Noé – o que merece ser salvo? (parte 1)

Nos primeiros meses de 2014 estreou no país mais um filme supostamente “bíblico”, narrando a famosa história da Arca de Noé. Darren Aronofsky, entretanto, não parecia a primeira vista um diretor ou roteirista com muita inclinação a temas demasiadamente religiosos. E, de fato, o seu Noé passa longe de ser uma história “fiel a Bíblia Sagrada”, tanto que gerou comentários como este, de um missionário cristão “enganado pelo trailer do filme”:

O filme tem muitas coisas de mau gosto e interpretações sem nenhum fundamento religioso ou bíblico. Penso que o autor da obra poderia ter respeitado, pelo menos, o essencial da narração do texto bíblico […] A verdade é que o longa-metragem é uma afronta e uma distorção da beleza da revelação divina. Ele não merece ser visto nem apreciado por quem tem a Bíblia como um Livro Sagrado, fonte da revelação divina e inspiração primeira de fé. Existem filmes mais sérios e de roteiros mais qualificados.

Enquanto, ao mesmo tempo, vimos esta “sinopse do filme Noé, escrita por um ateu” fazer certo sucesso nas mídias sociais:

O filme conta a história de um ancião chamado Noé, de 600 anos, que resolve construir um barco após ouvir Deus dizer que mandaria um dilúvio para afogar toda a humanidade. Noé e seus filhos passam a ser responsáveis por acomodar na embarcação quase 5 milhões de casais de animais, incluindo os de continentes ainda desconhecidos. Após serem os únicos sobreviventes do dilúvio, a família de Noé tem um novo desafio: repovoar o planeta através do incesto, e dar origem a povos de diferentes etnias, como negros, pardos, asiáticos, etc.

Ah, nada como o choque de extremos! Enquanto os fanáticos da crença não suportam ouvir a sua querida história fossilizada num livro milenar com sequer uma vírgula fora do lugar, os fanáticos da descrença caçoam ferozmente de qualquer um que tenha ido ao cinema “ver tamanho absurdo ilógico”.

Pois bem, a vantagem de não sermos fanáticos, senão pelo bom senso, é que podemos muito bem ir ao cinema ver o filme de Aronofsky sem nos sentirmos escandalizados nem pelo fato de o roteiro se afastar em muito do Gênesis, nem pelo fato de a história não ser nem um pouco verossímil – pois que se trata de mitologia!

O Dilúvio

São tantas as mitologias que falam de um Grande Dilúvio que cobriu a Terra, que muitos historiadores creem que, de fato, nossos ancestrais devem ter atravessado não uma, mas diversas inundações catastróficas. Pense numa época sem internet, TV, jornais ou telégrafos, onde muitas vezes tudo o que um povo conhecia eram os arredores de sua floresta ou campina… Ora, qualquer inundação capaz de cobrir uma área extensa o suficiente poderia muito bem lhes parecer como se o mundo todo estivesse sendo inundado!

E, de fato, relatos como este não faltam nos mitos dos mais variados povos – muitos deles mais antigos que os hebreus:

Na Epopéia de Gilgamesh, o mais antigo poema épico de que se tem notícia na história, encontrado no Iraque (que, há cerca de 5 mil anos atrás, foi o berço de uma grandiosa civilização antiga, quando a região era então conhecida como Mesopotâmia) por arqueólogos modernos, temos a passagem onde o herói Gilgamesh pergunta a Siduri (deusa do vinho e da sabedoria) como encontrar Utnapishtim, o sobrevivente do Grande Dilúvio e único humano a receber a imortalidade. Ao finalmente encontrá-lo, ouve de sua boca o relato de como os deuses, zangados com o comportamento barulhento e desregrado dos humanos, resolveram destruir os mortais com um dilúvio. Utnapishtim afirma que só foi salvo porque Ea (deus da água) o visitou num sonho e lhe mandou construir um barco. Como fora o único a sobreviver à grande tempestade, os deuses lhe concederam a vida eterna como prêmio (ele provavelmente trouxe algumas mulheres em seu barco).

O conceito de dilúvio como punição divina aparece também na história clássica da Atlântida. No mito da Grécia Antiga, Zeus enviou um dilúvio para punir a arrogância dos primeiros homens. O titã Prometeu advertiu Deucalião, seu filho, da catástrofe eminente. Ele então construiu uma arca e nela se refugiou com a esposa, Pirra. Por nove dias e nove noites ficaram à mercê das águas (um dilúvio mais curto que o bíblico), até pararem no monte Parnaso. Quando as chuvas cessaram, Deucalião ofereceu um sacrifício a Zeus, que em troca lhe concedeu um desejo. O seu desejo foi simplesmente pedir por mais homens e mulheres para os ajudar a repovoar e Terra (um homem prático).

Há muitos mitos parecidos espalhados pelos povos antigos. Em muitos mitos de criação o mundo era formado por um oceano quando em seu estado primitivo; dessa forma, pela sua inundação, os deuses o devolvem ao seu estado inicial, permitindo um recomeço.

Nos contos dos chewongs da Malásia, o criador Tohan transforma o mundo de tempos em tempos, quando submerge todas as pessoas, exceto as que foram prevenidas, e cria uma nova Terra no fundo das águas. Na mitologia nórdica, temos o conto do Choro de Baldur, quando o malvado Loki faz o arqueiro cego e sua flecha de visgo assassinarem o benevolente Baldur, e todas as coisas que existem choraram por ele, causando um dilúvio. Na mitologia hindu, um peixe disse a Manu que as águas cobririam a terra e, novamente, temos uma arca salvando a continuidade da humanidade. Entre os celtas, os poemas do Ciclo de Finn narram a ocupação da Ilha após o Grande Dilúvio. Nos índios americanos, temos a história de Kwi-wi-sens e como ele e seu amigo corvo escaparam do dilúvio causado pelos deuses dos céus… Acho que já deu para entender né? Essa história simplesmente não será esquecida…

O mito de cada um

O que nos leva a questão de compreender o que diabos é exatamente a mitologia. Segundo Joseph Campbell, “um mito é algo que não existe, mas existe sempre”. Com isso, ele queria dizer que os mitos são nada mais que os fatos da mente, os sonhos e pesadelos do consciente e inconsciente humano, encenados “do lado de fora”. O lado exterior, que um cético poderia, quem sabe, chamar de “mundo real”, é o lado que existe no tempo. Mas o lado interior, apesar de também computar a passagem dos dias e noites, faz algo que vai além da capacidade das máquinas e tecnologias mais avançadas: os interpreta!

É na interpretação da vida que sentimos emoções como o amor, o medo, a raiva, a tranquilidade e a angústia. É na constante lembrança e reinterpretação de tais emoções que terminamos por produzir a arte, e toda arte precisa contar uma história – e toda grande arte acaba por tocar na essência atemporal do ser humano, acaba por conceber um mito…

No entanto, como também dizia Campbell, “qualquer deus, qualquer mitologia ou qualquer religião são verdadeiros num sentido – como uma metáfora do mistério humano e cósmico: Quem pensa que sabe, não sabe.

Quem sabe que não sabe, este sim, sabe. Há uma velha história que ainda é válida. A história da busca. Da busca espiritual… Que serve para encontrar aquela coisa interior que você basicamente é. Todos os símbolos da mitologia se referem a você: Você renasceu? Você morreu para a sua natureza animal e voltou à vida como uma encarnação humana? Você venceu o Grande Dilúvio para recomeçar numa nova Terra? Na sua mais profunda identidade, você é um desses heróis, você é também um deus”.

Dessa forma, quando uma criança ouve falar do Homem-Aranha ou do Super-Homem, e logo quer uma fantasia para poder brincar de ser o Homem-Aranha ou o Super-Homem, isto diz mais sobre a mente humana e sobre a mitologia do que julga a vã filosofia.

O que Aronofsky fez em seu filme foi nada mais do que reinterpretar o mito da Arca de Noé. Podemos não gostar da sua interpretação, mas seria realmente infantil (no mal sentido) julgarmos a sua obra “heresia” ou “absurdo ilógico” de antemão, apenas porque, provavelmente, ainda não fazemos a mais vaga ideia do que vem a ser, de verdade, a mitologia.

A mensagem ecológica do filme é clara e evidente. Se no Gênesis a humanidade era punida pelo Criador pelo fato de haverem procriado com “os filhos de Deus” e de, por alguma razão, a maldade haver se espalhado pelo mundo (Ge 6:1-5), no Noé do cinema o homem arrasou com os recursos naturais do planeta, ao ponto de não vermos sequer uma única árvore remanescente até que Noé tenha plantado uma das sementes do Éden que foram guardadas pelo seu avô.

Além disso, Aronofsky também incorre em uma arriscada crítica ao fanatismo religioso, a tornar o próprio Noé um advogado do fim de toda a raça humana, desejando deixar apenas os animais “inocentes” para o novo mundo. A maneira como este enredo de desenrola no filme é um dos pontos mais originais e que mais se afastam da narrativa bíblica – no entanto, se formos analisá-lo do ponto de vista da nossa época atual, se trata de uma adição totalmente válida ao mito.

Que bom que Aronofsky soube interpretar a história do Dilúvio a sua maneira. Porque não podemos, então, fazer o mesmo?

» Em seguida, os mares internos da alma…

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Bibliografia: Guia Ilustrado Zahar de Mitologia (Philip Wilkinson e Neil Philip); Enciclopédia de Mitologia (Marcelo Del Debbio); O Poder do Mito (Joseph Campbell e Bill Moyers)

Crédito da imagem: Noé – O filme (Divulgação)

O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.

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Postagem original feita no https://www.projetomayhem.com.br/no%C3%A9-o-que-merece-ser-salvo-parte-1

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