Biologia Miskatônica: As Tripas de Nyarlathotep

Se você já tentou trabalhar com o Panteão Cthulhiano sabe que pé no saco isso pode ser. Todo Cabalista Lovecraftiano já se cansou de tropeçar nas armadilhas que um sistema ctônico traz de brinde no fundo da embalagem.

Azathoth é o equivalente a Kether, Cthulhu um elemental da Água, Shub-Niggurath é a representação primordial do Bode de Mendes… se essas afirmações fossem jogadas em um balde d’água boiariam como um belo pedaço de merda. Cada uma das entidades do Mito de Cthulhu tem características próprias complexas e só podem ser classificadas assim com uma dose de limitação e outra maior de ingenuidade. Como é que Cthulhu poderia ser comparado com um elemental da água, se é justamente o oceano sua prisão?

O ocultismo do final do século XX se tornou desleixado, e é nosso trabalho limpar a cagada de nossos predecessores para um novo ocultismo do século XXI – imaginem enviar Shub-Niggurath para o deserto para purgar nossos pecados, são todos animais!

O primeiro passo a se dar quando se deseja mergulhar no oceano turvo e sombrio que Lovecraft nos mostrou é deixar qualquer lógica humana de fora e lidar com os fatos por mais desconcertantes que sejam.

O núcleo primordial do universo lovecraftiano é o Caos, puro, simples e impessoal. Não existem demônios malignos, criaturas perversas, seres maliciosos, apenas a indiferença e a fome. A maior ameaça que alguém tem pairando sobre sua cabeça, tal qual a espada de Dâmocles, não é a morte e sim a loucura. Uma loucura contagiosa e pestilenta que tem vida própria. A idéia é que um mero vislumbre da realidade como um todo esfarela a mente, e não importa que você não deseje mais saber o que existe lá fora, a loucura cresce em seu cérebro, em seu corpo, em sua mente, como um cancêr até não restar nada além de caos, cacofonia e desespero.

No centro deste Caos, a primeira coisa que podemos reconhecer vagamente – ao menos vagamente bem para podermos dar um nome – é Azathoth.  Os antigos cabalistas afirmavam que o anjo da morte era tão belo, que um mero vislumbre dele fazia com que sua alma fosse arrancada de seu corpo através dos olhos. Com Azathoth não seria diferente, uma imagem tão além de qualquer descrição ou compreensão que um mero vislumbre cremaria sua sanidade com as chamas da agonia e então arrancaria alma, enlouquecida, para que ela se juntasse com outros farrapos ao redor de seu corpo, como escamas ensandecidas desgastadas pelo desespero.

Nyarlathotep

 

Sendo assim, podemos imaginar que qualquer contato direto entre o Caos Primordial, esse Deus Cego e Idiota, e o resto da criação é muito difícil. Seria como tentar passar um boi por um buraco de rato (tente adivinhar se você é o boi ou o buraco do rato), o maior GangBang Mindfuck de todos. Mas isso não significa que estamos a salvo do Sultão Caótico, pois ele tem arautos, mediadores entre o insuspeitável e o insuportável e nossa vidinha cotidiana.

Lovecraft falou de um desses arautos em uma carta que escreveu em 1921 para Reinhardt Kleiner. Ele descreveu este encontro como “o mais real e horrível [pesadelo] que tive desde a idade dos 10 anos”. Este encontro serviu como inspiração para seu poema em prosa: Nyarlathotep.

Nyarlathotep é mais humanoide dentre os seres que invadiram a mente de Lovecraft. Neste “pesadelo” descrito na carta, Lovecraft recebia uma carta de seu amigo Samuel Loveman que dizia:

“Não deixe de ver Nyarlathotep caso ele venha a Providence. Ele é horrível – horrível além de qualquer coisa que você possa imaginar – mas maravilhoso. Ele nos assombra por horas depois do encontro. Eu ainda estou tremendo com o que ele me mostrou.”

 

Após o sonho, Lovecraft comentou que nunca tinha ouvido o nome NYARLATHOTEP, mas conseguia imaginar do que se tratava.

“Nyarlathotep era uma espécie de showman itinerante, ou conferencista, que se apresentava em teatros públicos e despertava medo generalizado e discussões com suas exibições. Estas exibições consistiam de duas partes – a primeira, uma horrível – possivelmente profética – mostra cinematográfica, e depois de algumas experiências extraordinárias com aparelhos científicos e elétricos. No momento em que recebi a carta, parecia-me lembrar que Nyarlathotep já estava em Providência …. Parecia-me lembrar que pessoas haviam me contado em sussurros cheios de admiração e terror sobre seus horrores, me avisando para não chegar perto dele. Mas a carta onírica de Loveman já havia me convencido… quando saí de casa, vislumbrei uma multidão de homens se arrastando pela noite, todos sussurrando cheios de terror, se movendo em uma direção. Eu me rendi e me uni a eles, amedrontado mas ansioso para ver e ouvir o grande, o obscuro e o inominável Nyarlathotep.”

 

Esta primeira descrição do Arauto do Caos fez com que muitas pessoas, como Will Murray, chegassem a especular que este sonho foi inspirado por Nikola Tesla, cujas demonstrações públicas eram experiências extraordinárias, realizadas com aparelhos elétricos, que acabaram dando a Tesla uma fama, de certa forma, sinistra. Macacos, com ou sem rabo, peludos ou carecas, sempre buscarão a explicação menos assustadora para as luzes que surgem no céu, rugindo como um leão.

O mundo de Lovecraft, e estou sendo literal aqui, ou seja, o lugar onde ele existia, não era exatamente o nosso. Ele existia neste mundo em que habitamos, mas também existia em seus sonhos. Seus contos “criativos”, não eram meras alegorias racionais, mas transcrições, muitas vezes extremamente fiéis, das imagens que via quando sua mente racional era desligada. Nyarlathotep não era uma versão macabra de Tesla, Nyarlathotep era, e é, uma manifestação real do mundo que Lovecraft acessava via seus sonhos. E assim que começou a escrever sobre aquele que chamou de “O Caos Rastejante”, Lovecraft começou a infectar todos aqueles que liam seus contos.

Nyarlathotep aparece em apenas quatro contos e dois sonetos de Lovecraft – nenhuma outra criatura do Mito recebeu tanta atenção – mas com o tempo começou a surgir em inúmeros outros trabalhos de diferentes escritores.

O Homem Negro difere dos outros seres do Mito de inúmeras maneiras. A maioria deles foram exilados para as estrelas, como Hastur, ou se encontram aprisionados, como Cthulhu; Nyarlathotep, no entanto, está na ativa e freqüentemente anda pela Terra na forma de um ser humano, geralmente um homem magro e alto. Se no momento vivemos em um hiato onde os Antigos e os Deuses Mais Antigos estão em “stand-by” esse hiato parece não afetar o Arauto do Caos. Nyarlathotep tem “milhares” de outras formas, a maioria delas tem a reputação de ser enlouquecedoramente horríveis.

Grande parte dos Deuses Exteriores possuem seguidores e cultos que os servem; Nyarlathotep não, ele age como intermediário entre esses cultos e algo além. Eu arrisco dizer que ele é o link, o cabo de rede que liga de cada um dos diferentes cultos ao servidor primordial cego e idiota, de onde tiram o seu poder.

Nyarlathotep não apenas decreta a Vontade dos Deuses Exteriores, ele personifica esta Vontade. É seu mensageiro, coração e alma. Desta forma lidar com ele se torna um exercício não apenas de abraçar a loucura, a ruptura dessa coisa frágil que chamamos sanidade, mas de se tornar um tentáculo desta loucura. Não é à toa que alguns sugerem que será ele o responsável pelo fim da raça humana e deste planeta.

Nyarlathotep, Poderoso Mensageiro… desça do mundo dos Sete Sóis para zombar… Grande Mensageiro, o que trouxe a estranha alegria a Yuggoth através do vazio, Pai dos Milhões de favorecidos… Como explorar os aspectos místicos deste avatar, sem nos atirarmos dos mais altos edifícios? Como calcular a Gematria Cancerígena de seu nome?

NIRLAThTP = 780

MChQRI RZI MTH VMOLH {os mistérios mais profundos abaixo e acima}

ShPTh {lábio, linguagem; costa, fronteira}

Ophis {serpente, cobra}

 

NIRLAThVTP = 786

ShMSh OVLM {Sol do Mundo; Sol Eterno}

PShVTh {suave}

asteios {agradável, belo}

 

Niarlathotep = 656

Messias {O Ungido}

OQLThVN {O Tortuoso}

ShShVN {alegria, satisfação}

Assim que sonhou com Nyarlathotep, Lovecraft – Amor à Arte – o identifica com o Caos Rastejante e descreve como “o fascínio e aliciamento de suas revelações” por fim o levou a algum “cemitério revoltante do universo”, que é assombrado pela “aguda lamentação monótona de flautas blasfemas de inconcebíveis câmaras obscuras de além do tempo. ”

Nyarlathotep = 1046

aei polon {moto perpétuo, um dos títulos de Pan}

Eli eli leina sabachthani {Meu Deus, Meus Deus, por que me abandonaste?}

“Em minha solidão vem –
O som de uma flauta em bosques escuros que assombram as colinas longínquas.
Mesmo a partir do rio bravo chegarem até a borda
do deserto. E eu contemplo Pan ”

– Liber VII, Prólogo do não Nascido, 1-4, Crowley.

Nyarlathotep = 1776

Apokalypsis alethejas {Revelação da Verdade}

O Messias ek nekron {O Messias dos Mortos}

To alethinon Inysterion {O Mistério Verdadeiro}

Atributos que enfatizam o aspecto mensageiro de Nyarlathotep, ele que é o Messias do Caos, o Primeiro Emissário dos Grandes Antigos, o Mestre Negro do Necronomicon ~ Lovecraft apenas sonhou com o livro após ter sido apresentado a Nyarlathotep.

Mil máscaras escondem sua forma, privam o universo do horror de sua fisionomia. Há séculos caminhando pela Terra, chamado por mil nomes, adorado pelos insanos, os marginais, as filhas da histeria, os loucos solitários, os grupos de escolhidos.

No Congo surge como Ahtu, uma massa gelatinosa de onde saem tentáculos dourados. É adorado por humanos sem esperança, aqueles que habitam na própria loucura. Trazem em seu corpo os sinais de sua adoração – auto-mutilação. Amputados, cobertos de cicatrizes causadas por espancamentos e açoites que quase os levaram à morte. O culto moderno se mescla com o Vodu, seus sacerdotes o evocam com o uso de braceletes dourados.

Na Inglaterra é chamado de Black Man – o Homem Negro. Surge como um homem calvo, mais escuro do que a noite sem lua, apesar de suas feições caucasianas. Possui cascos e é adorado por covens de feiticeiras.

No Egito é conhecido como o Faraó Negro, e tem a aparência de um. Adorado pela Irmandade do Faraó Negro.

No Quênia é temido como o Vento Escuro, uma tempestade que varre a existência da face da Terra.

A Mulher Inchada Chinesa. A caricatura de um ser humano morbidamente obeso, coberto de tentáculos, que utiliza um leque para criar a ilusão de uma delicada donzela. Seu culto conta com emissários em Estocolmo.

Aqueles que alcançam a Terra dos Sonhos percebem sua presença como a pútrida neblina rastejante.

Os estudiosos das Artes Negras às vezes entram em contato com um demônio negro, que promete riquezas e poder, se dispondo a revelar uma sabedoria esquecida pelos primeiros seres criados no universo. Infelizmente para todos que compactuam com a criatura, ela cumpre sua parte do trato.

Na Califórnia, no Tennessee e na Louisiana já foi chamado de O Escuro. Um homem negro como o óleo que jorra do chão, sem a face. Com altura que ultrapassa os 2,40m é incapaz de ser detido por barreiras físicas.

O Que Vive nas Trevas. A criatura dos mil apêndices que habita a Floresta de N’gai.

No Antigo Egito enviava a mente de seus seguidores a eras remotas do tempo. Era adorado e temido como o Deus Sem Face, na forma de uma Esfinge Negra e sem rosto.

No Haiti o chamam de O Horror que Flutua, uma forma gelatinosa azulada, coberta de veias vermelhas, que surge no mar.

Austrália, Providência – Ilha de Rodes – e Yuggoth… nesses locais uma criatura semelhante a um morcego inchado. Ele evita a luz, como se ela o ferisse fisicamente. Adorado nesta forma pelo Culto da Sabedoria Estrelar, na América, que o evoca através do Trapezohedro brilhante. No continente australiano, aborígenes desajustados também lhe dão o título de Devorador de Faces, Asa Negra, Morcego da Areia, Pai dos Morcegos.

O Que Uiva na Escuridão. Na região norte dos Estados Unidos existem relatos de um gigante que possui um único tentáculo no lugar do rosto, que uiva pelas florestas. Relatos da Floresta de N’gai descrevem a mesma criatura.

L’rog’g! É Assim que os seres cubóides de L’gy’hx chamam o enorme morcego de duas cabeças.

Em São Paulo, Natal, Brasília, Mato-Grosso e na Califórnia, perguntando às pessoas certas, certificando-se de que não temam se passar por tolas, você pode ter a sorte de ouvir os relatos sobre o Sete Peles.

Os semitas antigos o chamaram de Samael, e hoje ainda é adorado em Israel pelo Culto de Malkira. Alguns gnósticos chegaram a afirmar que ele é o Demiurgo, que se fez passar como o criador para Moisés e lhe ditou os livros do Antigo Testamento.

Na Malásia aqueles que conhecem as velhas histórias temem Shugoran, aquele que se disfarsa como um homem negro, tocando um chifre enorme antes de grandes desgraças se abaterem sobre aqueles que escutam o som.

Em hospícios ao redor do mundo, é possível ouvir sobre o Homem Sussurrante, que atormenta os sonhos dos já insanos, lhes mostrando futuros desastres e guerras e sabendo que jamais acreditarão em seus profetas.

A Coisa Com a Máscara Amarela. Alguns afirmam que ele é o único ocupante do monastério sem nome construído no Platô de Leng, e o chamam de o Sumo Sacerdote que Não Deve Ser Descrito.

Esse é o caminho mais apropriado para quem quiser abraçar o universo de Lovecraft. Em vez de desesperadamente tentar encaixar os Deuses Antigos neste ou naquele sistema anterior veja as coisas como elas foram transmitidas. Somente assim algo novo pode explodir. Não tente categorizar nada, mas sim deixe que o nada categorizar você.

por LöN Plo

[…] Postagem original feita no https://mortesubita.net/lovecraft/biologia-miskatonica-as-tripas-de-nyarlathotep/ […]

Postagem original feita no https://mortesubita.net/lovecraft/biologia-miskatonica-as-tripas-de-nyarlathotep/

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