo, como forma de impedir que eles tivessem família e assim suas posses acumuladas em vida retornassem à igreja. Mas será que isto é verdade? Se pensarmos que tanto o judaísmo quanto o cristianismo sempre possuíram grupos ascetas, que renunciavam a existência mundana em prol da vida espiritual, chegando a casos extremos como monges que se flagelavam, castrações e outras, podemos ver que muitos dos primeiros cristãos eram adeptos do celibato, assim como vários grupos dentro do judaísmo como os Essênios, por exemplo, e que quando a igreja foi fundada e o cristianismo foi adotado como religião oficial de Roma o celibato já era um costume que mesmo que não obrigatório, era muito comum, não apenas para aqueles que pregavam o cristianismo mas também para aqueles que o tinham como religião pessoal. Então mesmo que afirmemos que a igreja tomou proveito disto não podemos afirmar com certeza que ela oficializou e incentivou este hábito motivada simplesmente pela cobiça assim como não temos como negar que este hábito também foi muito lucrativo para ela.

Assim, não vamos apontar dedos tentando imaginar que diferenças bíblicas foram criadas por quem e por que motivos, mas vamos apontar algumas delas para mostrar que mesmo que a Bíblia seja tomada como um livro absoluto, os textos impressos em suas páginas não o são.

Vamos começar levantando algumas mudanças que já ocorreram nas origens de seus textos.

Originalmente foram utilizados três idiomas diferentes na escrita dos diversos livros da Bíblia: o hebraico, o grego e o aramaico. Em hebraico foi escrito todo o Antigo Testamento, com excepção dos livros chamados deuterocanônicos e de alguns capítulos do livro de Daniel, que foram redigidos em aramaico. Em grego, além dos já referidos livros deuterocanônicos do Antigo Testamento, foram escritos praticamente todos os livros do Novo Testamento. Segundo a tradição cristã, o Evangelho de Mateus teria sido primeiramente escrito em hebraico, visto que a forma de escrever tinha como objetivo alcançar os judeus.

O hebraico utilizado na Bíblia não é todo igual. Encontramos em alguns livros o hebraico clássico (por ex. livros de Samuel e Reis), em outros um hebraico mais rudimentar e em outros ainda, nomeadamente os últimos a serem escritos, um hebraico elaborado, com termos novos e influência de outras línguas circunvizinhas. O grego do Novo Testamento, apesar das diferenças de estilo entre os livros, corresponde ao chamado grego koiné (isto é, o grego “comum” ou “vulgar”, por oposição ao grego clássico), o segundo idioma mais falado no Império Romano.

Precisamos então nos lembrar de que a Tanakh foi traduzida do hebraico (as diferentes formas de hebraico que foram compiladas por séculos) para o grego na criação da Septuaginta, termos primitivos, rebuscados, simples e de uso diário foram passados para uma forma corrente de grego, um mesmo estilo de grego do princípio ao fim e então essa versão assim como a hebraica foram traduzidas para o latim da Vetus Latina. Com Jerônimo a Septuaginta é deixada de lado e ele pega todos os textos antigos – com suas variantes linguísticas – e são novamentes traduzidos para um latim de um único estilo, mas isso não fez com que as versões da Vetus Latina fossem recolhidas do mercado, elas existiam de forma paralela e quando o cristianismo se espalha surgem novas traduções para línguas locais, essas traduções não vinham de um único documento oficial, mas dos textos que cada um tinha em mãos. Então enquanto uma versão Romena pudesse vir do Latim de Jerônimo, uma versão alemã poderia vir do grego da Septuaginta e um texto espanhol ter vindo de um dos muitos livros da Vetus.

Embora a mensagem geral destes textos fossem a mesma muitas coisas surgiam, eram adaptadas ou simplesmente mudavam.

Vejam um exemplo: pegando-se o texto da Tanakh de Oséias que usamos na questão quatro:

Oséias 8:12: “Se tivesse escrito a maioria de minha Torá, [Israel] seria contado igual a estranhos”

Vamos comparar com uma tradução atual da versão Almeida da Bíblia Corrigida e Revisada Fiel de 1994:

Oséias 8:12: “Escrevi-lhe as grandezas da minha lei, porém essas são estimadas como coisa estranha”

Com a versão da Sociedade Bíblica Britânica:

Oséias 8:12: “Embora eu lhe escreva a minha lei em miríades de preceitos, estes são tidos como coisa estranha”

Dentre as versões cristãs não existe muita diferença no significado, mas veja a diferença entre a passagem judaica e a passagem cristã. Numa o recado é para o povo escolhido, na outra o recado é para todos os não cristãos, independentes da origem do cristão em questão. Não há porque segregar o conhecimento apenas aos judeus, mas ele deve ser aberto aos que acreditam e aos que não acreditam.

Qual das duas versões você acha que deve ser mantida hoje? E quando for pensar nisso, pense que esta é a Palavra de Deus, e por isso deveria ser passada adiante de forma mais fiel o possível.

Outro caso que acontece não é apenas mudar o público alvo de determinada passagem, mas de se criar novas figuras na história. Vamos prestar atenção em uma que talvez tenha se tornado a mais célebre de todas: o diabo!

O Diabo se tornou, acidentalmente ou não, uma das figuras centrais da religião hoje em dia, mas ele não esteve sempre presente na Bíblia.

Um dos nomes atribuídos ao diabo é Lúcifer, mas este nome não existe nos textos originais. A primeira vez que este nome é citado é no livro de Isaías quando Deus protege seu povo destruindo o orgulho de seu inimigo. Em Isaías 14:13 surge a frase: “Como caíste do céu, ó Lúcifer, filho da alva!”. No original a expressão utilizada não era o nome Lúcifer e sim helel bem shahar, que significa aquele que brilha. Quando traduziram esta passagem para o grego o termo foi traduzido por um que era conhecido dos gregos: eosphorus; e então para o latim Lucifer. Agora Lucifer era a tradução literal para “aquele que brilha” – lux, lucis = luz; ferre = carregar; Lucifer = o portador da luz. Ao mesmo tempo este era o título dado ao planeta Vênus, a estrela da manhã, que brilhava em pleno dia. Desta forma, apenas por causa de traduções o termo helel – aquele que brilha – se torna eosphorus grego – o portador do archote – pois era o termo mais próximo de aquele que brilha, e então para Lucifer em latim que era o termo mais próximo nesta linguagem, só que lúcifer é o nome da estrela da manhã, Vênus, a estrela da alvorada.

Entretanto o nome de “Estrela d’alva”, ou Lúcifer, foi interpretado como sendo o nome de Satanás antes de sua queda do Paraíso. Segundo esta interpretação Lúcifer e seus anjos caíram por sua própria escolha, o motivo teria sido o orgulho, representado pela tentativa de se equipararem a Deus. Desejavam colocar sua própria vontade no lugar da vontade de Deus. E isto era considerado como a base do pecado em todos os níveis. Aos poucos, estas idéias começaram a se transformar na base dos ensinamentos tradicionais sobre o Diabo.

Mas se este trecho não fala do Diabo, fala do que? De acordo com os textos originais podemos supor que trata-se de uma interpretação errônea do seguinte trecho de Isaías que fala da “morte do rei da Babilônia” Nabucodonosor (Nebukadneççar em hebraico), que recebeu a maldição suprema da privação da sepultura:

«Como caíste do céu,
ó estrela dálva, filho da aurora!
Como foste atirado à terra,
vencedor da nações!
E, no entanto, dizias no teu coração:
‘Hei de subir até o céu,
acima das estrelas de Deus colocarei o meu trono,
estabelecer-me-ei na montanha da Assembléia,
nos confins do norte.
Subirei acima das nuvens, tornar-me-ei semelhante ao Altíssimo.’
E, contudo foste precipitado ao Xeol,
nas profundezas do abismo”.
Os que te vêem fitam os olhos em ti,
e te observam com toda atenção, perguntando:
“Porventura é este o homem que fazia tremer a terra,
que abalava reinos?”»
(Isaías 14, 12-15)

Isaías compara a queda do rei Nabucodonosor à Lúcifer! A queda do rei seria semelhante à queda da estrela da manhã – planeta Vênus no céu – ou seja, uma queda muito rápida.

E assim o diabo ganha o nome de Estrela da Manhã e Lúcifer, o que é irônico se pensarmos que este nome também é dado para Jesus no Apocalipse de São João 22:16: ” Eu, Jesus, enviei o meu anjo para vos testificar estas coisas a favor das igrejas. Eu sou a raiz e a geração de Davi, a resplandecente estrela da manhã.”

O mesmo podemos dizer sobre o nome Satã. Satã surge nos textos hebraicos originais como um adjetivo e não como um nome. Satã significa Adversário, mas não necessariamente o Adversário de Deus. Por exemplo a passagem 1Samuel 29:4, sobre o que pedem os príncipes filisteus a Davi, surge em algumas versões da Bíblia como: “Não se volte contra nós no combate”, mas no texto hebraico original está “Não se torne satã (inimigo) nosso no combate”. Davi aplica o termo satã aos homens que se opõem à vontade de Deus tentando o rei para que mate o benjaminita que o injuriou. Satã significa a oposição humana a Deus.

Outro exemplo é o livro de Jó 1:6, que se refere a um dos filhos de Deus que se apresenta diante do trono. O nome que lhe é dado é Satã. O nome comum representa o cargo de acusar e também a adversidade, a inimizade, a oposição que é permitida ou sancionada por Deus.

O próprio termo Diabo surge de uma tradução. O Livro da Sabedoria foi escrito em grego e não temos como saber qual seria a palavra escolhida pelo autor se o tivesse escrito em hebraico. O autor utiliza a palavra grega diábolos, termo usado na Septuaginta como tradução da palavra hebraica Satã: “É por inveja do Diabo que a morte entrou no mundo” (Sb 2,24).

Assim, no Antigo Testamento Satã não representa um ser que possamos considerar um demônio no sentido cultural cristão de um ser sobre-humano e perverso. O nome Satã, ou Satanás, no Antigo Testamento personifica a inimizade, dificuldade, contradição. A palavra satã, na sua forma verbal, stn em hebraico, aparece seis vezes no Antigo Testamento (Zc 3,1; Sl 38,21; Sl 71,13; Sl 109,4; Sl 120,29). Poderia ser traduzida por “satanizar”. A Septuaginta geralmente traduz o verbo stn por endiabállo, em grego; caluniar nas línguas vernáculas (e o substantivo satã, a Septuaginta geralmente o traduz por diábolos, que significa caluniador). A Bíblia de Jerusalém geralmente traduz por acusar.

E por causa dessas traduções se cria uma figura Mitológica do demônio.

Hoje é praticamente impossível se separar o Maligno do cristianismo, os protestantes são a prova viva disso. E agora essas traduções ajudam a incorporar novas culturas e hoje não apenas demônios, mas também encostos atormentam aqueles que escolhem trilhar o caminho apontado por Cristo.

Para não nos estendermos muito mais neste assunto vamos dar mais dois exemplos rápidos de como uma tradução pode mudar um texto original, seja de maneira sutil e inofensiva ou de uma forma mais agressiva.

Em Mateus 3:4 lemos que Jesus afirmou que: “E, outra vez vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus.”

Apenas neste trecho encontramos dois problemas com tradutores do grego para outras línguas.

Apesar de ser uma mensagem clara de que a humildade, e não a cobiça, é o caminho que leva a Deus esta passagem ficou muito exagerada.

Por um lado temos a palavra camelo. Além do animal existia outro camelo que os gregos conheciam, que era uma corda muito grossa utilizada por pescadores. Assim poderíamos entender que é mais fácil se passar uma corda grossa por um buraco de agulha do que um rico entrar nos céus. Apesar de ser uma idéia que de cara exclui automaticamente os ricos, sejam quem forem ou seja lá qual foi o método de se conseguir suas riquezas entrar no céu, fica uma metáfora menos exagerada. Agora temos que ter em mente que muitos patriarcas tiveram muitos bens, assim como reis e juízes, e eles com certeza devem ter entrado no céu, um exemplo é Abrahão. Mesmo das pessoas que conviviam com Cristo haviam aquelas ricas, o próprio José de Arimatéia, que cedeu a tumba onde Cristo ressuscitou, era rico; apenas se imaginarmos que mesmo tendo vivido com Cristo, respeitado tanto o Homem quanto sua mensagem, ele tenha sido deixado de fora do reino dos céus, temos que concluir que essa passagem é muito extrema. Jesus estaria dizendo que a riqueza é um grande mal, não importa de onde ela veio?

Podemos responder isso com o segundo problema de tradução, a palavra agulha. A agulha além do utensilho de costura é o nome dado às pequenas portas das cidades fortificadas para passagem dos animais das caravanas, utilizadas à noite depois que é dado o toque de recolher. Eram também utilizadas nos tempos de guerra, através das quais podia-se fazer o transporte de armas e comida. Essas agulhas são muito presentes ainda hoje nas muralhas da cidade antiga de Jerusalém.

Camelos com carga eram proibidos de passar por essas portinholas para evitar o comercio e o barulho durante o sono dos cidadãos. Além disso existe outro costume interessante, pelas portas principais das cidades eram comum que se passassem em sua maioria os mais bem quistos, ilustres e visitantes nobres. Pela agulha passavam os trabalhadores, o proletariado e os mercadores. Era como o elevador social e o elevador de serviço nos prédios hoje em dia. Além disso, mesmo durante o dia era realmente difícil se passar um camelo por elas. Era necessário bater no camelo e fazê-lo abaixar e na maioria dos casos, tirar a carga dele para passá-lo. Os camelos de grande porte, raramente passavam. Mas mesmo assim alguns passavam.

Desta forma temos dois fatores culturais, a corda dos pescadores – camelo – e as portinholas nos muros – agulhas – que deveriam ser levadas em conta no momento de se traduzir um texto como este.

A idéia de um animal passando por um buraco de agulha nos mostra que Jesus disse que ninguém rico entraria no reinos dos Céus. Isso poderia ser usado para mostrar que uma pessoa que aceite Deus deve se livrar de seus bens materiais. Já uma tradução que levasse em conta os costumes gregos e judaicos poderia levar em conta que a riqueza não é o que impede alguém de entrar no reino dos céus, mas aquilo que foi o motivo da riqueza – o trabalho ou a cobiça?

Por si só, a tradução deste trecho tem uma interpretação que muda de forma sutil um conceito que pode, por um efeito de bola de neve mudar a mensagem original.

Outro caso interessante de tradução é a famosa passagem da crucificação em que Jesus pergunta a Deus porque foi abandonado.

Em Mateus 27:45 e em Marcos 15:34 está registrado que depois de crucificado, Jesus, quando se aproximava a nona hora bradou/exclamou em voz alta: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”

Esta é uma exclamação curiosa que confunde várias pessoas. Como Jesus na cruz poderia ter sido abandonado por Deus.

Algumas pessoas dizem que neste momento Cristo não estava perguntando a Deus porque havia sido abandonado e sim estava recitando os salmos, já que o Salmo 22:1 – Salmo de Davi para o músico-mor, sobre Aijelete Hashahar – se inicia com a frase: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”

Este é um caso interessante da Bíblia, já que o Novo Testamento foi escrito quase todo em grego, mas contém palavras e frases que foram transliteradas do hebraico diretamente para o grego. Então a palavra יקתנב שé transliterada para σαβαχθανι. Assim em Mateus temos: “Eli! Eli! lamma sabachthani” e em Marcos: “Eloi! Eloi! lamma sabachthani”. Em ambos os casos a palavra sabachthani tem o significado de abandonastes.

Agora eis o caso que surge quando olhamos para algumas outras bíblias, como a versão espanhola de Casiodoro de Reina, de 1569 impressa na América onde a palavra que Jesus usa é sabachtani e não sabachthani. Antes de prosseguir vamos nos lembrar do Texto Massorético e sua importância.

O alfabeto hebraico não possiu vogais. Por isso a letra Beth pode ter as cinco pronúncias Ba, Be, Bi, Bo e Bu dependendo da palavra em que encontra. É como se em português a palavra “Belo” fosse escrita Bl, apenas o B e o L. Se a pessoa está escrevendo sobre uma pessoa e lemos que a achavam Bl podemos deduzir que ela era considerada bela, mas e se pegamos apenas Bl e deixamos escrita no meio de uma folha de papel? Está escrito ali Belo, Bela, Bala, Balé, Bolo, Bula, etc? Não temos como saber. Por isso foram criados os sinais massoréricos, eram sinais utilizados pelos massoretas para saber se a letra B tinha som de Ba ou de Be. Os sinais massoréticos são uma série de pontos e traços que podem estar embaixo, no meio ou em cima de cada letra e o objetivo era registrar uma palavra da forma que havia sido pronunciada. Só ai temos um problema novamente, isso faz com que tradições antigas dependam da tradição oral.

Imagine agora a seguinte cena, um patriarca recebe de Deus a mensagem de que devemos nos amar uns aos outros. Essa tradição vai sendo transmitida oralmente, até o momento em que a colocam no papel, usando um alfabeto onde não existem diferenças claras entre a pronúncia das palavras. Agora imagine que dois judeus, um que conhece a tradição e outro que não conhece recebam a tarefa de pintar nos muros a mensagem de Deus, e dão para cada um uma parte da cidade para que espalhem o recado.

Um deles pega seu balde e tinta e sai escrevendo nos muros: Deus mandou que nos amássemos uns aos outros. O outro escreve nos muros: Deus mandou que nos amassemos uns aos outros. Você percebe a diferença que as duas mensagens possuem? De um lado da cidade as pessoas declarariam o amor, do outro sairiam se amassando.

E ai voltamos ao trecho da crucificação. Jesus dá o seu brado, estava cercado por Judeus, eles levam o recado adiante e o transmitem. Apesar dos evangelhos terem sido escritos originalmente em grego os termos eram judeus, tanto que as palavras de Cristo vem escritas no original e então lhe oferecem a tradução. Acontece que os manuscritos gregos trazem a transcrição: “Li’Li LMH ShBHhTh-NI”, ou seja “sabachthani”, que tem como tradução “glorificas”, e não “abandonastes”. E assim por um erro mínimo, a compreensão da pronuncia de uma palavra ao invés do brado “Deus! Deus! O quanto me glorificas!” temos “Deus! Deus! Por que me abandonastes?”.

Pensando nos dois brados, qual parece o mais lógico por ter sido dado por Jesus, que sabia que seria crucificado, que sabia que Judas o delataria, que pediu para Judas na última ceia para ir fazer o que devia, que quando surgiram os soldados romanos procurando por Cristo se adiantou a todos e disse “Sou eu!” mesmo antes de ter sido apontado por Judas, que quando teve várias chances de evitar seu destino na frente de cada juiz e governante romano que o interrogou permaneceu calado? Bem a realidade nem sempre segue o que julgamos ser lógico, mas temos ai outro exemplo de como uma simples tradução pode influenciar um texto que deveria ser um registro exato criando sentidos tão diferentes para uma mesma passagem.

Assim cada nova versão que surgia e era usada como base para novas cópias, sejam manuais ou impressas geravam bíblias com textos trazendo algumas diferenças, em uma Jesus se lamenta em outra exalta Deus. E muitas dessas diferenças estão presentes até hoje.

21 – Mas não existe hoje uma Bíblia que seja aceita como a mais fiel aos textos originais, tipo uma Bíblia aceita por todos como a mais correta?

Não, a palavra de Deus recebeu várias versões durante a sua publicação e não apenas isso, diferentes grupos cristãos tem diferentes Bíblias oficiais.

Para se ter uma idéia a igreja primitiva, formada pelos primeiros seguidores da mensagem de Cristo começou a apresentar mudanças na crença original desde o século V. Nos dias de hoje existem dezenas, se não centenas, de variações do cristianismo e cada um com diferenças fundamentais entre si.

Vamos olhar uma breve linha do tempo da igreja para entender um pouco essas variantes.

Com o Concílio de Efeso em 431 uma vertente se solidifica, os Noestorianos, que entre outras coisas acreditavam que Cristo era formado por duas pessoas distintas, uma humana e outra divina, dois entes completos e independentes. Essa doutrina surgiu na Antióquia e influenciou a Síria, ela foi proposta pelo monge Nestório por causa das disputas cristológicas que surgiram nos séculos III, IV e V. No Concílio de Éfeso criou-se uma disputa centrada fundamentalmente em torno do título com o qual se devia referir a Maria, se somente cristotokos (mãe de Cristo, a dizer, de Jesus humano e mortal), como defendiam os nestorianos, ou de theotokos (mãe de Deus, ou seja, também do Logos divino), como defendiam os partidários de Cirilo. Resolveu-se adotar como verdade de fé a doutrina proposta por Cirilo, concedendo a Maria o título de Mãe de Deus e os nestorianos foram considerados hereges.

Até hoje é possível encontrar nestorianos, que se propagaram pela Ásia Central, chegando até a China e que durante algum tempo influenciaram os mongóis. Atualmente subsistem as igrejas nestorianas (conhecidas, de uma forma geral, como Igreja Assíria do Oriente) na Índia e no Iraque, Irã, China e nos Estados Unidos, além de alguns outros lugares onde haja migrado comunidades cristãs dos países citados. A Igreja Assíria do Oriente teve um papel fundamental na conservação de antigos textos gregos que foram traduzidos para o siríaco (um ramo do arameu). Mais tarde foram traduzidos para o árabe e no século XIII para o latim. Além da Igreja Assíria do Oriente, existem atualmente várias denominações cristãs que são também fortemente influenciadas pelo nestorianismo. Exemplos destas denominações, que foram fundadas muito após a igreja Assíria, são os anabatistas, os cristadelfianos e os rosacrucianos.

Em 451 com o Concílio de Calcedônia surgiram as igrejas não-calcedonianas – também conhecidas como antigas igrejas orientais. Elas surgiram por se recusarar a aceitar a doutrina das “duas naturezas de Cristo” (ou união hipostática), decretada pelo Concílio de Calcedônia e aceitada pelos católicos e ortodoxos. São acusadas de serem monofisita apesar de se recusarem a aceitar esta classificação se descrevendo como miafisitas. Isto porque as Igrejas não-calcedonianas também acham que o monofisismo é herético.

Para equilibrar as doutrinas antitéticas do monofisismo e da união hipostática (ambas também não aceitas pelos ortodoxos orientais), estas Igrejas defendem que em Jesus há a parte humana e a parte divina, mas que estas duas partes se unem para formar uma única e unificada Natureza de Cristo. Eles acreditam que uma união completa e natural das Naturezas Divina e Humana em uma só Natureza é autoevidente, de maneira a alcançar a salvação divina da humanidade, em oposição à crença na união hipostática (onde as Naturezas Humana e Divina não estão misturadas, porém também não estão separadas) promovida pelas atuais Igrejas Católica e Ortodoxa, esta crença defendida pelos não-calcedonianos chama-se miafisismo.

Atualmente, existem cerca de 79 milhões de ortodoxos não-calcedonianos que são organizados em seis Igrejas nacionais autocéfalas e em várias Igrejas autônomas associadas às Igrejas autocéfalas:

– Igreja Apostólica Armênia;
– Igreja Ortodoxa Síria;
– Igreja Ortodoxa Copta ou Alexandrina (egípcia ou etíope);
– Igreja Ortodoxa Etíope;
– Igreja Ortodoxa Indiana;
– Igreja Ortodoxa Eritréia

Apesar de serem autocéfalas, isto é, independentes umas das outras, estas Igrejas estão ainda em comunhão total entre si, partilhando as mesmas crenças e doutrinas cristãs.

No século XI acontece aquilo que ficou conhecido como o Grande Cisma do Oriente, que causou a separação entre a Igreja Católica Romana e a Igreja Católica Ortodoxa.

As tensões entre as duas igrejas datam no mínimo da divisão do Império Romano em oriental e ocidental e a transferência da capital da cidade de Roma para Constantinopla no século IV.

Uma diferença crescente de pontos de vista entre as duas igrejas foi causada pela ocupação do oeste pelos invasores bárbaros, enquanto o leste permaneceu herdeiro do mundo clássico. Enquanto a cultura ocidental se foi paulatinamente transformada pela influência de povos como os germanos, o Oriente permaneceu ligado à tradição da cristandade helenística. Era a chamada Igreja de tradição e rito grego. Isto foi exacerbado quando os papas passaram a apoiar o Sacro Império Romano no oeste, em detrimento do Império Bizantino no leste, especialmente no tempo de Carlos Magno. Havia também disputas doutrinárias e acordos sobre a natureza da autoridade papal.

A igreja de Constantinopla respeitou a posição de Roma como a capital original do império, além disso existia a oposição do Ocidente em relação ao cesaropapismo bizantino, isto é, a subordinação da igreja oriental a um chefe secular, como acontecia na igreja de Bizâncio.

Uma ruptura grave ocorreu de 456 a 867, tocada pelo patriarca Fócio que sabia que contribuía para aumentar o distanciamento entre gregos e latinos e usou a questão do filioque – uma expressão latina que significa “e do Filho”, que foi acrescentada pela igreja Católica Romana ao credo para explicitar que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho enquanto a Igreja Ortodoxa entende que o Espírito Santo procedeu apenas do Pai – como ponto de discórdia, condenando a sua inclusão no Credo da Cristandade ocidental e lançou contra ela a acusação de heresia. Além disso ela desconsidera a liderança papal.

Aqui vai uma lista das jurisdições que formam a igreja Ortodoxa:

– Patriarcado de Constantinopla
– Patriarcado de Alexandria
– Patriarcado de Antioquia
– Patriarcado de Jerusalém
– Patriarcado de Moscou
– Patriarcado da Geórgia
– Patriarcado da Sérvia
– Patriarcado da Roménia
– Patriarcado da Bulgária
– Igreja Ortodoxa de Chipre
– Igreja Ortodoxa Grega
– Igreja da Albânia
– Igreja da Sérvia
– Igreja Ortodoxa da Polónia
– Igreja das terras Checo-eslovacas
– Igreja Ortodoxa na América
– Igreja do Sinai
– Igreja da Finlândia
– Igreja da Ucrânia
– Igreja do Japão
– Igreja da China
– Igreja de Portugal

Já no século XVI acontece a Reforma Protestante, um movimento reformista cristão iniciado no século XVI por Martinho Lutero, que, através da publicação de suas 95 teses, protestou contra diversos pontos da doutrina da Igreja Católica, propondo uma reforma no catolicismo. Os princípios fundamentais da Reforma Protestante são conhecidos como os Cinco Solas:

1 – Sola fide: conhecida como Doutrina da justificação pela Fé, que afirma que é exclusivamente baseado na Graça de Deus, através somente da fé daquele que crê, por causa da obra redentora do Senhor Jesus Cristo, que são perdoadas as transgressões da Lei de Deus.

2 – Sola scriptura: significa “somente a escritura”, é o principio no qual a Bíblia tem primazia ante a Tradição legada pelo magistério quando os princípios doutrinários entre estas e aquelas forem conflitantes. Na Reforma, não se rejeita a Tradição, ela continua a ser usada como legitimadora para qualquer assunto omitido pela Bíblia.

3 – Solus Christus: a “salvação somente por Cristo”. Os protestantes caracterizavam os dogmas relativos ao Papa como representante de Cristo e chefe da Igreja sobre a terra, o conceito de mérito por obras e a idéia católica de um tesouro vindouro por causa das boas obras, como uma negação de que Cristo é o único mediador entre Deus e os homens.

4 – Sola gratia: “Somente a Graça”. A doutrina da salvação da Igreja Católica Romana seria uma mistura de confiança na graça de Deus e confiança no mérito de suas próprias obras, já a posição reformada é a de que a salvação é inteiramente condicionada a ação da graça de Deus, ou seja, só a graça através da regeneração unicamente promovida pelo Espírito Santo, em conjuto com a obra redentora de Jesus Cristo.

5 – Soli Deo gloria: “Glória somente a Deus”, é o princípio segundo o qual toda a glória é devida a Deus por si só, uma vez que salvação é efetuada exclusivamente através de sua vontade e ação. Não só o dom da expiação de Jesus na cruz, mas também o dom da fé, criada no coração do crente pelo Espírito Santo. Os reformadores acreditavam que os seres humanos – mesmo santos canonizados pela Igreja Católica Romana, os papas, e as autoridades eclesiástica – não eram dignos da glória que lhes foi atribuída.

Lutero foi apoiado por vários religiosos e governantes europeus provocando uma revolução religiosa, iniciada na Alemanha, e estendendo-se pela Suíça, França, Países Baixos, Reino Unido, Escandinávia e algumas partes do Leste europeu, principalmente os Países Bálticos e a Hungria. A resposta da Igreja Católica Romana foi o movimento conhecido como Contra-Reforma ou Reforma Católica, iniciada no Concílio de Trento.

O resultado da Reforma Protestante foi a divisão da chamada Igreja do Ocidente entre os católicos romanos e os reformados ou protestantes, originando o Protestantismo.

Foi por causa da reforma que surgiram outros grupos como:

– Os Anabatistas
– Pentecostais
– Adventistas
– Batistas
– Calvinistas
– Presbiterianos
– Congregacionalistas
– Puritanos Separatistas
– Metodistas
– Luteranos
– Pietistas
– Anglicanos

E cada uma com uma visão próprio da Mensagem de Deus e a meneira de utilizá-la. Por exemplo para os católicos a Bíblia é a fonte de fé, mas devia ser interpretada pelos padres da Igreja, a tradição Católica também é uma fonte de fé, assim como o Magistério da Igreja. Para os Calvinistas a Bíblia é a única fonte de fé e deve ser examinada por qualquer um livremente. Já para os Anglicanos a Bíblia é a fonte principal de fé mas deve ser interpretada pela Igreja (tradição) e então ela pode ser examinada livremente.

Além desses grupos principais cristãos durante a história surgiram outros grupos cristãos também:

Os Restauracionistas: que usam doutrinas surgidas após a Reforma Protestante cujas bases derrogam as de todas as outras tradições cristãs, basicamente tendo como ponto em comum apenas a crença em Jesus Cristo. A maioria deles não se considera propriamente “protestante” ou “evangélico” por possuirem grandes divergências teológicas. Nesta categoria estão enquadradas a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, a Igreja Adventista do Sétimo Dia e as Testemunhas de Jeová, entre outras denominações. Quanto às Testemunhas de Jeová, embora afirmem ser cristãs, também não se consideram parte do protestantismo. As Testemunhas aceitam a Jesus como criatura, de natureza divina, seu líder e resgatador, rejeitando, no entanto a crença na Trindade e ensinando que Cristo é o filho do único Deus, Jeová, não crendo que Jesus é Deus.

O Cristianismo esotérico: que é a parte mística do cristianismo, e compreende as escolas cristãs de mistérios e sincretismo religioso. A este ramo pertence o Gnosticismo que é uma crença com raízes anteriores ao próprio cristianismo e que tem características da ciência egípcia e da filosofia grega. O Rosacrucianismo também se enquadra nessa vertente sendo uma ciência oculta cristã que ressalta as boas ações por meio da fraternidade.

O Espiritismo: que algumas vezes é contestado como sendo uma vertente do cristianismo. Os espíritas não acreditam que uma pessoa ou ser, como Jesus Cristo, pode redimir “os pecados” de uma outra, contudo para a maior parte dos adeptos do espiritismo a obra de Allan Kardec constitui uma nova forma de cristianismo, ou então um resgate do cristianismo primitivo, que não inclui os dogmas adicionados pela Igreja Católica em seus diversos Concílios. Inclusive, um dos seus livros fundantes é denominado de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Esse livro apresenta uma reinterpretação de aspectos da filosofia e moral cristã, crendo em parte na Bíblia Sagrada.

O Rastafarianismo: também conhecido como movimento rastafári ou Rastafar-I (rastafarai) é um movimento religioso que surgiu na Jamaica entre a classe trabalhadora e camponeses negros em meados dos anos 20, iniciado por uma interpretação da profecia bíblica.

Como vimos cada um desses grupos, apesar de terem crenças cristãs em comum, possuem muitas divergências em crenças fundamentais, como a natureza de Cristo, o poder dado por Cristo a seus apóstolos, a fundação de uma igreja, etc… e isso acaba afetando a maneira como interpretam a Bíblia, os livros da Bíblia que são aceitos como realmente inspirados por Deus e a maneira como passam a Bíblia adiante.

E isso chega a afetar inclusive os textos de livros da Bíblia que são aceitos por todos. Para se ter idéia, alguns grupos acreditam que a Bíblia deveria ser não apenas passada a diante, mas ser atualizada com termos novos e atuais, um bom exemplo disso é a Bíblia Viva, editada no Brasil pela Editora Mundo Cristão. Ela foi considerada uma das traduções mais bem sucedidas do século XX pela revista Christianity Today. Kenneth N. Taylor ao invés de traduzir palavra por palavra resolveu traduzir “conceito por conceito”. Para ele não fazia sentido um texto como: “A criança de peito brincará sobre a toca da áspide e o já desmamado meterá a mão na cova do basilisco” e assim temos o trecho nesta Bíblia hoje como: “Criancinhas brincarão perto de cobras e não serão picadas, mesmo que enfiem a mão nas suas covas”.

Assim, mesmo a Vulgata de Jerônimo, que já buscava unificar os textos sagrados, acaba sendo traduzida e adaptada para termos correntes e locais, assim em 500 d.C. já haviam mais de 500 traduções diferentes. E lembre-se ainda das versões da Vetus Latina e da Septuaginta que surgiam e eram usadas.

Assim cada grupo novo que surgia não apenas encorajava mudanças nos textos aceitos – os católicos tem em sua versão da Bíblia os Deuterocanônicos, os protestantes não, os gnósticos usam os textos apócrifos, alguns grupos, mesmo Cristãos, rejeitam o Novo Testamento, outros rejeitam o antigo Testamento já que Cristo veio trazer uma nova aliança e a antiga não era mais necessária.

Para se ter uma idéia do quanto essas traduções afetaram a Bíblia, Thomas Linacre depois de ler os evangelhos em grego e os comparar com a versão da Vulgata em 1490, disse: “Ou isto (o texto grego original) não é o Evangelho… ou nós não somos cristãos”. Mostrando a corrupção das traduções para o Latim. De novo, isso não se devia exatamente a um plano da igreja de manipular a Bíblia, mas à maneira com que a Bíblia atravessava as eras. Quando os antigos copistas reproduziam os livros, reescreveendo-os integralmente à mão eles deixavam notas de rodapé sempre que percebiam que haviam cometido algum erro, principalmente no caso de terem omitido uma palavra ou mesmo uma linha do texto original. Quando escribas de um período posterior começavam a copiar essas cópias muitas vezes deixavam essas notas de rodapé de lado, não corrigiam o texto do livro (seria um pecado enorme um mero copista incluir em uma reprodução algum texto que não estivesse no original) e também deixavam de lado as notas que apontavam os erros que eram percebidos durante o processo de reprodução.

A primeira versão em inglês da Bíblia foi feita por John Wycliffe em 1380, ele era um professor de Oxford, um estudioso e teólogo. Wycliffe era conhecido também por se opor aos ensinamentos da igreja, os quais ele acreditava serem exatamente o oposto daqueles pregados pela Bíblia. Com a ajuda de seus seguidores, chamados de Lollardes, e de seu assitente Purvey, associados a inúmeros copistas ele conseguiu produzir dúzias do manuscrito em inglês. Eles foram traduzidos direto das Vulgatas em latim, que eram as únicas fontes da Bíblia disponíveis na época. O Papa ficou tão furioso com essa ousadia que 44 anos após a morte de Wycliffe mandou desenterrar seus ossos, esmagá-los, então moê-los para atirar o que restasse deles no rio.

Ainda no século XV surge uma versão Hussita da Bíblia e em 1478 uma versão em catalã escrita com o dialeto de Valência. Todas elas versões proibidas pela igreja católica.

Em 1496 John Colet decide traduzir partes do Novo Testamento do Grego para o inglês para repassá-las a seus alunos e mais tarde para os freqüentadores da Catedral de São Paulo em Londres. Nesta época as pessoas tinham tamanha ânsia em ouvir a Palavra do Senhor em sua língua nativa – já que eram muito poucos os que entendiam Latim – que em seis meses o público que entrava na Igreja para ouvir a missa ultrapassava as 20.000 pessoas e um número igual se acotovelava do lado de fora tentando entrar, comparando com os dias de hoje apenas 200 pessoas costumam estar na igreja presente para o culto e a grande maioria é composta por turistas.

Em 1516 a Froben Press publicou uma versão em grego do Novo Testamento editado por Desiderius Erasmus, que reconstruiu o texto grego recombinando vários manuscritos bizantinos com traduções do texto da Vulgata, do latim para o grego novamente, quando os textos que tinha em mãos não estavam completos. Essa sua versão da Bíblia possuiu 4 edições posteriores. A publicação de Erasmus foi a primeira versão das escrituras que não derivava da Vulgata que surgia em mil anos e a primeira tradução dos originais a ser impressa. Além disso o alerta dado por sua versão do Novo Testamento era o de o quanto a Vulgata havia se afastado dos textos originais e daí a importância de uma versão da Bíblia que fosse traduzida do hebraico original e do grego original.

Em 1530 surge a primeira versão francesa, traduzida por Lefèvre d´Étaples e publicada na Antuérpia. Em 1531 aparece a Bíblia Froschauer, conhecida também como a Bíblia de Zurique, traduzida por Huldrych Zwingli, contendo mais de 200 ilustrações (as traduções de porções de textos Bíblicos traduzidos para o alemão mais antigas existentes hoje datam dos anos 311 a 380, e foram feitas direto do grego).

Com a reforma protestante começaram a surgir as principais diferenças de tradução e de apresentação da Bíblia. Lutero e companhia já defendiam a livre consulta há pelo menos 60 anos. Mas vale uma ressalva aqui. Inicialmente a proposta não era que qualquer pessoa pegasse o livro e fundasse sua própria igreja, mas sim tirar o poder da interpretação como sendo uma exclusividade do sacerdócio católico e passá-la também ao clero alemão. A idéia era que a Bíblia poderia ser compreendida por qualquer pessoa com estudo e não apenas pelos membros do clero romano. Seis décadas foram mais do que o suficiente para o primado de Pedro se organizar na chamada Contra Reforma.

O jogo de poder agora estava entre o Papa e as monarquias nacionais. Cada país possuía seu próprio intelectual protestante que fazia a parte de autoridade erudita enquanto os seus respectivos reis acumulavam o poder político. A sociedade passou por grandes mudanças e o mesmo aconteceu com nosso livro sagrado. Em 1560 muitos destes líderes protestantes estavam refugiados na Suíça se escondendo dos olhares severos dos inquisidores. Juntos, criaram a primeira “Bíblia de Estudos” que serviria de modelo para quase todas as bíblias impressas posteriormente.

Bíblia de Genebra foi a primeira edição onde a hoje consagrada divisão em versículos foi usada. Foi um salto de gigante na evolução pedagógica da Bíblia pois permitiu uma notação de referências precisas de onde encontrar esta ou aquela passagem. A partir dai o sermão da montanha não estaria “em algum lugar do livro de Matheus” mas sim precisamente em Mt 5:1 ~ 7:29. Além disso a Bíblia de Genebra trouxe outras inovações importantes como suas incontáveis notas de rodapé contendo a visão protestante dos textos antigos e a primeira lista de referências cruzadas de que se tem notícia. Com estas ferramenta novas relações puderam ser feitas entre os vários livros já pertencentes ao Canon, e isso fortaleceu o protestantismo como movimento social. O resultado disso foram Bíblias onde a tradução fidedigna deu lugar a uma cristalização do cristianismo dominante de hoje. Diversas palavras que sequer poderiam ter sido usadas na época em que os livros foram escritos foram adicionadas ao livro sagrado: homossexualismo, espiritismo e médiuns são alguns dos exemplos.

Este novo movimento de reformulações da Bíblia, não apenas traduzindo-as para as línguas nativas dos diferentes países, mas também de buscar traduções mais coerentes e fiéis aos textos originais deu origem a inúmeras novos livros. Uma versão polonesa conhecida como Bíblia Brzeska é publicada em 1563.

Após a Bíblia de Genebra houve a necessidade de uma nova versão da Bíblia, que não atacasse de maneira tão veemente a igreja enquanto instituição e assim publicaram a Bíblia dos Bispos (Bishop’s Bible), que apesar de ter tido alguma aceitação, nunca foi páreo para a Bíblia de Geneva em termos de aceitação popular.

Em 1584 tanto o Novo quanto o Antigo Testamento foram traduzidos para o Esloveno pelo teólogo protestante Jurij Dalmatin, tornando os Eslovenos a décima segunda nação a ter uma Bíblia completa em sua própria língua.

Com essas versões em inglês da Bíblia, a própria Igreja Católica desistiu, em 1582, da regra de só haverem Bíblias em latim e assim deram início à preparação de uma versão oficial da Bíblia aprovada pela igreja católica em Inglês – a primeira tradução oficial das Escrituras Sagradas, um projeto compatível com a criação da Vulgata por Jerônimo mais de mil anos antes. Assim, tendo como base o texto corrupto em latim, eles criaram a versão que ficou conhecida como O Novo Testamento de Rhemes. Seguido pela Publicação do Antigo Testamento de Douay. A Bíblia resultante ficou conhecida como a versão Doway/Rhemes.

Em 1589 o Dr. William Fulke, de Cambridge, publicou o livro conhecido como a Refutação de Fulke, no qual colocava em colunas paralelas passagens da Bíblia dos Bispos e da Versão Rhemes, para mostrar como a Bíblia Católica continha textos cujas traduções estavam erradas, baseadas num latim que por si só já continha muitos erros.

Neste período morre a Rainha Elizabeth da Inglaterra e James I ocupa seu lugar no trono. O clero protestante então declara ao rei o seu desejo de uma nova tradução da Bíblia para substituir a Bíblia dos Bispos, impressa em 1568. Eles sabiam que a Bíblia de Geneva havia consquistado o povo inglês, mas queriam uma versão da Bíblia que fosse tão bem construida, com o mesmo cuidado e esmero, mas sem as notas de rodapé controversas – como as que afirmavam que o papa era o anticristo e outras semelhantes – ou seja, queriam uma bíblia para o povo com referências para as escrituras mas apenas com significados de palavras e um guia de referências cruzadas, nada que atacasse a igreja e seus membros.

Assim surge a Bíblia do Rei James, impressa pela primeira vez em 1611, que ficou conhecida como “a tradução para acabar com todas as traduções”. A Bíblia do Rei James levou mais de duas décadas para se tornar mais popular do que a versão da Bíblia de Genebra e isso se tornou algo que pode ser visto como uma das grandes ironias da história, já que muitas igrejas protestantes de hoje fazem uso da Bíblia do Rei James afirmando que ela é a única tradução dos textos sagrados para inglês considerada legítima, mas ela nem é uma tradução protestante! Ela foi impressa para competir com a Bíblia protestante, a Bíblia de Geneva, e foi encomendada e desenvolvida por autoridades que não gostavam dos Protestantes, que os perseguiam e matavam-nos, a Igreja Anglicana.

E a partir do século XVII os jesuítas se tornam responsáveis pela tradução da Palavra em inúmeras línguas do Novo Mundo.

Agora voltando os olhos para nossa língua, os primeiros registros de trechos da Bíblia para o portugês remontam ao final do século XIII, um trabalho creditado a Dom Dinis. Mas o principal responsável pela tradução de toda a Bíblia para o português foi João Ferreira de Almeida que iniciou o trabalho em 1644, quando contava com 16 anos, e prosseguiu até sua morte, em 1691, tendo traduzido todo o Novo Testamento e grande parte do Antigo Testamento, as partes que faltaram foram posteriormente traduzidas pelo pastor presbiteriano Jacob Akker, tendo sido publicada pela primeira vez em 1753 depois de alguns tropeços. Já no ano 2000 a Sociedade Bíblica Internacional editou O Livro, uma tradução dos dialetos europeus e foi concluída a Nova Versão Internacional.

Estes três trabalhos de tradução para o português ilustram bem como a revisão e constante tradução, mesmo que de uma fonte original podem criar diferenças básicas num texto, vejamos o exemplo do trecho João 3:16:

Tradução João Ferreira de Almeida
Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.

Tradução O Livro
Deus amou tanto o mundo que deu o seu único Filho para que todo aquele que nele crê não se perca espiritualmente, mas tenha a vida eterna.

Tradução NVI
Porque Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna.

Vale notar que tanto a tradução d’O Livro e da NVI foram realizadas pela mesma editora, a International Bible Society.

Outro exemplo é a versão da Bíblia das Testemunhas de Jeová, onde quase todas as palavras que se referem a Deus como Senhor, Deus, Criador, Pai, etc, foram substituídas pelo nome Jeová, foram mais de 7000 alterações no texto. A idéia é mostrar que se existem 7000 menções ao nome Jeová este é realmente o nome de Deus. O problema é que nos textos originais da Bíblia esse nome não aparece uma única vez, ele seria uma adaptação da palavra JHVH que surge na Tanakh, essa mesma palavra que quando provida de vogais também orgina outros nomes como Javé, Iavé, etc. Nem é preciso dizer que essa mudança é considerada por muitos como uma mutilação da Palavra de Deus, mas para os Testemunhas essa mudança é o texto correto e o aceito.

Assim podemos ver que de fato não existe uma versão aceita universal, uma tradução “correta” ou um concenso geral. Em determinadas épocas surgiam aqueles que pegavam para si o trabalho de traduzir, adaptar ou reorganizar os textos, e muitos desses trabalhos eram clandestinos e depois aceitos pelo público geral, por esse motivo acabaram se criando versões muito sólidas e muito difundidas, mas diferentes entre si.

22 – Mas então a Palavra de Deus é um samba do crioulo doido! Não é mais simples voltarem aos textos mais antigos e originais e tentarem chegar a um concenso, para que a Palavra seja universal e haja uma única Bíblia como os judeus e os cristãos originais queriam?

Veja, ai esbarramos no problema da Fé e da Crença. É indiscutível que todas essas pessoas citadas acima acreditavam e acreditam em Deus. Desde Judeus até Rastafaris, passando por Mórmons, Espíritas e muitos outros. E por mais cínicos que tentemos ser não podemos afirmar que todos os que se envolvem com a Bíblia apenas querem enriquecer e controlar as massas. Mas a coisa complica quando uma crença específica acha que a maneira dela é a única correta, a única verdade que leva a este Deus.

Hoje achamos que as inquisições caçavam bruxos e feiticeiras e que as guerras religiosas buscavam os pagãos e pessoas que cuspiam na cruz. Mas isto não é verdade, não completamente. Essa máquina de busca, apreensão e destruição era o resultado de diferentes grupos cristãos brigando entre si. Se um grupo achava que Cristo era um profeta, mas não era Deus encarnado, o pessoal que acreditava na história do Deus encarnado se ofendia e ia tirar satisfações. Invariavelmente o grupo mais forte falava mais alto e para se manter no caminho daquilo que julgavam ser a verdade estavam dispostos a exterminar quem julgassem estar trazendo a discórdia e a mentira para o próprio meio. Grupos Cristãos que tinham uma visão diferente do grupo principal e eram mais fracos (tinham menor número de seguidores e menos recursos para atacar ou se defender) eram chamados de hereges, recebiam a chance de abrir mão da própria crença e adotar uma nova. A maioria nem sonhava com isso, já que o Cristianismo ainda tem o diferencial de atrair pessoas com um gosto para se tornarem mártires, acreditando que morrer pela própria fé apenas consolida esta fé como sendo a mais real de todas. E assim grupos cristãos inteiros foram erradicados por outros grupos cristãos. Este é mais ou menos o resumo da história para a formação do que na Idade Média se tornou o Cristianismo aceito, ou heterogêneo e que depois com a reforma e as divisões da igreja voltou a ser um cristianismo plural.

E até hoje existe uma rixa acirrada entre os grupos existentes. Protestantes chutam santas católicas. Anglicanos criticam protestantes mas dizem que os católicos exageram na sua vontade de dominar o mundo. Católicos dizem que todos tem boa vontade mas estão errados. E no fundo o que parece é que se esquecem do Deus em que acreditam para discutir quem tem o melhor carro e o mapa correto para chegar no Paraíso.

E isso cria um impasse. Um grupo já com tradição não vai ceder sua crença para aceitar uma nova corrigida é o mesmo que assumir que por tanto tempo ele esteve meio que no caminho errado. E um católico dificilmente aceitaria se colocar no mesmo nível de um Testemunha de Jeová (seja lá qual for esse nível, se é que ele existe) e um protestante diria que só aceitaria uma mesma crença se os católicos parassem com essa besteira de Papa e de Santos e Nossa Senhora.

Assim dificilmente surgiria uma versão nova e original aceita por todos, ironicamente, talvez, uma versão assim seria aceita mais por céticos, estudiosos e simpatizantes do que pelos religiosos.

E isso porque não falamos de outro ponto interessante que dificulta a criação de uma versão única do texto.

Quando falamos em Jesuítas desbravando o mundo e levando a palavra de Cristo, muitos imaginam caravelas, índios e negros contrabandeados, fogueiras e colonizadores. Mas a verdade é que o processo de cristianização está a pleno vapor hoje em dia e parece que cada grupo cristão aceitou o desafio não apenas de levar a Palavra de Deus para todos, mas de levar a sua própria versão da Palavra de Deus.

Vejamos três exemplo que fogem da imagem que temos dos principais grupos cristãos – católicos e protestantes.

As Testemunhas de Jeová possuem adeptos em mais de 236 países e territórios autônomos, com mais de sete milhões e trezentos mil participantes. Segundo o anuário das Testemunhas de jeová de 2010 nos últimos dez anos mais de dois milhões e setecentos mil pessoas foram batizadas nesta crença em particular, uma média de cinco mil pessoas por dia. Além dessas pessoas, atire a primeira pedra aquele que nunca acordou num domingo de manhã com uma dupla de terno tocando a campainha com uma bíblia debaixo do braço, ou pelo menos que não conhece alguém que passou por isso.

E todas essas pessoas, junto com os simpatizantes da crença – que em 2009 foram contabilizados na casa dos dezoito milhões de pessoas – acabam aceitando a versão das Testemunhas da Bíblia.

Além deles existe uma organização, formada em 1899, conhecida como Gideons International (os Gideões Internacionais) que decidiram distribuir a Palavra para o mundo todo, para que todos tivessem acesso, a ideia original foi a de traduzir a bíblia para 80 línguas e atingir pelo menos 190 países, muitos deles já possuíam a bíblia em sua língua nativa, mas mesmo assim se fizeram novas traduções para se distribuir. Assim os Gideões começaram a distribuir bíblias de graça e com isso conseguiram, por exemplo, que nos Estados Unidos cada quarto de hotel ou motel tivesse uma bíblia em seu criado mudo – as pessoas que já assistiram Missão Impossível com Tom Cruise devem se lembrar do momento em que ele precisa de uma bíblia e simplesmente abre uma gaveta e lá está ela. Além disso eles tem o trabalho de distribuir suas versões da Bíblia em hospitais, asilos, prisões, exército e em escolas – que ironicamente são lugares onde as pessoas em sua maioria preferiam não estar.

Até o ano de 2007 mais de um bilhão e quintentos milhões de Biblías haviam sido distribuídas por eles. Cada uma, a versão dos Gideões do texto sagrado, antigamente a tradução da Bíblia do Rei James e hoje em dia a tradução da Nova Bíblia do Rei James.

Outro grupo são os Mórmons, também cohecidos como a Igreja de Jesus Cristo dos Últimos Dias, que surgiram na década de 1830. Em 2007 a igreja registrou o número de treze milhões e quinhentos mil de mebros ao redor do mundo, com mais de um milhão aqui no Brasil. Os Mórmons além da Bíblia seguem o livro conhecido como “O Livro de Mórmon, um outro testamento de Jesus Cristo”, que segundo a igreja, é um volume de escrituras sagradas com um propósito semelhante ao da Bíblia e da teologia e é considerado por seus membros como a pedra fundamental de sua religião. É uma história de comunicação de Deus com os antigos habitantes das Américas. A história começa 600 anos a.C, quando Deus ordenou que um profeta chamado Leí deixasse Jerusalém com sua família e rumassem todos para uma terra da Promessa: As Américas. Depois de Leí, o Senhor chamou outros profetas, como Néfi, Mosias, Helamã, entre outros. Mórmon foi um desses profetas.

A religião cresce e também há pregação, como os Testemunhas de Jeová.

Assim temos grupos espalhando milhões de versões da Palavra por ano, e isso cria um quadro onde de um lado existem pessoas já familiarizadas com a Bíblia – ou ao menos a versão aceita por sua crença – e de outro pessoas que não estão tão familiarizadas com a bíblia. E a base que a grande maioria das pessoas que entram em contato com todos esses evangelistas e catequisadores tem é de que:

1- Existe um Deus.

2- Essas pessoas estão distribuindo a Bíblia, que é a Palavra de Deus.

Dificilmente saberiam que aquela é uma das versões e que existem outras, muitas vezes com textos muito diferentes e significados que chegam a ser opostos uns aos outros.

Desta forma não só é dificil a aceitação de uma Biblia única como a cada dia mais e mais versões diferentes são divulgadas e com a sinceridade daquele que a distribui de ser a única Palavra correta.

E ainda existe uma questão interessante aqui: e quem pode julgar que versão está correta ou não? Da mesma forma que Deus e o Espírito Santo divulgaram a Palavra a primeira vez, como julgar que diferentes versões não foram inspiradas pela mesma fonte? Deus descansou no sétimo dia ou se aposentou da empresa que Ele criou e caiu fora dela? É difícil afirmar, se é que não é impossível. Assim se acreditamos que a Bíblia é de fato a Palavra, como podemos julgar qual delas é a correta ou mesmo se alguma delas pode ser apontada como uma versão errada?

23 – E essa loucura não vai acabar?

Vejamos. Por um lado temos cada dia mais acesso a informações que deveriam servir como base para corrigir erros históricos das coisas, a Bíblia seria uma delas. Com o material que existe hoje, desde os famosos textos do Mar Morto a grupos de arqueologia bíblica, deveriam haver meios de tornar a Bíblia em si mais factível, mais alinhada com fatos que já foram comprovados. Mas de novo isso provavelmente interessaria apenas a estudiosos e curiosos. Existem hoje cristãos que apresentam uma curiosidade digna da afirmação de Cristo: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” Mesmo assim são indivíduos e grupos pequenos, não tem o tamanho ou a influência necessária para se cria ruma nova versão das Escrituras ou talvez nem tenham a vontade de mudar as escrituras, apenas aprender os novos fatos.

Por outro lado cristãos e judeus tem um histórico de quando mais apanharem em nome da própria crença parece que mais certeza eles tem de estarem no caminho certo, então negar mesmo as evidências pode dar um ar de “não importam o que digam, minha crença é tão correta que eu não abro mão dela nem para o que aparenta ser o bom senso”.

Então não dá para dizer exatamente se essa zona vai continuar ou se a tendência é que todas essas pessoas comecem a buscar não apenas um livro impresso, mas a verdade comprovada por trás deste livro. Como dissemos no começo deste texto, originalmente o objetivo da Bíblia era que as pessoas se mantivessem fieis a Deus e seus Mandamentos e Leis, mas com o tempo a Bíblia se tornou um rótulo e hoje esse rótulo é defendido com unhas e dentes.

Mas acreditamos ser possível supor algumas probabilidades sobre o que seria o futuro da Bíblia.

Como vimos os grupos principais de Cristãos ainda esperam a segunda vinda de Cristo, alguns grupos não tão famosos acreditam que ele já voltou e existem aqueles que não acreditam que ele voltará. Assim, mesmo que existam por ai livros de novos profetas e novas palavras da segunda vinda de Cristo, no mainstream os profetas estão quietos há milênios e o Messias não retornou.

Umas das possibilidades é que surjam novos grupos cristãos e novas versões da Bíblia. Existem sempre aqueles que buscam os textos o mais próximos do original o possível. Bíblias multilingues com os originais em hebraico e grego são populares, o problema óbvio disso é que dificilmente a grande parte dos religiosos tem acesso a essas línguas e isso torna essas bíblias curiosidades. Existem versões ainda com quatro linguas e cinco linguas. Hebraico, Grego, Latim (inglês) e português. Mas de novo a grande maioria acaba contando apenas com a coluna em português (ou na sua língua natal) para ler o texto, já que hebraico e grego não possuem nem mesmo as mesmas letras que o alfabeto latino.

A tendência é que essas Bíblias acabem se aperfeiçoando trazendo pequenos glossários para tirar a dúvida de termos ambiguos ou mesmo apontando a direção certa em termos culturais e históricos de quando os textos foram escritos. Mas essas edições costumam ser caras, não dá para apostar que se tornem populares comparadas as bíblias distribuídas de graça.

Então a questão não se foca tanto na acuidade do texto em si, mas na popularidade daqueles que divulgam tais textos e na acessibilidade que eles tem, quanto mais baratos melhor, se estiverem disponíveis de graça, Amém. Existe a chance de surgirem grupos cristãos que tentem se aproximar mais das formas primitivas e originais dos textos e então trazê-los para o presente, mas eles só se tornariam maioria caso sua popularidade fosse maior do que a dos cristãos “concorrentes”. Então o futuro da Bíblia estaria ligado de novo a mensageiros e não à Palavra em si.

A internet talvez ajude a popularizar para um grupo grande novas versões e uma outra possibilidade é o surgimento de “meta” bíblias, ou seja, textos que sejam interpretados por indivíduos não ligados à igreja e assim vários interessados podem julgar que textos teriam mais coerência, mas de novo isso fugiria a uma unidade e acabaria estando preso à erudição de cada pessoa que poderia julgar que mesmo que tal versão fosse de alguém famoso ela tem passagens estranhas que são melhores ser deixadas de lado.

Talvez uma resposta que apontasse a uma direção certa seria a que o movimento Jesus Freak prega em seu manifesto, uma forma de cristianismo não presa em palavras, mas no exemplo deixado por Cristo, claro que isso não afetaria muito a Bíblia e suas variantes, apenas a relação de cada um com o texto.

Manifesto Jesus Freak

1 – Nós propomos que, seguindo o exemplo de Jesus Cristo, não nos deixemos limitar pela religião. Os primeiros inimigos de Cristo foram os altos sacerdotes do Templo. O primeiro amigo de Cristo foi um louco que gritava no deserto.

2 – Nós propomos que as Escrituras são a mais alta autoridade cristã. Portanto devemos nos esforçar para compreendê-las muito mais do que nos esforçamos para aceitar a forma que nossos ancestrais a compreenderam. O mundo dos homens muda a cada instante. O mundo de Deus permanece o mesmo para sempre.

3 – Nós propomos que cada cristão tenha o mesmo credo essencial de Paulo de Tarso, Francisco de Assis, Martinho Lutero, William J. Seymour, Martin Luther King e ainda assim sejam livres para expressar sua fé de sua própria maneira especial, assim como o fez cada um destes cinco homens.

4 – Nós propomos que ninguém tem o direito de dizer quem que uma pessoa não será salva em Cristo, uma vez que a hora cabe ao Pai e a salvação cabe ao Filho. Assim, ainda que o próximo viva em escândalo você não deve se escandalizar.

5 – Nós propomos que os livros de orações sejam deixados de lado por um tempo. Talvez seja difícil usufruir de nossa liberdade de expressão em um primeiro momento, mas seremos recompensados com uma relação mais intima e próxima com Deus. Por muito tempo temos usado de maneira pobre o nosso missal. É hora de orarmos mais e irmos menos à missa.

6 – Nós propomos que devemos nos preservar um pouco dos hinários e livros de salmos. Eles são lindíssimos, mas nossa mente precisa respirar e perceber que está vivendo em uma época nova e radiante. Devemos compor novas músicas com novas letras, que sejam atuais e de acordo com nossa época. Não existe nenhum problema em cantar as glórias antigas, mas há uma infinidade de glórias novas aguardando e clamando para serem cantadas.

7 – Nós propomos nos libertarmos da arquitetura do passado criando novos espaços para nossos cultos. Derrubemos as igrejas e templos para não haver mais a separação entre irmãs e irmãos, entre crentes e ateus, entre humanos e resto da criação. Chamemos de volta a todo aquele que expulsamos de nossas igrejas: os infieis e os piores pecadores! A Casa de Deus não é uma casa de desespero. Chamemos todos de volta, ainda que continuem pecando para sempre.

8 – Nós propomos que descubramos como os avanços tecnológicos de nossa época podem ser usados para a glória de Deus. “Frutificai e multiplicai-vos” nunca foi um desejo ligado única e exclusivamente ao sexo. “Eis que saiu o semeador a semear” nunca foi restrito as praças públicas. Deus nos presenteou com tecnologias que nossos antepassados sequer sonharam poder existir. Está na hora de aceitarmos essa graça e fazer bom uso dela. Vamos organizar oficinas e mostrar como a arte e a ciência podem fazer parte de nossas festas e nossos exercicios de contemplação.

9 – Nós propomos o uso do intercâmbio cultural para enriquecer nossa literatura litúrgica com materiais até então ignorados por nossos cultos tradicionais. Há uma abundância de sabedoria e beleza nos textos considerados apócrifos pela igreja medieval, nas escrituras sagradas de outras crenças e mesmo na poesia secular que podem e devem ser usados em nossa liturgia para atingirmos um propósito estético superior ao atual.

10 – Nós propomos que em um mundo dominado pela mídia onde o uso da imagem supera o do texto, os cristãos devam fazer uso das figuras mais fortes, corajosas e chocantes possíveis. O cinema, a televisão e mesmo intervenções urbanas devem ser usados. Não há lógica em mostrar o caminho, a verdade e a vida usando imagens piegas, meia luz e baixa resolução.

Notas:

[1] Abrahâmico faz referência a crenças que se originaram da revelação divina de Abrahão como o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo.
[2] Aqui Igreja tem a conotação de igreja primitiva, uma igreja não organizada, eram grupos de pessoas que seguiam a mesma crença mas sem uma instituição formada ainda.

Por Rev. Obito para o movimento Jesus Freak


Sentindo-se freak? Conheça Jesus Freak: o Guia de Campo para o Pecador Pós-Moderno


 

Postagem original feita no https://mortesubita.net/jesus-freaks/a-evolucao-da-biblia-da-boca-de-deus-ate-as-cabeceiras-dos-moteis/

Alquimia e Harry Potter, parte I

Arianrhod.

Este artigo traçará a história antiga da alquimia, suas metas e objetivos, e explicará os sete estágios da transformação alquímica. Mais tarde, discutirei os livros um de cada vez, discutindo as imagens alquímicas e o simbolismo em cada um no que se refere aos Sete Estágios e ao enredo. Finalmente, tentarei fazer algumas previsões sobre o próximo livro com base nos princípios da alquimia e nos elementos necessários para que Harry termine sua jornada para a iluminação e imortalidade espiritual.

  1. Uma (Muito) Breve Introdução à Alquimia:

A alquimia é uma prática protocientífica inicial que combina elementos de química, física, astrologia, arte, semiótica, metalurgia, medicina, misticismo e religião. Dois objetivos entrelaçados procurados por muitos alquimistas eram a pedra filosofal, uma substância mítica que possibilitaria a transmutação de metais comuns em ouro; e a panaceia universal, um remédio que curaria todas as doenças e prolongaria a vida indefinidamente. A alquimia pode ser considerada como a precursora da moderna ciência da química anterior à formulação do método científico.

A palavra alquimia vem do árabe al-kimiya ou al-khimiya e da palavra grega khumeia, que significa “juntar”, “derramar”, “soldar”, “ligar”, etc. (de khumatos, aquilo que é derramado fora, um lingote”). Outra etimologia liga a palavra com “Al Kemi”, que significa “a arte egípcia”, já que os antigos egípcios chamavam sua terra de “Kemi” e eram amplamente considerados como poderosos magos em todo o mundo antigo.

Essa é a definição padrão dos livros didáticos de alquimia como ciência, que é encontrada literalmente em vários sites de alquimia. Como veremos, porém, os próprios alquimistas eram tudo menos malucos, pagãos e ocultistas. A alquimia era muito mais do que uma protociência infantil baseada em princípios quase científicos e impregnada de alegoria e metáfora, embora certamente tivesse muito disso.

Ninguém sabe realmente a idade da alquimia. De acordo com o alchemylab.com, há algumas evidências de que o advento da alquimia antecede a Revolução Agrícola, que ocorreu há cerca de 8.000 anos. Algumas fontes conectam alquimia com xamanismo e metalurgia; certamente era conhecido na Suméria, Egito e Babilônia e mais tarde na Grécia, misturando-se cada vez mais com metalurgia e adivinhação até o advento do cristianismo, quando se tornou uma filosofia de pleno direito por direito próprio. Muitos dos alquimistas medievais eram devotos cristãos ou muçulmanos e começavam todos os dias com orações e devoções.

A alquimia como filosofia (assim como o Tarô, a Cabala, a astrologia e todos os estudos ocultistas) deve sua existência a um único documento chamado A Tábua de Esmeralda, também conhecida como a Mesa Smaragdine, Os Segredos de Hermes ou a Tabula smaragdina de Hermes Trismegisto. É um texto curto e enigmático que pretende revelar o segredo da substância primordial e suas transmutações. Até o século XX, suas primeiras fontes conhecidas eram manuscritos latinos medievais, mas a fonte documentada mais antiga para o texto é o Kitab Sirr al-Asrar, um livro de conselhos para governantes de autoria de Abd al-Qadir al-Jilani por volta de 800 d.C. Esta obra foi traduzida para o latim como Secretum Secretorum (O Segredo dos Segredos) por Johannes “Hispalensis” ou Hispaniensis (João de Sevilha) por volta de 1140 d.C. e por Filipe de Trípoli por volta de 1243 d.C. 1

A palavra-chave aqui é “documentado”. As origens da Tábua de Esmeralda podem remontar a vários milhares de anos; foi traduzido para o grego por estudiosos alexandrinos e, na verdade, foi exibido no Egito em 330 a.C. Por volta do ano 400 d.C., teria sido enterrado em algum lugar no planalto de Gizé para protegê-lo de fanáticos religiosos que estavam queimando bibliotecas ao redor do mundo naquela época. Muitos acreditam que a tabuleta ainda está escondida lá, escondida sob um hipogeu sob as patas traseiras da Esfinge. Segundo a lenda, o deus egípcio Thoth construiu um Salão de Registros ali, armazenando todos os registros da humanidade antes do dilúvio universal.

Para esclarecer um ponto: Hermes Trismegisto não deve ser confundido com o deus grego Hermes. Enquanto o nome Hermes Trismegisto significa “Hermes Três Vezes Grande”, o nome é realmente uma combinação do deus grego e Thoth, o deus egípcio do conhecimento, sabedoria e escrita. Aliás, os gregos, e os romanos depois deles, se recusaram a identificar Thoth com Hermes ou Mercúrio, e Cícero notou vários indivíduos conhecidos como Hermes. Hermes e Thoth, no entanto, compartilhavam muitos traços semelhantes. Ambos são deuses da escrita, comunicação e magia, e ambos eram considerados psicopompos, ou deuses que agiam como guias para as almas na vida após a morte.

No século XIV, o alquimista Ortolano escreveu O Segredo de Hermes, que influenciou o desenvolvimento subsequente da alquimia. Muitos manuscritos desta cópia da Tábua de Esmeralda e o comentário de Ortolano sobrevivem, datando pelo menos desde o século XV. A Tábua também foi encontrada anexada a manuscritos do Kitab Ustuqus al-Uss al-Thani (O Segundo Livro dos Elementos da Fundação) atribuído a Jabir ibn Hayyan ou Geber, e o Kitab Sirr al-Khaliqa wa San`at al-Tabi `a (O Livro do Segredo da Criação e da Arte da Natureza), datado entre 650 e 830 d.C.

Desde o início do texto vem o lema dos alquimistas: Como em cima, assim embaixo. É uma metáfora para recriar o céu na terra através dos segredos dos antigos, que certamente sabiam muito melhor do que nós como fazê-lo. Da Tábua de Esmeralda:

Verdade! Certeza! Aquilo em que não há dúvida!

O que está em cima é do que está em baixo, e o que está em baixo é do que está em cima, operando os milagres de um.

Como todas as coisas eram de um.

Seu pai é o Sol e sua mãe a Lua.

A Terra o carregou em seu ventre, e o Vento o alimentou em seu ventre,

como Terra que se tornará Fogo.

Alimente a Terra com o que é sutil, com o maior poder.

Ele sobe da terra ao céu e se torna governante sobre o que está em cima e o que está em baixo.

E já expliquei o significado de tudo isso em dois desses meus livros.

  1. As Metas e os Objetivos da Alquimia: Harry Potter e Tom Riddle (Lord Voldemort):

Os alquimistas medievais perseguiram três objetivos:

1· A transmutação de metais básicos em ouro;

2· A imortalidade da alma e do espírito;

3· A criação de vida artificial.

Enquanto muitos alquimistas passaram décadas tentando transformar metais básicos em ouro por meio de uma substância vaga chamada Pedra Filosofal, outros, como William Lilly e Nicolau Flamel, buscaram a iluminação espiritual da alma. Embora esses objetivos possam parecer incompatíveis ou mesmo mutuamente exclusivos, é importante lembrar que a alquimia era tanto uma filosofia quanto uma ciência experimental, e a transmutação dos metais permitiu aos alquimistas tentar provar que o Acima poderia ser recriado no Abaixo; em suma, recriar o céu na terra e na alma. Vemos o genuíno espírito científico nas palavras de um dos alquimistas: “Quisera Deus… que todos os homens se tornassem adeptos de nossa Arte – pois então o ouro, o grande ídolo da humanidade, perderia seu valor, e deveríamos valorizá-lo apenas por seu ensino científico.” 2 Infelizmente, porém, poucos alquimistas chegaram a esse ideal; e para a maioria deles, a alquimia significava apenas a possibilidade de fazer ouro barato e ganhar uma riqueza incalculável.

O terceiro objetivo da alquimia “a criação da vida a partir do nada” pertencia quase inteiramente aos alquimistas islâmicos. Isso entrará em jogo mais tarde, quando discutirmos o Cálice de Fogo. Os alquimistas islâmicos, especialmente Jabir ibn Hayyan ou Geber, experimentaram os princípios dos elementos na esperança de produzir takwin, a criação artificial da vida, incluindo a vida humana, em laboratório. Até onde sabemos, Geber não teve sucesso, mas Mary Shelley tocou nesse tema em seu romance Frankenstein, assim como muitos outros autores da época. Eles chamaram suas criações de homunculus, ou o “pequeno homem”, e parece que o grande alquimista e médico medieval Paracelso cunhou o termo depois que ele supostamente criou um homem falso que tinha apenas cerca de 30 centímetros de altura. O conceito é semelhante ao golem judeu, que era a criação de vida a partir de objetos inanimados, e os homúnculos geralmente faziam o trabalho atribuído aos golens.

A alquimia contém um elemento profundamente místico, e quem tentar estudá-la com um ponto de vista moderno ou puramente científico não a compreenderá nem a apreciará. Os alquimistas sempre falaram de sua arte como um Dom Divino, cujos segredos não poderiam ser aprendidos em nenhum livro, e só poderiam ser alcançados por longos anos de estudo e devoção. A iluminação, quando e se veio, ocorreu de uma só vez e sem aviso prévio. Mais de um alquimista ficou maravilhado com a simplicidade da resposta e quanto tempo eles levaram para compreendê-la. A atitude mental correta com Deus foi o primeiro passo crucial para alcançar a Grande Obra (magnum opus), porque a alquimia é uma transformação tripla: física, espiritual e psicológica.

De acordo com The Hermetic House (A Casa Hermética): “Do ponto de vista ascético… o desenvolvimento da alma só é plenamente possível com a mortificação do corpo; e todo o verdadeiro misticismo ensina que se alcançarmos o objetivo mais elevado possível para o homem – união com o Divino – deve haver um abandono de nossas próprias vontades individuais, um rebaixamento da alma diante do Espírito. E assim os alquimistas ensinaram que para a realização da magnum opus no plano físico, devemos despojar os metais de suas propriedades exteriores para desenvolver a essência interior, como diz Helvetius:

“… As essências dos metais estão escondidas em seus corpos exteriores, como o núcleo está escondido na noz. Todo corpo terrestre, seja animal, vegetal ou mineral, é a habitação e morada terrestre daquele espírito celestial, ou influência, que é seu princípio de vida ou crescimento. O segredo da Alquimia é a destruição do corpo, que permite ao Artista obter e utilizar para seus próprios propósitos, a alma viva.” Essa morte da natureza externa das coisas materiais deveria ser provocada pelos processos de putrefação e decadência; daí a razão pela qual tais processos figuram tão amplamente nas receitas alquímicas para a preparação do “Magistério Divino”. 3

O buscador deve entrar em seus estudos com um coração puro. Aqueles que não o fizerem “usar a alquimia para obter poder ou ganho financeiro” nunca alcançarão a perfeição espiritual e a imortalidade. Suspeito que foi isso que aconteceu com Tom Riddle. Em sua busca por conhecimento sobre as Horcruxes e em seus experimentos para se tornar imortal, seu coração e seus motivos não eram puros. Ele usou seu ganho para mutilar sua alma, um ato que ia contra as leis da natureza e de Deus. E ele pagou por isso: No capítulo “O Pedido de Lord Voldemort”, vemos o resultado de sua loucura. Sua boa aparência se foi “ainda não como uma cobra, mas apenas uma sombra do que eles eram uma vez. O exterior espelha o interior. Uma alma mutilada e difamada não pode ser encerrada em um belo pacote:

“Em primeiro lugar, que todo químico e estudante devoto e temente a Deus e estudante desta Arte considere que este arcano deve ser considerado, não apenas como uma arte verdadeiramente grande, mas como uma arte santíssima (vendo que ele tipifica e obscurece a mais alta bem celestial). Portanto, se alguém deseja alcançar este grande e indizível Mistério, deve lembrar-se de que ele não é obtido pelo poder do homem, mas pela graça de Deus, e que não nossa vontade ou desejo, mas apenas o misericórdia do Altíssimo, pode concedê-la a nós.

“Por esta razão, você deve primeiro limpar seu coração, levantá-lo somente a Ele, e pedir-Lhe este dom em oração verdadeira, fervorosa e indubitável. Só Ele pode dar e outorgar.” 4

Thomas Norton em seu Orindall of Alchemy coloca isso muito bem quando diz:

“… Uma graça e dom singular do Todo-Poderoso

Que nunca foi encontrado, como testemunha podemos,

Nem esta ciência jamais foi ensinada ao homem…

TAMBÉM NENHUM HOMEM DEVE ESSA CIÊNCIA ENSINAR

Pois é tão maravilhoso e tão isolado

Que deve ser ensinado de boca em boca,

Também ele deve (se ele nunca for tão relutante),

Receba-o com um juramento mais sagrado,

Que, ao recusarmos grande dignidade e fama,

Então ele deve necessariamente recusar o mesmo…

Para que por dúvida de tanto orgulho e riqueza

Ele deve tomar cuidado com o que esta ciência ensina

Nenhum homem, portanto, pode alcançar este presente

Mas ele tem virtudes excelentes.” 5

Tom Riddle também buscou o conhecimento dos alquimistas; ele também buscou a imortalidade da alma e do espírito para permanecer aqui na terra. A diferença entre Riddle e Harry, no entanto, são suas motivações para buscar o conhecimento para começar. Tom queria poder e ganho enquanto Harry não. Um excelente exemplo disso é um dos capítulos finais do primeiro livro “O Espelho de Ojesed”. Dumbledore, ele próprio um alquimista, estava bem ciente do princípio do amor e da iluminação, e escondeu a Pedra em um lugar onde apenas os puros de coração poderiam obtê-la. O professor Quirrell podia se ver com a Pedra Filosofal, mas não conseguia pegá-la. Por quê? Porque ele queria isso para ganho material e poder” para devolver seu mestre à força. Harry, por outro lado, queria que a Pedra a mantivesse segura; de forma alguma ele pretendia usá-lo para si mesmo. É por isso que ele conseguiu pegar a Pedra do Espelho.

Este é o caminho no qual Harry se encontra – o caminho para a iluminação. Somente buscando aquela parte de si mesmo “sua bondade e amor” ele encontrará os meios para destruir Voldemort de uma vez por todas. Ele deve se tornar a personificação física da Pedra Filosofal, alcançando a perfeição espiritual e a imortalidade, antes de finalmente se libertar do vínculo entre ele e Tom Riddle.

III. A Pedra Filosofal e o Elixir da Vida:

Mencionado pela primeira vez por Zósimo, o Tebano, no século III a.C., o conceito da Pedra Filosofal é verdadeiramente antigo. É conhecida por muitos nomes em muitas civilizações, mas o conceito ainda é o mesmo: a Pedra Filosofal é um meio pelo qual os humanos podem alcançar a perfeição espiritual e a imortalidade. Representa a força por trás da vida e o poder universal de ligação entre a mente e o corpo.

Uma das manifestações mais antigas da Pedra é tão antiga quanto a própria civilização. A água da vida suméria, agora conhecida como álcool ou aqua vitae, também era chamada de “água viva”, ou a “água com espíritos” e era usada na alquimia como agente de destilação. Foi mencionado na Epopeia de Gilgamesh e apresentada com destaque no mito do renascimento da deusa Inanna depois que sua irmã Eriskegal, a esposa do deus da morte, a assassinou no submundo.

A Pedra Benben da lenda egípcia também era chamada de “a pedra que caiu do céu” (lapsit ex caelis). Era o símbolo do sol, de forma piramidal, e residia no Templo do Sol em Heliópolis, o centro da religião e da astronomia no antigo Egito. Dizia-se que a Pedra Benben tinha os segredos da vida inscritos nela. A tradução latina da Pedra Filosofal/Elixir da Vida é ex lapis elixir, que é estranhamente semelhante ao nome que Wolfram von Esenbach dá ao Santo Graal em seu romance arturiano Parzival (lapsit exillis). Na verdade, Wolfram se esforça para descrever o Graal como uma pedra, e sua escolha de palavras não parece coincidência. O termo lapsit exillis também pode ser traduzido como lapsit ex caelis: a “pedra que caiu do céu”, o que implica que tanto a Pedra quanto o Graal podem ser rastreados pelo menos até o antigo Egito, embora provavelmente seja muito mais antigo do que isso.

Algumas das outras manifestações da Pedra incluem:

1· Lia Fáil, Irlanda/A Pedra do Destino, Escócia

2· Caldeirão da Imortalidade de Keridwen, Irlanda

3· A Pedra de Jacó, Bíblica

4· Caldeirão do Renascimento de Bran, País de Gales

5· O Santo Graal, Europeu.

6· A Kaa’ba, no Islã.

A Pedra era vista como uma substância mágica que poderia aperfeiçoar imediatamente qualquer substância ou situação. A Pedra Filosofal tem sido associada a muitos outros exemplos e fenômenos místicos e religiosos, incluindo o Sal do Mundo, o Corpo Astral, o Elixir e até mesmo Jesus Cristo. O Elixir dos alquimistas tem essencialmente a mesma capacidade de aperfeiçoar qualquer substância. Como a panaceia universal, o Elixir cura doenças e restaura a juventude.

Se a criação da Pedra Filosofal foi difícil, a criação do Elixir da Vida foi quase impossível. O Elixir da Vida deve conter os quatro elementos (fogo, terra, ar e água) mais os três princípios do animal, vegetal e prima materia (tan). Para trabalhar com esses ingredientes, muitos achavam que era necessário usar fígados de crocodilo, esqueletos humanos, raízes de mandrágora e vesículas biliares de antílopes, além de outros ingredientes bizarros.

Acredita-se que a prima materia ou tan seja o mineral cinábrio, ou sulfeto de mercúrio, também conhecido como Sangue de Dragão. Aprendemos em A Pedra Filosofal que Alvo Dumbledore era o parceiro de Nicolau Flamel, que possuía “a única Pedra Filosofal conhecida”. Como veremos, Flamel foi um dos melhores alunos de alquimia, e que Dumbledore era seu parceiro certamente não é por acaso da parte de Rowling. Dumbledore estava então familiarizado com o conhecimento dos alquimistas, suas metas e objetivos, e a atitude necessária para ter sucesso em sua busca. Rowling credita a Dumbledore a descoberta dos doze usos do Sangue de Dragão, que é um ingrediente crucial na construção da Pedra Filosofal. Muito usado pelos antigos como uma droga de longevidade, o cinábrio é extraído desde os tempos antigos e é altamente tóxico devido ao seu teor de mercúrio.

Sangue de Dragão também é o nome de uma planta, Dracaena draco, que é nativa das Ilhas Canárias, e outra planta, D. cinnabari, que é encontrada apenas na ilha de Socotra, na costa sul da Arábia. Acreditava-se que a resina seca dessas plantas tinha propriedades mágicas devido à sua cor vermelha brilhante. O Sangue de Dragão agora é usado em uma variedade de aplicações industriais” como verniz e em fotogravura, entre outros. Ainda é usado na Índia para fins cerimoniais. Embora tenha muito mais de doze usos, nenhum deles é limpador de forno!

O cinábrio, também chamado de vermelhão, combinava as duas substâncias importantes na alquimia: mercúrio e enxofre. Segundo Paracelso:

“A NATUREZA gera um mineral nas entranhas da terra. Existem dois tipos dele, que são encontrados em muitos distritos da Europa. figura do mundo maior, e está na parte oriental da esfera do Sol. A outra, na Estrela do Sul, está agora em sua primeira eflorescência. As entranhas da terra a empurram através de sua superfície. em sua primeira coagulação, e nele se escondem todas as flores e cores dos minerais. Muito se escreveu sobre isso pelos filósofos, pois é de natureza fria e úmida, e concorda com o elemento água.

No que diz respeito ao seu conhecimento e experimentação, todos os filósofos antes de mim, embora tenham mirado nele com seus mísseis, foram muito longe do alvo. Eles acreditavam que o Mercúrio e o Enxofre eram a mãe de todos os metais, nunca sequer sonhando em fazer menção a um terceiro; e, no entanto, quando a água é separada dela pela arte espagírica, a verdade é claramente revelada, embora fosse desconhecida para Galeno ou Avicena. Mas se, por causa de nossos excelentes médicos, tivéssemos que descrever apenas o nome, a composição; a dissolução e coagulação, como no início do mundo a Natureza procede com todas as coisas em crescimento, um ano inteiro dificilmente me bastaria, e para explicar essas coisas, nem mesmo as peles de numerosas vacas seriam adequadas.

Agora, afirmo que neste mineral se encontram três princípios, que são o Mercúrio, o Enxofre e a Água Mineral que serviu para coagular naturalmente. A ciência espagírica é capaz de extrair este último de seu próprio suco quando não está totalmente amadurecido, no meio do outono, como uma pera de uma árvore. A árvore contém potencialmente a pera. Se os astros celestiais e a natureza concordam, a árvore, antes de tudo, dá brotos no mês de março; em seguida, brota os botões e, quando estes se abrem, a flor aparece, e assim sucessivamente, até que no outono a pera amadurece. Assim é com os minerais. Estes nascem, da mesma maneira, nas entranhas da terra. Que os Alquimistas que estão procurando o Tesouro dos Tesouros observem isso cuidadosamente. Eu lhes mostrarei o caminho, seu começo, seu meio e seu fim. No tratado a seguir descreverei a Água adequada, o Enxofre adequado e o Bálsamo adequado. Por meio desses três, a resolução e a composição são coaguladas em uma…” 6

Como sabemos, a Pedra Filosofal e o Elixir da Vida eram os principais objetivos dos alquimistas. A Pedra Filosofal era a substância que poderia transformar chumbo barato em ouro e criar uma panaceia universal que tornaria os humanos imortais – o Elixir da Vida. A Grande Obra, ou Magnum Opus, refere-se à busca por esta pedra. Além disso, a fabricação da Pedra Filosofal era entendida como conferir um tipo de iniciação ao aluno, e essa iniciação é a culminação adequada da Grande Obra. A Pedra Filosofal é um símbolo para a jornada para a iluminação, quebrando e recombinando elementos dentro de nós (solve et coagula).

Embora houvesse tradicionalmente sete etapas para a conclusão da Pedra Filosofal, outros autores colocam o número mais alto. De acordo com o Pergaminho Ripley, havia 12 etapas envolvidas na fabricação da Pedra Filosofal. Basílio Valentino escreveu As Doze Chaves. A diferença nos sistemas é que o sistema tradicional de sete etapas remonta a Tábua de Esmeralda, enquanto o sistema de 12 etapas lida mais com arquétipos astrológicos.

Ripley escreveu sobre os quatro elementos conhecidos: fogo, terra, ar e água:

Você deve fazer Água da Terra, e Terra do Ar, e Ar do Fogo, e Fogo da Terra.” 7

De acordo com a Wikipédia, os alquimistas acreditavam que todos os quatro elementos eram interdependentes uns dos outros e que qualquer processo produziria os quatro elementos. Essa ideia remonta aos filósofos, especificamente Empédocles de Agrigento (440 a.C.), que consideravam que havia quatro elementos – terra, água, ar e fogo. Aristóteles acrescentou o chamado Quinto Elemento, “o éter”. (alt: aether) Esses elementos eram considerados, não como diferentes tipos de matéria, mas como diferentes formas de uma única matéria original, pela qual manifestavam diferentes propriedades. Pensava-se que isso se devia às quatro propriedades primárias de secura, umidade, calor e frio, com cada elemento tendo duas dessas propriedades: fogo era equiparado a quente e seco, quente e úmido ao ar, úmido e frio à água, e seco e frio para a terra. Assim, corpos úmidos e frios (a maioria dos líquidos) foram chamados de “águas”. Além disso, como esses elementos não eram considerados diferentes tipos de matéria, os alquimistas pensavam que a transmutação era possível. Na verdade, é possível, mas foi preciso o desenvolvimento da fissão nuclear para tornar realidade os sonhos dos alquimistas.

De acordo com Rowling, as quatro Casas de Hogwarts são usadas para representar esses quatro elementos. Grifinória é Fogo, Corvinal é Ar, Lufa Lufa é Terra e Sonserina é Água. Mas e o Quinto Elemento de Aristóteles, o éter? É aqui que entra Harry. O éter, ou quintessência, está sozinho acima dos outros elementos. É puro e incorruptível, a presença essencial de algo ou alguém. A quintessência combina o Acima e o Abaixo, o mental e o material. Pode ser pensado como a encarnação etérea da força vital que encontramos em sonhos e estados alterados de consciência. Segundo os gregos, o éter era o fogo celestial na visão grega, a pura essência em que os deuses viviam e respiravam, e os gregos o comparavam ao calor radiante do sol, que podia se mover no espaço vazio; isso levou Aristóteles a afirmar que “a natureza abomina o vácuo”. 8

Os elementos clássicos são frequentemente usados juntos tematicamente na fantasia moderna, ficção científica, cinema e televisão. Normalmente, um mago, mago ou alguém capaz de usar magia tem a habilidade de influenciar um dos elementos, ou pode usar os elementos para afetar o mundo ao seu redor. O quinto elemento ou quintessência está incorporado no herói, que geralmente é o epítome do amor, e do amor puro. Exemplos deste tema incluem Capitão Planeta, onde o Capitão Planeta é invocado combinando o poder de cinco anéis que representam cada um dos quatro elementos clássicos, bem como um anel que representa o “Coração”; A série The Sword of Truth (A Espada da Verdade) de Terry Goodkind e o programa de televisão infantil Avatar, onde quatro nações representando os quatro elementos estão em guerra. Os “magos” de cada nação têm a capacidade de controlar o elemento para o qual sua nação é nomeada. O Avatar, Ang, uma criança pequena, é o único que pode controlar todos os quatro elementos e trazer as nações de volta à harmonia. Ainda outro exemplo é o longa-metragem O Quinto Elemento, onde o personagem principal (interpretado por Bruce Willis) deve usar os quatro elementos para alimentar uma arma para a defesa da Terra, juntamente com o amor, o “quinto elemento”. Exemplos mais recentes incluem dois filmes populares do ano passado: Os Incríveis e O Quarteto Fantástico (que originalmente era uma história em quadrinhos).

Harry está em busca da quintessência dentro de si mesmo. Ele é aquele que pode unir as quatro casas como uma. Ele sozinho contém todas as quatro características dentro de si mesmo. A busca da quintessência é a busca da Pedra Filosofal, seu despertar e imortalidade espiritual.

Em O Enigma do Príncipe, até encontramos Harry lendo um livro sobre a quintessência:

“Harry não respondeu, mas fingiu estar absorto no livro que eles deveriam ter lido antes de Feitiços na manhã seguinte, Quintessence: A Quest (A Quintessencia: Uma Busca). (US Deluxe HBP, p. 304).

  1. As Ferramentas da Alquimia e Harry Potter:

Os alquimistas acreditavam que a fórmula universal contida na Tábua de Esmeralda era a base para uma filosofia espiritual introduzida pela primeira vez no antigo Egito na remota antiguidade” algumas fontes dizem mais de 10.000 anos atrás. Esta fórmula consiste em sete operações consecutivas realizadas sobre a “matéria” – seja de natureza física, psicológica ou espiritual.

Basílio Valentim, em seu Azoth dos Filósofos, descreve o significado completo da Coisa Única, que é tanto a Caótica Matéria no início da Obra quanto a Pedra aperfeiçoada em sua conclusão. A palavra “Azoth” é da Tábua de Esmeralda; o “A” e o “Z” na palavra relacionada ao alfa e ômega gregos, que significa simplesmente o começo e o fim de todas as coisas. 9

No desenho acima, tirado de Os Sete Estágios da Transformação Alquímica, uma salamandra envolta em chamas e um pássaro em pé estão tocando as asas de um caduceu. Abaixo da salamandra está a inscrição Anima (Alma); abaixo do pássaro está a inscrição Spiritus (Espírito). Corpus significa Corpo. De acordo com o Alchemy Electronic Dictionary (O Dicionário Eletrônico da Alquimia), a alma é “a presença passiva em todos nós que sobrevive por toda a eternidade e, portanto, é parte da substância original (Primeira Matéria) do universo. Em última análise, é a Única Coisa do universo. A alma foi considerada além dos quatro elementos materiais e, portanto, conceituada como um quinto elemento (ou Quintessência). O espírito é “a presença ativa em todos nós que luta pela perfeição. O espírito busca manifestação material para expressão. Em última análise, é a Mente Única do universo”. Em outras palavras, a alma é aquilo com que nascemos; é o espírito e as escolhas que fazemos na vida que nos moldam em quem somos, um ponto que Rowling enfatiza repetidamente nos romances.

Spiritus, Anima e Corpus formam um grande triângulo invertido que fica atrás do emblema central. De acordo com McLean, juntos eles simbolizam as três forças celestes arquetípicas que os alquimistas chamavam de Enxofre, Mercúrio e Sal. Na filosofia da alquimia, não são produtos químicos, mas nossos sentimentos, pensamentos e corpo.

Antes de discutirmos os livros e como Rowling habilmente tece os fios da alquimia através deles, é necessário dar algumas breves definições e descrições das substâncias básicas usadas na alquimia. Havia sete metais conhecidos pelos alquimistas: ouro, prata, mercúrio, chumbo, cobre, estanho e ferro (ver figura 1). Cada um teve um papel específico na formação da Pedra Filosofal; no entanto, como veremos, os alquimistas nem sempre foram claros sobre os nomes das substâncias, muitas vezes expressando-os em metáfora e simbolismo. Além disso, antes do século XIX não havia um sistema de nomenclatura universal para os elementos químicos. O que um alquimista chamava de enxofre outro poderia chamar de mercúrio e vice-versa; isso torna a interpretação de seus textos extremamente difícil.

METAL/PLANETA REGENTE:

Ouro – Sol

Prata – Lua

Mercúrio – Mercúrio

Cobre – Vênus

Estanho – Júpiter

Ferro – Marte

Chumbo – Saturno

Figura 1: Os Sete Metais da Alquimia e seus planetas regentes.

Além dos sete metais, havia também outros elementos e compostos em uso: vitríolo, antimônio (o lobo cinzento ou estribita), salitre (nitrato de potássio), uma combinação de ácido sulfúrico e ácido nítrico (chamado aqua regis), ácido nítrico (aqua fortae), água, sal amoníaco (cloreto de amônio), alúmen (sulfato de alumínio e potássio) e sal, entre outros.

É importante lembrar que os elementos que possuíam as mesmas propriedades foram classificados sob o mesmo nome; por exemplo, os compostos mais combustíveis com os quais os alquimistas trabalharam receberam o nome de “enxofre”, embora claramente não sejam todos enxofre elementar. Mercúrio era bem conhecido por sua capacidade de se unir e era famoso por seu brilho e maleabilidade. Mas os alquimistas rotularam muitas substâncias como “mercúrio” – aquelas que eram macias, brilhantes e fáceis de trabalhar, o que inclui a maioria dos metais – e às vezes é difícil determinar exatamente do que eles estão falando. Mais uma vez, os próprios alquimistas nunca são claros sobre a qual “enxofre” ou “mercúrio” eles estavam se referindo, o que só agrava o problema da tradução.

As três substâncias mais importantes na alquimia eram mercúrio, enxofre e sal. Os alquimistas acreditavam que todos os metais eram compostos de mercúrio e enxofre, em diferentes proporções e graus de pureza. O mercúrio também era conhecido como mercúrio ou sangue de unicórnio e era usado para fazer óxido de mercúrio vermelho aquecendo-o em uma solução de ácido nítrico. Um espesso vapor vermelho pairava sobre a solução e cristais vermelhos brilhantes precipitavam no fundo. Isso convenceu os alquimistas de que o mercúrio transcendia os estados líquido e sólido e, consequentemente, tanto o céu quanto a terra, a vida e a morte. Mercúrio foi a causa da “perfeição” nos metais e deu ao ouro seu brilho. Um alquimista desconhecido, citando Arnold de Villanova, escreve: “O mercúrio é a forma elementar de todas as coisas fusíveis; pois todas as coisas fusíveis, quando derretidas, se transformam nela, e se mistura com elas porque é da mesma substância que elas. Tais corpos diferem do mercúrio em sua composição apenas na medida em que está ou não livre da matéria estranha do enxofre impuro”. 10 O “mercúrio filosófico”, presente na busca do buscador pela iluminação, era absolutamente necessário para a conclusão da Magnum Opus. Na alquimia, uma serpente ou cobra geralmente representa mercúrio.

Os alquimistas acreditavam que um excesso de enxofre nos metais causava impurezas. Ao eliminar o excesso de enxofre por meio de um processo de purificação, eles ficariam com mercúrio puro ou mercúrio. Geber chamou o enxofre de “a gordura da terra, por decocção temperada na mina da terra engrossada, até ser endurecida e seca”. 11 Ele considerava o excesso de enxofre como causa de imperfeição nos metais, e escreve que uma das causas da corrupção dos metais pelo fogo “é a inclusão de um enxofre ardente na profundidade de sua substância, diminuindo-os por Inflamação, e exterminando também em Fumo, com Consumo extremo, tudo o que Argentvive (a “prata viva”) neles é de boa Fixação.” 12 Ele assumiu, além disso, que os metais continham dois tipos de enxofre: enxofre incombustível e enxofre combustível, sendo o segundo aparentemente considerado uma impureza.13 Um alquimista posterior diz que o enxofre é “mais facilmente reconhecido pelo espírito vital nos animais, a cor nos metais, o odor nas plantas.” 14 Para piorar a situação, o termo enxofre também foi dado a qualquer substância de cores vivas.

De acordo com The Hermetic House: Alchemy Ancient and Modern (A Casa Hermética: Alquimia Antiga e Moderna), essa “teoria do enxofre-mercúrio dos metais foi defendida por alquimistas famosos como Roger Bacon, Arnaldo de Villanova e Raimundo Lúlio”. 15 O sal, por outro lado, foi uma adição tardia à alquimia. O sal foi o início e o fim da Grande Obra, e esse conceito que será extremamente importante em nossa análise dos livros. Assim como o mercúrio e o enxofre, os alquimistas não se referiam ao sal de mesa aqui. Qualquer substância que fosse resistente ao fogo era chamada de “sal”. Isaac da Holanda e Basílio Valentim tentaram explicar as diferenças nos metais pela quantidade de mercúrio, enxofre e sal que continham. Por exemplo, o cobre, que é brilhantemente colorido, contém um excesso de enxofre, enquanto o ferro, que é duro, contém um excesso de sal. Paracelso e outros aprovaram entusiasticamente a adição de sal à lista de substâncias alquímicas, embora o sal permanecesse menos importante que o mercúrio ou o enxofre.

O vitríolo é outra substância que encontraremos no decorrer de nossa análise. É o líquido mais importante na alquimia, sem exceção, servindo como catalisador para todas as reações subsequentes. Foi destilado a partir de uma substância oleosa e verde (sulfato de cobre) que se formou naturalmente a partir do desgaste do cascalho com enxofre. Este Vitríolo Verde é simbolizado pelo Leão Verde em desenhos alquímicos. Depois de recolhido, foi aquecido e decomposto em compostos de ferro e ácido sulfúrico. O ácido foi então separado por destilação. A primeira destilação produziu um líquido marrom que cheirava a ovos podres (enxofre), mas a destilação posterior produziu um óleo amarelo quase inodoro chamado simplesmente vitríolo. O nome também foi usado para vários sais de sulfato, como sulfato de cobre (vitríolo azul, ou raramente vitríolo romano), sulfato de zinco (vitríolo branco), sulfato de ferro (II) (vitríolo verde), sulfato de ferro (III) (vitríolo de Marte), ou sulfato de cobalto (vitríolo vermelho). O vitríolo dissolve facilmente o tecido humano e é severamente corrosivo para a maioria dos metais, embora não tenha efeito sobre o ouro. A importância do Vitríolo nos romances não pode ser subestimada; sem ela, Harry não pode passar pelos estágios de transformação para a iluminação, mesmo quando as coisas parecem irreprimivelmente sombrias.

O ácido sulfúrico reage com a maioria dos metais para produzir gás hidrogênio e um sulfato metálico. Essas reações fazem com que o ácido ferva e pode explodir. A única maneira de combater um incêndio de ácido sulfúrico é com espuma ou outros agentes de terra seca para evitar que ferva. Uma vez que ferve, libera gases ácidos que podem matar.

Em Harry Potter, essas quatro substâncias são simbolizadas pelos seguintes caracteres, e estes serão discutidos em maiores detalhes: Mercúrio=Dumbledore, Enxofre=Hagrid, Sal=Sirius e Vitriol=Snape. Os outros personagens também têm seus lugares. Três casais representam a união de enxofre e mercúrio ou o Grande Casamento: Tiago e Lílian; Ron e Hermione (o “casal briguento”); e Bill e Fleur. Além disso, o nome completo de Ginny, Ginevra, significa “espuma branca”. Como mencionado nos parágrafos sobre vitríolo, a única coisa que pode combater um incêndio de ácido sulfúrico é a espuma.

  1. Os Sete Estágios da Transformação Alquímica:

Segundo fontes tradicionais, havia sete estágios de alquimia, cujo produto final era a Pedra Filosofal. Os primeiros quatro passos ocorrem no Abaixo, no reino da matéria. Os últimos três passos acontecem no Alto, no reino da mente e da imaginação criativa. Embora cada livro represente um estágio na transformação, os ciclos de alquimia também estão presentes em cada livro, começando com Harry na casa dos Dursley (o Estágio Negro) e terminando com a importante conversa de Dumbledore e a viagem de trem para casa (o Estágio Vermelho).

Cada estágio está relacionado a uma cor, substância alquímica e metal, e cada um tem um lugar específico na criação da Pedra. De acordo com outras fontes, como George Ripley e Basílio Valentino, havia Doze Chaves ou Portões. Para os propósitos desta discussão, no entanto, vamos nos limitar aos sete estágios tradicionais e analisá-los como eles se relacionam com o mundo de Harry Potter. (veja a figura 2) As primeiras cinco fases juntas são chamadas do Estágio Negro ou melanose; o Estágio Branco é destilação ou leucose e o Estágio Vermelho é coagulação ou iose. A iose também é conhecida como fase roxa, porque o material fica roxo durante o processo de coagulação.

Ano 1: A Pedra Filosofal:

No universo de Rowling, a Pedra Filosofal e o Elixir da Vida desempenharam o papel principal no primeiro livro. Lord Voldemort, arrancado de seu corpo onze anos antes, precisa que a Pedra permaneça viva até que possa construir um novo corpo, reduzindo-se a se alimentar de sangue de unicórnio, uma caricatura tão horrível que a partir de então levará uma meia-vida amaldiçoada. Hogwarts se torna um lugar de intriga e perigo para Harry e seus amigos enquanto eles tentam desvendar o mistério do roubo no Banco de Gringotes e evitar que a Pedra caia em mãos erradas. Eventualmente, Harry consegue, no processo descobrindo dentro de si suas próprias habilidades e o segredo do sacrifício de sua mãe por ele. Voldemort não recebe a Pedra e é forçado a fugir para a Albânia, não melhor do que quando voltou para a Grã-Bretanha.

Este é o início da jornada de Harry. Ele começa como uma massa confusa, sozinho sob os cuidados de parentes abusivos, e então leva o choque de sua vida quando Hagrid lhe diz que é um bruxo. A partir daí, ele precisa quebrar (dissolver) tudo o que aprendeu e começar a construir novamente (coagular). Ele aprende no processo que não é apenas um mago; ele é O Menino Que Sobreviveu. Para que ele fique completamente livre de Voldemort, ele deve dissolver o vínculo entre eles, um processo que levará mais seis livros para ser concluído.

Conhecemos Harry pela primeira vez no Capítulo 2, abusado por seus parentes trouxas e confinado em seu armário embaixo da escada. A impressão que temos é a de um menino que está sozinho no mundo, sem um amigo e sem esperança de que sua situação mude. E então, de repente, todo o seu mundo muda. Ele descobre que é um bruxo. O agente dessa mudança profunda é Rúbeo Hagrid, que passará a desempenhar um papel crucial na série. O nome Rúbeo significa “vermelho”, e logo descobrimos que Hagrid tem uma queda por criaturas perigosas. Ele é atencioso e carinhoso, algo que não esperaríamos em um homem tão grande; que ele seja retratado como tal por Rowling não é por acaso, como veremos nos livros posteriores.

De acordo com Adam McLean em seu The Seven Stages of Transformation (Os Sete Estágios da Transformação), este primeiro estágio da Grande Obra, chamado calcinação, é a quebra da massa confusa (massa confusa) pelo fogo. É representado pelo ácido sulfúrico, um potente corrosivo que corrói a pele e reage com todos os metais, exceto o ouro. Os alquimistas criaram o ácido sulfúrico a partir do vitríolo, o agente altamente corrosivo discutido anteriormente. A massa confusa caótica tem que passar por um longo processo no qual é repetidamente dissolvida e coagulada (solve et coagula) e daí surge a prima materia, que é a matéria-prima para a fabricação do ouro. O psicólogo Carl Jung estava muito ocupado com os aspectos arquetípicos da alquimia e ficou impressionado com as semelhanças entre o opus magnum e o processo psicanalítico. Na psicanálise de Jung, a massa confusa do subconsciente é o instrumento primordial para alcançar um estado de equilíbrio e completude mental. A própria calcinação representava a quebra do ego e os apegos às posses materiais. Através deste processo o Buscador torna-se introspectivo e começa a avaliar a sua vida.

A massa confusa é descrita como uma cobra segurando sua cauda – o Ouroboros. A cobra era frequentemente usada como um símbolo para a dualidade – seu corpo alongado separando as polaridades da cabeça e da cauda. Às vezes, a figura de um dragão alado era usada aqui no lugar da cobra, para fechar o círculo com o dragão no início do trabalho. Quando a cobra ou dragão agarrou sua cauda, uniu as polaridades em um círculo, um símbolo para os alquimistas para alcançar a solidez entre as energias dualistas das forças da alma. A criação da Pedra Filosofal foi a formação de uma base interna sólida sobre a qual os filósofos alquímicos puderam construir suas personalidades e experimentar toda a potencialidade de serem humanos.16

Isso é o que Harry começa a experimentar desde o momento em que pisa no Expresso de Hogwarts. Ele está entrando em um mundo totalmente novo; um de magia e admiração, que o obriga a avaliar quem ele é e a que propósito serve. A plataforma 9 3/4 representa sua iniciação neste mundo de maravilhas, cruzando as fronteiras entre os reinos mundano e superior. Ele conhece Ron e Hermione, que imediatamente não gostam um do outro. Juntos, eles representam o Casal Brigante; rei e rainha, mercúrio e enxofre, ouro e prata, cujo Grande Casamento no final da Grande Obra permitirá que Harry alcance todo o seu potencial. Discutiremos isso mais adiante.

O nome de Hermione encontra suas raízes no deus grego Hermes, mas ainda mais importante em Hermes Trismegisto, o autor da Tábua de Esmeralda, da qual derivam todos os estudos de alquimia e ocultismo. Também é significativo que São Tiago (Potter) seja o santo padroeiro da alquimia, e o símbolo do Estágio Branco da transformação seja o lírio.

Neste ponto, encontramos dois dos personagens mais importantes de todo o livro: Alvo Dumbledore e Nicolau Flamel. As Cartas de Sapo de Chocolate de Ron são uma verdadeira fonte de informação para nós na primeira leitura do livro. Descobrimos que Dumbledore e Flamel eram parceiros; além disso, afirma-se inequivocamente que eles eram alquimistas. Dumbledore é creditado com a descoberta dos doze usos do Sangue de Dragão, que como vimos não é uma fantástica virada da imaginação de Rowling. Dumbledore repetidamente mostra-se bem familiarizado com os princípios alquímicos ao longo do livro e de fato ao longo da série.

Por outro lado, Nicolau Flamel é a pessoa mais importante em Harry Potter a nunca ser lembrada em um Cartão de Sapo de Chocolate. A razão para isso não está clara; o fato de ele ainda estar vivo não pode ser o motivo, já que Dumbledore está vivo e tem seu próprio cartão. Em todo caso, a vida de Flamel foi bastante real”sua casa em Paris, construída em 1407, ainda está de pé, na rue de Montmorency, 51, onde foi transformada em restaurante. Suas façanhas, no entanto, são lendárias entre os estudantes de esoterismo e ocultismo.

Este é o fim da Parte I. A Parte II discute a vida de Flamel, seu infame manuscrito e aborda a questão: Flamel realmente encontrou a Pedra Filosofal? Também traço o simbolismo alquímico na Câmara Secreta através do Enigma do Príncipe e além, fazendo algumas previsões para o destino dos personagens e o final da série.

Referências:

1. The Internet Sacred Text Archive. “History of the Tablet.” The Emerald Tablet of Hermes. 2005. The Internet Sacred Text Archive. 10 March 2006. http://www.sacred-texts.com/alc/emerald.htm

2. Waite, A. E. “’EIRENÆUS PHILALETHES’: An Open Entrance to the Closed Palace of the King.” The Hermetic Museum. vol. ii. London. 1893. p. 178

3. Redgrove, H. Stanley. Alchemy: Ancient and Modern. London: William Rider & Son, LTD, 1922. http://www.geocities.com/andymak252/AlchemyAncientModern.htm

4. Geber; Richard Russel. “Of the Sum of Perfection.” The Works of Geber. London : Printed for William Cooper,1678. pp. 69 – 70

5. Norton, Thomas. The Ordinal of Alchemy. London ; New York : Published for the Early English Text Society by the Oxford University Press, 1975.

6. Mileusnic, Dusan Djordjevic. Paracelsus: The Treasure of Treasures for the Alchemists. London: J.H. Oxon, 1659. The Alchemy Web Site. McLean, Adam. 1996. levity.com. 10 March 2006. http://www.levity.com/alchemy/paracel1.html

7. McLean, Adam. The Ripley Scrowle. 1450-1500. The Alchemy Web Bookshop. 10 March 2006. http://www.alchemywebsite.com/bookshop/ripley_scroll.html

8. Wikipedia. “Classic Elements.” Wikipedia Encyclopedia. 2005-06. Wikmedia. 18 Feb. 2006. http://en.wikipedia.org/wiki/Classical_elements

9. De Giorgio,Dr. Laura. “The Seven Stages of Transformation.” Alchemy. 2001-2005. Deep Trance Now. 10 March 2006. http://www.deeptrancenow.com/exc3_7operations.htm

10. Waite, A. E. “The Golden Tract concerning the Stone of the Philosophers” The Hermetic Museum vol. i. London. 1893. p. 17.

11. Geber; Richard Russel. “Of the Sum of Perfection.” The Works of Geber. London : Printed for William Cooper,1678. pp. 69 – 70

12. Ibid, p 156.

13. Ibid, p 160.

14. Waite, A. E. The Hermetic Museum. The New Chemical Light, Part II. Concerning Sulphur. vol. ii. London. 1893. p. 151

15. Redgrove, H. Stanley. Alchemy: Ancient and Modern. London: William Rider & Son, LTD, 1922. http://www.geocities.com/andymak252/AlchemyAncientModern.htm

16. De Giorgio,Dr. Laura. “First Stage – Calcination.” The Seven Stages of Transformation. 2001-2005. Deep Trance Now. 10 March 2006. http://www.deeptrancenow.com/exc3_calcination.htm

Original: http://www.the-leaky-cauldron.org/features/essays/issue1/alchemypart1/

Texto adaptado, revisado e enviado por Ícaro Aron Soares.

Postagem original feita no https://mortesubita.net/alquimia/alquimia-e-harry-potter-parte-i/

12 Motivos Para Estudar Xamanismo Universal

O xamanismo é a mais antiga prática espiritual, médica e filosófica da humanidade. Atualmente médicos, advogados, donas de casa, psicólogos, espiritualistas, místicos, estudantes, executivos, e pessoas das mais variadas crenças estão estudando e aplicando o xamanismo. Os rápidos resultados, introvisões de profundo significado, a cura espiritual, o contato com realidades ocultas, a obtenção de auto-conhecimento, a busca do poder pessoal, contribuem para o interesse nas práticas.

Por: LÉO ARTESE

1. ALTA VIBRAÇÃO

Hoje, no planeta, a vibração está mais acelerada do que nunca. As pessoas se preocupam cada vez mais com a pergunta: “O que eu realmente devo fazer na vida?” Nesta busca deparam-se com barreiras, seja com relacionamentos, trabalho, saúde, carreira e etc.

Reforçando a coragem e a determinação, o praticante de xamanismo, mobilizado por visões e vivências, expande a sua consciência, descobre o seu papel, sua finalidade na vida. Tem uma nova inspiração, uma nova visão do viver e de tudo o que foi vivido. Aprende a se harmonizar com os acontecimentos naturais da vida.

2. SENTIDO DE PERTENCIMENTO

Falta de sentido de pertencimento, ausência de rituais. O distanciamento da natureza e de si mesmo ocasionados pela sociedade moderna, são elementos que estão na origem do interesse crescente pelas práticas xamânicas nos últimos anos.

A premissa básica é o reconhecimento que todos fazemos parte da “Família Universal” e tudo está interligado. O praticante compreende o “Espírito Essencial” que está dentro dele mesmo, na natureza e em todos os seres. Ele sabe quem ele é e como se relaciona com o Universo.

3. NÍVEL DO SER

Através da consciência ordinária, não conseguimos alcançar níveis profundos do nosso ser.

A prática xamânica compreende a capacidade de entrar e sair de estados de consciência, de realidades não-ordinárias. Através desses estados especiais se alcança uma experiência divina, acessa uma fonte de Sabedoria Superior, o auto-conhecimento através das visões. São estados que permitem conexão com mitos, símbolos, verdade interior, expandir a percepção para os mistérios que estão guardados em nós mesmos.

4. CONFLITOS

Os conflitos que rodeiam o mundo são os que habitam a consciência da humanidade e também nos afetam. As atuais ameaças humanas, assim como o bem estar, são sintomas da Mente Coletiva.

As cerimônias e rituais criam ambiente propício para que cada participante possa abstrair-se do cotidiano, do mundo ordinário, entrar em estados especiais de consciência, no imaginário. Os rituais xamânicos podem trazer a consciência de que somos apenas um microcosmo, somos parte de algo maior, filhos da Terra, parte de uma terra viva.

5. GRANDES MUDANÇAS

Observando as rápidas mudanças no mundo, com fé e coragem, é que poderemos enfrentar as grandes mudanças. Parece muito difícil soluções em momentos de crise. Para isso precisamos de algo verdadeiro, simples e eficiente, para poder atravessar as águas das emoções que acompanham as transformações, e o crescimento que advém das crises pessoais.

Inspirados na sabedoria dos povos ancestrais, o xamanismo resgata o poder pessoal que está em todos nós e que provém do desenvolvimento de nossos próprios dons. Pondo em prática os nossos talentos é que podemos viver a vida com poder e excelência. Podemos ser mais eficientes do que somos, como líderes, especialistas, atletas, educadores, religiosos, comerciantes, voluntários, etc.

6. RELACIONAMENTOS

O maior desafio para a mulher/homem deste milênio é o de harmonizar suas relações e relacionamentos. Seja com a família, fornecedores, clientes, alunos, amores, amigos, chefes, funcionários, com Deus, com o Cosmos, com a Natureza, etc.

No xamanismo aprendemos a nos relacionar de quatro formas fundamentais, com os nossos quatro corpos; físico, mental, espiritual e emocional. As práticas xamânicas permitem ao espírito humano harmonizar-se com toda a Criação.

7. RITOS DE PASSAGEM

Todas as principais passagens da vida precisam ser claramente marcadas. Principalmente no tempo tão desafiante em que vivemos (puberdade, menopausa, separações, mudança de trabalho, cura, aborto, novos relacionamentos, aposentadoria e outros).

No xamanismo temos recriado esses ritos que permitem sentir o sagrado, perceber novas dimensões, profundidades e o sentido que está faltando em nossas vidas.
8. LINGUAGEM DO INCONSCIENTE

As práticas xamânicas permitem compreender melhor a linguagem do inconsciente.

Busca-se estabelecer comunicação com o nível mais profundo do ser, criar uma atmosfera sagrada que permite ir além do racional e nos modificarmos profundamente através do amor e da gratidão. Quando nos conectamos com essa extensa família da natureza, aprendemos a alinhar nossas energias para receber sua sabedoria e nos transformamos.

9. AUTO-EXPLORAÇÃO

O praticante torna-se um explorador de si mesmo. Através de um chamado interior ele vive um confronto existencial que o força a sair de uma zona de conforto, do falso brilho e da alienação.

Praticar xamanismo é ir em busca da excelência espiritual, é enxergar a realidade existente por trás dos conceitos, é se harmonizar com as marés naturais da vida. É trilhar o Caminho Sagrado, atravessando os portais da mente, das emoções, do corpo e do espírito.

10. CONHECER MISTÉRIOS

O xamanismo expande a percepção para mistérios que estão guardados em nós mesmos.

 

Aprendemos a sentir, ver e ouvir a energia. Nos religamos com o Sagrado e com a fonte criativa de tudo o que nos acontece. Aprende-se as influências e forças da Terra, e como as energias naturais afetam a vida. Tudo na natureza cresce e muda. É um ciclo. É a busca da sabedoria que contém cada folha, em cada pedra, nas mudanças de estação, nas portas de cada direção cardeal, no movimento dos ventos, nos hábitos e talentos de cada animal, nas gravações de cada pedra, com a iluminação e calor do Sol, nos mistérios das fases da Lua, nas trilhas das Estrelas. É o estudo do Livro da Natureza.

11- INÉRCIA

O maior obstáculo para o crescimento é a inércia. A inércia cria a insensibilidade, pois priva o indivíduo de novas possibilidades, cria passividade com relação à vida. Cria falta de vitalidade, limita a criatividade e predispõe ao papel de vítima.

No xamanismo universal, cada dimensão da realidade está disponível àquele que realiza o esforço de aprender a prática da viagem e os diferentes meios de consegui-lo. Assim a via xamânica permite o indivíduo viver uma experiência direta. Podemos decidir o modo que nós usaremos a energia que dispomos. Podemos ter equilíbrio entre olhar para dentro e agir para fora quando sabemos quais são os verdadeiros propósitos de nossas vidas.

12. PODERES XAMÂNICOS

Todos nós temos o potencial para desenvolver vários poderes xamânicos. Eles estão adormecidos dentro do nosso coração.

Assim, o praticante explora sua própria consciência e vai compreendendo como os fatos acontecem, deixando de ser vítima. Sente-se inspirado pelos desafios e aprende a utilizar a energia de forma a caminhar para seu crescimento.

Para praticar esse xamanismo, você pode ser de qualquer religião, ter a sua própria crença, pois a nossa ligação é com a vida. É a busca da realização, do propósito de nossa alma. É resgatar a nossa relação com o sagrado. É a crença que a verdadeira magia está dentro de cada um, no poder que temos para transformar a nossa vida, para podermos viver mais no amor, na paz e na harmonia.

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O Verdadeiro Eu, por Alan Moore

Se no budismo não existe um “Eu”, ainda assim é importante desenvolver sua pessoa (seu aglomerado que se identifica com um “Eu”) para transcender os limites impostos pela ilusão. No ocidente, onde acreditamos numa alma imortal, enfrentamos um desafio semelhante; No caso, o corpo e as formas materiais nos embotam a consciência (bloqueando as “portas da percepção”) e nos “afastam” do contato com nosso verdadeiro “Eu”, a alma. Mas engana-se se pensam que a alma é sempre um gasparzinho com sua imagem e semelhança, dentro de seu corpo de carne. Por isso vamos dar a palavra ao Alan Moore, no documentário The Mindscape of Alan Moore:

“Quando cumprimos a vontade de nosso verdadeiro Eu, nós estamos inevitavelmente cumprindo com a vontade do universo. Na magia ambas as coisas são indistinguíveis. Cada alma humana não é, de fato, UMA alma humana: é a alma do universo inteiro. E, enquanto você cumprir a vontade do universo, é impossível fazer qualquer coisa errada.

Muitos dos magos como eu entendem que a tradição mágica ocidental é uma busca do Eu com “E” maiúsculo. Esse conhecimento vem da Grande Obra, do ouro que os alquimistas buscavam, a busca da Vontade, da Alma, a coisa que temos dentro que está por trás do intelecto, do corpo e dos sonhos. Nosso dínamo interior, se preferir assim. Agora, esta é particularmente a coisa mais importante que podemos obter: o conhecimento do verdadeiro Eu.

Assim, parece haver uma quantidade assustadora de pessoas que não apenas têm urgência por ignorar seu Eu, mas que também parecem ter a urgência por obliterarem-se a si próprias. Isto é horrível, mas ao menos vocês podem entender o desejo de simplesmente desaparecer, com essa consciência, porque é muita responsabilidade realmente possuir tal coisa como uma alma, algo tão precioso. O que acontece se a quebra? O que acontece se a perde? Não seria melhor anestesiá-la, acalmá-la, destruí-la, para não viver com a dor de lutar por ela e tentar mantê-la pura. Creio que é por isso que as pessoas mergulham no álcool, nas drogas, na televisão, em qualquer dos vícios que a cultura nos faz engolir, e pode ser vista como uma tentativa deliberada de destruir qualquer conexão entre nós e a responsabilidade de aceitar e possuir um Eu superior, e então ter que mantê-lo.

Tenho estudado a escola da história do pensamento mágico e o ponto em que começou a dar errado. No meu entender, o ponto em que começa a dar errado é com o monoteísmo. Quero dizer, se olhar a história da magia, verá suas origens nas cavernas, verá suas origens no xamanismo, no animismo, na crença de que tudo o que te rodeia, cada árvore, cada rocha, cada animal foi habitado por algum tipo de essência, um tipo de espírito com o qual talvez possamos nos comunicar. E ao centro você tinha um xamã, um visionário, que seria o responsável por canalizar as idéias úteis para a sobrevivência. No momento em que você chega às civilizações clássicas, verá que tudo isto foi formalizado até certo grau. O xamã atuava puramente como um intermediário entre os espíritos e as pessoas. Sua posição na aldeia ou comunidade, imagino, era a de um “encanador espiritual”. Cada pessoa no grupo devia ter seu papel: A melhor pessoa durante uma caçada tornava-se o caçador, a pessoa que era melhor pra falar com os espíritos, talvez porque ele ou ela estivesse um pouco louco, um pouco separado do nosso mundo material normal, eles tornavam-se os xamãs. Eles não seriam mestres de uma arte secreta, mas sim os que simplesmente espalhariam sua informação pela comunidade, porque se acreditava que isto era últil para todo o grupo. Quando vemos o surgimento das culturas clássicas, tudo isso se formalizou para que houvesse panteões de deuses, e cada um destes deuses tinha uma casta de sacerdotes, que até certo ponto atuariam como intermediários, que te instruiriam na adoração a estes deuses. Então, a relação entre os homens e seus deuses, que pode ser vista como a relação entre os humanos e seus “Eus” superiores, não era todavia de um modo direto.

Quando chega o cristianismo, quando chega o monoteísmo, de repente tem uma casta sacerdotal movendo-se entre o adorador e o objeto de adoração. Tem uma casta sacerdotal convertendo-se em uma espécie de gerência intermediária entre a humanidade e a divindade que está se buscando. Já não se tem mais uma relação direta com os deuses. Os sacerdotes não têm necessariamente uma relação com Deus. Eles só têm um livro que fala sobre gente que viveu há muito tempo atrás que teve relação direta com a divindade. E assim está bom: Não é preciso ter visões milagrosas, não é preciso ter deuses falando contigo. Na verdade, se você tem algo disto, provavelmente está louco. No mundo moderno, essas coisas não acontecem; as únicas pessoas as quais se permite falar com os deuses, e de um modo unilateral, são os sacerdotes. E o monoteísmo é, pra mim, uma grande simplificação. Eu quero dizer, a Cabala tem uma grande variedade de deuses, mas acima da escala, da Árvore da Vida, há uma esfera que é o Deus Absoluto, a Mônada. Algo que é indivisível, você sabe. E todos os outros deuses, e, de fato, tudo mais no universo é um tipo de emanação daquele Deus. E isto está bem. Mas, quando você sugere que lá está somente esse único Deus, a uma altura inalcançável acima da humanidade, e que não há nada no meio, você está limitando e simplificando o assunto.

Eu tendo a pensar o paganismo como um tipo de alfabeto, de linguagem. É como se todos os deuses fossem letras dessa linguagem. Elas expressam nuances, sombras de uma espécie de significado ou certa sutileza de idéias, enquanto o monoteísmo é só uma vogal, onde tudo está reduzido a uma simples nota, que quem a emite nem sequer a entende”.

#hermetismo #Kabbalah

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‘O Xamanismo de Carlos Castañeda

Carlos César Salvador Arana Castañeda (1925 –1998) ou, simplesmente –  Carlos Castañeda, escritor cuja biografia guarda uma boa dose de mistério foi – e para muitos ainda é uma espécie de guru do autoconhecimento no contexto da cultura hippie que floresceu  entre o fim dos anos de 1960. Sua cuja fama consolidou-se durante toda a década de 1970 mantendo e  alcançando novos adeptos e admiradores durante os anos de 1980 e 1990, transcendendo portanto,  a orientação ideológica de seus primeiros leitores alcançando novas gerações da burguesia  urbana ocidental que, mesmo não sendo hippies, incorporaram vários elementos da ideologia  daquele movimento.

Curiosamente Castañeda não é tão conhecido quanto deveria pela nova esquerda ocultista que emergiu na America latina do ano 2000 para cá, pessoas que talvez devido a explosão da internet para adquirir conhecimentos deste naipe talvez tenha pegado menos em livros do que as gerações anteriores, e embora não conheça Castañeda conhece trechos e títulos inteiros de autores de outros continentes. Pra corrigir isso, a iniciativa Morte Súbita convidou a articulista Lígia Cabus para nos dar uma aula sobre a “Feitiçaria meso-americana, mas para alegria ds leitores em vez disso ela preparou todo um curso sobre o assunto.

Os 14 livros publicados de Carlos Castañeda, 11 em vida e 3 póstumos, consolidaram sua fama como o grande mestre esotérico da magia xamânica, formado na tradição meso-americana dos indígenas do México herdada dos  povos pré-hispânicos da região, especialmente os toltecas mas também, astecas e maias. Não seria errado afirmar que ele é o responsável pelo resgate do paganismo meso-americano assim como Gerald Gardner resgatou o paganismo celta. Contudo Castañeda foi muito mais a fundo do que Gardner, pois teve acesso a uma cultura viva e não apenas a registros históricos e arqueológicos. A trajetória de Castaneda no universo da magia xamânica meso-americana começou a partir de sua  condição de estudante de Antropologia da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA-EUA)  em função de uma pesquisa acadêmica destinada a instruir uma dissertação de mestrado sobre o  uso de plantas psicotrópicas (ou medicinais) entre as etnias indígenas.

Essa pesquisa inicial foi inspirada pela obra de Aldous Huxley, As Portas da Percepção que  chamou a atenção do Ocidente para os efeitos psicotrópicos da mescalina, um alcalóide  alucinógeno presente no cacto chamado Peiote (Lophophora williamsii) que era usado em rituais  por diferentes povos indígenas americanos: Porém, a investigação que começou como pesquisa acadêmica acabou por se transformar no centro  da vida do autor gerando mais uma dezena de livros autobiográficos. Aos poucos, p antropólogo  transformou-se em guru com fama de bruxo.

“No verão de 1960, quando eu era estudante de antropologia na Universidade da Califórnia, em  Los Angeles, fiz várias viagens ao Sudoeste a fim de coligir informações sobreas plantas  medicinais utilizadas pelos índios do local…tive a felicidade de conhecer um índio yaqui do Noroeste do México. Eu o chamo “Dom Juan”. Eu já conhecia Dom Juan havia um ano quando ele afinal resolveu confiar em mim. Um dia ele me explicou que possuía um certo conhecimento, que aprendera com um mestre, um “benfeitor”, como ele dizia, que o dirigira numa espécie de aprendizagem. Dom Juan, por sua vez, me escolhera para servir de seu aprendiz, mas ele me avisou que eu teria de assumir um compromisso muito sério e de que o treinamento seria longo e árduo.” (CASTANEDA, 1968 – p 6,  10)

Aquela dissertação de mestrado foi seu primeiro livro. Com o título The Teachings of Don Juan – a Yakui* way of knowledge, o texto foi publicado em 1968 em sua primeira edição em inglês pela University of California Press. No Brasil, foi lançado pela editora Record como A Erva do Diabo (a edição mais antiga que articulista conseguiu localizar data de 1970). Porém, conceitos básicos definidos em A Erva do Diabo são significativamente alterados no prosseguimento da experiência de Castaneda como aprendiz, descrita no segundo livro, tese de doutorado do autor: Uma Estranha Realidade, 1971.

O material a seguir de Ligia Cabus sob encomenda da iniciativa Morte Súbita é todo baseado no trabalho direto de Castañeda, e se destina a apresentar a visão de mundo, o caminho do guerreiro e seus aliados a quem deseja conhecer melhor as propostas do xamanismo, mas não substituí a leitura original da obra, que por sua vez não substitui a vivência real. Dividimos nosso dossiê em quatro partes que serão postadas no decorrer das próximas semanas:

Parte 1. O Caminho do Guerreiro

Feitiçaria a Meso-Americano
O Caminho do Guerreiro
Xamanismo & Alta Magia Ocidental-Européia
Os Aliados de Don Juan
O Mistério dos Aliados
Apêndice: Up-Grade do kit-Médico/Nutricional do Guerreiro

Parte 2. A Erva do Diabo

A Erva do Diabo
Primeira Porção – Vigor Físico, Força Fisica Sobrenatural
Segunda Porção – Para o Ritual de Cultivo da Datura Pessoal
Terceira Porção – Vidência & Corpo Astral
Quarta Porção – Unguento das Feiticeiras II

Parte 3. O Fuminho

O Fuminho – Psilocybe
Efeitos Psíquicos e Físicos do Fuminho
Virando Corvo: Fumo e Zoomorfose
Luzes & Trevas: O Mundo dos Corvos

Parte 4. O Peiote

O Mestre Peiote
Encontros com Mescalito

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Os Corvos de Wotan, parte 2

» Parte 2 da série sobre Odin ver parte 1

Um dos problemas em tentar se interpretar um mito tão antigo como Odin nos dias atuais é a questão de, obviamente, os dias atuais pouco ou quase nada terem a ver com os dias em que os nórdicos cantavam poemas sobre seu Deus no inverno europeu. Isso também nos leva a uma outra questão, mais profunda, que é a antropomorfização do Deus: ora, fica óbvio que o Odin-homem, filho de Bor, não pode ser o Deus do qual tudo emanou, visto que ele mesmo é filho de ainda outro deus. Mas, pelo que sabemos, Bor é citado diretamente apenas uma única vez em toda a Edda Poética, e não há registro algum de culto a este deus (em qualquer época), de modo que mesmo o fato de Odin ter um pai pode fazer parte dessa transformação do Deus em um homem divino, um deus antropomorfizado em um avatar [1].

Pelo menos neste aspecto continuamos no mesmo barco dos ancestrais europeus: temos uma dificuldade muito parecida em nos referir a Deus sem “esbarrar” em antropomorfizações do tipo. Mas isto, longe de ser um problema para o entendimento da mitologia, é na verdade um ponto de encontro entre a modernidade e a antiguidade. É claro que boa parte da simbologia que foi atribuída ao mito de Odin ao longo dos séculos teve muito a ver com o estilo de vida e as ideias, os anseios e os medos, do povo nórdico… É exatamente quando retiram Deus de seu aspecto incognoscível (ao menos para a grande maioria de nós) e os “trazem para baixo”, para nossa realidade humana, é que encontram inspiração para relatar sua realidade em inúmeras histórias fantásticas, baladas poéticas, salpicadas por panteões de deuses e um imenso conjunto de seres mitológicos, simbólicos. E, exatamente por tais histórias terem essas camadas superficiais de simples entendimento, tornou-se possível que chegassem, boca através de boca, mente através de mente, até os nossos dias atuais.

Isso não significa que não tenham muitos elementos ocultos, eternos, escondidos nas camadas mais profundas de sua narrativa. A questão é: e quem terá a lamparina para iluminar tais locais ocultos e descobrir toda a profundidade do mito? Quem, a não ser você? Quem, a não ser todo aquele que busca compreender a mitologia humana, a nossa história mais profunda, com a mente realmente aberta e arejada?

Estas são algumas das histórias mais profundas acerca de Odin… Acendam as lamparinas:

O deus errante

Talvez a mais antiga forma de representação de Odin seja a do deus errante, a vagar pelo mundo dos homens sem um destino exato, carregando um cajado (ou sua lança usual, mas utilizada como cajado), e vestindo um disfarce de nômade (sem elmos, armaduras, nem nada do tipo). Diz-se também que esta versão do deus tinha características xamânicas, que foram preservadas nas versões posteriores, mas que nesta fase eram mais “aguçadas”… Ora, se formos analisar toda a mitologia, há inúmeros casos de deuses errantes, particularmente entre os africanos, os indígenas das Américas e os xintoístas – o que essa ideia nos conecta, historicamente, é com o período pré-histórico em que fomos caçadores-coletores, e não sabíamos nada de agricultura.

Um deus errante não pode, no entanto, ser o patrono de um panteão de deuses, muito menos o governador de um reino como Asgard. Na época dos caçadores-coletores, não fazia muito sentido imaginar uma hierarquia divina, assim como não fazia muito sentido imaginar uma hierarquia entre as tribos humanas – simplesmente existiam inúmeras tribos, umas amigáveis e outras não, e inúmeros deuses ou espíritos errantes da natureza, uns amigáveis e outros não. Antes da civilização, a espiritualidade era horizontal, não vertical.

Com o surgimento da agricultura, das primeiras civilizações, e da ideia de hierarquia, o mito do deus errante aos poucos foi se transformando no mito do Deus-Pai, o Grande Xamã: não apenas de uma tribo, mas de centenas ou milhares de tribos. Odin era então o deus de todos os povos nórdicos, que agora viviam em vilas e cidades, embora ainda caçassem e guerreassem uns com os outros e, sobretudo, com os povos do sul da Europa.

Talvez por isso, apesar de Senhor de Asgard, Odin nunca tenha deixado de ser também o deus caçador, o deus errante… Você pode achar que o Odin errante jamais exerceu qualquer impacto sobre você, mas isso pode não ser verdade, principalmente se você, como eu, já leu e se maravilhou com os livros do britânico J. R. R. Tolkien – O Hobbit e O Senhor dos Anéis. Ora, ocorre que Tolkien era um grande fã da Edda Poética e, como tal, introduziu em sua Terra Média inúmeros mitos dela. Um deles era exatamente o mago Gandalf, que é totalmente inspirado pelo aspecto errante de Odin, até mesmo na aparência.

Sleipnir

Diz-se que Odin era muitas vezes visto cavalgando pelos ares em seu cavalo de oito patas (mas nenhuma asa), chamado Sleipnir. Esta é mais uma parte do mito que está claramente associada ao xamanismo. Um cavalo de oito patas já pode ser associado aos transes xamânicos, quando supõe-se que, em estados alterados de consciência, provocados por rituais específicos ou mesmo pela ingestão de plantas e/ou cogumelos alucinógenos, os xamãs antigos (assim como os modernos) tinham visões de animais se metamorfoseando em outros animais, ou adquirindo membros extras, dentre outras alucinações do tipo [2]…

Porém, além disso, Sleipnir era um cavalo voador, o que se trata de uma clara menção as “viagens” em transes xamânicos, assim como uma conexão do mundo terreno com o mundo espiritual, celeste. Esta conexão é reforçada pelo fato de Sleipnir ser também capaz de levar seu cavaleiro até o submundo (o mundos dos mortos), e o trazer de volta são e salvo.

Histórias bem mais recentes, medievais, contam que nos dias próximos ao solstício de inverno, as crianças nórdicas deixavam suas botas com cenouras, feno e açúcar, próximas as chaminés das casas, para que Sleipnir viesse e as comesse. Odin costumava recompensar tais crianças com pequenos brinquedos e doces, que no outro dia eram encontrados dentro das botas. Ora, nem preciso dizer o que isso nos lembra nos dias atuais, não é mesmo? Odin é realmente conhecido por diversos nomes…

Geri e Freki

Odin também era acompanhado por dois lobos ferozes, Geri e Freki. Ambos os nomes significam algo como “guloso”, ou até “vorazmente guloso”. Os lobos de Odin eram conhecidos por comerem bastante, realmente: isto, pois Odin sobrevivia apenas de vinho, e mesmo nas festas em seu salão real, deixava toda a carne ou qualquer outro tipo de alimento sólido para que sues lobos devorassem.

Ironicamente, encontramos uma clara referência ao ascetismo espiritual dentre um mito nórdico [3]. Odin era o Grande Xamã e, como tal, a ele apenas o vinho sagrado era necessário – tudo o que precisava para estabelecer seu poder sobrenatural, que provavelmente tinha muito a ver com as visões experimentadas em transes xamânicos. Essa ideia aparentemente estranha é reforçada pelo fato de outras tantas histórias afirmarem que o vinho de Odin é um poderoso catalisador da criatividade poética, e os poucos bardos que um dia tiveram a grande sorte de provar de seu sabor, compunham a seguir as mais belas e profundas baladas de que se tem notícia. Quem sabe, talvez mesmo os Eddas sejam fruto desta divina bebedeira!

» Na próxima parte: Odin, suas visões do mundo espiritual, e uma estranha cabeça falante…

***
[1] O termo avatar vem do hinduísmo e significa algo como a manifestação de um ser imortal em um corpo, um humano mortal como qualquer outro. Este termo obviamente não era utilizado pelos nórdicos, mas eu o estou citando como forma de me fazer compreender melhor.
[2] Para uma análise mais detalhada do xamanismo em geral, recomendo consultarem a série de artigos Xamãs ancestrais.
[3] Uma outra leitura interessante, paralela a esta, seria identificarmos os lobos Geri e Freki como os aspectos bestiais e animalescos da alma. A aventura de Odin também consistiria, portanto, de um grande autocontrole, para que seus lobos continuassem devidamente “adestrados” e controlados, e comessem “somente quando Odin assim o permitisse”.

***

Crédito das imagens: [topo] Georg von Rosen (Odin the Wanderer, 1896); [ao longo] John Howe (Gandalf, 1999); John Bauer (Odin and Sleipnir, 1911)

O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.

Prêmio Clube de Autores de Literatura Contemporânea

Pessoal, estou concorrendo com o conto “O Mensageiro” (parte do livro “Os Evangelhos de Tomé e Maria”) ao Prêmio Clube de Autores de Literatura Contemporânea. Quem puder ajudar com o voto, basta cadastrar um e-mail válido para a confirmação:

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#Mitologia #Odin #Tolkien #xamanismo

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A Busca do “Eu”, por Alan Moore

Texto poderoso do Alan Moore, traduzido pelo Acid.

“Quando cumprimos a vontade de nosso verdadeiro Eu, nós estamos inevitavelmente cumprindo com a vontade do universo. Na magia ambas as coisas são indistinguíveis. Cada alma humana não é, de fato, UMA alma humana: é a alma do universo inteiro. E, enquanto você cumprir a vontade do universo, é impossível fazer qualquer coisa errada.

Muitos dos magos como eu entendem que a tradição mágica ocidental é uma busca do Eu com “E” maiúsculo. Esse conhecimento vem da Grande Obra, do ouro que os alquimistas buscavam, a busca da Vontade, da Alma, a coisa que temos dentro que está por trás do intelecto, do corpo e dos sonhos. Nosso dínamo interior, se preferir assim. Agora, esta é particularmente a coisa mais importante que podemos obter: o conhecimento do verdadeiro Eu.

Assim, parece haver uma quantidade assustadora de pessoas que não apenas têm urgência por ignorar seu Eu, mas que também parecem ter a urgência por obliterarem-se a si próprias. Isto é horrível, mas ao menos vocês podem entender o desejo de simplesmente desaparecer, com essa consciência, porque é muita responsabilidade realmente possuir tal coisa como uma alma, algo tão precioso. O que acontece se a quebra? O que acontece se a perde? Não seria melhor anestesiá-la, acalmá-la, destruí-la, para não viver com a dor de lutar por ela e tentar mantê-la pura. Creio que é por isso que as pessoas mergulham no álcool, nas drogas, na televisão, em qualquer dos vícios que a cultura nos faz engolir, e pode ser vista como uma tentativa deliberada de destruir qualquer conexão entre nós e a responsabilidade de aceitar e possuir um Eu superior, e então ter que mantê-lo.

Tenho estudado a escola da história do pensamento mágico e o ponto em que começou a dar errado. No meu entender, o ponto em que começa a dar errado é com o monoteísmo. Quero dizer, se olhar a história da magia, verá suas origens nas cavernas, verá suas origens no xamanismo, no animismo, na crença de que tudo o que te rodeia, cada árvore, cada rocha, cada animal foi habitado por algum tipo de essência, um tipo de espírito com o qual talvez possamos nos comunicar. E ao centro você tinha um xamã, um visionário, que seria o responsável por canalizar as idéias úteis para a sobrevivência. No momento em que você chega às civilizações clássicas, verá que tudo isto foi formalizado até certo grau. O xamã atuava puramente como um intermediário entre os espíritos e as pessoas. Sua posição na aldeia ou comunidade, imagino, era a de um “encanador espiritual”. Cada pessoa no grupo devia ter seu papel: A melhor pessoa durante uma caçada tornava-se o caçador, a pessoa que era melhor pra falar com os espíritos, talvez porque ele ou ela estivesse um pouco louco, um pouco separado do nosso mundo material normal, eles tornavam-se os xamãs. Eles não seriam mestres de uma arte secreta, mas sim os que simplesmente espalhariam sua informação pela comunidade, porque se acreditava que isto era últil para todo o grupo. Quando vemos o surgimento das culturas clássicas, tudo isso se formalizou para que houvesse panteões de deuses, e cada um destes deuses tinha uma casta de sacerdotes, que até certo ponto atuariam como intermediários, que te instruiriam na adoração a estes deuses. Então, a relação entre os homens e seus deuses, que pode ser vista como a relação entre os humanos e seus “Eus” superiores, não era todavia de um modo direto.

Quando chega o cristianismo, quando chega o monoteísmo, de repente tem uma casta sacerdotal movendo-se entre o adorador e o objeto de adoração. Tem uma casta sacerdotal convertendo-se em uma espécie de gerência intermediária entre a humanidade e a divindade que está se buscando. Já não se tem mais uma relação direta com os deuses. Os sacerdotes não têm necessariamente uma relação com Deus. Eles só têm um livro que fala sobre gente que viveu há muito tempo atrás que teve relação direta com a divindade. E assim está bom: Não é preciso ter visões milagrosas, não é preciso ter deuses falando contigo. Na verdade, se você tem algo disto, provavelmente está louco. No mundo moderno, essas coisas não acontecem; as únicas pessoas as quais se permite falar com os deuses, e de um modo unilateral, são os sacerdotes. E o monoteísmo é, pra mim, uma grande simplificação. Eu quero dizer, a Cabala tem uma grande variedade de deuses, mas acima da escala, da Árvore da Vida, há uma esfera que é o Deus Absoluto, a Mônada. Algo que é indivisível, você sabe. E todos os outros deuses, e, de fato, tudo mais no universo é um tipo de emanação daquele Deus. E isto está bem. Mas, quando você sugere que lá está somente esse único Deus, a uma altura inalcançável acima da humanidade, e que não há nada no meio, você está limitando e simplificando o assunto.

Eu tendo a pensar o paganismo como um tipo de alfabeto, de linguagem. É como se todos os deuses fossem letras dessa linguagem. Elas expressam nuances, sombras de uma espécie de significado ou certa sutileza de idéias, enquanto o monoteísmo é só uma vogal, onde tudo está reduzido a uma simples nota, que quem a emite nem sequer a entende”.

#AlanMoore

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/a-busca-do-eu-por-alan-moore

As Boas Novas

» Parte 1 da série “Reflexões sobre a evangelização”

Evangelizar: de “evangelista”, εúάγγελος em grego koiné (dialeto popular da antiguidade), que significa “boas novas” ou “boas notícias”. Evangelizar significa, portanto, trazer as boas novas ao conhecimento dos homens.

Nem todos concordarão com a definição dada acima para o verbo “evangelizar”. Para um termo tão essencial ao cristianismo, surpreende que seja tão complexo defini-lo – mesmo entre os próprios cristãos.

Há muitos religiosos (não apenas cristãos) que creem piamente que sua principal função enquanto pertencentes a um grupo doutrinário ou igreja seja precisamente repercutir aos quatro cantos do mundo tudo o que sua respectiva doutrina dita.

No caso particular de doutrinas que nos trazem mandamentos e preceitos morais, isso invariavelmente significa que, para tais religiosos, evangelizar significa não apenas trazer um consolo espiritual ou alguma boa notícia do reino de Deus, mas também ditar como as pessoas devem se portar em sociedade, normalmente afim de não caírem em “tentações e maus caminhos”, e alcançarem o Céu após a morte.

Eu costumo sempre lembrar que religião e igreja não são a mesma coisa. Religião (re-ligare) é a religação a Deus ou ao Cosmos, uma experiência profundamente subjetiva que é percebida e praticada pelos homens desde a pré-história – particularmente através do xamanismo. Igreja (ekklesia) significa uma comunidade dos escolhidos de Deus – um grupo ou elite de pessoas que teoricamente possuem alguma espécie de “conhecimento oculto” capaz de fazer com que os homens possam se elevar ao Céu ou alcançar o reino de Deus.

A definição de religião pressupõe um Deus universal, um ser cósmico que pode inclusive ser confundido ou interpretado como o próprio Cosmos em si, e para o qual cada um de nós se inclina a retornar, passo a passo, por seus próprios meios, seguindo um caminho pessoal, subjetivo, intransferível. Já a definição de igreja dá a entender que Deus está a eleger um grupo de escolhidos, destinados a alguma tarefa especial no mundo – e a todos os demais, aos que se afastaram de sua doutrina, geralmente não são esperadas boas notícias após a morte. No melhor dos casos, serão enviados a alguma espécie de “limbo” onde irão aguardar um julgamento que, teoricamente, pode ser “aliviado” pelas orações daqueles que estão no grupo de escolhidos, os eclesiásticos.

Dessa forma, embora todo membro de igreja seja religioso, nem todo religioso será um membro de igreja.

Mesmo os evangelhos, por exemplo, não foram somente aqueles quatro escolhidos pela “comissão” de Constantino para compor o Novo Testamento. Existiriam muitos outros, e, sobretudo, existiriam muitos seguidores destes outros textos, taxados de apócrifos (segundo alguns, “errado, falso, não autêntico”, segundo outros, “livro ou texto secreto, conhecimento oculto”). Estes que foram chamados por Constantino de gnósticos, e perseguidos e assassinados ou obrigados a se “converter” ao “cristianismo oficial”, na verdade sempre chamaram a si mesmos de cristãos, e praticavam sua religiosidade em pequenos grupos, em colinas, em cavernas, em qualquer lugar – pois compreendiam que o reino de Deus abrange todo e qualquer lugar, todo e qualquer tempo, e não necessitavam de apóstolos ou padres para lhes ensinar a direção.

Muitos evangelhos apócrifos foram escondidos em vasos e enterrados em cavernas na região onde viveu Jesus, pois do contrário teriam sido queimados como todos os outros condenados por Constantino. Mas ao longo dos séculos eles foram sendo desenterrados, na medida em que a igreja de Constantino vinha perdendo sua força e sua capacidade de ditar o que os homens deveriam ou não considerar como “autêntico”. Em Nag Hammadi foi achado um dos evangelhos mais profundos de que se tem notícia, o Evangelho de Tomé – nele Jesus nos dá uma pista de onde se encontra, afinal, o reino de Deus:

“Jesus disse: Se aqueles que vos guiam vos disserem: vê, o Reino está no céu, então os pássaros vos precederão. Se vos disserem: ele está no mar, então os peixes vos precederão. Mas o reino está dentro de vós e está fora de vós. Se vos reconhecerdes, então sereis reconhecidos e sabereis que sois filhos do Pai Vivo. Mas se vos não reconhecerdes, então estareis na pobreza, sereis a pobreza. (versículo 3)”.

Sem dúvida tal definição do reino é um tanto paradoxal. Ora, se ele já se encontra aqui e agora, dentre nós e a volta de tudo e de todos, como poderá algum padre, algum pastor, algum guru espiritual, algum evangelizador, nos apontar a correta direção?

Aparentemente, todas as direções são corretas. Porém, ao mesmo tempo, há que se ter olhos para vê-las. Não se trata, portanto, de buscar alguma espécie de grupo de escolhidos, alguma espécie de salvação do fim dos tempos, através do conhecimento de uma doutrina em específico, ou através deste ou daquele preceito moral… Não, jamais foi assim tão simples, jamais será tão fácil!

Gibran Khalil Gibran, o grande poeta do Líbano, dizia que “Nenhum homem poderá revelar-vos nada senão o que já está meio adormecido na aurora do vosso entendimento.” – Ora, é precisamente isso que nos ensinaram os grandes sábios de outrora, desde Lao Tsé a Sócrates; é precisamente isso que Jesus queria dizer com o “Mas se vos não reconhecerdes, então estareis na pobreza, sereis a pobreza”.

Estamos num mundo repleto de boas novas por todos os lados, debaixo de pedras e dentre os galhos partidos, além das nuvens e próximo a beirada dos rios e oceanos, muito além das estrelas mais longínquas e ao mesmo tempo tão próximo como nosso pensamento mais querido. Não nos cabe decorar ou recitar orações ou fórmulas mágicas para adentrar ao reino das boas novas, que estas são apenas muletas para aqueles que ainda não conseguem se erguer por si mesmos. Cabe-nos tão somente olhar para dentro, conhecer a nós mesmos, evangelizar ao nosso mais precioso inimigo.

E para aquele que conseguiu evangelizar a si próprio, aquele que alcançou tal nirvana da alma, não será sequer necessário buscar seguidores – eles mesmos o reconhecerão. Não será sequer necessário anunciar a boa nova, seu olhar já a trará como pérola misteriosa em oceano profundo. Não será sequer necessário fundar uma doutrina ou igreja, que esta já foi fundada desde o início dos tempos. A igreja é o próprio reino, a igreja é o Cosmos.

» A seguir, o pequeno manual para a conversão do infiel…

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Crédito da imagem: Neil Guegan/Corbis

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O Diabo não é tão feio quanto se pinta – I

[Update: Links corrigidos]
Post publicado no S&H em 26/4/2008,

Estou tendo alguns problemas técnicos para escrever as colunas (todos os meus livros sobre mitologias, ocultismo e história ainda estão encaixotados, o que torna um tanto quanto problemático fazer as pesquisas de dados, já que não gosto de pesquisar nada na internet) mas espero poder resolver este problema nos próximos quinze ou vinte dias.
Pretendo intercalar as matérias sobre o Sefirat haOmer com nossa programação normal. Fizemos a explicação sobre o Jesus Histórico AQUI, AQUI, AQUI e AQUI e o mais lógico para continuarmos nossa jornada através da história (até mesmo para explicar o que seria o Baphomet dos Templários mais adiante) será explicar como a Igreja Católica transformou todos os deuses das outras religiões em demônios, deturpando seus significados.
Nas próximas colunas, apresentarei a vocês Lucifer, Lilith, Astarte, Belial, Poseidon, Cernunnos, Exú e muitas outras divindades que foram covardemente desonrados pela Igreja, tornando-se caricaturas sinistras com a finalidade de causar medo aos fiéis e garantir um bom dízimo.
Para começar, Pan: o bode e os chifres…

Especialmente para a coluna de hoje, como convidado especial, tomei a liberdade de pegar emprestado um texto maravilhoso do irmão Wagner Veneziani Costa, do sensacional Blog do Editor da editora Madras.

UPDATE – Fiz uma revisão no texto para deixá-lo mais fluido e mais próximo do meu estilo do texto, pois muita gente achou o estilo do Wagner meio truncado.

O Pan (pão) Nosso de Cada Dia – A Grande Dádiva de Deus
Durante todo o texto, tentarei fazer uma análise comparativa do Deus Pan em todas as civilizações, como suas lendas, mitos, histórias infantis e as diversas palavras que surgiram do nome dele, tais como pânico, panacéia, panteísmo entre tantas outras. O Deus Pan é muitas vezes chamado de Fauno, Sylvanus, Lupercus, o Diabo (no Tarô). Seu lado feminino é a Fauna; é Exú (na Umbanda), o Orixá fálico; Capricórnio (na Astrologia); Dionísius (deus do vinho); Baco (dos famosos bacanais). Muitas vezes é comparado aos deuses caçadores; ou ainda, a Tupã (Pajé, Caboclo).

O deus Pan é uma antiqüíssima divindade grega, cultuada originalmente na região da Arcádia (uma área rural muito importante na antiguidade, pois foi o local onde muitas das Escolas de Hermetismo se reuniam). Pan é o guarda dos rebanhos que, tem por missão fazer multiplicar. Deus dos bosques e dos pastos, protetor dos pastores, veio ao mundo com chifres, orelhas e pernas de bode. Pan é filho de Mercúrio.
A explicação para a alegoria de um deus misto (bode+humano) ser filho de Mercúrio é muito simples: era bastante natural que o mensageiro dos deuses, sempre considerado intermediário, estabelecesse a transição entre os deuses de forma humana e os anteriores, de forma animal. Parece, contudo, que o nascimento de Pan provocou certa emoção em sua mãe, que ficou assustadíssima com tão esquisita conformação. De acordo com Hesíodo, quando Mercúrio apresentou o filho aos demais deuses, todo o Olimpo desatou a rir.

“Mercúrio chegou à Arcádia, que era fecunda em rebanhos. Ali se estende o campo sagrado de Cilene; nesses páramos, ele, deus poderoso, guardou as alvas orelhas de um simples mortal, pois concebera o mais vivo desejo de se unir a uma bela ninfa, filha de Dríops. Realizou-se enfim o doce himeneu. A jovem ninfa deu à luz o filho de Mercúrio, menino esquisito, de pés de bode e testa armada de dois chifres. Ao vê-lo, a nutriz abandona-o e foge. Espantam-na aquele olhar terrível e aquela barba tão espessa. Mas o benévolo Mercúrio, recebendo-o imediatamente, colocou-o no colo, rejubilante. Chega assim à morada dos imortais, ocultando cuidadosamente o filho na pele aveludada de uma lebre. Depois, apresenta-lhes o menino. Todos os imortais se alegram, sobretudo Baco, e dão-lhe o nome de Pan, visto que para todos constituiu objeto de diversão.”

As ninfas zombavam incessantemente do pobre Pan, por causa do seu rosto repulsivo, e o infeliz deus, ao que se diz, tomou a decisão de nunca amar. Mas Cupido é cruel, e afirma uma tradição que Pan, desejando um dia lutar corpo a corpo com ele, foi vencido e abatido diante das ninfas que riam.
Existem diversas lendas associadas a Pan. Uma delas diz respeito à flauta que sempre o acompanhava. Esta história diz o seguinte: Certa vez, Pan se apaixonou pela ninfa Sirinx, mas não foi correspondido. Sendo assim, Sirinx vivia fugindo do deus metade homem metade bode, até que se escondeu dele em um lago e se afogou. No lugar da sua morte, nasceram hastes de junco que Pan cortou e transformou em uma flauta de sete tubos, a qual se tornou um atributo dele. Sirinx, então, imortalizava-se.

Pan também era o deus da fertilidade, da sexualidade masculina desenfreada e do desejo carnal. Como o nome do deus significava “tudo”, no mais amplo sentido da natureza: a fertilidade. Para os alquimistas e para os estudiosos da filosofia, Pan passou a ser considerado um símbolo do Universo e a personificação da Natureza; e, mais recentemente, representante de todos os deuses.
Celebrar a Pan é celebrar a natureza, a sexualidade de maneira primal, a bebida, o prazer e a boa música. Suas festas eram marcadas por cantos, danças, vinhos e ritos de magia sexual envolvendo fertilidade e prosperidade, dedicadas às plantações, colheitas e rebanhos.

Faunos
Os romanos tinham um panteão de deuses que foi, em sua maioria, “herdado” da cultura grega. Portanto, quase todos os deuses romanos possuem seus correspondentes gregos.
Sylvanus e Faunus eram divindades latinas cujas características são muito parecidas com as de Pan, que nós podemos considerá-las como o mesmo personagem com nomes diferentes.
Entre os romanos, faunos eram deidades de florestas selvagens com pequenos chifres, pernas de cabra e um pequeno rabo. Eles acompanhavam o deus Faunus, eram alegres, habilidosos, e viviam sempre cantando e se divertindo. Faunos são análogos aos sátiros gregos.
Faunos é o deus da natureza selvagem e da fertilidade, também considerado o doador dos oráculos. Como o protetor dos rebanhos, ele também é chamado Lupercus (”aquele que protege dos lobos”).

Uma tradição particular conta que Faunus era o rei de Latium, o filho de Picus e neto do deus Saturno. Depois de sua morte, ele foi divinizado como Fatuus, e surgiu um culto pequeno em torno da sua pessoa, na floresta sagrada de Tibur (Tivoli). Em 15 de fevereiro (a data de fundação do templo), seu festival, o Lupercalia, era célebre. Sacerdotes(chamados Luperci) vestiam peles de cabra e caminhavam pelas ruas de Roma batendo nos espectadores com cintos feitos de pele de cabra. Outro festival dedicado à sua homenagem era o Faunalia, realizado próximo das épocas de colheita, para invocar seus atributos de prosperidade.

Sua contraparte feminina é a Fauna, a deusa das florestas. Ao contrário de Pan, que possuía os atributos da virilidade associados ao bode, Fauna era a senhora das matas e de todas as plantas. Suas seguidoras eram as Ninfas e as Dríades (que curiosamente possuem a mesma origem etmológica da palavra Druida – significando “aqueles que conhecem as árvores” ).

Levando chifres
Para os católicos (e posteriormente os evangélicos), os chifres passaram a representar o Demônio, o cordeiro ou cabrito, que era sacrificado em redenção do pecado. Mas os chifres sempre foram sinais de algo Divino. Na Babilônia, o grau de importância dos deuses era identificado pelo número de chifres atribuídos a eles. Moisés fora representado plasticamente com chifres na testa (na famosíssima estátua de Michelangelo), bem como o próprio Alexandre, o Grande, encomendara uma pintura do seu retrato, mostrando-se com chifres de carneiro na testa.
Os antigos judeus conheciam esse simbolismo, recebido das mitologias circunvizinhas. Se’irim geralmente pode ser traduzido por bode. Habitam os lugares altos, os desertos, as ruínas… No Gênesis, lemos que os filhos de Jacó degolaram um bode para com seu sangue manchar a túnica de José (Gn. 37:31).
O termo vulgar “bode” é designado pela mesma palavra que se emprega em outras partes para designar um sátiro. A palavra hebraica sa’ir significa propriamente “o peludo” e se aplica tanto ao bode como a qualquer outro sátiro, elemental ou divindade inferior, na mentalidade popular.

O termo “levar chifres” como pejorativo veio mais tarde, por conta dos romanos. As rainhas guerreiras celtas possuíam haréns de homens responsáveis por lhe dar prazer enquanto o rei estivesse em batalhas (de maneira análoga aos haréns tão comuns de mulheres). Isto, para os romanos (e, posteriormente para os católicos), era um absurdo. Na sua visão machista, os reis celtas que permitiam estes concubinos eram “menos homens” que os guerreiros romanos e começaram a espalhar a associação entre o “portar chifres” (lembrem-se do que já falamos sobre a simbologia dos chifres de alce e os reis europeus) e o “sua mulher dormiu com outro homem”.
Um desdobramento interessante que falarei no futuro é a história de Gwenhwyfar, uma destas rainhas, que deu origem posteriormente à personagem chamada Guinevere, esposa do rei Arthur. Gwenhwyfar possuía concubinos enquanto o rei estava em batalhas e, mais tarde, na cristianização destes mitos, o concubino de Guinevere se torna seu “amante” (e, posteriormente, nas mãos do Francês Chrétien de Troyes, este amante do rei Inglês se torna o cavaleiro francês Lancelot… é… a história do Rei Arthue que vocês conhecem é uma salada de frutas histórica composta de várias lendas empilhadas, mas isso é tema para outra coluna outro dia)

Para os Celtas, o Deus Cornífero
O Deus Cornífero é representado por um ser com cabeça humana, chifres e pernas de cabra ou cervo. Ele é o guardião das entradas e do círculo mágico que é traçado para se começar o ritual. É o deus pagão dos bosques, o rei do carvalho e senhor das matas. É o deus que morre e sempre renasce (o Senhor das Estações do ano). Seus ciclos de morte e vida representam nossa própria existência.
Os chifres e a capa vermelha representavam o rito de iniciação (eu falei sobre isso nas colunas anteriores), tanto que estão presentes até os dias de hoje na figura alegórica da Coroa e da Capa Vermelha dos Reis europeus.

Mas por que essa imagem diabólica tão horripilante? O chifre apresentava conotação sagrada, como um sinal “divino”, desde dez mil anos a.C., no período Neolítico (thanks TH13), representando também fertilidade e vitalidade. Acreditava-se que os chifres recebiam poderes especiais vindos das estrelas e dos céus (a simbologia da cauda formada pelos cometas). Basta observar as histórias da Cornucópia, que eram chifres das quais brotavam frutas, verduras e vegetais suficientes para alimentar a todos, em um sinal de fartura e prosperidade.

Existem várias versões do Deus Cornífero, como o Deus Cernunnos (versão celta e galo-romana). Na religião pagã Wicca, criada por Gerald Gardner, acredita-se que o Deus Cornífero seja o guardião das entradas e do círculo dos ritos.
Segundo a Wicca, o Deus Cornífero nasceu da grande Deusa, divindade suprema para os wiccanianos, representada por várias faces.
Uma das versões do Deus Cornífero é a que o considera protetor dos pastores e dos rebanhos. Uma versão do Deus Osíris – considerado pelos egípcios o deus da agricultura e da vida para além da morte. Ver posts antigos onde eu relaciono Osíris com o “Green man”.
Em algumas cavernas da França, foram encontradas pinturas do período Paleolítico, com homens fantasiados de veado, representando o Deus Cernunnos. Muitas vezes, ele era representado em imagens, acompanhado de uma serpente, e em tempos mais modernos, com uma bolsa cheia de moedas.
Geralmente, ele é representado sentado e de pernas cruzadas, talvez assumindo a posição de um xamã (vamos falar mais sobre xamanismo e suas relações com os druidas nas próximas colunas).
Considerado também o deus da caça e da floresta, hoje é um deus ou ser divino quase esquecido, lembrado apenas nas religiões pagãs.

Podemos perceber claramente que nenhum destes deuses nunca foi relacionado a um ser “infernal”. Mas nos dias atuais, em que imaginamos o Diabo ou um ser infernal, o que nos vem à mente é uma imagem demoníaca, maléfica, um ser com chifres e pernas de cabra. Existiu conspiração religiosa na deturpação da imagem do Deus Cernunnos? Teriam criado essa farsa apenas para acabar com as antigas religiões? A resposta parece óbvia.

Exu – O Orixá Fálico
Exu também tem os seguintes epítetos ou atributos: Exu Lonan, o Senhor dos Caminhos; Exu Osije-Ebo, o Mensageiro Divino; Exu Bará, o Senhor (do movimento) do Corpo; Exu Odara, Senhor da Felicidade; Exu Eleru, o Senhor da Obrigação Ritual; Exu Yangi, o Senhor da Laterita Vermelha; Exu Elegbara, o Senhor do Poder da Transmutação; Exu Agba, aquele que é o ancestral; Exu Inã, o Senhor do Fogo.
Exu é o Orixá que rege o jogo de Búzios, uma modalidade divinatória. Diz um mito que Exu é o único Orixá que tinha esse poder, mas decidiu compartilhá-lo com Ifá em troca de receber as oferendas e pedidos antes de qualquer outro Orixá.
Assim como Hermes, Exú é o mensageiro dos deuses, seu poder é o de receber e transportar os pedidos e oferendas dos seres humanos ao Orum, o Mundo dos Deuses. É o Senhor dos Caminhos, das encruzilhadas, das trocas comerciais e de todo tipo de comunicação. Ele representa também a fertilidade da vida, os poderes sexual, reprodutivo e gerativo. Não podemos nos esquecer de que o sexo, diferentemente do que os católicos e evangélicos dizem (uma coisa de luxúria, de pecado), é na verdade um ATO SAGRADO. Talvez por isso, por ele ser o poder sexual, os cristãos o comparem com o Demônio.
A origem do mito de associação de Exú com o Diabo vem dos Jesuítas. Quando os escravos estavam fazendo o sincretismo de suas religiões africanas com os Santos Católicos, os Jesuítas desconfiaram que havia alguma coisa errada… nas religiões africanas, não existe a figura do diabo, apenas de deuses com características humanas. Então eles encontraram um símbolo fálico representando o exú e tiveram a “brilhante idéia” de associar o pênis ereto com o sexo (pecado) com o diabo para completar o panteão católico.
Adicione dois séculos de deturpação católica e (posteriormente) evangélica e temos a imagem do exú como ela é nos dias de hoje.
Sem falar que normalmente a figura do Senhor Exu é colocada com chifres, rabo, pintado de vermelho, imagem bem parecida com a que os cristãos “desenham” o Diabo… Então, o Exu verdadeiro das religiões africanas nada tem em comum com o diabo lúdico, e as esquisitas estátuas comercializadas e utilizadas arbitrariamente em terreiros são frutos da imaginação de visionários que não enxergam nada além das manifestações dos baixos sentimentos em formas deprimentes, nos seres que lhes são afins.
Laroiê, Senhor Exu! (”Ninguém tira a saúde e a riqueza”).

Diabo e Ayin – Caminho 26
Quando pergunto a qualquer pessoa se Deus é onipresente, onisciente e onipotente, e elas normalmente respondem que sim, concluo com a seguinte pergunta: Então, quem é o Diabo?

Elas ficam sem resposta… Ora, esse Demônio, tão difundido pelas religiões judaico-cristãs, não existe. O conceito de bem ou mal é relativo, está intrinsecamente ligado ao ser humano, dentro de cada um de nós e não fora.

O Diabo só existe dentro de nossos corações frágeis e reina naqueles que não dominam suas emoções e navegam conforme a maré dos acontecimentos, sem rumo certo. Na Kabbalah, o Diabo é o caminho que leva de Hod (a Razão) a Tiferet (a Iluminação). É o caminho da esquerda, o entendimento de que para atingirmos a iluminação devemos encarar nossos erros e medos de frente e nos tornarmos responsáveis por tudo aquilo que fazemos, de maneira fria. O arcano do tarot representa nossas paixões, vontades verdadeiras e intrínsecas, removidas de falsidade ou falsas hipocrisias. Talvez por isso seja tão temida entre os leigos que mexem com o tarot, que o associaram à “maldade”. Seu signo associado é Capricórnio, o signo da tradicionalidade, da severidade, das linhas corretas.

Tupan
Tupã ou Tupan (que na língua tupi significa “trovão”) é uma entidade da mitologia tupi-guarani.
Os indígenas rezam a Nhanderuvuçu e a seu mensageiro Tupã, que não era exatamente um deus, mas sim uma manifestação de um deus.
Tupã não era “deus” como os jesuítas quiseram fazer com suas “brilhantes idéias” para catequizar à força os índios, mas sim um Mensageiro dos Deuses, ou seja, possuía as mesmas características de Hermes e Exú.
Para os que acham que isso é exagero, basta verificar o que o nosso amigo jesuíta Padre Quevedo inventa e distorce sobre a Umbanda e o kardecismo nos dias de hoje e veremos que os Jesuítas CONTINUAM com essa mania de mentir e distorcer a cultura alheia, mesmo em pleno 2008.

Câmara Cascudo afirma que Tupã “é um trabalho de adaptação da catequese”. Na verdade, o conceito “Tupã” já existia, não como divindade, mas como conotativo para o som do trovão (Tu-pá, Tu-pã ou Tu-pana, golpe/baque estrondeante); portanto, não passava de um efeito, cuja causa o índio desconhecia e, por isso mesmo, temia. Osvaldo Orico é da opinião de que os indígenas tinham noção da existência de uma Força, de um Deus superior a todos. Assim ele diz: “A despeito da singela idéia religiosa que os caracterizava, tinha noção de Ente Supremo, cuja voz se fazia ouvir nas tempestades – Tupã-cinunga, ou “o trovão”, cujo reflexo luminoso era Tupãberaba, ou “relâmpago”. Os índios acreditavam ser o deus da criação, o deus da luz. Sua morada seria o Sol.

Pandora
Na mitologia grega, Pandora (”bem-dotada”) foi a primeira mulher, criada por Zeus como punição aos homens pela ousadia do titã Prometeu em roubar dos céus o segredo do fogo.
“Caixa de Pandora” é uma expressão utilizada para designar qualquer coisa que incita a curiosidade, mas que é preferível não tocar (como quando se diz que “a curiosidade matou o gato”). Tem origem no mito grego da primeira mulher, Pandora, que por ordem dos deuses abriu um recipiente (há polêmica quanto à natureza deste, talvez uma panela, um jarro, um vaso, ou uma caixa tal como um baú…) onde se encontravam todos os males que desde então se abateram sobre a humanidade, ficando apenas aquele que destruiria a esperança no fundo do recipiente. Existem algumas semelhanças com a história judaico-cristã de Adão (Adan) e Eva em que a mulher é, também, responsável pela desgraça do gênero humano.

Desde que Zeus (Júpiter) e seus irmãos (a geração dos deuses olímpicos) começaram a disputar o poder com a geração dos Titãs, Prometeu era visto como inimigo, e seus amigos mortais eram tidos como ameaça.
Sendo assim, para castigar os mortais, Zeus privou o homem do fogo; simbolicamente, da luz na alma, da inteligência… Prometeu, “amigo dos homens”, roubou uma centelha do fogo celeste e a trouxe à terra, reanimando os homens.
Ao descobrir o roubo, Zeus decidiu punir tanto o ladrão quanto os beneficiados. Prometeu foi acorrentado a uma coluna e uma águia devorava seu fígado durante o dia, o qual voltava a crescer à noite.
Para castigar o homem, Zeus ordenou a Hefesto (Vulcano) que modelasse uma mulher semelhante às deusas imortais e que tivesse vários dons. Atena (Minerva) ensinou-lhe a arte da tecelagem, Afrodite (Vênus) deu-lha a beleza e o desejo indomável, Hermes (Mercúrio) encheu-lhe o coração de artimanhas, imprudência, ardis, fingimento e cinismo, as Graças embelezaram-na com lindíssimos colares de ouro… Zeus enviou Pandora como presente a Epimeteu, o qual, esquecendo-se da recomendação de Prometeu, seu irmão, de que nunca recebesse um presente de Zeus, o aceitou. Quando Pandora, por curiosidade, abriu uma caixa que trouxera do Olimpo, como presente de casamento ao marido, dela fugiram todas as calamidades e desgraças que até hoje atormentam os homens. Pandora ainda tentou fechar a caixa, mas era tarde demais: ela estava vazia, com a exceção da “esperança”, que permaneceu presa junto à borda da caixa.
Outra lenda grega diz que Pandora é a deusa da ressurreição. Por não nascer como a divindade, é conhecida como uma semideusa. Pandora era uma humana ligada a Hades. Sua ambição em se tornar a deusa do Olimpo e esposa de Zeus fez com que ela abrisse a ânfora divina. Zeus, para castigá-la, tirou a sua vida. Hades, com interesse nas ambições de Pandora, procurou as Pacas (dominadoras do tempo) e pediu para que o tempo voltasse. Sem a permissão de Zeus, elas não puderam fazer nada. Hades convenceu o irmão a ressuscitar Pandora. Graças aos argumentos do irmão, Zeus a ressuscitou dando a divindade que ela sempre desejava. Assim, Pandora se tornou a deusa da ressurreição. Para um espírito ressuscitar, Pandora entrega-lhe uma tarefa; se o espírito cumprir, ele é ressuscitado. Pandora, com ódio de Zeus por ele tê-la tornado uma deusa sem importância, entrega aos espíritos somente tarefas impossíveis. Desse modo, nenhum espírito conseguiu nem conseguirá ressuscitar.

Peter Pan
O menino mágico que voa sem medo de envelhecer, mas não quer crescer. Peter Pan leva-nos aos gnomos e fadas comuns em histórias européias antigas. Esses “arquétipos”, como Jung deveria dizer, têm reaparecido na “mente coletiva” com grande freqüência, ou seja, Peter, visto pela ótica mítica do deus Pan, deus dos bosques, representa a natureza selvagem que habita dentro de cada um de nós.
Peter Pan toca sua flauta com nostalgia no filme de Hogan. Sem tristeza, porém. Afinal, ele só pode ter pensamentos felizes, pois só assim se pode voar.
Terra do Nunca, fadas, imaginação… fica de lição de casa para os sedentários assistir novamente ao desenho animado do Tio Disney.

Finalizando…
Os chifres sempre foram representações da luz, da sabedoria e do conhecimento entre os povos antigos. Portanto, como podemos perceber, desde tempos imemoráveis os chifres foram considerados símbolos de realeza, divindade, fartura, e não símbolos do mal como muitos associaram e ainda associam. O chifre sempre simbolizou a força de um animal, ou o poder de uma pessoa ou nação.
Podemos dizer, então, que o Deus, a Grande Mãe e o Deus Cornífero representam juntos as forças vitais do Universo Cornífero. É o mais alto símbolo de realeza, prosperidade, divindade, luz sabedoria e fartura. É o poder que fertiliza todas as coisas existentes na Terra.

Já as patas de bode sempre representaram o contato com a terra, a virilidade, a prosperidade e a fertilidade, próprias de quem trabalha no campo e não tem medo de galgar as montanhas do espírito em direção ao seu topo.

Pan representa a Árvore da vida, a liberdade do ser humano de desfrutar a natureza em paz e harmonia, de manter o contato com a divindade e a liberdade de pensamento. pan representa o sexo como fonte de prazer para o homem e a mulher, bem como uma maneira de se chegar ao estado divino sem a necessidade de “pedágios”.

E por esta razão, foi tão necessário para a Igreja transformá-lo no “adversário” e, através de séculos de terror e mentiras que ela mesma criava (e cria até hoje) para seus fiéis, estamos hoje com uma imagem totalmente deturpada da natureza e de seus deuses antigos.

Semana que vem: O Portador da Luz.

Forte Abraço.

#ICAR

Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/o-diabo-n%C3%A3o-%C3%A9-t%C3%A3o-feio-quanto-se-pinta-i

O software angélico que roda no eixo do mundo (parte final)

« continuando da parte 2

Eu tendo a pensar o Paganismo como um tipo de alfabeto, de linguagem. É como se todos os deuses fossem letras dessa linguagem. Elas expressam nuances, sombras de uma espécie de significado ou certa sutileza de ideias, enquanto o Monoteísmo é só uma vogal, onde tudo está reduzido a uma simples nota, e quem a emite nem sequer a entende (Alan Moore).

“Watson derrota a humanidade”

Essa foi uma das manchetes para a vitória de Watson, um computador que ganhou dos melhores competidores que a raça humana tinha disponível no Jeopardy!, um jogo de perguntas e respostas da TV americana. Como seus concorrentes humanos, Watson não estava ligado à internet. Tudo o que ele tinha à disposição era uma memória de 15 mil gigabytes com alguns milhões de textos arquivados e uma capacidade de processamento equivalente à de 2.800 micros caseiros. Um computadorzão bem programado, só isso.

Os cérebros humanos por trás são tão importantes que o próprio Watson errou questões por bobeira de programação. Um dos deslizes: perguntaram qual categoria da elite do automobilismo tem o nome de uma tecla de computador. “F-1” era a resposta. Qualquer batedeira tem capacidade de processamento para cruzar uma lista de nomes de teclas com uma de categorias de corridas. Mas a coisa mais próxima que Watson tinha para dizer era “Nascar”. Falha dele? Não, dos programadores – a Fórmula 1 é solenemente ignorada nos EUA.

O erro nessas horas é imaginar que as máquinas são uma espécie à parte. Computadores são só alicates e martelos mais complexos. E quando você marreta o dedo não é culpa da natureza do martelo, mas sua, que não soube “programar” a martelada. A vida é melhor com martelos. Com supercomputadores também [1].

O que os bons observadores constatam, portanto, é que não existe nem existirá exatamente uma inteligência artificial, mas apenas uma ferramenta que é a extensão de alguma inteligência natural, que a programou. Computadores somente computam informação, mas são os seres que as interpretam, são os seres que as moldam em suas mentes, e as passam adiante, com uma nova forma e uma nova luz. E quem sabe disso, torna-se, nesta Criação, um cocriador.

Os muwakkals

Os sufis, místicos do Islã, dizem que assim como no corpo físico de um indivíduo muitos germes nascem e se desenvolvem como seres vivos, de forma análoga, existem também muitos seres no plano mental, chamados muwakkals ou elementais. Estes são entidades ainda mais etéreas nascidas do pensamento humano, e assim como os germes vivem no corpo humano, tais elementais sobrevivem de seus pensamentos. Segundo os místicos do Islã, o homem muitas vezes imagina que seus pensamentos não têm vida; ele não percebe que eles são mais vivos do que os germes físicos, e que eles também passam por nascimento, infância, juventude, velhice e morte. Eles trabalham contra ou a favor dos homens de acordo com sua natureza. Os sufis afirmam que os criam, elaboram e controlam. Um sufi os repete e os educa através de sua vida; ele forma seu exército e subjuga seus desejos.

Para os descrentes, a possibilidade de que nossa mente possa criar “pensamentos vivos”, e os educar para que sigam adiante com vidas próprias, pode parecer algo mais próximo do pensamento mágico do que da ciência. Mas, se procurarem saber o que Richard Dawkins, apóstolo do ateísmo, descreveu tão bem em sua obra prima, O gene egoísta, chegarão a um conceito muito próximo dos muwakkals sufi – apenas Dawkins os chamou de memes.

Sejam o que for, entretanto, estamos aqui analisando a possibilidade lógica de que seres possam ser criados “com algum grau de perfeição” do nada, sem passar por evolução alguma. Sejam robôs com inteligência artificial, sejam memes, sejam muwakkals, todos estes são candidatos, mas absolutamente nenhum deles é realmente capaz de se enquadrar no que buscamos. Pois o que buscamos, de fato, não existe: uma ferramenta, um computador, um algoritmo, um pensamento vivo – todos são tão somente extensões da mente que os criou em primeiro lugar, e não seres que evoluem por conta própria. No fim, um robô será sempre um robô.

O Grande Desconhecido

Conforme já dissemos, muitas mitos de criação das mais diversas e antigas culturas humanas falam de um “deus obscuro e ocioso”, que criou tudo o que há, inclusive os demais deuses, e depois se retirou. Olorun, afinal, não aceita oferendas, pois já possuí todas as oferendas do Cosmos, pois que é o próprio Cosmos, e estamos neste momento, como em todos os outros, encharcados por sua substância divina. No Evangelho de Tomé, Jesus também diz que o Reino de Deus se encontra espalhado pela Terra, mas os homens não o veem. No taoismo, o Tao é aquela substância “anterior ao Soberano do Céu”, um “vazio” que a tudo preenche, profundo e inesgotável. Benedito Espinosa a chamou de “a substância que não poderia haver criado a si mesma”. Mesmo o cristão de religiosidade mais superficial a conhece como algum elemento estranho chamado de Espírito Santo…

Mas e qual é o santo, iogue, rabi ou guru, que pode bater no peito e bradar: “Eu sei o que é Deus”? E, ainda que saiba, será mesmo que qualquer outra mente, qualquer outra máquina de interpretar a realidade, poderá chegar exatamente a mesma concepção? Como saber de que forma seu amante lhe ama? Como saber de que forma uma pessoa sente dor?

Para criar uma torta de maçã a partir do nada, antes seria preciso criar todo o universo… Para compreender exatamente como outro ser sente, ama ou sofre, antes seria preciso ser todo o universo.

Seria preciso conhecer o Grande Desconhecido, o Inefável, o Inalcançável, como ele mesmo se conhece. E esta é a aventura, a jornada, o prazer de todo verdadeiro religioso: religar-se a Deus.

O software angélico que roda no eixo do mundo

Tendemos a ver o xamanismo, o politeísmo e o paganismo em geral com certa desconfiança, particularmente no Ocidente. O que o monoteísmo sempre nos ensinou é que os pagãos são incapazes de perceber a mais básica das ideias: que tudo o que existe necessariamente surgiu de algo eterno e incriado, um Deus antes dos deuses… Entretanto, como já vimos, sempre existiram pagãos que sabiam perfeitamente disso, e devemos antes nos sentir orgulhosos destes sábios ancestrais, que muito antes dos hebreus já haviam chegado a tal concepção maravilhosa: a ideia de que há um Deus, uma substância ou ser incriado, anterior a tudo, causa primeira de tudo, o que se opõe ao nada… Aquele quem primeiro disse, quem sabe, “Eu sou”.

Como podemos ter alguma esperança de conhecer este Infinito? Ora, da mesma forma que temos esperança de um dia conhecer todas as leis da Natureza… A ciência nos ensinou, na verdade, uma lição que lhe era ainda muito anterior: separar o Infinito em pequenas partes, em aspectos e reflexos, para quem sabe um dia, estudando e compreendendo, amando e sentindo, uma a uma, cheguemos a uma compreensão melhor e mais profunda daquele Ser que tanto incomodou a Nietzsche: “Eu quero Te conhecer, Desconhecido” – disse o alemão quando ainda jovem, para uma plateia de jovens.

Assim como a ciência elaborou a Biologia, a Física, a Química ou a Neurologia, a mitologia elaborou o Soberano do Céu, Palas Atena, Hermes, Odin, Oxalá, e tantos outros deuses (e orixás) que são tão somente pequenas partes do Uno, aspectos do Infinito… Os deuses são o alfabeto com o qual a mente humana é capaz de reencenar, neste mundo objetivo, os fatos subjetivos de sua própria alma. Toda a mitologia é uma encenação da alma humana, toda a mitologia diz respeito a você: “Você venceu o seu monstro interior? Você morreu para seu lado animal, para renascer, três dias depois, como um novo ser?”.

Mas, seja este Grande Desconhecido quem for, talvez tenha tanta necessidade de nos amar, e reconhecer a si mesmo, através de nós, quanto nós temos esta necessidade ancestral de caminhar em sua direção – cada vez mais adentro. Nesta grande aventura, talvez também sejamos como o João no Pé de Feijão, que precisa escalar o axis mundi, e retornar com a galinha dos ovos de ouro… Ou talvez sejam precisas várias tarefas de Hércules, muitas e muitas aventuras, e inúmeras vidas.

Podemos então precisar de aliados, pois a longa jornada por vezes vai além de nossas capacidades humanas… E se o Grande Desconhecido não pode se revelar ainda, se é ainda muito arriscado que o vejamos face a face, sem estarmos amadurecidos para tal momento, quem sabe ele não nos ajude de outra forma?

Um software é uma sequência de instruções a serem seguidas e/ou executadas, na manipulação, redirecionamento ou modificação de uma informação ou acontecimento. Na mente divina existe tudo o que há, o Todo é mental. Na própria engenharia da realidade, ou mesmo no eixo que liga a Terra ao Céu, e o consciente ao inconsciente, pode sim haver um software rodando sem que o percebamos. Não fomos nós os programadores – os anjos podem ser robôs, portanto, mas robôs programados pelo Grande Arquiteto, o Programador dos programadores, o Deus dos deuses.

Eles são o Seu presente para esta grande aventura, e dizem que existem 72 deles a bailar pelo axis mundi. De vez em quando, um poeta vê uma de suas asas no céu, e de alguma forma sabe que não se trata apenas de um pássaro…

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[1] O texto dos últimos 3 parágrafos foi retirado de um artigo de Pedro Burgos e Alexandre Versignassi para a revista Superinteressante, edição 290.

Crédito da imagem: Latajace

O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.

Ad infinitum

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Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/o-software-ang%C3%A9lico-que-roda-no-eixo-do-mundo-parte-final