Por Mirella Faur
Enquanto na Europa a “redescoberta da Deusa” precisou de muito tempo, pesquisa e empenho dos pesquisadores, mitólogos e historiadores para realizá-la, na Índia esta tarefa foi muito facilitada devido às milhares de figuras de Deusas e estátuas femininas, oriundas do terceiro e segundo milênio a.C. Apesar das restrições dos cultos e dos arquétipos das deusas impostas pela civilização ariana a partir de 1000 a.C., a história da tradição hindu é uma viva comprovação da continuidade da sacralidade feminina. A Grande Mãe hindu é viva e presente na vida de milhões de pessoas e nos seus inúmeros cultos e templos; seu nome em sânscrito e nas muitas línguas correlatas é simplesmente Devi, equivalente ao termo greco-romano Dea ou Thea.
Devi é representada por diversas manifestações e nomes como Aditi Uttanapada ou Adyia Shakti, Lajja Gauri, Renuka (esposa do sábio Jamadagni e cultuada como Matangi e Yallamama, a Mãe de todos), Kotavi, a deusa nua, Kotta Mahika, Kotmai e inúmeras outras denominações. Devi é a mais antiga Deusa existente no hinduísmo e cujo culto predomina nas áreas tribais da Índia central em Gujarat, Amravati, Bastar e Maharashtra. Suas esculturas datadas do período 150-300 d.C., encontradas em Andhra Pradesh e Karnataka são guardadas em vários museus arqueológicos. Em Badami, sobreviveram muitos dos templos antigos encontrados nas grutas, mas existe um deles, dedicado à Deusa, dentro do recinto da cidade, construído no império Chalukya, que floresceu durante o século VI.
Segundo relatos históricos, nas regiões pré-védicas da Índia, a Grande Mãe era cultuada como a personificação de todas as energias fertilizadoras da natureza, representada em esculturas e gravuras como uma figura de mulher nua, de cócoras ou com as pernas abertas, a vulva exposta e plantas saindo do seu ventre. Estas figuras são quase sempre sem cabeça ou rostos definidos, têm órgãos sexuais em evidência, os braços elevados acima das cabeças, deitadas ou parecem saindo das entranhas da terra. Considera-se a ausência da cabeça como um convite para focar a atenção no aspecto fisiológico e na ênfase da energia vital e sexual, que indica seus atributos de fertilidade e abundância da natureza.
Lajja Gauri é uma das deusas hindu associada com abundância, fertilidade e sustentação da vida e cujo atributo era “modéstia” (lajja). Foram encontradas referências sobre seu culto no vale do rio Indo e na Índia subcontinental, oriundas das culturas neolíticas Harappa e Saraswati. Estatuetas em terracota foram achadas em vários lugares da Índia e as mais antigas datam do século I d.C. como as de Rajastão. Entre elas, a mais relevante é uma escultura em argila de Lajja Gauri no seu aspecto de Uttanapad, agachada e de pernas abertas, datada de 650 d.C. e que se encontra atualmente no museu de Badami. O aspecto de fertilidade é enfatizado pela representação simbólica da sua yoni (região genital) como um lótus florindo. Quando Lajja Gauri aparece agachada, na posição chamada de uttanapad (com a vulva exposta e detalhada), com as pernas flexionadas e abertas como no ato de parir, seu pé direito é colocado numa plataforma para facilitar a ampla abertura do ventre. O seu corpo nu e com seios fartos tem apenas um pano ao redor das coxas e é enfeitado com um colar chamado channavira, que circunda o pescoço, cruza entre os seios, passa ao redor da cintura e sobe pelas costas. Ela também tem pulseiras nos pulsos e tornozelos, que sobem como cipós enroscados ao redor dos braços e pernas e que terminam em forma de folhas; os dedos da mão direita formam a svastika (símbolo da boa sorte e bem estar). Muitas deusas antigas e regentes da fertilidade aparecem sem cabeça e com um foco exagerado nas genitais, seus braços elevados segurando um lótus na altura da cabeça, que também é representada por um lótus.
Por não existirem textos védicos sobre a iconografia de Gauri, é possível que ela não detivesse uma posição de destaque no panteão original hindu, apesar da sua forte presença em várias regiões da Índia, especialmente em Bastra, Lanja, na Índia central e no Sul. Conclui-se que o seu culto era muito antigo e que foi adotado depois nas tradições e figuras de Sati e Parvati. Gauri é denominada muitas vezes de Lajja Gauri, “A Criadora” ou simplesmente de Aditi Uttanapad, a “Deusa sem cabeça”, como aparece nos textos dos arqueólogos, historiadores e pesquisadores modernos. Aditi é a mais antiga Deusa Mãe, que regia o céu, a terra, o ar e unia em si o poder masculino e feminino. A Grande Mãe neolítica de Harappa foi posteriormente transformada no conceito de Aditi da cultura védica, citada no texto sagrado de Rig Veda como a ”Mãe dos deuses” e representada na posição de uttanapad.
Durante os séculos VI – XII o culto de Aditi/Gauri se expandiu em toda a Índia e suas imagens em terracota eram encontradas nas casas e nas paredes dos templos. Todavia, a partir do século XIII, aos poucos, a sua relevância foi diminuindo e ela se tornou cada vez mais obscura e esquecida. Este declínio foi devido ao fanatismo dos muçulmanos e depois dos cristãos, que condenavam e proibiam qualquer menção à nudez ou sexualidade feminina. Existem lendas orais nas regiões rurais que descrevem Gauri como Matanji, a forma proscrita e humana de Parvati, que ignorava e desafiava as regras, convenções e hierarquias sociais. Em outra lenda Gauri é descrita como Renuka, a esposa decapitada de um nobre, que por ser transformada em Deusa recebeu um lótus no lugar da cabeça. Ambas as histórias sugerem a transcendência e persistência do princípio feminino, que ultrapassou a supremacia fictícia dos sistemas sociais feitos pelo homem, repressores ou controladores da força pura, viva e criativa da mulher.
Certos textos citam Gauri como uma manifestação da deusa Parvati, cujos epítetos eram Uma e Aparna, designando seu aspecto de sustentadora da vida. Parvati representa Shakti ou a Mãe Divina, que pode se manifestar com várias formas, inclusive como Durga ou Kali. A apresentação original de Parvati era com a pele negro-azulada, mas após um longo retiro de práticas de austeridade ela se livrou do invólucro escuro, que se metamorfoseou como a negra e furiosa Kali, Parvati sendo renomeada Gauri, “a dourada”. A própria Kali, após dançar no cadáver de Shiva, se transforma também na dourada e benevolente Gauri. Ao descrever a cor de Parvati ela aparece ora como “a dourada Gauri”, ora como a “negra Kali”.
Na sua versão mais antiga, Gauri era reverenciada como uma deusa solitária, representante dos poderes femininos dinâmicos, que simbolizava a ambivalência perene, por conter em si as polaridades de luz e sombra e passar da cor negra para a dourada. A ênfase nos seus seios (sugerindo a nutrição e sustentação da vida) e na vulva (o portal de entrada na vida) indicava sua manifestação como yoni, a contraparte feminina do símbolo masculino lingam (o falo), que representa os deuses. Às vezes, sua cabeça é substituída por uma flor de lótus, uma imagem usada no tantrismo, os chacras representados como flores de lótus. No seu Sri Yantra a Deusa aparece na forma simplificada do yoni, um triângulo no centro da mandala.
O mito na sua versão mais recente é associado com a mudança da cor da pele negra da deusa Parvati. Ela teria tentado seduzir o deus Shiva, mas ele não a achou atraente, nem interessante. Magoada pela rejeição, Parvati se refugiou na floresta e no isolamento na natureza realizou vários ritos de purificação e desenvolvimento espiritual. O seu empenho atraiu a atenção do deus Brahma, que decidiu lhe conferir a realização de um desejo. Parvati pediu que a sua cor negra desaparecesse para que Shiva passasse a amá-la. Brahma retirou a sua pele negra e dela criou Kali e em troca deu-lhe a cor dourada e assim Parvati se transformou na deusa Gauri. Pode-se perceber facilmente a conotação pejorativa, machista e racista deste mito, a pele negra vista como inferior (conceito evidente também no sistema hindu das castas) e a cor branca superior e equivalente ao presente divino, recebido como um prêmio de merecimento pelo crescimento espiritual.
Outro mito patriarcal descreve o que teria feito Shiva para testar a modéstia de Parvati, desnudando- a publicamente. Pela vergonha sentida, a cabeça dela teria mergulhado dentro do corpo para provar assim sua modéstia (lajja) e justificar o nome de Lajja Gauri. Porém a existência atávica deste arquétipo da deusa na psique humana sem ter uma cabeça bem definida é visível na mais antiga escultura feita pelo ser humano que é a Deusa de Willendorf (datada de 30000 a.C.), sem ter o rosto definido e cuja cabeça lembra o botão de uma flor. A falta de definição do rosto e a ênfase nos atributos exagerados de fertilidade (ventre e seios aumentados) comprovam os antigos cultos de fertilidade, essenciais para a sobrevivência das culturas ditas primitivas.
Gauri é invocada para facilitar a gravidez, os partos e a abundância das colheitas. Os seus atributos envolvem proteção, fertilidade, primavera, colheita, beleza, bom humor, jovialidade, igualdade, prosperidade. Seus símbolos são incenso de bálsamo, objetos dourados, leite, espelho e leão. Ela ouve as súplicas dos seus fieis e concede abundância, beleza e ternura para suas vidas, sendo considerada a padroeira dos casamentos.
Nas obras de arte Gauri aparece como uma jovem dourada, cercada por leões, segurando um espelho e um galho de bálsamo. Ela teria nascido da espuma do mar leitoso e é associada com o Sol, fontes, cereais, vegetação e arroz, que são suas oferendas juntamente com o leite. Parvati no seu aspecto de Gauri usa um sari verde coberto de talismãs de amor e está sentada junto de Shiva. Nos tempos antigos, o seu torso representava um pote, símbolo de riqueza e prosperidade, ou era coberto por uma trepadeira, simbolizando a seiva nutridora das plantas.
Gauri é celebrada no festival de Ganesha Chathurti junto com Ganesha (seu filho) com tambores, cantos e muita música. Acredita-se que ambas as divindades levam através das suas estátuas (feitas de argila e depois imersas na água) bênçãos de saúde, prosperidade, e felicidade para as casas das pessoas. As mulheres casadas pedem felicidade para seus casamentos e as solteiras para encontrar um bom marido. Para isso elas fazem Gauri Parvati Vrat, um puja de austeridade e jejum com frutas durante cinco dias, cultivando depois brotos de trigo oferecidos para Gauri e Surya, o deus solar. Outro festival é Gowri Puja, celebrado pelos amigos e vizinhos precedido pela limpeza das casas, cujo chão é coberto com folhas de bananeira. As estátuas da Deusa dos templos e das casas são banhadas com leite, mel e ghee (manteiga clarificada) e depois vestidas com saris dourados e com ornamentos femininos (colares, pulseiras, brincos no nariz) e guirlandas de flores na cabeça. As oferendas tradicionais são de guirlandas de flores, mangas e uma pasta feita de açafrão e sândalo, além de leite de coco, cereais, mel, ghee e um espelho. São confeccionadas pulseiras com dezesseis nós chamados de gauridaara, abençoados em nome de Gauri e presas nos pulsos e tornozelos.
Com o passar do tempo e em função da localização geográfica, os rituais foram mudando seu perfil e datas, porém preservando sua intenção original que é propiciar orações e oferendas e pedir as bênçãos da Deusa. Em alguns lugares da Índia, para celebrar a colheita, é confeccionada uma figura feminina de espigas e flores, que são abençoadas antes de serem colhidas. A boneca é vestida com um sari dourado e enfeites (colares, pulseiras) e uma guirlanda de flores na cabeça depois levada em procissão por uma garota que entra nas casas e segue marcas de pés no chão feitas com pasta vermelha representando as pegadas da Deusa. Como agradecimento por personificar Gauri, a garota recebe doces e enfeites.
No Rajastão, em Mharashtra, no festival de Gauri Pujan, a Deusa é celebrada como regente da abundância e padroeira dos casamentos. As mulheres carregam suas estátuas para os rios para lavar, dançando ao seu redor e pedindo abundância nas colheitas, pois sua cor sagrada é o amarelo do Sol, do trigo e do milho maduro. Nas imagens mais recentes de Gauri ela aparece com quatro mãos, sua mão direita superior na posição que afasta os medos e a direita inferior segura um tridente. A mão esquerda superior leva um damaru (um pequeno tambor de guizo) e a inferior está na posição de garantir dádivas a seus devotos. Nas oferendas se usam frutas, flores, arroz cozido com especiarias e mel, panos coloridos ou dourados.
A celebração de Mangala Gauri é feita apenas por mulheres, que cantam, batem palmas ou tambores e dançam a noite toda, vestidas nas suas melhores roupas; entoando cantos sagrados, elas se dão as mãos e giram em círculos. Mangala significa sagrado e auspicioso e a ocasião do festival é de muita alegria. Durante os festivais em sua honra na região de Maharashtra, as mulheres solteiras colocam suas roupas mais belas, fazem oferendas e pedem para que a Deusa lhe traga o marido escolhido. Já as casadas rogam por uma vida conjugal feliz.
Gauri simboliza a fertilidade, a maternidade, a nova vida, os bons auspícios e a vitória do bem sobre as forças do mal. Por representar pureza e austeridade, ela ilumina os buscadores espirituais e remove o medo do renascimento, garantindo a salvação. Seu poder é infalível e instantaneamente frutífero; como resultado de sua adoração, todos os pecados do passado, presente e futuro são levados pela água e os devotos recebem a purificação em todos os aspectos da vida através dos raios dourados que saem das suas imagens.
Acredita-se que para atrair sua proteção e a boa sorte para os relacionamentos, devem lhe ser ofertados doces, comendo-se um deles ao deitar para atrair doçura em sua vida. Um ritual feito com mel, na lua nova ou crescente de agosto ou no dia do seu festival, levaria doçura e amor à alma e as oferendas de frutas e flores trariam as bênçãos da Deusa.
Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/dia-da-deusa-gauri