Há uma lenda bastante difundida entre as religiões ocidentais que afirma, basicamente, que o monoteísmo, a “descoberta” do Deus Único, foi uma concepção originária do judaísmo. Segundo esta lenda, existem no mundo algumas poucas religiões monoteístas, derivadas da crença hebraica, e outras tantas que creem na existência de vários deuses de origem paralela – o chamado politeísmo.
A verdade, no entanto, pode ser mais profunda… Joseph Campbell foi um estudioso de mitos e religiões em todo o globo, e em O poder do mito ele deixa muito claro o que acredita ser a principal diferença entre as grandes religiões ocidentais, e as orientais: Enquanto a oeste do canal de Suez, a maioria das pessoas identifica Deus com a fonte da Alma do Mundo, a leste de Suez, a associação que se faz é a da divindade como o veículo desta energia transcendente.
Por isso as religiões ocidentais tendem a identificar a Deus como um Grande Senhor que, sabe-se lá de onde, mantém a fonte da vida em constante afluência, enquanto que as religiões orientais tendem a ver esta divindade por toda a volta – ela seria o próprio fluido em movimento, a habitar a essência de todos os seres e de todas as coisas.
O curioso é que ambas as visões são complementares, e parecem ser apenas formas diferentes de se observar este grande mistério: “porque existe algo, e não nada?” Para resolver tal questão ancestral, a mente humana tem se aventurado a observar os recônditos mais distantes do Cosmos, e a mergulhar cada vez mais profundamente dentro de si mesma… Este grande conjunto de dualidades, de opostos, emanados de uma única fonte, mas que preenchem a tudo o que há, é precisamente isto a roda dos deuses. Reflitamos:
O Uno
Conta-nos o estudioso de mitologia e religiões, Mircea Eliade [1], que os poetas criadores do Rig Veda hindu já se questionavam, provavelmente muito tempo antes dos hebreus, acerca do problema do ser, ou do incrível fato de, afinal, algo existir: “O Uno respirava por impulso próprio, sem que houvesse inspiração ou expiração (…) Afora isso, nada mais existia”. Depois, segundo eles, através de um ato de desejo e vontade, a “semente primeira” dividiu-se em “alto” e em “baixo”, num princípio masculino e noutro feminino, e depois irradiou ou emanou de si mesma, como um pensamento, tudo o que há.
Desta forma, os milhares de deuses hindus são, eles mesmos, uma “criação secundária”. Daí nasce o grande questionamento de um desses poetas hindus anônimos e ancestrais: “Será que aquele que zela por este (mundo) no lugar mais alto do firmamento é o único a saber (da origem da “criação secundária”) – ou nem mesmo ele sabe?”.
Se é verdade que nem todas as interpretações dos Vedas chegaram a tal profundidade, não é verdade que nenhum sábio hindu tenha chegado a conclusões muito próximas dos hebreus – tudo o que há haveria de ter sido criado ou irradiado de uma só fonte, de um só Deus. Dessa forma, a ideia básica do monoteísmo está longe de ser uma criação do judaísmo, ou pelo menos, apenas do judaísmo.
Esta mesma conclusão está presente no Antigo Egito (particularmente no hermetismo), na filosofia de Parmênides (e alguns filósofos pré-socráticos que não a desenvolveram com a mesma profundidade), no estoicismo, no pensamento de Plotino e, mais recentemente, na monumental obra de Espinosa, a Ética.
Mas, e seria este Uno um ser pessoal, ou alguma espécie de energia inefável, de força ou lei oculta da Natureza? Disto não podemos saber, apenas apostar… Mas, ainda que apostemos na hipótese da energia inefável, ainda aqui teremos sido precedidos por Lao Tsé em muitos séculos: “O Caminho é vazio e inesgotável, profundo como um abismo. Não sei de quem possa ser filho, pois parece ser anterior ao Soberano do Céu” (Tao Te Ching, verso 4).
A Deusa Mãe
A adoração do aspecto feminino, fértil e vivificador da divindade data da pré-história (o que pode ser comprovado pelas inúmeras estatuetas de uma “grande mãe” encontradas pelos arqueólogos em vários pontos do mundo).
Quase 3 mil anos antes de Cristo, na grandiosa cidade de Uruk, na Suméria, o templo de Ishtar dominava a civilização da primeira grande cidade. Ishtar, entretanto, era apenas mais um nome dado a Grande Deusa, que era adorada então por muitas outras culturas na Terra. Nada se comparava ao poder da mulher. Toda a vida provinha dela e sem seu alimento nenhuma vida sobreviveria. A Mãe era a vida. A Terra era a Mãe. Deus era Mulher. O matriarcado dominou grande parte do período em que se cultuou a Deusa Mãe.
Certamente o advento da agricultura contribuiu ainda mais para que o mistério do nascimento ocupasse um ponto central das religiões antigas. A Terra era associada ao ventre e, como os vegetais, os homens nasciam do solo, e voltavam ao solo durante a morte. Provavelmente tais mitos tenham sido a fonte primária dos mitos de criação do homem a partir do solo, presentes não somente na mitologia hebraica como em alguns mitos africanos bastante similares.
Mas com o tempo, e o advento das primeiras cidades (com estoques de grãos), dos saqueadores de cidades, e dos exércitos que guardavam as cidades dos saqueadores, o mundo tornou-se mais bruto e violento, e o matriarcado foi sendo suprimido pelo patriarcado. A Deusa Mãe saía de cena…
O “deus do pai”
Ainda nos conta Mircea Eliade que a religião dos patriarcas hebreus, já desde Abraão, era muito próxima ao culto dos antepassados, prática comum tanto do paganismo como de doutrinas orientais, como o budismo e o xintoísmo. O “deus do pai” é primitivamente o deus do antepassado imediato, que os filhos reconhecem. É um deus dos nômades e pastores, que não está ligado a santuários fixos, mas acompanha e protege um grupo de homens. Ele “se compromete diante de seus fiéis por meio de promessas” – o que fica muito claro nas barganhas relatadas no Antigo Testamento (“faça isto por mim, que farei isto por você”) [2].
Mas ao penetrarem em Canaã, os patriarcas são confrontados com o culto do deus El (o Deus Criador nas culturas suméria e babilônica), e o “deus do pai” acaba por lhe ser identificado [3]. Dessa forma, obtém a dimensão cósmica que não podia ter como uma divindade de famílias e clãs.
O “deus do pai”, o deus dos patriarcas hebreus, torna-se o Deus Criador e, dessa forma, é também associado ao Uno, ao “único Deus”. Mas isto não foi “a origem do monoteísmo”, como dizem as lendas, mas tão somente um dentre muitos sincretismos religiosos similares, que ocorreram não somente em Canaã, como em diversas outras partes do mundo…
» Em seguida, a roda continua a girar com as entidades divinas e os avatares…
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[1] Alguns dos trechos de livros sagrados nesta série de artigos foram retirados de seu livro, História das crenças e das ideias religiosas, vol I (Zahar).
[2] As barganhas religiosas, onde “se cobra a Deus por sua parte do trato”, existem até os dias de hoje. É surpreendente que certas igrejas, que teoricamente são protestantes, ainda hoje colaborem para esta prática de uma espiritualidade tão superficial.
[3] É por isso que o Deus hebreu ora é chamado de Javé, ora de Elohim. Javé seria o “deus do pai”, e Elohim seria sua associação a El.
Crédito da foto: Frederic Soltan/Corbis (O Templo do Sol de Konark, Orissa/Índia)
O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.
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Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/a-roda-dos-deuses-parte-1