Shirlei Massapust
Duplo etéreo ou perispírito é um segundo corpo com aparência idêntica à melhor versão que o corpo físico do falecido possuiu ou poderia ter possuído em vida. Como dizem, “a consciência intrafísica ao sair do corpo humano, geralmente apresenta-se com a aparência mais remoçada, bonita e, às vezes, surpreendentemente luminosa”.[1] Enquanto o corpo físico é feito de carne, ossos, sangue, etc., o duplo etéreo é feito de ectoplasma, assim como os demais objetos materializados por médiuns.
No século XIX, quando o espiritismo ganhou impulso nos Estados Unidos e na Europa, era comum se dizer que o ectoplasma é fotossensível. As pessoas realmente viam o perispírito dos mortos e o duplo dos vivos, sobretudo porque muitas vezes a coisa real era um boneco habilmente suspenso na escuridão. Porém nunca faltou gente de boa fé atestando que nem tudo na cena espírita era mera sugestão psicológica ou espetáculo de fraudes grosseiras. Havia sim um bom bocado de eventos miraculosos.
William Jackson Crawford (1881-1920) foi professor de Engenharia Mecânica da Universidade Queen’s de Belfast, na Irlanda. Ele foi um dos pesquisadores renomados que dedicaram tempo à investigação de fenômenos mediúnicos. W. J. Crawford observou e descreveu a materialização de “alavancas psíquicas” no Círculo Goligher.
Segundo Crawford, as extensões saíam do corpo do médium como se fossem braços mecânicos e movimentavam objetos. A intensidade da atividade sobrenatural era inversamente proporcional à claridade do ambiente:
O efeito da luz sobre os fenômenos é tão conhecido, que não comentarei o assunto. Quanto menos luz houver, mais intensidade terá o fenômeno. Cheguei à conclusão de que ela afeta a rigidez das hastes. (…) Não creio que a luz atue sobre as fibras da estrutura tanto quanto sobre a matéria intercalar que serve para enrijecê-la. Essa substância fria e viscosa talvez seja um composto químico complexo (…) do qual a luz dissocia as moléculas. Temos razões de sobra para assim crer, visto que a experiência nos demonstra que a luz, cuja extensão de onda é grande, isto é, a luz vermelha, é a menos nociva. Nas sessões, é naturalmente necessário levar em consideração o reflexo, a refração e a absorção da luz empregada[2].
Katie King, um dos espíritos mais famosos da literatura mediúnica, manifestou-se pela primeira vez em 22/05/1872 através da médium Srta. Cook. No início só conseguia assumir formas vagas; mas, com o tempo, Katie aprendeu a moldar um corpo. As forças de Katie King aumentaram gradualmente enquanto a Sra. Cook, que antes permanecia quase sempre acordada, mostrava-se cada vez mais fraca. Por fim, o espírito não mais apareceu sem que a médium entrasse em estado de transe.
De acordo com o registro da Sra. Florence Marryat, numa das sessões que ela testemunhou ocorrera o seguinte:
Perguntaram um dia a Katie King porque não podia mostrar-se sob uma luz mais forte. (Ela só permitia aceso um bico de gás e esse mesmo com a chama muito baixa). A pergunta pareceu aborrecê-la enormemente. Respondeu assim: “Já vos tenho declarado muitas vezes que não me é possível suportar a claridade de uma luz intensa. Não sei porque me é impossível; entretanto, se duvidais de minhas palavras, acendei todas as luzes e vereis o que acontecerá. Previno-vos, porém, de que, se me submeterem a essa prova, não mais poderei reaparecer diante de vós. Escolhei”. As pessoas presentes se consultaram entre si e decidiram tentar a experiência, a fim de verem o que sucederia. Queríamos tirar definitivamente a limpo a questão de saber se uma iluminação mais forte embaraçaria o fenômeno de materialização. Katie teve aviso de nossa decisão e consentiu na experiência. Soubemos mais tarde que lhe havíamos causado grande sofrimento.
O espírito Katie se colocou de pé junto à parede e abriu os braços em cruz, aguardando a sua dissolução. Acenderam-se os três bicos de gás. (A sala media cerca de dezesseis pés quadrados). Foi extraordinário o efeito produzido sobre Katie King, que apenas por um instante resistiu à claridade. Vimo-la em seguida fundir-se como uma boneca de cera junto de ardentes chamas. Primeiro, apagaram-se os traços fisionômicos, que não mais se distinguiam. Os olhos enterraram-se nas órbitas, o nariz desapareceu, a testa como que entrou pela cabeça. Depois, todos os membros cederam e o corpo inteiro se achatou qual um edifício que se desmorona. Nada mais restava do que a cabeça sobre o tapete e, por fim, um pouco de pano branco que também desapareceu, como se houvessem puxado subitamente. Conservamo-nos alguns momentos com os olhos fitos no lugar onde Katie deixara de ser vista. Terminou assim aquela memorável sessão[3].
Registros de época informam que o médium perde massa corporal à medida que o ectoplasma se forma e, às vezes, pequenas perdas são permanentes. Por exemplo, certa vez Crawford pediu aos “operadores” que extraíssem tanta matéria quanto lhes fosse possível do corpo de um médium imobilizado sobre uma balança, ao que o aparelho registrou a perda temporária de “um pouco mais de 24 quilos, durante uma dezena de segundos”[4].
Em 11 de dezembro de 1893, na Finlândia, a médium D’Espérance começou a se desmaterializar diante das testemunhas após uma sucessão de outros eventos, dentro de seu gabinete amplamente iluminado. Alguém do círculo propôs que terminassem o ato, visto que já se esgotavam as forças da médium, mas ao despertar do transe a mulher colocou as mãos nos joelhos e percebeu que a cadeira estava vazia.
Ela afirmou ter a sensação de que tudo em seu corpo impalpável e invisível permanecia no mesmo lugar, mas estava parcialmente desmaterializada; então pediu para continuarem a sessão até que os fantasmas lhe devolvessem as pernas![5]
Numerosos críticos crédulos na autenticidade das materializações professaram que todos os espíritos invocados agiam como vampiros que subtraíam sua essência vital do corpo do médium. Quanto a isto os espíritas objetavam alegando que se um espírito toma emprestada a matéria com o consentimento do médium, a conversão da carne ou sangue em ectoplasma não é um ato de vampirismo.
A propósito, até no Brasil do século XX o saudoso mineiro Waldo Vieira (1932-2015) reportou a queixa de certos alunos mal agradecidos, estudantes de um curso gratuito de projeção do corpo astral, que lhe acusaram de ser um “vampiro” e “suposto adversário ferrenho” cujo espírito consciente e desdobrado assedia os pupilos durante as tentativas de desdobramento astral.[6]
Bram Stoker estava ciente do debate em torno de fenômenos espíritas e extraiu dali ideias originais para que seus personagens literários pudessem se transformar em névoa e atravessar espaços estreitos. O psicanalista Aluísio Pereira de Menezes, atual professor nas Faculdades Integradas Hélio Alonso, escreveu a respeito em sua tese de doutorado De Sexo Jeito de Todos os Vampiros: Arte e Transmissão (UFRJ, 1991).
Tais passagens, que tratam da aproximação do vampiro, apresentam os elementos de uma ação hipnótica sobre a vítima. Silencio e barulho, imobilidade e movimento – termos contrários que vão se revolvendo, paralisando a subjetividade em relação aos seus modos correntes, “colocando-a num estado magnético, de quase câimbra, que não é acordado nem sonhado”[7]. Uma orgia onírica exaure a vítima; são os sonhos os restos de toda uma atividade, os produtos da atividade fantástica.
A névoa ficava cada vez mais densa, e eu sabia agora como ela tinha entrado, pois podia vê-la feito uma fumaça – ou feito um vapor de água fervendo – penetrando, não pela janela, mas pelas frestas da porta. Ela ficava mais e mais densa, até que tivesse como que se concentrado, no meio do quarto, em uma espécie de coluna de fumaça, através de cuja parte mais alta eu podia ver a luz do gás brilhando como um olho vermelho. As coisas começaram a rodar em meu cérebro ao mesmo tempo em que a coluna nebulosa rodopiava pelo quarto, como que formando as palavras bíblicas “uma coluna de fumaça de dia, de fogo à noite”[8].
Rodopio, turbilhão, redemoinho, são estas as palavras que traduzem whirl. O ponto máximo desse empuxo no que ele é suportável esbarra com um limite, o sujeito desmaia, muda de estado (que certamente não é definitivo). O essencial é este ponto preciso no qual a coluna rodopia “no cérebro” da personagem da mesma forma como ela estaria rodopiando lá fora. A personagem, ou melhor, certa dimensão que não mais está ligada ao específico da vida volitiva, se vê às voltas com uma posição que a situa num ponto de comparar o torvelinho de ectoplasma à aparição bíblica de deus a Moises e, com isso, blasfemar de forma involuntária.
A imagem que temos nos arquivos da memória são as evoluções do impressionante movimento natural da neblina fria e espessa, fantasmagórica, que escorre em cascata, flui no assoalho, se espalha por baixo dos lençóis e escapa em filetes descidos por entre os dedos das pessoas que ousam erguê-la no ar.
Ainda hoje muita gente se impressiona com aquela neblina encorpada, quase espumosa, bastante diferente da emissão fétida das máquinas de fumaça usadas nos clubes e danceterias. No cinema e no teatro estas cenas perfeitas e quase mágicas são produzidas atirando-se de gelo seco em panelas de água fervendo.
A primeira vez em que um vampiro entrou em combustão espontânea quando exposto à luz solar foi no filme de expressionismo alemão Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens (1922). Na ficção de Bram Stoker o Conde Drácula se expõe à luz solar e nada lhe acontece. Aparentemente ele apenas prefere atuar à noite.
Acaso o fictício Conde Drácula não era como qualquer duplo etéreo sublimado ao sol na vida real? Por que H. P. Blavatsky não mencionou a questão de sublimação do duplo quando falou do desdobramento dos vampiros reais no capítulo XVIII de Isis Unveiled (1877)? Nós não podemos voltar no tempo para questionar, mas convenhamos a perda de uma chance de opinar a respeito foi muito significativa. O duplo do vampiro é, talvez, um perispírito doutro nível de condensação e estrutura.
Na primeira casa onde morei os fantasmas nem ligavam para o sol. Apareciam mais de dia do que de noite. Impressionavam as visitas. Eram muito VIPs. 😊
notas
[1] VIEIRA, Waldo. Projeciologia. (4ª edição). Rio de Janeiro, IIPC, p 679.
[2] CRAWFORD, W. J. Mecânica Psíquica. Trad. Haydée de Magalhães. São Paulo, Lake, 1963, 114.
[3] GIBIER, Paul e BOZZANO, Ernesto. Materializações de Espíritos. Trad. Francisco Klörs Werneck. Rio de Janeiro, Eco, p 23-24.
[4] CRAWFORD, W. J. Obra citada, p 138.
[5] AKSAKOF, Alexandre. Um Caso de Desmaterialização Parcial do Corpo dum Médium. Trad. João Lourenço de Souza. Rio de Janeiro, FEB, © 1900, p 47-49.
[6] VIEIRA, Waldo. Projeciologia. (4ª edição). Rio de Janeiro, IIPC, p 679.
[7] MENEZES, Aluisio Pereira de. De Sexo Jeito de Todos os Vampiros: Tese de doutorado em teoria literária. Rio de Janeiro, UFRJ, 1991, p 86.
[8] STOKER, Bram. Drácula. Em: MENEZES, Aluisio Pereira de. Op cit, p 88.
Postagem original feita no https://mortesubita.net/vampirismo-e-licantropia/a-sublimacao-do-duplo-etereo-materializado/