Os sufis são uma antiga maçonaria espiritual cujas origens nunca foram traçadas nem datadas; nem eles mesmos se interessam muito por esse tipo de pesquisa, contentando-se em mostrar a ocorrência da sua maneira de pensar em diferentes regiões e períodos. Conquanto sejam, de ordinário, erroneamente tomados por uma seita muçulmana, os sufis sentem-se à vontade em todas as religiões: exatamente como os “pedreiros-livres e aceitos”, abrem diante de si, em sua loja, qualquer livro sagrado – seja a Bíblia, seja o Corão, seja a Torá – aceito pelo Estado temporal. Se chamam ao islamismo a “casca” do sufismo, é porque o sufismo, para eles, constitui o ensino secreto dentro de todas as religiões. Não obstante, segundo Ali el-Hujwiri, escritor sufista primitivo e autorizado, o próprio profeta Maomé disse: “Aquele que ouve a voz do povo sufista e não diz aamin (amém) é lembrado na presença de Deus como um dos insensatos”. Numerosas outras tradições o associam aos sufis, e foi em estilo sufista que ele ordenou a seus seguidores que respeitassem todos os “Povos do Livro”, referindo-se dessa maneira aos povos que respeitavam as próprias escrituras sagradas – expressão usada mais tarde para incluir os zoroastrianos.
Tampouco são os sufis uma seita, visto que não acatam nenhum dogma religioso, por mais insignificante que seja, nem se utilizam de nenhum local regular de culto. Não têm nenhuma cidade sagrada, nenhuma organização monástica, nenhum instrumento religioso. Não gostam sequer que lhes atribuam alguma designação genérica que possa constrangê-los à conformidade doutrinária. “Sufi” não passa de um apelido, como “quacre”, que eles aceitam com bom humor. Referem-se a si mesmos como “nós amigos” ou “gente como nós”, e reconhecem-se uns aos outros por certos talentos, hábitos ou qualidades de pensamento naturais. As escolas sufistas reuniram-se, com efeito, à volta de professores particulares, mas não há graduação, e elas existem apenas para a conveniência dos que trabalham com a intenção de aprimorar os estudos pela estreita associação com outros sufis. A assinatura sufista característica encontra-se numa literatura amplamente dispersa desde, pelo menos, o segundo milênio antes de Cristo, e se bem o impacto óbvio dos sufis sobre a civilização tenha ocorrido entre o oitavo e o décimo oitavo séculos, eles continuam ativos como sempre. O seu número chega a uns cinqüenta milhões. O que os torna um objeto tão difícil de discussão é que o seu reconhecimento mútuo não pode ser explicado em termos morais ou psicológicos comuns – quem quer que o compreenda é um sufi. Posto que se possa aguçar a percepção dessa qualidade secreta ou desse instinto pelo íntimo contato com sufis experientes, não existem graus hierárquicos entre eles, mas apenas o reconhecimento geral, tácito, da maior ou menor capacidade de um colega.
O sufismo adquiriu um sabor oriental por ter sido por tanto tempo protegido pelo islamismo, mas o sufi natural pode ser tão comum no Ocidente como no Oriente, e apresentar-se vestido de general, camponês, comerciante, advogado, mestre-escola, dona-de-casa, ou qualquer outra coisa. “Estar no mundo mas não ser dele”, livre da ambição, da cobiça, do orgulho intelectual, da cega obediência ao costume ou do respeitoso temor às pessoas de posição mais elevada – tal é o ideal do sufi.
Os sufis respeitam os rituais da religião na medida em que estes concorrem para a harmonia social, mas ampliam a base doutrinária da religião onde quer que seja possível e definem-lhe os mitos num sentido mais elevado – por exemplo, explicando os anjos como representações das faculdades superiores do homem. Oferecem ao devoto um “jardim secreto” para o cultivo da sua compreensão, mas nunca exigem dele que se torne monge, monja ou eremita, como acontece com os místicos mais convencionais; e mais tarde, afirmam-se iluminados pela experiência real – “quem prova, sabe” – e não pela discussão filosófica. A mais antiga teoria de evolução consciente que se conhece é de origem sufista, mas embora muito citada por darwinianos na grande controvérsia do século XIX, aplica-se mais ao indivíduo do que à raça. O lento progresso da criança até alcançar a virilidade ou a feminilidade figura apenas como fase do desenvolvimento de poderes mais espetaculares, cuja força dinâmica é o amor, e não o ascetismo nem o intelecto.
A iluminação chega com o amor – o amor no sentido poético da perfeita devoção a uma musa que, sejam quais forem as crueldades aparentes que possa cometer, ou por mais aparentemente irracional que seja o seu comportamento, sabe o que está fazendo. Raramente recompensa o poeta com sinais expressos do seu favor, mas confirma-lhe a devoção pelo seu efeito revivificante sobre ele. Assim, Ibn El-Arabi (1165-1240), um árabe espanhol de Múrcia, que os sufis denominam o seu poeta maior, escreveu no Tarju-man el-Ashwaq (o intérprete dos desejos):
“Se me inclino diante dela como é do meu dever E se ela nunca retribui a minha saudação Terei, acaso, um justo motivo de queixa? A mulher formosa a nada é obrigada”
Esse tema de amor foi, posteriormente, usado num culto extático da Virgem Maria, a qual, até o tempo das Cruzadas, ocupara uma posição sem importância na religião cristã. A maior veneração que ela recebe hoje vem precisamente das regiões da Europa que caíram de maneira mais acentuada sob a influência sufista.
Diz de si mesmo, Ibn El-Arabi:
“Sigo a religião do Amor.
Ora, às vezes, me chamam
Pastor de gazelas [divina sabedoria]
Ora monge cristão,
Ora sábio persa.
Minha amada são três –
Três, e no entanto, apenas uma;
Muitas coisas, que parecem três,
Não são mais do que uma.
Não lhe dêem nome algum,
Como se tentassem limitar alguém
A cuja vista
Toda limitação se confunde”
Os poetas foram os principais divulgadores do pensamento sufista, ganharam a mesma reverência concedida aos ollamhs, ou poetas maiores, da primitiva Irlanda medieval, e usavam uma linguagem secreta semelhante, metafórica, constituída de criptogramas verbais. Escreve Nizami, o sufi persa: “Sob a linguagem do poeta jaz a chave do tesouro”. Essa linguagem era ao mesmo tempo uma proteção contra a vulgarização ou a institucionalização de um hábito de pensar apropriado apenas aos que o compreendiam, e contra acusações de heresia ou desobediência civil. Ibn El-Arabi, chamado às barras de um tribunal islâmico de inquisição em Alepo, para defender-se da acusação de não-conformismo, alegou que os seus poemas eram metafóricos, e sua mensagem básica consistia no aprimoramento do homem através do amor a Deus. Como precedente, indicava a incorporação, nas Escrituras judaicas, do Cântico erótico de Salomão, oficialmente interpretado pelos sábios fariseus como metáfora do amor de Deus a Israel, e pelas autoridades católicas como metáfora do amor de Deus à Igreja.
Em sua forma mais avançada, a linguagem secreta emprega raízes consonantais semíticas para ocultar e revelar certos significados; e os estudiosos ocidentais parecem não ter se dado conta de que até o conteúdo do popular “As mil e uma noites” é sufista, e que o seu título árabe, Alf layla wa layla, é uma frase codificada que lhe indica o conteúdo e a intenção principais: “Mãe de Lembranças”. Todavia, o que parece, à primeira vista, o ocultismo oriental é um antigo e familiar hábito de pensamento ocidental. A maioria dos escolares ingleses e franceses começam as lições de história com uma ilustração de seus antepassados druídicos arrancando o visco de um carvalho sagrado. Embora César tenha creditado aos druidas mistérios ancestrais e uma linguagem secreta – o arrancamento do visco parece uma cerimônia tão simples, já que o visco é também usado nas decorações de Natal -, que poucos leitores se detêm para pensar no que significa tudo aquilo. O ponto de vista atual, de que os druidas estavam, virtualmente, emasculando o carvalho, não tem sentido.
Ora, todas as outras árvores, plantas e ervas sagradas têm propriedades peculiares. A madeira do amieiro é impermeável à água, e suas folhas fornecem um corante vermelho; a bétula é o hospedeiro de cogumelos alucinógenos; o carvalho e o freixo atraem o relâmpago para um fogo sagrado; a raiz da mandrágora é antiespasmódica. A dedaleira fornece digitalina, que acelera os batimentos cardíacos; as papoulas são opiatos; a hera tem folhas tóxicas, e suas flores fornecem às abelhas o derradeiro mel do ano. Mas os frutos do visco, amplamente conhecidos pela sabedoria popular como “panacéia”, não têm propriedades medicinais, conquanto sejam vorazmente comidos pelos pombos selvagens e outros pássaros não-migrantes no inverno. As folhas são igualmente destituídas de valor; e a madeira, se bem que resistente, é pouco utilizada. Por que, então, o visco foi escolhido como a mais sagrada e curativa das plantas? A única resposta talvez seja a de que os druidas o usavam como emblema do seu modo peculiar de pensamento. Essa árvore não é uma árvore, mas se agarra igualmente a um carvalho, a uma macieira, a uma faia e até a um pinheiro, enverdece, alimenta-se dos ramos mais altos quando o resto da floresta parece adormecido, e a seu fruto se atribui o poder de curar todos os males espirituais. Amarrados à verga de uma porta, os ramos do visco são um convite a beijos súbitos e surpreendentes. O simbolismo será exato se pudermos equiparar o pensamento druídico ao pensamento sufista, que não é plantado como árvore, como se plantam as religiões, mas se auto-enxerta numa árvore já existente; permanece verde, embora a própria árvore esteja adormecida, tal como as religiões são mortas pelo formalismo; e a principal força motora do seu crescimento é o amor, não a paixão animal comum nem a afeição doméstica, mas um súbito e surpreendente reconhecimento do amor, tão raro e tão alto que do coração parecem brotar asas. Por estranho que pareça, a Sarça Ardente em que Deus apareceu a Moisés no deserto, supõem agora os estudiosos da Bíblia, era uma acácia glorificada pelas folhas vermelhas de um locanthus, o equivalente oriental do visco.
Talvez seja mais importante o fato de que toda a arte e a arquitetura islâmicas mais nobres são sufistas, e que a cura, sobretudo dos distúrbios psicossomáticos, é diariamente praticada pelos sufis hoje em dia como um dever natural de amor, conquanto só o façam depois de haverem estudado, pelo menos, doze anos. Os ollamhs, também curadores, estudavam doze anos em suas escolas das florestas. O médico sufista não pode aceitar nenhum pagamento mais valioso do que um punhado de cevada, nem impor sua própria vontade ao paciente, como faz a maioria dos psiquiatras modernos; mas, tendo-o submetido a uma hipnose profunda, ele o induz a diagnosticar o próprio mal e prescrever o tratamento. Em seguida, recomenda o que se há de fazer para impedir uma recorrência dos sintomas, visto que o pedido de cura há de provir diretamente do paciente e não da família nem dos que lhe querem bem.
Depois de conquistadas pelos sarracenos, a partir do século VIII d.C, a Espanha e a Sicília tornaram-se centros de civilização muçulmana renomados pela austeridade religiosa. Os letrados do norte, que acudiram a eles com a intenção de comprar obras árabes a fim de traduzi-las para o latim, não se interessavam, contudo, pela doutrina islâmica ortodoxa, mas apenas pela literatura sufista e por tratados científicos ocasionais. A origem dos cantos dos trovadores – a palavra não se relaciona com trobar, (encontrar), mas representa a raiz árabe TRB, que significa “tocador de alaúde” – é agora autorizadamente considerada sarracena. Apesar disso, o professor Guillaume assinala em “O legado do Islã” que a poesia, os romances, a música e a dança, todos especialidades sufistas, não eram mais bem recebidas pelas autoridades ortodoxas do Islã do que pelos bispos cristãos. Árabes, na verdade, embora fossem um veículo não só da religião muçulmana mas também do pensamento sufista, permaneceram independentes de ambos.
Em 1229 a ilha de Maiorca foi capturada pelo rei Jaime de Aragão aos sarracenos, que a haviam dominado por cinco séculos. Depois disso, ele escolheu por emblema um morcego, que ainda encima as armas de Palma, a nossa capital. Esse morcego emblemático me deixou perplexo por muito tempo, e a tradição local de que representa “vigilância” não me pareceu uma explicação suficiente, porque o morcego, no uso cristão, é uma criatura aziaga, associada à bruxaria. Lembrei-me, porém, de que Jaime I tomou Palma de assalto com a ajuda dos Templários e de dois ou três nobres mouros dissidentes, que viviam alhures na ilha; de que os Templários haviam educado Jaime em le bon saber, ou sabedoria; e de que, durante as Cruzadas, os Templários foram acusados de colaboração com os sufis sarracenos. Ocorreu-me, portanto, que “morcego” poderia ter outro significado em árabe, e ser um lembrete para os aliados mouros locais de Jaime, presumivelmente sufis, de que o rei lhes estudara as doutrinas.
Escrevi para Idries Shah Sayed, que me respondeu:
“A palavra árabe que designa o morcego é KHuFFaasH, proveniente da raiz KH-F-SH. Uma segunda acepção dessa raiz é derrubar, arruinar, calcar aos pés, provavelmente porque os morcegos freqüentam prédios em ruínas. O emblema de Jaime, desse modo, era um simples rébus que o proclamava “o Conquistador”, pois ele, na Espanha, era conhecido como “El rey Jaime, Rei Conquistador”. Mas essa não é a história toda. Na literatura sufista, sobretudo na poesia de amor de Ibn El-Arabi, de Múrcia, disseminada por toda a Espanha, “ruína” significa a mente arruinada pelo pensamento impenitente, que aguarda reedificação.
O outro único significado dessa raiz é “olhos fracos, que só enxergam à noite”. Isso pode significar muito mais do que ser cego como um morcego. Os sufis referem-se aos impenitentes dizendo-os cegos à verdadeira realidade; mas também a si mesmos dizendo-se cegos às coisas importantes para os impenitentes. Como o morcego, o sufi está cego para as “coisas do dia” – a luta familiar pela vida, que o homem comum considera importantíssima – e vela enquanto os outros dormem. Em outras palavras, ele mantém desperta a atenção espiritual, adormecida em outros. Que “a humanidade dorme num pesadelo de não-realização” é um lugar-comum da literatura sufista. Por conseguinte, a sua tradição de vigilância, corrente em Palma, como significado de morcego, não deve ser desprezada.”
A absorção no tema do amor conduz ao êxtase, sabem-no todos os sufis. Mas enquanto os místicos cristãos consideram o êxtase como a união com Deus e, portanto, o ponto culminante da consecução religiosa, os sufis, só lhe admitem o valor se ao devoto for facultado, depois do êxtase, voltar ao mundo e viver de forma que se harmonize com sua experiência.
Os sufis insistiram sempre na praticabilidade do seu ponto de vista. A metafísica, para eles, é inútil sem as ilustrações práticas do comportamento humano prudente, fornecidas pelas lendas e fábulas populares. Os cristãos se contentame em usar Jesus como o exemplar perfeito e final do comportamento humano. Os sufis, contudo, ao mesmo tempo que o reconhecem como profeta divinamente inspirado, citam o texto do quarto Evangelho: “Eu disse: Não está escrito na vossa Lei que sois deuses?” – o que significa que juizes e profetas estão autorizados a interpretar a lei de Deus – e sustenta que essa quase divindade deveria bastar a qualquer homem ou mulher, pois não há deus senão Deus. Da mesma forma, eles recusaram o lamaísmo do Tibete e as teorias indianas da divina encarnação; e posto que acusados pelos muçulmanos ortodoxos de terem sofrido a influência do cristianismo, aceitam o Natal apenas como parábola dos poderes latentes no homem, capazes de apartá-lo dos seus irmãos não-iluminados. De idêntica maneira, consideram metafóricas as tradições sobrenaturais do Corão, nas quais só acreditam literalmente os não-iluminados. O Paraíso, por exemplo, não foi, dizem eles, experimentado por nenhum homem vivo; suas huris (criaturas de luz) não oferecem analogia com nenhum ser humano e não se deviam imputar-lhes atributos físicos, como acontece na fábula vulgar.
Abundam exemplos, em toda a literatura européia, da dívida para com os sufis. A lenda de Guilherme Tell já se encontrava em “A conferência dos pássaros”, de Attar (séc. XII), muito antes do seu aparecimento na Suíça. E, embora dom Quixote pareça o mais espanhol de todos os espanhóis, o próprio Cervantes reconhece sua dívida para com uma fonte árabe. Essa imputação foi posta de lado, como quixotesca, por eruditos; mas as histórias de Cervantes seguem, não raro, as de Sidi Kishar, lendário mestre sufista às vezes equiparado a Nasrudin, incluindo o famoso incidente dos moinhos (aliás de água, e não de vento) tomados equivocadamente por gigantes. A palavra espanhola Quijada (verdadeiro nome do Quixote, de acordo com Cervantes) deriva da mesma raiz árabe KSHR de Kishar, e conserva o sentido de “caretas ameaçadoras”.
Os sufis muçulmanos tiveram a sorte de proteger-se das acusações de heresia graças aos esforços de El-Ghazali (1051-1111), conhecido na Europa por Algazel, que se tornou a mais alta autoridade doutrinária do islamismo e conciliou o mito religioso corânico com a filosofia racionalista, o que lhe valeu o título de “Prova do Islamismo”. Entretanto, eram freqüentemente vítimas de movimentos populares violentos em regiões menos esclarecidas, e viram-se obrigados a adotar senhas e apertos de mão secretos, além de outros artifícios para se defenderem.
Embora o frade franciscano Roger Bacon tenha sido encarado com respeitoso temor e suspeita por haver estudado as “artes negras”, a palavra “negra” não significa “má”. Trata-se de um jogo de duas raízes árabes, FHM e FHHM, que se pronunciam fecham e facham, uma das quais significa “negro” e a outra “sábio”. O mesmo jogo ocorre nas armas de Hugues de Payns (dos pagãos), nascido em 1070 ,que fundou a Ordem dos Cavaleiros Templários: a saber, três cabeças pretas, blasonadas como se tivessem sido cortadas em combate, mas que, na realidade, denotam cabeças de sabedoria.
“Os sufis são uma antiga maçonaria espiritual…” De fato, a própria maçonaria começou como sociedade sufista. Chegou à Inglaterra durante o reinado do rei Aethelstan (924-939) e foi introduzida na Escócia disfarçada como sendo um grupo de artesãos no princípio do século XIV, sem dúvida pelos Templários. A sua reformação, na Londres do início do século XVIII, por um grupo de sábios protestantes, que tomaram os termos sarracenos por hebraicos, obscureceu-lhes muitas tradições primitivas. Richard Burton, tradutor das “Mil e uma noites”, ao mesmo tempo maçom e sufi, foi o primeiro a indicar a estreita relação entre as duas sociedades, mas não era tão versado que compreendesse que a maçonaria começara como um grupo sufista. Idries Shah Sayed mostra-nos agora que foi uma metáfora para a “reedificação”, ou reconstrução, do homem espiritual a partir do seu estado de decadência; e que os três instrumentos de trabalho exibidos nas lojas maçônicas modernas representam três posturas de oração. “Buizz” ou “Boaz” e “Salomão, filho de Davi”, reverenciados pelos maçons como construtores do Templo de Salomão em Jerusalém, não eram súditos israelitas de Salomão nem aliados fenícios, como se supôs, senão arquitetos sufistas de Abdel-Malik, que construíram o Domo da Rocha sobre as ruínas do Templo de Salomão, e seus sucessores. Seus verdadeiros nomes incluíam Thuban abdel Faiz “Izz”, e seu “bisneto”, Maaruf, filho (discípulo) de Davi de Tay, cujo nome sufista em código era Salomão, por ser o “filho de Davi”. As medidas arquitetônicas escolhidas para esse templo, como também para o edifício da Caaba em Meca, eram equivalentes numéricos de certas raízes árabes transmissoras de mensagens sagradas, sendo que cada parte do edifício está relacionada com todas as outras, em proporções definidas.
De acordo com o princípio acadêmico inglês, o peixe não é o melhor professor de ictiologia, nem o anjo o melhor professor de angelologia. Daí que a maioria dos livros modernos e artigos mais apreciados a respeito do sufismo sejam escritos por professores de universidades européias e americanas com pendores para a história, que nunca mergulharam nas profundezas sufistas, nunca se entregaram às extáticas alturas sufistas e nem sequer compreendem o jogo poético de palavras pérseo-arábicas. Pedi a Idries Shah Sayed que remediasse a falta de informações públicas exatas, ainda que fosse apenas para tranqüilizar os sufis naturais do Ocidente, mostrando-lhes que não estão sós em seus hábitos peculiares de pensamento, e que as suas intuições podem ser depuradas pela experiência alheia. Ele consentiu, embora consciente de que teria pela frente uma tarefa muito difícil. Acontece que Idries Shah Sayed, descendente, pela linha masculina, do profeta Maomé, herdou os mistérios secretos dos califas, seus antecessores. É, de fato, um Grande Xeque da Tariqa (regra) sufista, mas como todos os sufis são iguais, por definição, e somente responsáveis perante si mesmos por suas consecuções espirituais, o título de “xeque” é enganoso. Não significa “chefe”, como também não significa o “chefe de fila”, velho termo do exército para indicar o soldado postado diante da companhia durante uma parada, como exemplo de exercitante militar.
A dificuldade que ele previu é que se deve presumir que os leitores deste livro tenham percepções fora do comum, imaginação poética, um vigoroso sentido de honra, e já ter tropeçado no segredo principal, o que é esperar muito. Tampouco deseja ele que o imaginem um missionário. Os mestres sufistas fazem o que podem para desencorajar os discípulos e não aceitam nenhum que chegue “de mãos vazias”, isto é, que careça do senso inato do mistério central. O discípulo aprende menos com o professor seguindo a tradição literária ou terapêutica do que vendo-o lidar com os problemas da vida cotidiana, e não deve aborrecê-lo com perguntas, mas aceitar, confiante, muita falta de lógica e muitos disparates aparentes que, no fim, acabarão por ter sentido. Boa parte dos principais paradoxos sufistas está em curso em forma de histórias cômicas, especialmente as que têm por objeto o Kboja (mestre-escola) Nasrudin, e ocorrem também nas fábulas de Esopo, que os sufis aceitam como um dos seus antepassados.
O bobo da corte dos reis espanhóis, com sua bengala de bexiga, suas roupas multicoloridas, sua crista de galo, seus guizos tilintantes, sua sabedoria singela e seu desrespeito total pela autoridade, é uma figura sufista. Seus gracejos eram aceitos pelos soberanos como se encerrassem uma sabedoria mais profunda do que os pareceres solenes dos conselheiros mais idosos. Quando Filipe II da Espanha estava intensificando sua perseguição aos judeus, decidiu que todo espanhol que tivesse sangue judeu deveria usar um chapéu de certo formato. Prevendo complicações, o bobo apareceu na mesma noite com três chapéus. “Para quem são eles, bobo?”, perguntou Filipe. “Um é para mim, tio, outro para ti e outro para o inquisidor-mor”. E como fosse verdade que numerosos fidalgos medievais espanhóis haviam contraído matrimônio com ricas herdeiras judias, Filipe, diante disso, desistiu do plano. De maneira muito semelhante, o bobo da corte de Carlos I, Charlie Armstrong (outrora ladrão de carneiros escocês), que o rei herdara do pai, tentou opor-se à política da Igreja arminiana do arcebispo Laud, que parecia destinada a redundar num choque armado com os puritanos. Desdenhoso, Carlos pedia a Charlie seu parecer sobre política religiosa, ao que o bobo lhe respondeu: “Entoe grandes louvores a Deus, tio, e pequenas laudes ao Diabo”. Laud, muito sensível à pequenez do seu tamanho, conseguiu que expulsassem Charlie Armstrong da corte (o que não trouxe sorte alguma ao amo).
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Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/quem-s%C3%A3o-os-sufis