Uma vez foi visitar o célebre sábio persa, Zoroastro, um dos seus amigos dos tempos da juventude, de nome Mitra. Depois de se abraçarem e saudarem, perguntou o sábio:
– Que é o que te conduz a mim, querido amigo? Feriu-te, por acaso, o mundo e desejas fortalecer-te ao lado do companheiro da tua juventude ? Ou vens trazido pela curiosidade de veres pessoalmente o que há de verdade das coisas que o povo conta a meu respeito?
Respondeu Mitra:
– Tu mesmo te referes à causa da minha vinda; não te ofenderá, portanto, a minha sinceridade.
Interesso-me por ti e pela tua sorte; e decidi vir para ver quem tem razão: se aqueles que afirmam que chegaste ao conhecimento dos segredos da Natureza, tornando-te sábio, ou aqueles que dizem que és charlatão, que abusas da ignorância da multidão, a fim de seres considerado homem célebre.
Alegra-me que fales sinceramente – disse Zoroastro. – Mas qual é a tua propria opinião a meu respeito ?
Confessou Mitra:
– Ainda não a formei. Se é verdade que os outros afirmam, que és iluminado pela luz da Sabedoria, quero pedir-te que comigo comparti-lhes a tua felicidade; se, porém, tem razão os que falam mal de ti, desejo tentar desviar-te do meu caminho e conseguir que voltes a ti mesmo e a senda da virtude.
Comovido e entusiasmado, tomou Zoroastro pela sua a mão do amigo e lhe disse:
– Abençoada a hora que te trouxe a mim; e sete vezes abençoada, se tens a força e coragem de aproximar-te da Luz, de quem unicamente emana a vida, a felicidade e a sabedoria.
– Como? – exclamou o amigo. – Quererias introduzir-me no teu templo, que com tanto cuidado fechas a outros?
Contestou Zoroastro:
– O meu templo é a Natureza, e, nem que eu quisesse, o que seria loucura, não poderia nunca fecha-lo a pessoa alguma.
– Porém contam muitíssimos casos que repeles àqueles que desejam aprender de ti alguma coisa.
Perdoa-me se te digo o que penso. Se conseguiste conhecer a Sabedoria Superior – suponho que ela existe – por que a ocultas? Por que não a expões claramente ao povo, mas encobres a Verdade com véus de enigmas, alegorias e símbolos, que raras vezes um de muitas centenas de homens pode solver e compreender?
– Falas, Mitra, como todos aqueles que não tem idéia exata do assunto. De que utilidade ser-te-á, se te expuser o perfume de uma flor ? Poderás, de tal exposição, sentir esse perfume e conhecer a flor?
De que te servirá se te descrever um banquete? Servir-te-á a minha descrição para matares tua fome? Analogamente, como posso fazer que alguém conheça a Sabedoria, se ele se recusa a procura-la? Há Sabedoria morta e Sabedoria viva. A Sabedoria morta nos vem dos livros, das narrações, dos cálculos, das medições e considerações. Esta Sabedoria pode nos ser dada e pode nos ser tomada. Mas a Sabedoria Viva emana da eterna Fonte da Vida, dessa Fonte que, uma vez aberta, nunca desaparece e sempre nos fornece bases imperecíveis para nossas construções no domínio da Razão. Porém, é impossível explicar e ensinar esta Sabedoria; é mister apropriar-nos dela sim como nos apropriamos do perfume da flor ou da comida; ou melhor dito, é mister que a despertemos em nós, assim como, pelo perfume, da flor, se desperta em nós o sentido do olfato. Vês como é difícil dar uma explicação, mesmo geral. E quando se passa às minuciosidades, a dificuldade cresce, pois a nossa linguagem é demasiado pobre e o nosso ouvido é demasiado cru para essas coisas tão delicadas. È necessário procurar e achar a Sabedoria em si mesmo; outro caminho não conduz a ela.
Mas espero que tudo isso se torrne mais claro se quiseres acompanhar-me na minha ida à maravilhosa Fonte que existe lá, nas montanhas que daqui se pode avistar.
E, dizendo isso, Zoroastro apontou além de uma serra, ao Oriente, duas montanhas mais altas, e continuou:
– Lá, entre aquelas duas montanhas elevadas emana uma Fonte que contém qualidades maravilhosas; purifica o coração, dissipa as evaporações e névoas que se acumularam na cabeça e na mente, e retira de nós a impureza das grandes cidades e as fuligens que a fumaça do mundo depositou em nosso interior. Depende de ti querer acompanhar-me até lá. Daqui a algumas semanas mostrarei o caminho que conduz a essa Fonte, há alguns que desejam conhece-la e com sua água se saciar. Verás, então, como sou liberal na distribuição da minha doutrina, como também te convencerás que pouquíssimos são os que, verdadeiramente e com seriedade, almejam atingir a verdadeira Sabedoria.
E Zoroastro foi preparando o seu novo discípulo para a viagem. Quando chegou o dia determinado, reuniram-se setenta discípulos ao redor do Mestre, para ouvirem ainda alguns conselhos relativos a viagem. Dando-se fraternais abraços, prometeram eterna fidelidade à Sabedoria, e puseram-se a caminho, separadamente, cada um escolhendo o caminho que mais lhe agradava: um a estrada larga e outro um caminho estreito; um em companhia de um amigo, outro sozinho; um preferia o campo, outro o bosque. Não caminharam em grandes grupos, para não chamarem a atenção do povo, porque a Sabedoria não quer, se a procuramos, ser objeto de conversações e críticas das multidões.
Quando os viajantes tinham caminhado desta forma durante três dias, reuniram-se todos numa grande cidade, onde floresciam o comércio, as ciências e as artes, e onde existiam numerosas instituições de educação, asilos e hospitais, como atestados do amor da cultura e humanidade dos seus cidadãos. De todos os países, ali se reuniram muitas pessoas, para observarem e estudarem os sistemas políticos, sociais, humanitários, e educacionais dessa cidade, considerados superiores aos demais conhecidos. O fato mais admirável, porém, era o de já haver ali a água da fonte da Sabedoria, embora apenas imitada; pois os químicos haviam estudado a composição natural da água genuína da dita fonte e conseguiram compor uma imitação, que os peritos consideravam tão boa, e talves até melhor do que a fonte da montanha.
Muitos dos discípulos de Zoroastro encontraram ali seus conhecidos, outros formaram novas amizades; assim, aconteceu que, após três dias, devendo continuar a viagem, sentiram-se tristes por se despedirem dos amigos; alguns decidiram ficar, pois haviam provado daquela água e, apesar de ser apenas uma imitação da água verdadeira, acharam-na muito gostosa e não sentiram mais vontade de procurar a verdadeira fonte.
Depois de outros cinco dias de viagem, durante os quais não encontraram lugares importantes, mas sim alguns lugarejos que apenas ofereciam divertimentos e gozos sensuais, os discípulos de Zoroastro que ainda continuavam a peregrinação, chegaram a uma cidade que excedia a anterior, tanto na grandeza, como no progresso. Ao se reunirem os viajantes, perceberam que novamente alguns companheiros haviam ficado para trás, atraídos e seduzidos pelos gozos e divertimentos encontrados no lugar acima mencionado. Alguns tinham encarregado seus condiscípulos que os desculpassem alegando necessidade de descanso e prometendo seguir viagem logo depois de renovarem as forças. Ouvindo isso, Zoroastro chamou a atenção dos presentes para os perigos que o discípulo encontra ao procurar a Sabedoria nas atrações das ilusões sensuais e admoestou os companheiros para que não perdessem a coragem de combater tais ilusões.
A cidade onde agora se achavam era um quase paraíso das ciências e das artes. Ali soavam todos os nomes célebres; as riquezas locais; lindíssimos jardins, edifícios majestosos, danças, cantos, esportes, jogos, lutas e festas divertiam os estrangeiros. Todos os talentos estavam agindo e recebiam suas recompensas. E, o que era mais admirável, vendia-se ali, por preço elevado a água da sabedoria, recolhida da própria fonte; mas não era pura; porque, para fazer dela um verdadeiro néctar, misturavam-lhe partículas de sabedoria de outros lugares.
– Esta é a verdadeira água da sabedoria – clamava o vendedor – a sua composição é a maior e a mais sublime arte e o mais profundo segredo. Zoroastro mesmo tem se esforçado por descobrir este segredo e não o conseguiu, pois aqui nada pode conseguir a razão humana; só a tradição fielmente conservada pelos adeptos, conservou a receita para o bem da humanidade.
Fácil é compreender que o vendedor dessa água fazia ótimos negócios, e até alguns dos companheiros de Zoroastro deixaram-se iludir, pois compraram e tomaram essa água, e julgaram-se desobrigados de continuar a viagem. Quando, no sexto dia se reuniram num lugar isolado a fim de prosseguirem em sua peregrinação, o número de discípulos havia diminuído sensivelmente.
Zoroastro exortou-os, com palavras sinceras, paternais e sérias, a que persistissem, vencendo obstáculos e ilusões, quaisquer que fosse sua forma. Parecia como se temesse que chegaria sozinho à fonte. Mas aqueles que ainda o acompanhavam prometeram que continuariam até chegar ao alvo de sua viagem, apesar de todos os obstáculos possíveis.
Depois de novos sete dias de viagem, entraram numa cidade vasta, porém diferente das anteriores; não havia ai nada que lembrasse divertimentos; tudo respirava serenidade e reflexão. Havia ali uma universidade, onde professores, uns sentados, outro parados de pé, outro passeando, enchiam as cabeças dos seus discípulos com os conteúdos de todos os livros e ensinamentos dos mestres eruditos de todo o mundo e de todos os séculos. Havia também um templo da sabedoria, onde era fornecida a água da maravilhosa fonte, e essa água era pura, genuína e sem mistura alguma. Era trazida diretamente, carregada em vasos especialmente fabricados para este fim, impermeáveis, para não se perder nem uma gota; e esses vasos eram lacrados com um selo, de que se afirmava que fora usado já por Enoque, para defender da morte corporal. Nestes vasos, debaixo do selo, ficava a água durante sete semanas, sete dias e sete horas, guardada para desenvolver as qualidades perfeitas que não podia manifestar – assim se dizia – na fonte e no momento em que era retirada. Essa água era vendida por um pequeno preço e aqueles que a bebiam aguardavam com paciência e esperança, o efeito prometido; e quando este se manifestava, ninguém tinha a coragem de confessar que havia sido iludido, porque não queria causar inimizades nem prejudicar a boa fama da água.
Depois de passarem ali sete dias, os viajantes continuaram a jornada. Faltavam ainda nove dias para chegarem a almejada fonte.
Depois de três dias, deviam novamente reunir-se todos num certo lugar.
Já estava pondo-se o Sol naquele dia e só quatro estavam no lugar designado.
Zoroastro olhou o pequeno resto do séqüito e disse apenas:
– Vamos descansar.
No dia seguinte passaram por um riacho que caia de um rochedo.
– Vede! – Disse Zoroastro – Aqui está aquela água, cuja fonte procuramos. Daqui a tiram aqueles que a vendem na cidade que visitamos. Vamos adiante!
O caminho subia íngrime e em alguns lugares apenas as fendas das rochas serviam para se seguraremo. Finalmente, os caminhantes chegaram ao lugar onde viram elevar-se nos ares dois altos montes, um à direita e outro à esquerda.
– Estes dois montes – explicou Zoroastro – formam o vale onde encontraremos nossa fonte. O caminho até lá é perigoso, e cada um de nós tem que passa-lo sozinho, para devidamente se preparar e provar que seriamente deseja beber dessa fonte da verdade. Quem, durante a viagem se deixou seduzir, bebendo da água imitada ou selada, ficou para trás, porque não suportaria o caminho. E, apontando a cada um dos quatro o caminho a seguir, afastou-se deles.
Então, os quatro acharam crítica a situação. Com surpresa olharam ao redor de si, e sentiram-se com pouca coragem de prosseguir. Finalmente um deles disse:
– Irmãos, avante! Não nos servirá a vacilação. Eu confio na proteção da Sabedoria, em cuja proximidade estamos e com coragem irei adiante. Desejo-vos êxito; tornaremos a ver-nos juntos à fonte.
E segiu na direção que Zoroastro lhe havia apontado. O nome deste corajoso era Ali. Mitra também continuou a viagem, tendo adquirido mais energia com as palavras de Ali. Os outros que tinham provado da água milagrosa na cidade por onde ultimamente passaram, julgaram inútil prosseguir, e rataram de voltar. Assim, pois, só Ali e Mitra continuaram a viagem à fonte. Ambos tinham-se abstido de experimentar, nas ocasiões oferecidas, a água imitada ou selada; ambos estavam animados de um vivo desejo de alcançar a fonte da verdadeira, pura e livre água da sabedoria. E quem descreverá a alegria que ambos sentiram nos seus corações, quando, vindo um de um lado, e o outro do outro lado, ambos se encontraram, no dia seguinte num vale, diante de uma pirâmide, formada pela Natureza; no centro dessa pirâmide manava, de um triângulo de ouro, a mais pura, a mais clara água. E no mesmo instante, apareceu ao lado deles Zoroastro, abraçando-os e dizendo:
– Ao menos vós dois chegastes! Graças ao Dirigente do Destino! Mas, ainda não bebais desta água, tão pura. É preciso que vos prepareis dignamente, para que os seus efeitos vos sejam benéficos e duradouros.
E, umedecendo com a água da Sabedoria as testas dos dois companheiros, e dando-lhes frutas para que comessem, disse-lhes:
– Ainda por três dias terei que esperar-vos e a cada um lhe será dada uma tenda, e ali cada um deverá observar-se a si mesmo. Evocai os dias da vossa infância, vossa pura inocência. Unindo esses dias com o presente, esquecei todo o tempo que está entre essa infância e hoje. Elevai em seguida, os vossos pensamentos para o eterno futuro, para que o passado da inocência o presente e o futuro se unam num só pensamento e vos tornem dignos de receberdes a suprema consagração!
E, levando-os as suas tendas, recomendou a proteção da Eterna e Onipresente Divindade. Três dias depois estiveram novamente ao pé da pirâmide. Zoroastro encheu um cálice de água para cada um.
Ergueu o seu e bebeu, brindando ao passado ao presente e ao futuro. Os dois amigos seguiram o seu exemplo. Com sublime seriedade levantou os braços e pronunciou uma prece em nome de
Aquele que sempre foi, que é e que será e disse:
– Está feito, caia o véu! Vós abandonastes a multidão mutável e elevaste-vos as regiões do que é imutável, onde não domina mais o acaso, mas onde reina a Verdade, e onde a claridade da Luz Eterna nos torna conhecidos às leis da Eternidade.
Abençoada seja esta hora! Duas almas foram trazidas a Imortalidade! Abraçai-me, irmãos; continuaremos sendo irmãos. O Mestre é Um só e Ele vos conduzirá no futuro.
– Os três passaram mais alguns dias naquele lugar Sagrado. Depois saíram dali juntos e, sem dificuldade, alcançaram o lugar de sua partida e, quando Zoroastro chegou à sala de reuniões, eis que ali estavam reunidos todos os setenta discípulos, muito alegres que podiam agradecer ao Mestre a felicidade que encontraram na viagem. Zoroastro falou com amistosa seriedade e explicou como é fácil considerar como verdade uma ilusão. Exortou-os que evitassem toda ilusão e não se cansassem de procurar a Verdade, até encontrá-la. Depois de se despedirem, ficou com os dois companheiros vitoriosos, Ali e Mitra, e levou-os a sua casa e lhes disse:
– A vós nada mais tenho a ensinar. Conhecestes a Verdade e a sua fonte. Ide cada um pelo vosso próprio caminho, e, se encontrardes ouvidos capazes de vos ouvir e compreender, ensinai-lhes o modo de conhecer o Espírito. Que o vosso ensino seja calmo e dado em rodas de irmãos. Nunca pregueis vossas doutrinas nos lugares públicos, no movimento das massas nas lutas dos partidos nem onde se procura poder político, honras ou riquezas. Na arte dissolvente dos discursos públicos foge o espírito e, assim, o orador apresenta-nos um alimento que podemos perceber, mas não comer.
– E se não encontrarmos ouvintes – Perguntaram os dois amigos, – Que deveremos fazer?
– Então tomai por vosso modelo a fonte no deserto – respondeu Zoroastro -– Ela corre incessantemente e, se em um século matou a sede de um só viajante sedento, não ficou sem utilidade, e não fluiu em vão.
Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/o-caminho-da-sabedoria-di%C3%A1logo-entre-mitra-e-zoroastro