-Deixe eu lhe contar um sonho que tive. Li um ensaio de Philip K. Dick…
– No seu sonho?
– Não, eu o li antes do sonho. Esse é o preâmbulo. Era sobre aquele livro, Flow My Tears, the Policeman Said, você o conhece?
– Ele ganhou um prêmio por esse livro.
– É um que ele escreveu muito rápido. Simplesmente fluiu. Ele sentiu como se o estivesse psicografando, ou algo. Quatro anos antes de vir a ser publicado o livro, ele estava em uma festa, e conheceu uma mulher com o mesmo nome que a mulher do livro. E o namorado dela tinha o mesmo nome que o namorado da mulher do livro. E ela estava tendo um caso com um delegado de polícia, que tinha o mesmo nome que o delegado de seu livro. Tudo o que ela dizia sobre a vida dela parecia ter saído de seu livro.
Isso tudo o deixou muito assustado, mas o que ele podia fazer?
Anos depois, ele foi pôr uma carta no correio e viu um sujeito meio estranho em pé, ao lado de seu carro. Mas, ao invés de evitá-lo, como normalmente teria feito, ele disse: “Posso ajudá-lo?” E o sujeito disse: “Sim, eu fiquei sem gasolina”. Ele lhe deu algum dinheiro, coisa que jamais teria feito.
Ele chega em casa e pensa “Ele não conseguirá chegar ao posto. Ele está sem gasolina!”
Então, ele volta, acha o sujeito e o leva ao posto de gasolina. Enquanto estaciona, ele pensa: “Isto também está no meu livro! Este mesmo posto. Este mesmo sujeito. Tudo!”
Bem, este ocorrido é um tanto assustador, certo? Então ele resolve contar a um padre que ele escreveu um livro e que, quatro anos depois, tudo isso aconteceu.
E o padre diz: “Este é o Livro de Atos dos Apóstolos”. Ele responde: “Mas eu nunca o li!” . Então ele lê o Livro de Atos e lhe é estranhamente familiar. Até os nomes dos personagens são iguais aos da Bíblia!
O Livro dos Atos se passa em 50 d.C. Então, Dick criou uma teoria segundo a qual o tempo é uma ilusão e estaríamos todos em 50 d.C. E que a razão pra ele ter escrito esse livro era que ele, de algum modo atravessou essa ilusão, esse véu do tempo, e o que ele viu ali foi o que acontecera no Livro dos Atos.
Ele se interessava pelo gnosticismo e pela idéia de que um Demiurgo, ou demônio, teria criado essa ilusão do tempo para nos fazer esquecer que Cristo retornaria e que o Reino dos Céus estava pra chegar. E que estamos todos em 50 d.C e há alguém tentando nos fazer esquecer que Deus é iminente. Isso define o tempo e a História. É só um tipo de devaneio ou distração contínuos.
Então eu li isso e pensei: “Que estranho”. E, naquela noite, eu tive um sonho. E nele havia um homem que, supostamente, era um paranormal. Mas eu pensava: “Ele não é realmente um vidente”. Então, de repente, começo a flutuar, levitando até atingir o teto. Eu estava quase atravessando o telhado, quando digo: “Ok, Sr. paranormal, tudo bem, eu acredito em você”. E flutuo de volta. Quando meus pés tocam o chão o vidente vira uma mulher usando um vestido verde, e esta mulher é Lady Gregory. Ela era a patrona de Yeats, uma irlandesa. Mesmo nunca tendo visto a sua imagem eu tinha certeza de que esse era o rosto de Lady Gregory.
Então, enquanto andávamos, Lady Gregory vira-se para mim e diz “Deixe-me explicar-lhe a natureza do universo. Philip Dick está certo quanto ao tempo, mas errado quanto a ser 50 d.C. Na verdade, só existe um instante, que é agora. E é a eternidade. É um instante no qual Deus está apresentando um pergunta, que é basicamente: “Você quer fundir-se com a eternidade? Você quer estar no céu?” E estamos todos dizendo: “Nããão, obrigado. Ainda não”. Logo, o tempo é apenas o constante “não” que dizemos ao convite de Deus. Isso é o tempo. Não estamos em 50 d.C., como não estamos em 2001. Só existe um instante. E é nele que estamos sempre”.
Então ela me disse que esta é a narrativa da vida de todo mundo. Por detrás da enorme diferença, há apenas uma única história, a de se ir do “não” ao “sim”.
Toda a vida é: “Não, obrigado. Não, obrigado”. E, em última instância é: “Sim, eu me rendo. Sim, eu aceito. Sim, eu compreendo”. Essa é a jornada. Todos chegam ao “sim” no final, certo?
Então, continuamos a andar e meu cachorro corre em minha direção. Fico tão feliz. Ele morreu anos atrás. Estou fazendo carinho nele e percebo um troço nojento saindo de seu estômago. Olho para Lady Gregory e ela tosse, se desculpando. E há vômito escorrendo por seu queixo, e o cheiro é horrível. E eu penso: “Peraí, isto não é só cheiro de vômito. É cheiro de vômito de gente morta!”. Isso é duplamente horripilante. Então percebo que estou no Mundo dos Mortos. Todos à minha volta estão mortos. Meu cachorro morrera há 10 anos, Lady Gregory há muito mais tempo.
Quando acordei, pensei: “Aquilo não foi um sonho. Foi uma visita a um lugar real, o Mundo dos Mortos!”.
– O que aconteceu? Como você conseguiu sair de lá?
– Cara, isso foi uma daquelas experiências que transformam a vida. Eu nunca mais voltei a ver o mundo do mesmo jeito.
– Mas como é que você finalmente saiu do sonho? Esse é o meu problema. Eu estou aprisionado! Fico achando que estou acordando, mas ainda estou num sonho. Quero acordar de verdade. Como se acorda de verdade?
– Eu não sei… Não sou mais tão bom nisso. Mas, se é o que está pensando, você deve fazê-lo, se puder. Porque, um dia, não será mais capaz… então – é fácil – simplesmente acorde.
(Diálogo final do filme Waking Life, de Richard Linklater)
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Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/waking-life-a-eterna-pergunta