Durante muitos séculos o conteúdo de nosso crânio foi percebido com algo relativamente sem importância. Quando mumificavam os mortos, os egípcios antigos lhes retiravam o cérebro e os jogavam fora, mas preservavam com todo cuidado o coração. O filósofo grego Aristóteles acreditava que o cérebro fosse um radiador para esfriar o sangue. René Descartes, filósofo e cientista francês, dedicou ao órgão um pouco mais de respeito, concluindo que ele era um tipo de antena pela qual o espírito poderia se comunicar com o corpo. Apenas agora se percebe toda a maravilha do cérebro.
A função básica do cérebro é manter o restante do corpo vivo. Porém, ele é também o órgão que nos possibilita ter a consciência de que estamos vivos, e que eventualmente iremos morrer.
Para os céticos, a morte compreende o cessar da consciência, exatamente quando o cérebro deixa de executar suas funcionalidades. Para os religiosos e espiritualistas em geral, a morte representa apenas uma passagem para um outro mundo, ou uma outra forma de existência, a qual muitos chamam de mundo espiritual. De qualquer forma, existe um sentimento que une a grande maioria de nós, do cético mais pragmático ao crente mais devoto: o medo da morte.
Há esta distinta idéia de retorno à escuridão, ao nada
Onde tudo o que construímos nessa longa estrada
Da vida, nada restará: não há homem são
Que não trema, com um assombro no olhar
Ante tal nefasto pensamento, uma existência inteira
A navegar pelo oceano à beira, tudo em vão,
Tudo perdido neste derradeiro momento:
Da água do mar ficará apenas o gosto amargo do sal
Do mundo, apenas uma brisa, uma curiosidade,
Uma ansiedade por saber de seu final [1]
Entretanto, poucos se dão conta de que morremos já por todos os dias de nossas vidas.
Sto. Agostinho, o grande filósofo dos primórdios do cristianismo, já havia chegado a uma curiosa conclusão acerca do tempo: se o futuro ainda não existe e o passado já deixou de existir, o único tempo em que vivemos é o presente, ainda que não possamos medi-lo de forma alguma, já que o próprio ato de medir o presente, ou de pensar e refletir sobre o assunto, já o coloca em nosso passado. Todo o tempo que dispomos é este momento, aqui e agora. É aqui que a consciência opera, embora possa nos trazer lembranças do passado e expectativas do futuro, nós estamos sempre num incessante presente.
Há quem tenha se angustiado com tal pensamento, mas isso é uma outra história. O importante é que esta idéia, se bem analisada, pode nos trazer uma bela compreensão acerca da morte, e no mínimo aliviar um pouco nosso medo do Grande Nada. Ora, eis que, se a morte é o cessar da consciência, no momento presente, nós morremos toda vez que vamos dormir, e renascemos toda vez que nossa consciência volta à tona, ao acordarmos. Todos os dias de nossas vidas, além de nossas células que morrem e se renovam com o tempo, também nossa consciência opera pequenas mortes, e passamos praticamente 1/3 da vida “mortos”.
Porque então gostamos tanto de descansar, mas abominamos a idéia de morrer? Talvez porque a morte nada mais seja do que uma idéia, que de concreto não tem nada, a não ser no derradeiro momento em que passamos para o outro lado do véu.
O célebre filósofo grego Sócrates, ao ser condenado a morte pela ingestão de veneno, avisou a seus injustos acusadores de que não se poderia saber quem iria para um lugar melhor: ele, ou aqueles que permaneceriam em Atenas. Já Epicteto, o espírito iluminado do estoicismo grego, dizia que deveríamos viver sempre prontos para quando a embarcação ancorasse no porto e nos chamasse para a próxima viagem: não havia razão para nos digladiarmos com nosso medo da morte, pois que tudo o que está fora do alcance de nossa vontade não deveria sequer ser levado em consideração. Era melhor se preocupar com a vida.
Nossa tendência de evitar a mudança a todo custo é o principal foco de angústias ao longo da vida. É como tentar tapar o raio de sol com a peneira: não adianta, a natureza sempre vence, tudo vibra, tudo muda a todo momento. As células que constituem nosso corpo na idade avançada não são as mesmas células que o constituíam em nossa adolescência, absolutamente nenhuma delas – todas morreram. E quando perdem a capacidade de se renovar, também nosso relógio biológico avisa ao cérebro, o grande comandante: está na hora da próxima viagem.
E existem aqueles que crêem que isso é apenas o fim permanente da consciência. Mas mesmo entre os céticos há alguns mais poéticos, como Carl Sagan, que dizia que “viver na mente e no coração daqueles que nos amam, é viver para sempre”.
Mas não é possível viver para sempre. Graças à natureza, graças à evolução constante e incessante do Cosmos. Absolutamente tudo precisa seguir adiante, se renovar, por caminhos e mecanismos belíssimos e elegantes. A natureza faz com que tudo o que há navegue sempre em direção ao próximo farol, a próxima parada, e não podemos saber ainda aonde tudo isso vai desaguar.
Que se façam novas todas às coisas.
Assim sempre foi e sempre será.
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[1] Trecho do meu poema, “O assombro no olhar“.
Crédito das fotos: [topo] Wikipedia, [ao longo] Gustave Doré (a morte de Abel).
O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.
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